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Editora this Rua Rio Bonito, 187 06708-660 — Cotia, SP Fone/Fax: (011) 492-6996 E-mail: ibis@editoraibis.com.br httpu/www.oditoraibis.com.br Impresso no Brasil ‘Depésito legal na Biblioteca Nacional ISBN 85-85582-21-9 TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. & proibida a reprodugao total ou parcial de qualquer forma ou por qualquer meio, salvo com autorizagao por escrito da Editora. Capitulos referentes a Dialética e & Miisica: originais em castelhano tradu- zidos por Elenir Aguilera de Barros Capa, paginas de rosto e aberturas de capitulos: Claudio Matos Perobelli CIP BRASIL. CATALOGACAO NA FONTE DO DEPARTAMENTO NACIONAL DO LIVRO Tea erais na dade Média / denagio : Lénia Marcia ISBN 85-85582.21.9 4, Edueagio medieval. I. Friaga, Améncio, I. Mongelli, Lania Marcia de Medeiros. ‘cpp-370.902 Améneio Feiaga ‘Aunidade do saber nos céus da Astronomia medieval Astronomia e sua: C. S. Lewis, em sua descrigao das partes do universo dentro do cosmo medieval, inclui as sete artes liberals, @ em seguida se dirige & estranheza do leitor modero diante do fato de que um curriculo seja considerado um dos ‘elementos do universo.' Dentro do pensamento medieval, as artes liberals ha- viam aleangado um status como o da prépria natureza. As Artes, no menos do que os Vicios e as Virtudes, ocupavam um posto ontolégico préprio. Dante, no Convivio, precisa os nichos césmicos ocupados pelas disciplinas do trivium € do quadrivium. Ao interpretar os versos da Canzone prima “Voi che'nten- dendo il terzo ciel movete”, explica 0 sentido de ‘terceiro céu’ pela defini¢go exemplar: “A vedere quello che per terz0 cielo s'intende (...) dico che per cislo tendo la scienza e per le ciel le scienze” [Vendo aquilo que se entende por tercelro céu (...) digo que por céu entendo a ciéncia e por céus as cléncias]? Como tao bem nos esclarece Dante, o intimo entrelagamento entre as as do trivium e do quadrivium permite que se estabelegam correspon- déncias entre os elementos de uma ciéncia e os de outra, e das ciéncias com todas as partes do universo, as atividades humanas inclu(das. Em particular, a Astronomia, dado 0 seu apelo ao aparetho cognitivo visual, ¢ especialmente apta a explicitar essas conexdes nas artes pictéricas. Assim, os planetas nos contemplam desde os capitéis do Palacio do Doge, cada um cercado pelos 1 LEWIS, C. S, The discarded image. Cambridge: Cambridge University, 1994. 2 DANTE. Convivi, Il, 13. In: Obras completas de Dante Alighier. Madrid: Catdlica, 1973, (Biblioteca de Autores Cristianos). 201 quaorivius As artes liberais na dade Média, seus 'filhos’, pelos mortais sobre os quais exercem sua influéncia. Em Floren- ga, outra vez os encontramos, em Santa Maria del Fiore, revestidos com os tragos da influéncia arabe; e de novo em Santa Maria Novella, emparelhados, como no Convivio, com as sete artes liberais. No Salone do Palazzo del Ragione em Padua, encontramos todos, os planetas, seus filhos, 0s signos, os Apéstolos, os trabalhos dos homens, dispostos segundo os meses apro- priados.° O fato de os literatos mais representativos da Idade Média, como Dante € Chaucer, utlizarem em suas obras, como se fosse uma obrigatoriedade da na- tureza, 0 simbolismo astrondmico, ¢ testemiunha de que, durante toda a Idade Média, a Astronomia foi considerada a disciplina mais preciosa do quadrivium @ reteve sua posigo inefavel. Nunca nesses séculos, nem mesmo durante os periodos mais conturbados, a Astronomia perdeu sua gl6ria, A Astronomia era © ramo mais desenvolvido da ciéncia e como tal serviu como modelo para a compreenso matematica da natureza em outros campos. Isto foi particular- mente verdadeiro nos séculos Xill e XIV, quando a Astronomia teérica alcan- g0u uma sofisticago que os pioneiros da Estatica e da Cinematica se esforcavam por emular. A Astronomia fol a auxiliar dos fildsofos, tanto forne- ‘cendo material para discussées epistemolégicas sobre a natureza das hipéte- ses cientificas, como para suporte das investigagdes metafisicas sobre a estrutura Ultima do ser, dependente, por sua vez, de uma causa suprema, do mesmo modo que os movimentos das esferas planetérias dependem de um Primum Mobile pata além do c&u das estrelas fixas. ‘terceiro céu’, na Canzone do Conviviomencionada acima, ilustra a pri- mazia dentro do trivium e do quadtivium da Retérica, que é associada ao ter- ceiro céu, ou céu de Vénus, que também 6 0 céu do Amor, 0 céu de Beatri ‘Ao longo dos séculos, desde o fim da Antigtiidade, Ret6rica e Astronomia ocu- param por turnos o trono da ‘Rainha do trivium e do quadriviunt. O simbolismo astronémico mais uma vez vem em nosso auxilio, pois Venus 6 o astro, a es- trela por exceléncia; 0 préprio termo ‘astro’, em grego, aster, est elimologica- mente relacionado ao nome fenicio de Vénus, Astarte. Por outro lado, na enu- 8 SEZNEC, J. The survival of the pagan gods. Princeton: Princeton Universi (olingen Series) 1972. 202 ‘Améineto Fraga ‘A unidade do saber nos céus da Astronomia medieval inas do trivium e quadrivium, a Astronomia aparece em timo lugar, e, visto que se trata de uma escala da mais humilde (a Gramética) até a mais elevada, a Astronomia ocupa, enquanto ciéncia, o céu mais eleva- do. Assim, ao associar a Astronomia ao céu mais elevado, 0 cé6u de Saturno, faz dela uma rainha, no sob 0 aspecto do esplendor e exuberancia, mas da severidade e majestade. Porém, antes de mais nada, trivium e quadrivium so ‘ciéncias irmas’, como nos lembra Nicémaco de Gerasa (fl. ¢. 