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Parte I
Vivenciei essa tensão como a maioria dos jovens brasileiros de classe média: a
angústia de ter de escolher um curso universitário, pelo qual me preparasse para uma
profissão. Tal dilema colocou-me em cheque, trazendo a tona, desconfortavelmente,
uma realidade interna que preferiria ignorar: o despreparo para tomar decisões
responsáveis. Em meio ao desconforto, perguntas que me pareciam essenciais para
qualquer tomada de decisão minimamente consciente, surgiram como dedos em riste, a
apontar o vazio do desconhecimento: Que critérios utilizar para a tomada de decisões?
Que valores ou parâmetros existenciais deveriam pautar minha conduta? O que é uma
vida bem vivida? Que vida vale a pena ser vivida?
Diante de tais questionamentos que, àquela época, nem mesmo sabia formular
com clareza em meu diálogo interior, encontrei um livro, que considero minha iniciação
filosófica: Da brevidade da vida e Da vida feliz, do filósofo estóico Sêneca. Senti-me
magneticamente atraído àquele livro, impressionou-me a clareza, a propriedade e a
ordem com as quais o filósofo tratava de questões humanas como a felicidade e o
1
YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano/ Nova Fronteira, 1980. Págs. 9 -10.
sentido da vida. As reflexões do autor davam voz e forma às minhas angústias, bem
como caminhos pelos quais apaziguá-las e respondê-las. Lembro-me de perguntar a
mim mesmo: “o que alguém deveria estudar para escrever a respeito das questões
humanas com tamanha propriedade?” A resposta, recebida do próprio Sêneca através de
seu livro, foi: a Filosofia.
Antes da universidade já havia tido notícia de Platão, através de meu pai. Dizia
ele: “Leia os clássicos! Leia Platão! Eles farão sua cabeça”. A ideia que tinha desse
filósofo era a de um clássico cultural e isso, nos idos de meus quinze, dezesseis anos,
não me soava lá muito convidativo. Tendo entrado para a graduação de filosofia na
UFSC, logo de início fui iniciado a Platão, através da Apologia de Sócrates. A leitura
foi marcante. Senti uma admiração profunda pela figura de Sócrates, por sua coragem
frente à morte, sua fidelidade à Verdade e sua habilidade argumentativa. Seduzido por
seu caráter, passei a ler outros diálogos platônicos. O que mais me agradava (e continua
agradando) nos diálogos de Platão, é a arte e a ironia com as quais Sócrates refuta
aqueles que se julgam sábios. Com alegre surpresa, encontrei uma passagem na
Apologia onde o próprio Sócrates afirma: “Mas então, por que algumas pessoas
apreciam passar muito de seu tempo em minha companhia? (...) Gostam de ouvir o
questionamento das pessoas que julgam serem sábias e não o são. Isto é divertido”
(Apol. 33c). Pensava com meus botões: Afinal de contas, não estou, a cada instante,
prestes a pensar que sou sábio, quando, na realidade, não sou? Como defender-me do
impostor que mora dentro de mim?
1- A Filosofia é um projeto
Frente à inevitável crise da vida, que surge com a percepção da invencível
ignorância humana, Platão propõe um projeto. Um caminho que vem sendo trilhado por
ignorantes como eu, há milhares de anos: a Filosofia.
Por outro lado, quem vem na sequência da história da filosofia, seja para
concordar em alguns pontos e corrigir outros (Aristóteles, por exemplo) ou mesmo para
negar absolutamente o projeto platônico (Nietzsche, por exemplo), invariavelmente
reconhece a originalidade de Platão. Ao falar de filosofia estou, em alguma medida,
falando do projeto platônico. Por quê? Porque é em Platão que está a origem da
filosofia.
3
CARVALHO, Olavo. História Essencial da filosofia. É Realizações. Aulas 02 e 03.
aplicação. O diagnóstico significa uma leitura dos sinais apresentados no paciente, de
modo a que se encontre a doença, ou seja, a raiz daquilo que lhe aflige; a leitura correta
desses sinais leva o médico a um correto diagnóstico. Em seguida, consciente do que
aflige o paciente, o médico buscará uma solução, ou seja, o que precisa ser feito tendo
em vista a cura daquele mal. Tendo encontrado essa solução, será a vez de definir,
através dos recursos disponíveis, uma maneira de aplicar essa solução. A doença
encontrada por Platão em sua cidade é de ordem política. E assim como o médico, ele
procurará as raízes, a solução e o tratamento dessa doença.
5
HUISMAN, Denis. Dicionário dos Filósofos / Martins Fontes, 2004. Pág: 808.
6
PLATÃO. Carta VII (326 a-b). Tradução: Carlos Alberto Nunes. Belém: EDUFPA, 2007.
