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Medo Líquido – Zygmunt Bauman: uma resenha

A liquidez moderna resulta em uma infinidade de experiências


secundárias da morte, de exclusão e, portanto, na construção cotidiana e
tijolo por tijolo de uma insegurança estrutural.

by Vinicius Siqueira Published dezembro 8, 2013 12 Comentários

O livro Medo Líquido (2006) é a tentativa de Zygmunt Bauman em


descrever aspectos do medo na modernidade líquida. Além de análises do
momento histórico atual, algumas categorias importantes são utilizadas ao
longo do livro.

O objetivo deste artigo é apresentar os movimentos teóricos e analíticos


principais do texto de Bauman.

O Medo Líquido

Para Bauman, há três formas em que o medo pode afligir as pessoas na


sociedade líquida:

1. A partir da insegurança em relação ao futuro. Concretamente, o


medo de não conseguir trabalhar ou ter qualquer tipo de sustento;
2. A partir da insegurança em relação ao próprio status social.
Concretamente, pelo medo de não conseguir se fixar na estrutura
social, que significa basicamente o medo de perder a posição que se
ocupa, de cair socialmente para posições vulneráveis;
3. A insegurança em relação à integridade física. Concretamente, o
medo de ser agredido em seu próprio corpo.

Bauman utiliza o conceito de medo derivado. Ao contrário do medo


primário fundamental, ontológico), o medo derivado (que é secundário) é
inculcado socialmente. O medo primário é o medo da morte na sua forma
mais pura: é o medo de levar um tiro quando se está na guerra; já o medo
secundário é aquele que nos obriga a seguir pelo caminho mais longo
para não passarmos pelo meio de uma favela.

Medo Líquido – Zygmunt Bauman

O medo derivado é uma tomada de empréstimo do conceito de habitus,


de Pierre Bourdieu, pois Bauman o utiliza para explicar uma propulsão,
enquanto disposição socialmente incorporada. Para este medo, há práticas
socialmente aceitas e incorporadas que representam uma fuga.

Bauman entende que trocamos segurança por proteção. Há uma


diferença: segurança é aquilo que nos constitui; já a proteção é feita a
partir de equipamentos. A segurança parte de um movimento de dentro
pra fora, já a proteção de fora para dentro. Ser inseguro (como explicita a
análise de Bauman) é ser um sujeito constituído de tal forma que a
incerteza, a liquidez das relações e o medo de tudo, são características a
priori. Um a priori histórico.

O inseguro checa o celular do parceiro ou da parceira a fim de saber se ele


ou ela está traindo. O protegido detém um número de câmeras instaladas
em seus estabelecimento/condomínios/instituições, utiliza coletes à prova
de balas, armas que são compradas para se usar “contra bandidos”,
programa senhas para impedir que qualquer um veja a tela de seu celular
e etc.

A cidade
O princípio da proteção como solução para a insegurança também é na
arquitetura da cidade: ao categorizar a cidade como um local de encontro,
como um espaço mixofílico e mixofóbico, o autor estabelece paralelos
entre a arquitetura urbana e a insegurança pós-moderna.

A cidade é o lugar do encontro, da mistura, do novo, da efervescência. É o


lugar onde tudo e todos se encontram mesmo sem qualquer vontade, é o
lugar onde estar com quem não se conhece é um pressuposto, é um termo
aceito tacitamente e, por isso, ela é um espaço mixofílico (que promove a
mistura, que faz da mistura algo aceitável e aprovável).

No entanto, a sujeira precisa ser limpa. É na cidade onde se pode encontrar


os resultados da exclusão: pessoas sem casa, em situação de rua; favelas e
seus moradores; todos estes estranhos são seres que provocam o desprezo
e a repulsa do cidadão normal. A mixofobia (a repulsa pelo estranho) é vista
materialmente de forma peculiar: por exemplo, a avenida Paulista é a
principal via da cidade de São Paulo, é o centro financeiro da cidade e,
como é de se esperar, é um antro da exclusão. Em frente aos grandes
prédios, além dos vários seguranças que efetivamente estão lá para
espantar os excluídos, há a presença de longas barras de ferro com
sobressalências pontiagudas que ficam acopladas em frente às vitrines. O
objetivo concreto: evitar a presença de moradores de rua, evitar que
durmam em frente aos estabelecimentos.