100), em sua In- trodugao a aritmética, através das palavras do pitagérico Arquitas de Tarento: “Parece-me apropriado que estudem as matematicas, e nao é de modo algum estranho que tenham 0 conhecimento correto de cada coisa, do que ela 6. Pois, conhecendo corretamente a natureza do todo, conhece- ‘se também a natureza das partes. Sobre geometria, e também sobre "a e astronomia, demonstram uma licida compreensao, assim como sobre harmonia. Pois estas so ciéncias irmas; pois elas tratam de assuntos irmdos, as duas primeiras formas do ser.” Ainda em sua Introdugao & aritmética, que através da pardfrase em latim de Boécio foi o texto curricular de Aritmética durante a Idade Média, Nicémaco nos remete ao significado profundo das disciplinas do quadrivium, esclarece a cadeia do Saber na qual as artes liberais se inserem. Sabedoria consiste no conhecimento das coisas, @ como as coisas se apresentam ou unificadas continuas, as ‘magnitudes’, ou descontinuas e em arranjo, as ‘multitudes’, a sabedoria deve ser 0 conhecimento dessas duas formas. Ora, como tanto magnitude quanto multidude so necessariamente infinitas ~ pois a multitude parte de uma raiz definida e nunca cessa de crescer, e a magnitude, quando se conduz a diviséo de um todo limitado, nunca chega a um termo —e como a ciéncia trata de limitados, ndo é possivel uma ciéncia lidando com a magnitude ‘em si ou com a multitude em si. Contudo, podem-se construir ciéncias tratando de algo separado de cada uma dessas formas, da quantidade, separada da multitude, @ da extenséo, separada da magnitude. Como a quantidade pode ser considerada em si mesma (numeros pares e impares, numeros primos etc.), a quantidade absoluta, ou pode ser relacionada com outra quantidade (iqualdade e desigualdade, razBes, proporgées © médias), a quantidade rel 4 NICOMACO DE GERASA. Introdugao a aritmética, I. 9.3. In: Britannica great books of the westem world. Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1955. v. 12. 293 ‘QuanRIIUM ‘As artes iborais na dade Média de do saber nos céus da Astronomia medieval Amancio Fraga Aun va, desse modo constituem-se a ciéncia da quantidade absoluta, a Aritmética a ciéncia da quantidade relativa, a Harmonia. E, visto que a extenséio pode estar em repouso ou em movimento, temos a Geometria, a ciéncia da exten- so em repouso, e a Astronomia, a ciéncia da extenséo em movimento. Eis a definigdo mais universal do que é Astronomia e indica que a Astronomia, como bem lembra Dante, s6 pode ser aprendida apés o dominio das trés primeiras disciplinas do quadrivium. Uma outra definigao das ciéncias do trivium e do quadrivium recorda-nos 0 penoso caminho para a aquisi¢ao da Astronomia: a Aritmética ¢ a ciéncia do niimero; a Geometria, a do espago; a Harmonia, a do tempo; e a Astronomia, a da jungéo do espago, tempo e numero, jungao essa que define as condigdes de existéncia do mundo corporal. Dentro da hierarquia do saber medieval, a Astronomia nos remete para um degrau ainda mais elevado, que é 0 da Cosmologia ou, ainda, a parte su- perior da Astronomia é a prépria Cosmologia. Porém, para além do trivium do quadriviume da prépria Cosmologia, temos a Metafisica, a Teologia e a Eti- ca, coma ilustra 0 Convivio. Olhando para o andar inferior, para as artes @ ciéncias segundas, sua prética segura depende do conhecimento do trivium @ do quadrivium. Dentro do curriculo da universidade medieval, trivium e quadr- viur representam 0 mundo intermediario entre a sabedoria (sapientia) e a ciéncia (scientia, representada pelas faculdades de Artes, Medicina, Direito e Teologia). Além de formar o profissional completo, o ensino do trivium e do quadrivium, em um nivel mais profundo, fomece ao estudante um vislumbre daquele céu além do céu das estrelas, como de novo a Introdueao a aritmética faz-nos recordar ao citar a Republica de Platéo, onde Sécrates reprova seu in- terlocutor por considerar apenas os aspectos préticos (Astronomia aplicada & agricultura, & navegagao etc.) das ciéncias do quadrivium "Vocé me espanta, pois parece temer que sejam indteis estes estudos que recomendo; mas isso 6 muito dificil, ou antes impossivel. Pois 0 olho da alma, cego e soterrado por outros propésitos, é reaceso e re- desperto por estes estudos e apenas por estes; e é melhor que ele soja salvo do que miriades de olhos corporais, pois somente através dele a verdade do Universo é contemplada. 5 NIGOMAGO DE GERASA. Introdupéo & antmética, 1.3.7. 204 A planta do edifcio do conhecimento medieval é revelada em explosao no afresco do convento dominicano de Santa Maria Novella em Florenca, representando 0 Triunfo do dominicano Tomds de Aquino. Tomas de Aquino est em um trono cercado por figuras aladas, representando as trés virtudes teologais e as quatro virtudes cardinais (para as quais Gregério Magno tam- bém explicitou as correspondéncias com os sete planetas). A sua direita e a sua esquerda sentam-se Patriarcas da Igreja e santos e debaixo de seus pés esto 0s heréticos que ele derrotou com sua doutrina. Na base do afresco, hé ‘catorze figuras femininas representando o vasto alcance do conhecimento do santo. Comegando pela direita, temios: Gramatica, Retérica, Dialética, Harmo- nia (com um 6rgao), Astronomia (medindo os céus), Geometria e Aritmética, Abaixo delas temos os filésofos ‘padrinhos' de cada ciéncia: Donato, Tilio (como Cicero era conhecido na Idade Média), Aristételes, Pitagoras (gracas a sua miisica das esferas - evidenciando a conexgo entre Astronomia e Harmo- nia), Euclides e Boécio (como o transmissor de Nicémaco de Gerasa para a Idade Média). Simetricamente ao trivium e ao quadrivium, & esquerda situam- se as sete disciplinas teolégicas e os devidos representantes humanos. Eis a sintese da estratégia para se alcangar o Triunfo da Verdade: trivium e quad- vium em alianga com a Teologia. AAs artes liberais constituem um curriculo que no é rigido nem imutavel, mas sofre expanses e alteragdes com o tempo. Assim, Cassiodoro (c. 485- ©. 