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LACUNA
U M A R E V I S TA D E P S I C A N Á L I S E – I S S N 2 4 4 7 - 2 6 6 3
Se por um lado isso me parece uma resposta um tanto convincente para que se possa
seguir em frente, por outro, questiono se poderíamos também compreender como um
retorno a um estado de captura de uma lógica social de produtividade que, em certa
medida, teria sido balançada quando pensar sobre “a vida” como efeito da ameaça da
morte tomou conta de nossos dias. Isto é: a volta aos dias sem a escancarada urgência de
sobreviver teria realocado os sujeitos nas “linhas de produção”, forçando o
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Nesse contexto, os sonhos tiveram uma função de buscar elaborar aquilo que às
representações escapava. Foi um momento em que, não por acaso, diversas pesquisas
interessadas em processos oníricos foram desenvolvidas em razão do vasto material que
transbordava. Aos poucos, a produção de sonhos foi reduzida, embora pudesse ainda
aparecer recortes muitíssimo interessantes no estilo próprio aos sonhos, como Freud[3]
afirmava, de realização de desejo, numa viva demonstração da lógica do desejo
inconsciente. Depois do primeiro instante traumático em que nas produções oníricas
apareciam máscaras, medo, morte, monstros disformes, o que a clínica mostrou foi que
nos sonhos vieram festas, encontros, bares, shows. Minha hipótese era de que o trabalho
psíquico via sonhos naquele momento (mais ou menos ao final do ano de 2020),
apontava para a sociabilização. Era uma tentativa de respiro depois de tanto tempo sem
encontrar grupos de amigos, sem colocar o corpo com outros na rua, sem partilhar
coletivamente. Foi o “jeito psíquico” possível que algumas pessoas encontraram para
amaciar a dureza daqueles dias.
vida e a política na vida poderiam ser de outra maneira. Reativar essa “Inteligência
coletiva” como trabalho primordial nessa dobra de cumplicidade entre ciência e
luta: ‘cada um aprendendo a pensar pelos outros, graças aos outros e com os
outros’, como vem falando Stengers, como prática de retomar “o tempo e a
liberdade para se colocar problemas que valham a pena”.[5]
Pois, é entre coisa e outra que se situa o exercício de lembrar e esquecer. É claro que,
como a conhecida passagem de Heráclito de Éfeso sugere, não é possível banhar um
mesmo rio duas vezes, o que coloca em imagem que esse “desejo de retorno” é barrado
pela realidade: há pessoas que não estão mais, há escritórios que não existem mais, há
sentidos que se perderam no meio do caminho — para ilustrar com passagens banais a
expressão menor do que poderia ser compreendido como a impossibilidade de retorno
“a um mesmo lugar”, sem cair em sustentações teóricas que há muito são elaboradas por
tantas pessoas a respeito dessa passagem. Não me ocuparei aqui, considerando o que
está dado: não é possível voltar por não existir o mesmo. Cabe ainda o questionamento
do que nomeio de “empuxo ao familiar”, que retomo mais a frente.
Colette Soler[9] diz que um dos maiores “traumas da civilização” — traumas não sexuais e
não constitutivos — que atravessou a psicanálise ainda em Freud foi a Primeira Guerra
Mundial, em 1914. Freud junto aos seus pares elaborou posteriormente sobre a neurose
de guerra e, em 1918, propôs no V Congresso Internacional de Psicanálise em Budapeste
que algo do alcance público psicanalítico fosse revisitado. Isso convocou a um repensar a
prática clínica limitada aos consultórios particulares e como desdobramento surgiram
pela Europa as clínicas públicas[10].
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apagar. Seria uma combinação entre o próprio ao traumático e a lógica que estrutura o
campo social, como se um atuasse em colaboração com o outro.