Portanto, resgatando nossa metáfora médica, encontramos a solução e a aplicação que
seguem ao diagnóstico platônico: o filósofo e a educação filosófica.
O filósofo é a solução para a crise política observada por Platão, pois ele é o
antídoto agindo nas causas últimas daquela crise. Como vimos, é a cultura sofística
quem está na origem da corrupção da pólis. Ela contêm, em germe, a pior das
degenerações políticas: a tirania. De que modo, portanto, a cultura filosófica contrapõe-
se a ela? Por sua própria natureza intrínseca a filosofia combate a sofística. O filósofo,
por definição, reconhece, em primeiro lugar, a existência da Verdade objetiva (existe a
sophia, a sabedoria); em segundo lugar, ele reconhece que essa Sabedoria não se
encontra nele, mas além dele, por esse motivo ele precisa buscá-la (philo, amor, +
sophia, sabedoria). Ao passo que o sofista, por desacreditar na objetividade da
sabedoria, pretende encarná-la em si mesmo, autoproclamando-se sábio (sóphos, daí a
palavra sofista); o filósofo é quem, por reconhecer a objetividade da sabedoria,
reconhece sua própria ignorância, ou seja, sua falta de sabedoria (ou vice-versa) e, não
obstante, decide-se por buscá-la amorosamente. Como exemplo do espírito filosófico,
podemos lembrar da célebre frase socrática: “só sei que nada sei”.
Como podemos observar, o projeto de conhecimento da sofística está imbuído
de orgulho, de presunção; dada a inexistência real da sabedoria e da verdade, é a mente
humana quem servirá de régua última da realidade, a capacidade racional-linguística é
quem ocupará o lugar de Deus. Já o projeto de conhecimento filosófico está fundado
sobre a humildade, o reconhecimento de uma fonte de sabedoria superior (ou seja, para
além de si) e frente a qual só uma atitude é adequada: a busca amorosa. Nesse projeto, a
mente humana, sua capacidade racional-linguística, é apenas um instrumento capaz de
aproximar-se da Verdade. Para o sofista, reconhecer-se plenamente humano é
empoderar-se da mente enquanto criadora da verdade. Para o filósofo, reconhecer-se
plenamente humano, é aceitar, humildemente, que o máximo da mente humana é que
seja o mais transparente possível, de modo a ser um receptáculo da Verdade. Essa
oposição, chave para toda a cultura ocidental, está muito bem expressa nas palavras do
clarividente filósofo francês do século XX, Louis Lavelle:
“ Não há senão duas filosofias entre as quais é necessário escolher: a de Protágoras,
segundo a qual o homem é a medida de todas as coisas, mas a medida que ele se dá é
também sua própria medida; e a de Platão, que é também a de Descartes, para quem a
medida de todas as coisas é Deus e não o homem, mas um Deus que se deixa participar
pelo homem, que não é somente o Deus dos filósofos – o Deus das almas simples e
vigorosas que sabem que a verdade e o bem estão acima delas e jamais se recusam
àqueles que as buscam com coragem e humildade”.7
Ao investigar a crise política de Atenas, Platão encontra sua raiz, a corrupção
intelectual dos sofistas, e sua solução: o filósofo. A aplicação dessa solução é
justamente a maneira pela qual formar esse antídoto ao sofista, o filósofo. Por esse
motivo, Platão fundou uma escola, a Academia, e não um partido político; também é
por esse motivo que Platão não foi, ele próprio, um político, mas um professor.
7
LAVELLE, Louis. De L´Être, p. 35.
O filósofo é o antídoto do sofista, logo, é preciso formar o filósofo. Como
formá-lo? Com essa pergunta, chegamos ao coração da filosofia platônica. O legado
platônico é, acima de tudo, um legado educacional: Platão é o filósofo da paideia
[palavra grega para educação], por excelência. A educação filosófica é, acima de tudo,
um modo de educar cuja finalidade é a formação do filósofo. Qual o conteúdo dessa
formação?
Os documentos concretos desse conteúdo estão reunidos na obra platônica. O
conjunto de seus diálogos é o currículo de sua escola. Ali estão as informações, as
revelações e os testes necessários à aprendizagem e à formação do filósofo. O princípio
capaz de dar unidade aos diálogos platônicos deve ser, sobretudo, um princípio
pedagógico.
Dadas a riqueza e complexidade vertiginosas dessa obra, minha proposta é
descrever aquilo que considero a estrutura essencial desse projeto de formação. Platão,
filósofo por necessidade e poeta por estirpe, simboliza esse projeto na forma de um
caminho ascendente, de uma escada do amor; esse será o tema de meu próximo texto.