580) define, em suas /nstitutiones, quais so os textos para cada disci do trivium e do quadrivium. Entéo, as tinicas sugest6es para a Astronomia so Varréo, Boécio e Martianus Capella, Em 1142, Thierry de Chartres define um curriculo enciclopédico para a sua escola. A ‘nova légica’ de Aristételes, gra- gas as novas tradugdes dos principais trabalhos de Légica da Antigtidade, vem engrossar as obras de referéncia para a Dialética, e o programa da Astro- nomia agora inclui o Almagesto de Ptolomeu, Hyginus e o arabe Al-Kwarizmi. Um século depois, 0 dominicano Alberto Magno (1206-1280), além do Alma- gesto, recomenda a tradugao de Geraldo de Cremona do comentario de Ge- ber, as tradugées latinas de Mashallah e outros astronomos arabes, manuals sobre 0 astrolébio, e diversos livros sobre astrologia — 0 Quadripartitum (0 nome latino do Tetrabibles, de Ptolomeu), Abu Ma'shar e outros. E importante lembrar que durante toda a dade Média, os termos astrono- ‘mia e astrologia eram empregados indiferentemente para designar a mesma 295 ‘QUADRIVIM 1s artes iberais na dade Média disciplina, que inclufa o que entendemos atualmente tanto por astrologia, como por astronomia. Isidoro de Sevitha (c, 560-695) foi o primeiro a empregar a distingdo moderna entre os dois termos nas suas Etymologiae, néo porque isto correspondesse ao uso corrente das palavras, mas porque o plano das Etymologiae visava a uma exegese do contetido do mundo em termos das ori- gens das palavras que designam as coisas. Visto que hé duas palavras distin- tas, elas devem corresponder a uma disting&o real, segundo Isidoro, que portanto define que astronomiattrata do “giro dos céus, do nascer, ocaso e mo- vimento dos astros, e do por que eles s4o chamados como so”, enquanto que astrologia “é praticada pelos mathematici, que profetizam pelas estrelas, que distribuem os doze signos pelas partes do corpo, e que tentam prever o nasi mento e carécter dos homens a partir dos cursos dos astros’.° Autores me- dievais posteriores sentiram a mesma compulsao — dois termos distintos devem denotar dois abjetos distintos — @ ou seguiram Isidoro ou construlram definigdes diferentes, algumas vezes opostas &s de Isidoro. A tendéncia natu- ral, dado seu respeito pelas palavras, era tomar o segmento nomos de astro- nomia como se referindo & lei ou costume (o significado em grego) e 0 logos «em astrologia para significar razéo e cbmputo; desse modo chegavam & defini- 80 exatamente oposta & contemporanea. Assim, no século XII, Domenicus Gundissalinus (tradutor espanhol de Ibn Sina, Ibn Gabirol, Al-Farabi e Al Ghazzali) define astronomia e astrologia desse modo, reservando a Astrologia © célculo de tabelas de estrelas e das efemérides planetarias. Outras vezes, acrescenta-se um qualificativo ao termo para marcar a distingdo; assim te- mos astronomia e astronomia judicial, esta ultima sendo a empregada pelos ‘mathematici para estabelecer juizos a respeito de acontecimentos a partir da contiguracao dos céus. E esta a terminologia utllizada por Nicole Oresme (c. 1820-1382), ao criticar os astrélogos no seu Tractatus contra judiciarios astronomos. De fato, Astronomia (ou Astrologia) apresenta trés divisdes, que podem icadas pelas trés obras arquetipicas de Ptolomeu: 0 Almagesto, 0 Tetrabiblos @ as Hipdteses planetérias. © Almagesto corresponde & parte ob- servacional, aos métodos de céloulo dos movimentos dos planetas e das esfe- 6 Cl. Elymologiae, 206 Amancio Fiiaga ‘A nidade do saber nos céus da Astronomia medieval ras celestes, a precessdio dos equinécios incluida, e aos métodos matemati- cos (deferentes, epiciclos e equants) utiizados para reproduzir os movimentos observados dos astros. Este seria 0 nivel basico da Astronomia que corres- ponde nos dias de hoje a astronomia fundamental. © segundo nivel é repre- sentado pela Astrologia, seus juizos, previsdes e elei¢Ses, como exposto no Tetrabiblos. & a matéria de mais interesse para os mathematiciou astr6logos, na acepeao moderna da palavra. A parte superior da Astronomia é tratada nas Hipoteses planetérias, e corresponde propriamente a fisicaceleste (ou Astrofi- sica, como se diria atualmente); trata-se da compreensao dos prinofpios fisicos revelados nos movimentos dos corpos, e do modelo de mundo que engloba os céus. © nivel superior da Astronomia realiza a passagem para, ou é ele pré- prio uma Cosmologia integral. Assim se explica por que Dante, no Convivio, apés situar a Astronomia no céu de Satumo, no céu imediatamente acima, no céu das estrelas fixas, ou Firmamento, coloca tanto a Fisica como a Metafisi ca, Do mesmo modo, Hugo de So Vitor (1096-1141), no programa de estudos do seu Didascalion, expande o setendrio das artes liberals, fazendo suceder & Astronomia a Fisica, como a oitava arte liberal, A cosmografia de um novo mundo: a Idade Média Antes do ano 1000, a “mina da qual se extrai a ciéncia da Idade Médi 6 representada por Caleidio (primeira metade de século IV), Macrébio ({l. 395- 42), Martianus Capella (séc. V), Boécio (c. 480-524), Cassiodoro (c. 485- c. 580), ¢ Isidoro de Sevitha (c. 560-635). Caloidio realizou a tradug&o dos 53 primeiros capitulos do Timeu, acompanhada de um longo comentario. E através dessa tradugao que Plato foi conhecido durante a Alta Idade Média, e, por uma feliz coincidéncia, a parte traduzida do Timeu (cerca da primeira) 6, dentro de toda a obra de Plato, a passagem que trata de modo mais especifico de questées cosmolégicas. 7 STAHL, W. Hi JOHNSON R.; BURGE E. L. Martianus Capella and the seven liberal arts. Now York: Columbia University, 1991. 