A mídia

Segundo Bauman, a sociedade é um dispositivo que visa tornar tolerável a


experiência da vida tendo a certeza da morte. Há duas formas de se lidar
com a morte:

1. A desconstruindo, ou seja, detalhando completamente suas causas


de maneira que, no fim, parece que ela poderia ser evitada e;
2. A banalizando, que quer dizer, mostrá-la como algo do cotidiano.

O antigo programa Brasil Urgente é um exemplo perfeito para ambos: tem


a enorme vantagem de falar, basicamente, só sobre morte. Os acidentes
de carro são descritos minuciosamente e a culpa é sempre de um motorista
bêbado ou distraído. A morte não é um fato, é um acidente, de acordo com
a lógica do programa e, além disso, a quantidade de mortes denunciadas
expõe a banalização do acontecimento.

A morte não é só o fim da vida fisiológica. Bauman categoriza a morte em


diferentes graus:

1. A morte em primeiro grau é, de fato, a morte fisiológica, é deixar de


existir;
2. Já a morte em segundo grau (que seria a experiência primária de um
sujeito vivo com a morte) seria a morte do outro, a morte de quem
nos relacionávamos;
3. Enquanto a morte em terceiro grau é a quebra do relacionamento, a
exclusão (e é a experiência secundária que se pode ter da morte).

O ponto alto deste capítulo é a ilustração da experiência secundária da


morte enquanto cotidiano, banal (e que produz insegurança), já o exemplo
(incrível) de Bauman são os reality shows, como o Big Brother, em que os
participantes têm como pressuposto a exclusão. Eles precisam quebrar
relacionamentos em algum momento, pois só pode vencer. O Big Brother,
sendo um produto cultural, é também parte de nossa sociedade e nele é
possível enxergar parte de sua lógica.

A liquidez moderna fornece uma infinidade de experiências secundárias da


morte, de exclusão e, portanto, contribui na construção cotidiana, tijolo
por tijolo, de uma insegurança estrutural. Promove a criação e a utilização
de técnicas e tecnologias para a proteção.

A mídia exerce o papel de distribuição do medo: o medo não é mais o que


se escuta nos contos, nos mitos, nas reuniões de família, nas agremiações.
Ela é vista cotidianamente pela televisão, pelos jornais e pela internet.
Bauman cita a Al-Qaeda. Antes do 11 de setembro, era relevante? E
depois?

A responsabilidade

A partir de Rousseau, a posição da humanidade em torno dos desastres


naturais se modificou: estes desastres, únicos que poderiam escapar da
responsabilidade humana e ser imputados aos deuses, ao acaso,
transformaram-se em parte do rol de elementos sob controle da
racionalidade e da potencialidade humana.
Rousseau transfere a responsabilidade acerca do despreparo também às
pessoas. Argumenta que o grande terremoto de Lisboa de 1755 não pode
ser considerado um acontecimento ao acaso, não pode nos colocar em
estado de passividade; o desastre deve ser visto como a falta de
planejamento das pessoas que moravam nos locais em perigo. O desastre
acontece, mas as pessoas podem evitá-lo.

O que isso significa? Ao traçar essa divisão entre o momento em que a


responsabilidade não pode ser evitada, Rousseau consegue argumentar
que, em um sistema complexo e global, em uma rede tão interligada, não
há como não ter responsabilidade sobre seus próprios atos e sobre seus
resultados. O micro é a engrenagem do macro. É impossível se esconder
da responsabilidade.

Vinicius Siqueira

Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de
São Paulo e editor do Colunas Tortas.
Atualmente, com interesse em estudo do biopoder nos textos
foucaultianos.
Autor dos e-books:

Fascismo: uma introdução ao que queremos evitar;


Análise do Discurso: Conceitos Fundamentais de Michel Pêcheux;
Foucault e a Arqueologia;
Modernidade Líquida e Zygmunt Bauman.

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