O escritor Julián Fuks reuniu em um livro textos que escreveu durante a pandemia que
são um testemunho sobre acontecimentos e pensamentos pandêmicos. Destaco aqui um
trecho de Haverá uma história?:
Haverá uma história para contar quando tudo isso acabar? Haverá razão para ouvir
essa história, e paciência para acompanhar as minúcias de tantas vidas
interrompidas, tantas vidas paralisadas em destempo? Será narrável a magnitude
dessa experiência, tão absoluta e insistente, que de um momento para o outro se
apoderou do mundo inteiro e não nos abandona tão cedo? Ou preferiremos não
narrar nada, nos render ao desejo de seguir em frente, de deixar tudo para trás, de
esquecer, recalcar, ocultando de nós mesmos uma vivência desoladora e agônica,
sem redenção possível?[14]
As perguntas que Fuks levanta nesse trecho destacado, assim como o que questiona em
companhia de Walter Benjamin em O narrador[15] comungam com o que aqui busquei
pincelar. Benjamin é evocado por Fuks a partir da observação contida no início do texto
benjaminiano, de que os combatentes retornavam mudos dos campos de batalha, mais
empobrecidos em comunicar. Depois, Fuks considera que “contar uma experiência
particular será correr o risco de só encontrar ouvidos cansados, ouvidos que se
identificam de imediato e então já não querem ouvir, já podem tomar o diálogo por
terminado”[16]. Esta passagem de Fuks remete-se, com intenção ou não, aos sonhos de
Primo Levi[17] em As nossas noites em que ele narra a indiferença dos que escutam. Os
sonhos que sonham nos campos de concentração, que não é somente uma produção
onírica que lhe pertence, mas que é também o sonho de Alberto e “talvez de todos”. A
cena que se repete de uma narrativa que não é escutada.
Essas considerações são relevantes em tudo que abrem de possibilidade para pensar a
questão da importância da narrativa, do testemunho, assim como para a função e o
desejo de esquecer. No entanto, considero que elas se aproximam do que pode estar
implícito em tentar “retornar ao que era antes”. Depois de tudo, isso pode ser uma
artimanha de contorno que envolve satisfação ao sujeito que agora pode (finalmente)
voltar a algo que conhece bem — o que, em certa medida, pode ser considerado
“familiar”, ao contrário do que foi a ruptura do traumático contingente, que demandou
saídas criativas (e exaustivas) aos sujeitos e ao coletivo frente ao desamparo do não-
sabido que se instaurou. Se antes a ideia era de que surgiria “outra vida”, o que talvez
testemunhemos agora é um “alívio” de retorno ao familiar, ao conhecido.
Isso faz com que o esquecimento seja meio para seguir adiante, embora o traumático do
pandêmico esteja registrado e contabilizado na vida. Nós todos estivemos lá, é possível
sentir rastros e os restos, mesmo que psiquicamente tentemos esquecer. ♦
Referências
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DANTO, Elizabeth Ann (2005) As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social,
1918-1938. Trad. Margarida Goldsztajn. São Paulo: Perspectiva, 2019.
FREUD, Sigmund (1899) Lembranças encobridoras. Em: Volume III das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____. (1900) A interpretação dos sonhos.. Em: Vol. IV das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
_____. (1930) O mal-estar na civilização. Em: Vol. XXI das Obras Psicológicas Completas de
Sigmund Freud. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
FUKS, Julián. Lembremos do futuro: crônicas do tempo da morte do tempo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2021.
LEVI, Primo. (1947) É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
MORAES, Alana. Atravessar como Medusas contra as coordenadas dos Heróis. Disponível
em: <www.n-1edicoes.org/textos/65>. Acessado em: 11 jul. 2021.
PELBART , Peter Pál e FERNANDES, Ricardo Muniz (orgs.). Pandemia crítica – Outono e
Inverno 2020. São Paulo: Edições Sesc/N-1 edições, 2021.
SCHERMANN, Eliane Zimelson (2020) O que uma psicanalista tem a dizer sobre a
pandemia do novo coronavírus? In: Café História – História feita com cliques. Disponível
em: <www.cafehistoria.com.br/uma-psicanalista-fala-sobre-novo-coronavirus>.
Publicado em: 30 abr. 2020. ISSN: 2674-5917. Acesso: 05 jul. 2022.
SOLER, Colette (2009) De um trauma ao outro. Trad. Cícero Alberto de Andrade Oliveira.
São Paulo: Blucher, 2021.
[1]
Neste escrito, Freud vai se ater à amnésia dos anos de infância, pensando sobre uma
espécie de seleção da memória. Chama atenção de Freud que o conteúdo das lembranças
infantis se relacione a situações que ele considera indiferentes, sem tanto afeto
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[15]
BENJAMIN, Walter. (1935) “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov”. Em: Benjamin, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e
história da cultura. Obras escolhidas – volume 1. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987. pp. 197-221.
[16]
FUKS, Julián. Lembremos do futuro: crônicas do tempo da morte do tempo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2021, p. 61.
[17] LEVI, Primo. (1947) É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1993.
COMO CITAR ESTE ARTIGO | FERREIRA, Patrícia do Prado (2022) Lembrar e esquecer:
rastros e restos da pandemia. Lacuna: uma revista de psicanálise, São Paulo, n. -13, p. 02,
2022. Disponível em: <https://revistalacuna.com/2022/07/27/n-13-02/>.
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