297 (QUADAIVIUM ‘As artes liberals na Idade Média AA tradugao de Calcidio representou uma continua inspiragao para o pensa- mento cosmolégico medieval. A longa segao sobre Astronomia, em seu co- mentétio, 6 um tratamento técnico envolvendo uma Matematica em geral no compreensivel para 0 tipico estudante do trivium e do quadrivium, Calcidio, por exemplo, descreve em detalhe o procedimento de medir a extensio dos si nos zodiacais usando clepsidras (reldgios de agua). © comentario de Macrébio In somnium Seipionis constitui, juntamente ‘com 0 comentirio de Calefdio sobre 0 Timeu, uma das exposig6es mais popu- lares durante a Idade Média sobre a cosmolagia neoplaténica, Macrébio co- menta uma passagem de Cicero, o Somnium Scipionis, que encerra a Republica de Cicero, e cujo texto comentado salvou, de fato, tudo o que resta intacto da Republica de Cicero. Do mesmo modo que o livro dez da Republica de Platéo encerra a obra com um relato de caréter cosmolégico sobre 0 outro mundo, através de Er da Panfilia, que retora do sono da morte, na Repdblica de Cicero, Scipio Africanus Minor descreve no sexto e ultimo livro um sonho otavel repleto de contetidos cosmograficos. Nesse sonho, Scipio Minor en- contra seu av6 adotivo Scipio Major, que o leva a uma jornada celeste, que se tomou 0 protétipo de tantas outras que encontramos na literatura posterior, a viagem celeste de Dante na Divina comédia sendo a mais famosa. Nas alturas ‘onde se encontra, Scipio percebe que as estrelas so globos que superam de longe a dimensao da Terra. De fato, a Terra é to pequena, que o Império Ro- ‘mano no passa de um ponto sobre sua minuscula superficie, o que provoca 0 desprezo de Scipio. Dois aspectos devem ser ressaltados com respeito & Ima- ginatio vera que se espera do pensador medieval instrufdo com o In somnium: a Terra obviamente é uma esfera; @ a Terra ¢ insignificante segundo os pa- drdes césmicos, 0 que toma ridicula @ ambigdo humana. A segdo cosmo- gréfica do In somnium circulou como um tratado separado sobre Astronomia, @ influenciou profundamente tanto os escritos como a iconografia durante a Idade Média, © De nuptis Philologiae et Mercuri (O casamento de Filologia e Mercd- tio), de Martianus Capella, 6 uma obra-chave na histéria intelectual do Ociden- te. Através dele, 0 trivium e 0 quadrivium passaram in bloco da Antigtidade para a Idade Média. O Nuptiis é mais uma encenacao do tema do banquete, que antes havia comparecido nO Banquete de Platao e que torna a surgir no Convivio de Dante, Trata-se do casamento de Merciirio com uma jover de es- 298 “Amancio Feiaga ‘A nidade do saber nos céus da Astronomia medieval pantosa erudigo, que, depois de muito preparo e instrueao, é levada ao céus superiores, onde, na presenga dos deuses, ocorre o casamento, E as damas de honra so nada mais nada menos do que as sete artes liberais, Os livros le UW tratam dos preparatives do casamento, ¢ nos livros ll a IX, cada uma das ar- {es liberais se apresenta e discursa. A dama de honra que faz a melhor apre- sentagdo é a Astronomia, desenhando um deslumbrante cenario dos feitos da Astronomia. O livro Vill das Nuptis, tratando de Astronomia, foi o mais popular dos livros de Martianus, tratando do quadrivium, durante a Idade Média, En- quanto durante a Idade Média tardia houve um declinio de popularidade dos vros das Nuptis tratando das outras disciplinas do trivium e do quadrivium, o livro Vill continuava a aparecer em abundancia em citagGes e plagios. A jorna- da celeste de Filologia segue o mesmo modelo de muitas jornadas literarias semelhantes, incluindo a de Dante através das esferas celestes. E interessan- te que Martianus tenha suposto que a Terra executasse 0 movimento diurno de rotagdo em torno de seu eixo. Esse conceito nao fol integrado na Astrono- mia medieval, que explica a rotagao didria dos céus em termos da rotago da esfera mais exterior das estrelas fixas, 0 Fimamento, na dirego Oeste com um periodo de um dia sideral. O Firmamento arrasta em seu movimento diério 08 planetas (incluindo 0 Sol e a Lua), porém estes nao esto fixos nele, mas erram (dai o significado grego de planeta, errante) na diregao média Leste, completando ciclos em periodos que iam de 28 dias (a Lua) até 29 anos melo (Satur). Uma importante contribuicao de Caleidio, Macrébio e Martianus Capella Astronomia medieval é 0 sistema geo-heliocéntrico, formulado por Herdclides de Ponto (séc. IV a.C.), no qual 0 Sol gira em tomo da Terra, enquanto Meret rio e Venus giram em toro de Sol. E, na ecloséo da revolugao astronémica, Copérico elogia Martianus por propor drbitas heliocéntricas para Mercurio € Venus, assinalando ao mesmo tempo que outros autores medievais sustenta- vam 0 mesmo ponto de vista. E ainda curioso que esses autores, ao descreve- rem o sistema geo-heliocéntrico de Herdclides, em geral atribuam uma ordem fixa aos planetas vistos da Terra, embora isso seja irreconcilidvel com o siste- ma geo-heliocéntrico. Isso resulta numa indecisdo com respeito a ordem dos planetas. Calcidio atribui a ordem Lua, Mercurio, Venus, Sol, Marte, Jupiter © ‘Saturno aos Pitagéricos; e a ordem Lua, Sol, Merciirio, Vénus..., a Eratéste- nes, Macrébio denomina a primeira ordem de ‘caldaica’ e a segunda, de ‘egip- Gia’. De fato, a ordem caldaica (Sol em quarto lugar) corresponde & conjungao 209 ‘quapaiviem As artes boraisna dade Média ‘Amancio Friga ‘A unidade do saber nos céus da Astronomia medieval inferior de Meretrio e Venus com 0 Sol, e a ordem egipcia (Sol em segundo I gar) corresponde a conjungdo superior de Mercurio e Venus com o Sol. O si tema geo-heliocéntrico gozou de grande prestigio entre platdnicos que iiustraram a antiga escoléstica: Jodo Scoto Erigena (século X), 0 pseudo-Beda do De mundi constitutione (século IX-X), 0 astrénomo Helpérico, do ampla- mente usado De computo (século X), Guilherme de Conches (c. 1080-1154), A popularidade desse sistema é atestada pelo grande numero de manuscritos dos séculos VIII ao XII que apresentam o sistema geo-helioc€ntrico, muitas vezes acompanhados por ricas ilustragbes. Contudo, enquanto Guilherme de Conches escrevia, a Europa ocidental comegava a ter conhecimento da tradu- (¢40 do Almagesto realizada no século XI, O imenso sucesso do esquema geo- céntrico de Ptolomeu fez com que o sistema geo-heliocéntrico cafsse no esquecimento. Entre Guilherme de Conches e Copémnico, ouvimos apenas ocasionalmente alguns ecos distantes do sistema de Herdclides de Ponto, como na obra do astrénomo, astrélogo, médico, poeta e cabalista toledano Abraham ben Ezra (1119-1175). Boécio é conhecido entre nés principalmente pela sua Consolagéo da Fi- losofia, porém sua importancia para o periodo medieval se deve ao fato de que, gragas a sua grande competéncia em Matemdtica, fol ele o principal im- pulsor dos estudos do quadrivium na Idade Média. Além de suas tradugdes, para o latim, de obras sobre Légica da Antigiidade, as Categorias e Da inter- pretagao, de Arist6teles, e 0 Isagoge, de Porfirio, que constituiram a logica ve- tus do curriculo de Dialética da Alta Idade Média, Boécio escreveu tratados iplinas do quadrivium, baseados em Euclides, Nicémacoe Ptolomeu, que formaram a base principal do ensino do quadtivium nas escolas monésticas das catedrais até o século IX. Destes, De institutione arithmetica e parte do De institutione musica sobrevivem; 0 De geometria sobrevive apenas ‘em fragmentos; e 0 De astrologia, embora perdido, ¢ atestado por diversas tages. Seu manual de Aritmética foi o texto fundamental no ensino dessa di ina durante a Idade Média, o que 0 consagrou como 0 filbsofo associado a Aritmética, como pode ser atestado em toda a iconogratia medieval. Realizou também uma tradugao latina do Almagesto e é uma pena que tenha sido per- dida, Foram necessarios sete séculos para que o Almagesto retornasse ao curticulo do trivium e do quadrivium através das tradugbes do grego de Ger- manus de Carinthia (Sictlia, 0. 1050) e do arabe de Geraldo de Cremona (Toledo, 1075). 300 Cassiodoro acredita na possibilidade de atingir verdades espirituais atra- vvés do conhecimento secular, e convenceu 0 clero de que os classicos pagaios ‘ocupariam um lugar legitimo dentro da educagao crista. Assim, Cassiodoro pertence & linhagem espiritual de Santo Agostinho, que, enquanto aguardava seu batismo em Miléo, ocupava-se da composi¢ao de manuais das artes libe- rais, Agostinho néo levou seu projeto muito adiante, mas os livros que compl tou, 0 De grammatica ¢ 0 De musica, exerceram profunda influéncia durante a Idade Média. Enfatizando a importancia do livro como fonte de conhecimento, Cassiodoro fez derivar 0 nome artes liberais de liber, liv. (Embora, de fato, artes liberales seja a tradug&o latina do grego eleutherai tekhnal, ou seja, as artes ou habilidades apropriadas para o homem livre, em oposic&o aquelas do homem servil) Visando a uma pedagogia crista integral, Cassiodoro compos um livro sobre doutrinas espirituais (0 Institutiones 1) e outro sobre disciplinas seculares (0 Institutiones I), no qual dedica trinta e oito paginas ao trivium vinte seis paginas ao quadrivium. Seu conhecimento de Astronomia é superior a0 de Martianus, pois havia lido o trabalho do século V agora chamado Cano- nes Ptolomel. Na segéo de astronomia do Institutiones Il, Cassiodoro empres- ta de Varro a defini¢go de Astronomia: “a disciplina que examina todos os movimentos e formas das constelag6es celestes ¢ investiga racionalmente as relagdes de um astro com o outro e com a terra”. Seu texto nao visa a ser um ‘manual de Astronomia, mas a dar um esbogo do que é essa ciéncia e a forne- cer uma lista de textos de referéncia. Isidoro de Sevilha trata do trivium e do quadtivium nos trés primeiros dos Vinte livros dos seus Etymologiae. Dedica um livro dos Etymologiae & Gramat ‘ca, um livro & Retérica e um tinico livro a todo 0 quadrivium, A Astronomia de idoro encontra-se nesse terceiro livro, assim como no livro treze, Do mundo, do céu, dos elementos, Além dos Etymologiae, Isidoro escreveu 0 De natura rerum, onde sua cosmologia é resumida, ¢ Ihe é atribuido um Liber de numeris sobre Aritmética. © propésito de Isidoro, em suas obras, é citar todas as alu- ses nas Escrituras e nos Padres da Igreja as passagens de escritores ou fild- sofos pagaos, o que deixa uma margem extremamente estreita para conside- rages propriamente cientificas. Em sua cosmologia, além dos céus sélidos méveis dos planetas, conjunto que designa pelo nome biblico de Firmamento, Isidoro imagina dois outros céus: um primeiro céu aquoso, e em seguida um céu supremo, sede dos espiritos. Esse cenério serd adotado pela maior parte 301 ‘QuADAIVIUM As artes liberals na dade Média, dos cosmégratos cristéos e desempenhara um grande papel no desenvo| mento da Astronomia medieval. Nos Etymologiae, verifica-se que 0 conhecimento do quadtrivium é bas- tante inferior ao de Cassiodoro, refletindo a crescente incompreens&o das ma- tematicas, aliés comprovada com pesar por este durante o transcorrer da sua longa vida: “Ninguém assiste a uma palestra sobre aritmética; geometria é um assunto de especialistas”. De fato, Cassiodoro, alto funciondrio da administra- ‘¢40 ostrogoda em Ravena, em 535 planejou com o papa erudito Agapetus a fundagaio de uma escola onde se estudasse o trivium e 0 quadrivium em con- junto com as Escrituras Sagradas. Se essa idéia se tivesse concretizado, teria~ mos a primeira universidade do Ocidente. Contudo, a conturbago dos tempos impediu a execugdo de seu projeto. Refugia-se em Constantinopla e, quando retoma em 554, encontra um mundo inteiramente diferente daquele de duas décadas atrés, um mundo ‘modemo’, onde a exaustao das guerras de recon- uista contra os reis barbaros, a praga e o cisma haviam feito as instituigdes do saber desaparecerem e 0 grego ter sido esquecido, De fato, parece ter sido Cassiodoro 0 primeiro a usar a palavra modemus regularmente para descre- ver sua prépria época. AS Institutiones divinarum litterarum representam a tes- posta de Cassiodoro a esse mundo ‘modemo’, onde se devia conservar a todo custo 0 saber antigo. Em contraste com a terra arrasada em que havia se transformado a It no extremo ocidental do mundo ~ na ‘orta céitica’ dos monastérios irlandeses — surgia uma tradigéo de saber em uma terra que jamais conheceu a romaniza- eGo. Uma nova geragio de monges, unindo sem dificuldade a tradigao céltica novidade do cristianismo, entregava-se com fervor & prece, erudigdo e com- posigo de livros. O Livro dos Kells, do século VIII, 6 o mais proeminente ‘exemplo da industria do livro zelosamente praticada pelos monges irlandeses. Havia a preocupacao com 0 acompanhamento do ritmo do tempo enquanto assinalado pelos céus. Se a Imaginatio vera relerente aos planetas inclua sua visualizagao como globos nos espagos celestes, uma imagem familiar ao ho- mem contemporaneo, também fazia parte dela um entendimento algo insélito ans, o dos planetas enquanto ‘instrumentos do tempo’,® permitindo ‘distinguir @ PLATAO. Timeu, 42. 302 Amancio Fiaga ‘A nidade do saber nos céus da Astronomia medieval € preservar os nlimeros do tempo’, conforme as expressdes encontradas no Timeu de Plato. A data da Péscoa deveria ser determinada com rigor a partir das observagdes dos céus. O desconhecimento das matemalicas nesse caso anda de bragos dados com a impiedade. Uma importante diviséo da Astrono- mia veio a tomnar-se 0 Computus, o estudo da avaliagao do tempo e do célculo de datas. E os monges iriandeses contam entre si com astrénomos versados em Computus. Assim, 0 irlandés Sao Columbano (c. 543-618) escreve uma carta severa ao entéo papa Sao Greg6rio Magno, onde se defendia de acusa- @Ges de que mantinha a data céltica para a Péscoa, atirmando que, conforme 08 céleulos dos sous matematicos, as tabelas com as datas da Pascoa que Roma havia enviado estavam erradas. Um outro exemplo desse zelo é Beda Venerabilis (c. 673-735), nao por acaso origindro da ‘orla céltica’, em Jarrow, norte da Inglaterra. Beda dedicou muito tempo ao calculo de calendérios, do qual resultou um manual extrema- mente competente, 0 De ratione temporum; devemos a ele o uso amplo de um calendério com base no ciclo lunar meténico de dezenove anos, tendo prepa- rado uma tabela de datas de Péscoa com ciclo de 532 anos. E foi Beda quem primeito usou como data inicial o nascimento de Cristo, seguindo os célculos completados em 525 pelo monge Dionisio, o Breve. Gragas a Beda, consa- grou-se a expresso Anno Domini (ano do Senhor) para designar nossa era, Beda também se interessava pelas marés, pois eram um acontecimento noté- vel em Jarrow e Wearmouth, duas cidades situadas junto a boca de rios que desaguavam no Mar do Norte. Observou que a altura das marés dependia nao sé das fases da Lua, como também de condig6es locais. Beda, em conjunto com Cassiodoro e Isidoro, representa o labor enciclopédico, que resgatou 0 conhecimento astronémico e cosmolégico da Antigdidade para os primeiros séculos da Idade Média. © chamado Renascimento Carolingio marca uma nova era. Carlos Magno (768-814) toma-se imperador de quase toda Europa ocidental e revela- se um soberano magnénimo. Promove os estudos em seus vastos dominios, cerca-se de sabios famosos, e ele préprio procura completar sua instrugao, aprende o grego e fala latim fluentemente. Nao é para menos que, no inicio do 9 PLATAO. Timeu, 38, 303 QuaDAIVIUM século nono, 0 poeta Moduino de Autun proclama: “Os nossos tempos se transformaram na civilizacdo da Antiglidade. Roma aurea renasceu e foi res- taurada para o mundo”. "° Dentro desse renovatio e reparatio, como os intelec- tuals da corte de Carlos Magno @ de seus sucessores imediatos descreviam sua época, os seguidores de Beda, Alcuino de York (735-804) e, posterior- ‘mente, 0 alemo Rabano Mauro (776-856) emprestam livtemente de todos os enciclopedistas anteriores © constituem um corpo de saber sem equivalente nas fases anteriores da Idade Média. Carlos Magno nutre grande paixéo pelas artes liberais e em particular pela Astronomia, 0 que deu grande impulso ao estudo dessa disciplina em sua época e nos reinados de seus sucessores. Um documento representativo desse momento 6 0 manuserito, ricamente ilustrado, conhecido como o Aratea, que se encontra agora na Biblioteca da Universidade de Leiden. © Aratea é uma cépia de um tratado astronémico meteorolégico baseado no poema Phaenomena do poeta grego Aratus (c. 318-240/39 a.C.). © Phaenomena, em forma poética e sem afetagao, infor- ma uma audiéncia geral a respeito dos fendmenos celestes; inspirou a arte as- trondmica desde sua composigo até o Renascimento. O texto do Aratea 6 uma traduedo latina de Claudius Caesar Germanicus, composta no inicio do século | com base no original grego. Essa traducao é complementada por tre- cchos de uma segunda verséo do poema de Aratus, realizada no século IV por Rutius Festus Avienus. As trinta @ nove miniaturas que ilustram 0 Aratea, representando as constelagGes, as estagdes @ os planetas, constituem o que ha de mais precioso nesse livro. A ilustragao final do Aratea é a mais extraordl- néria de todas. Trata-se de um esquema representando a configuragao dos planetas contra o referencial do zadlaco, segundo 0 modelo geo-heliocéntrico, Lua, Sol, Marte, Jupiter e Satumno orbitam em tomo da Terra, e Merctirio e Vé- nus, em torno do Sol. A posi¢ao dos planetas corresponde a data de 28 de margo de 579,"' o que permite datar o original no qual se baseou a confec- (¢4o da ilustragéo. Uma figura extremamente importante desse perfodo é Joao Scoto Erige- na (c. 815-877), também proveniente da ‘orla céltica’ (Scoto significa escocés 10 SAVAGE-SMITH, Emilie, The Leiden Aratea, London: Equinox, 1997. p. 5. 11 EASTWOOD B. S. Origins and contents of the Leiden planetary configuration (Ms. Viator, v. 14, p. 1-40 (1983). 304 “Amancio Flaga ‘A unidad do saber nos edus da Astronomia medieval ou irlandés, e Erigena, nascido em Erin, ou Irlanda). Trabalhando em Paris, Erigena traduziu do grego varios livros, entre eles os escritos do pseudo-Dioni- sio, trazidos para 0 Ocidente em 827. Seu conhecimento do grego permitiu que lesse varias obras nesse idioma, e, em especial, a Patristica grega. No seu De divisione naturae, Erigena expe sua Fisica, Cosmologia e Astrono- mia, Em conformidade com o esquema da harmonia das esferas, estabelece a relago entre os diametros dos orbes celestes e os tons das escalas musicais. A telagéo dos raios dos orbes da Lua, Sole estrelas fixas com relago ao raio terrestre, 3:7:13, ndo é encontrada em nenhuma referéncia prévia, como Martianus ou Censorinus, ¢ indica que Erigena tinha & sua disposigo ou- tras fontes inéditas, possivelmente gregas. A Fisica de Erigena é baseada nos, elementos universais ou eatdlicos, 0 que permite que discuta as variagdes das ‘cores dos planetas em termos do fogo que queima nas regibes celestes infe- riores, mais densas, e que ilumina sem calor nas regides superiores, onde os raios solares apenas iluminam com uma tonalidade pélida, fria. Ao explicar desse modo as variagbes dos matizes dos planetas, Erigena expande o siste- ma de Heréclito, fazendo girar em tomo do Sol (que gira em toro da Terra) no $6 Merctirio e Venus, como também Marte e Jupiter. Somente Saturno 1nAo gira em torno do Sol. Saturno e as estrelas fixas habitam as regides supe- ‘lores e sua luz ¢ pélida, fria e constante. Jé os demais planetas oscilam entre regides densas, quando sao enrubescidos, e regides elevadas, sutis, quando empalidecem. © Sol encontra-se no ponto de equilibrio entre as regides leve e densa e sua luz dourada, nem rubra nem palida. Nunca antes de Tycho Brahe, nenhum astrénomo levou to longe o modelo geo-heliocéntrico quanto Erigena, © redespertar da Astronomia observacional Os astrénomos europeus da Alta Idade Média faziam apenas observa- ges muito rudimentares. Nao havia instrumentos astrondmicos no sentido préprio da palavra, Os tiicos instrumentos com uma utilizagao mais préxima da astronémica eram alguns tipos de rel6gios de sol. Uma ilustragao do sé- culo X de So Galeno mostra um monge observando uma estrela através de 305 quaorivius um longo tubo, mas este servia apenas para fixar a sua vista em uma parti- cular estrela. © principal da Astronomia observacional durante a Idade Média foi reali- zada no mundo islamico, em centros como Bagdé, Cairo, Toledo e Samar- kand, onde grandes instrumentos eram construfdos em posigdes permanentes. De fato, para uma compreensao correta do desenvolvimento da ‘Astronomia medieval européia, tanto sob 0 aspecto observacional como sob o te6rico, terfamos que nos referir ao imenso desenvolvimento e originalidade da ‘Astronomia islémica, cuja extensdo e sofisticagdo excedem de muito o escopo do presente ensaio.’® Em torno do ano 1000, gragas a maior regularidade do contato dos europeus com 0 mundo islimico, varias aquisigdes da Astronomia islémica passam a ser transferidas para a Europa crista. Essa ‘orientagdo! da virada do milénio teve como protagonista Gerbert de Aurillac (c. 990-1003, apés papa Silvestre Il, 999-1003), que, cansado da pentria em que se encon- trava 0 estudo do quadtivium nas terras centrais da Europa cristA, foi visitar monastérios espanhdis em busca do conhecimento das matematicas. Lé to- mou contato com varias obras da Astronomia iskémica, além de conhecer um novo e engenhoso instrumento, 0 astrolabio plano, descrito por astronomos mugulmanos do século IX e tornado conhecido em latim gragas a um curto tra- tado do beneditino Hermann de Reicheneau (1013-1054). O astrolabio consis- tia em um disco (mate), sobre o qual se encontrava uma mira, para determinar a altura dos astros, e um conjunto de discos (0 tympanon e o rete), que funcionavam como uma ealculadora, permitindo, por exemplo, 0 célculo da hora e da data da observagao astrondmica, Gragas a seu papel duplo de instrumento de observagao e de calculadora, permitiu a solugdo de muitos problemas de Astronomia esférica e geodésica. A imensa popularidade do astrolébio é atestada pelas 1.500 espécies do periodo 1000-1700 preserva- das em museus, assim como dos intimeros tratados sobreviventes descre- vendo seu uso. 12 Um panorama goral da Astronomia e da ciénclaislamica durante a Idade Média pode ‘ser encontrado em NASR, S. H. Islamic cosmological doctrines. Bath: Thames and Hudson, 1978; NASR, S. H. Science and civilization in Islam, Cambridge: The Islamic Texts Society, 1987. 306 Amancio Fiaga ‘A nidade do saber nos edus da Astronomia medieval O astrolébio incendiou uma revolugao instrumental que varreu a Europa. Havia agora observagées astronémicas resultando em valores numéricos para as posigdes dos planetas. Desse modo, percebeu-se a necessidade de um co- nhecimento dos movimentos pianetérios e 0 Ocidente encontrava-se pronto para absorver a Astronomia islamica. Adelardo de Bath traduziu as tabuas as- tronémicas de al-Khwarizmi para o latim, junto com seus Canones, ou ma- nuais de uso. Mais ou menos no mesmo tempo, as famosas Tébuas de Toledo foram traduzidas e adaptadas as longitudes de vérias localidades européias, como Marselha, Londres e Toulouse. Essas tabuas deram a Astronomia euro- péia uma slida base, visto que se tornou possivel computar posi¢des planeté- rias em um dado instante e comparar com as observagdes. Nao existia ainda um conhecimento dos modelos sobre os quais as tébuas se baseavam e, por- tanto, 0 préximo passo consistia na reconquista da Astronomia teérica. ‘Seguindo a tradugéo do Almagesto no século XI, uma série de manuals elementares dirigidos para o astrénomo observacional apareceram no sé- culo XII. Um divisor de dguas é encontrado em Johannes de Sacrobosco (John de Holywood), 0 astrénomo inglés que ensinou Astronomia em Paris de 1220 a 1296 e que escreveu um Tractatus de sphaera, um Computuse um Al- A laboriosa cosmologia de Grosseteste, tal como exposta no De luce, re- pousa toda sobre a estrutura luminosa do universo. O préprio espaco é gerado em virtude de sua propriedade de expansao formadora. A formacao Mme pela luz gera a esfera primordial do Firmamento, 0 céu-t te sem estrelas. Na cosmogénese de Grosseteste, gragas a seu poder de en- gendramento infinito de si mesma, a luz confere & matéria uma extenséo total {ui o corpo primeiro, o Firma- 1a e da forma primordial mento, composto unicamente de mate Apés essa expansdo primeira, j4 produzido o Firmamento, a luz segue um caminho inverso @ reflete-se no centro da esfera primeira. Proveniente do corpo primordial, a luz, ipsum lumen, se agrega numa massa que, permane- cendo subordinada ao corpo primeiro, aparece no centro. No seio dessa mas- sa produzem-se condensagao e rarefacao, das quais a F desta, uma segunda esfera. A luz, que na rna-se, uma vez engendrada pelo corpo primor- (era primeira é simpl dial, duplicada.2” 23 Idem, idem. 24 Idem, p. 54 25 ALBERTO MAGNO. De anima, ‘Sententiarum disputata, 4. 17, p. 26 BAUR. Op. cit. p. 54. 27 Idem, p. 55. 3, cap. 8; BOAVENTURA. In primum librum qi 322 ‘Améncio Feioga ‘A unidade do saber nos céus da Astronomia medieval Esse processo, que jé constituiu a segunda esfera, aquela das estrelas fi xas, por modo de massa de densidade acrescida (molem densiorem), se repe- te para produzir, sempre por modo de massa condensada (molem adhuc densiorem), uma terceira esfera. Isto continua até a nona esfera, a menor de tuja massa 6 produzida sempre por condensagao di- ante (congregatio disgregans), aparecem os quatro elementos. Esta es- {era inferior, a esfera da Lua, engendra também a luz ¢ constitui uma massa que Ihe ¢ inferior e que sofre variagdes de densidade. Desse modo, produzem- se aqui o fogo, ali o ar, depois a égua e por fim a terra. No total, treze esferas: nove celestes, incorruptiveis, estdvels, quatro inferiores, as que envolvem o meio humano imediato, inacabadas, suscetiveis de aumento e sujeitas & gera- 40 € & cortupeao. “Vé-se, em conseqdéncia, que todo corpo superior &, para 0 corpo que Ihe 6 subordinado, pois engendrado pela luz difundida pelo corpo supe- rior, perfeigao especttica, species et perfectio.” cadora da sua luz, 6 todo corpo que é engendra A luz 6 perfeigo especifica de todos os corpos. Aquela dos corpos supe viores é mais espirtual, mais simples; aquela dos corpos inferiores mais corpo- ral, duplicada, magis corporalis et mutipicata. Ademais, todos 0s corpos no ‘so da mesma natureza especifica, tal como a série dos numeros, que nao possuem a mesma forma especifica, mesmo que provenham de uma maior ou menor multiplicagao da unidade.? Para os ‘lumindlogos’, 0 movimento de propagacao nao é nem ‘mutagao" nem alteragdo da matéria, nem mudanga local mais ou menos lenta, mas é chamado de ‘multipicagao’. Sua Fisica ndo é a de Aristételes, cujo ponto de partida 6 0 movimento, mas pitagérica, que reconduz o movimento ao seu principio, o arithmos. De onde decorre a descrigao numérica da propagagao da luz em lugar da aristotélica em termos de variagdes (diversa).°" A proprie- 28 Idem, p. 58. 29 Idem, p. 55. 380 Idem, p. 56. 81 DE BRUYNE. Op. cit. p. 25-26; DUHEM. Op. cit. p. 51, 506. QuaDAIVIUM ‘As ares iberais na ldade Média dade de difusdo universal da luz, pela qual ela se multiplica em todas as dire- ¢6es, faz dela, portanto, nao s6 princfpio constitutive da corporeidade, mas também causa de todo movimento corporal. Retomando, com a cosmologia peripatética das esferas encaixadas, a teoria de sua coordenagao dinamica por meio do impulso vindo da esfera superior, Grosseteste diz que os corpos inferiores participam da forma dos corpos superiores. O corpo subordinado receptivo do movimento que engendra aquela forga mottiz incorporal, pela {qual 0 corpo superior & movido. A forga incorporal da Inteligéncia (separada) ou da Alma que move a esfera primordial e suprema, causando a rotagao diur- na, comunica este movimento a todas as esferas celestes que Ihe so subordi- nadas. Mas, quanto mais humilde 0 posto de uma esfera, mais a luz primordial toma-se nela impura @ enfraquecida. Em resultado disto, menos ela participa do movimento em diregao a Oeste - 0 movimento do ‘mesmo’ referido no meu da esfera extrema e maior é 0 seu desvio rumo a Leste — 0 movimento do ‘outro’ ~; a segunda esfera, a das estrelas fixas, apresenta este desvio como 0 secular deslocamento dos equindcios - representado, seja pela pre- cesséo de Hiparco, seja pelos avangos e recessos, seja pela "“trepidagao” de Thabit® -, as esferas mais abaixo, como os perfodos dos planetas, desde Sa- turno, que completa sua revolugao em 29 anos e meio, até a Lua, cuja érbita define 0 més. Desse modo, ao se chegar &s esferas dos elementos, embora elas participem da forma do primeiro céu, seus movimentos néo guardam mais relacdo direta com o impulso mottiz primordial, visto que, por um lado, elas de- ‘em a luz primordial somente sob uma forma bastante impura e esmaecida e, Por outro lado, sua matéria é densa e principio de resisténcia e insubmissao.** As esferas colestes, sendo acabadas, nao sao suscetiveis de condensa- (G80 e de rarefacao. Nelas, a luz ndo provoca a tendéncia centrifuga, que rare- faz a matéria, nem a centripeta, que a condensa. Os corpos celestes nao so sujeitos a0 movimento para cima ou para baixo. Somente um movimento cir- cular thes é imposto.** O tratado Sobre o movimento corporal e a luz propée, concordando com Avicena, a mesma doutrina: 0 movimento (local) dos corpos leves ou pesados 82 DUHEM. Op. cit. p. 982, 413. 33 BAUR. Op. cit. p. 87. 84 Idem, ibidem, 328 ‘Améncio Fraga ‘A unidade do saber nos céus da Astronomia medioval depende da forma corporal proveniente do céu. Se este se detivesse, nem os corpos leves nem os pesados poderiam se mover. °° Robert escreve no De luce: as esferas somente um movimento circular & impresso pelo agente intelectivo motor. Este comunica a esfera, do qual ele 6 pressuposto, uma rotago corporal, irradiando uma impulsao corporal em di- rego a ela.® Isso converge com que vimos mais acima: 0 corpo superior 6 perfeigéo especfica para 0 inferior, que ele engendra com sua luz irradiada. Essas duas afirmativas so esclarecidas por uma passagem da Metafisica de Alberto Magno, onde ele recorre aos ‘astrénomos’ para explicar as conjungies dos astros. Ele precisa que a conjungao verdadeira de duas estrelas ocorre quando a inferior vem se conjugar (applicatui) & superior, esta no se conju-

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