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GÊNERO, ÉTICA E SENTIMENTOS:

A resolução de conflitos no campo da educação

Valéria Amorim Arantes*


Brigitte Ursula Stach Haertel†

Como promover uma educação ética que favoreça a convivência


democrática entre homens e mulheres? Como romper com uma visão de mundo
subordinada aos interesses masculinos? Como erradicar a dominação patriarcal,
perpetuada historicamente, que além de naturalizar as exclusões, os preconceitos
e as discriminações, estabelece padrões sociais, culturais e psicológicos que
acaba por desencadear a violência (física e psíquica) contra as mulheres? Antes,
porém, faz-se necessário percebê-la. Desvelá-la.
A violência contra as mulheres está presente na nossa cultura. No entanto,
há muitas maneiras de situar-se diante dela: podemos viver sem vê-la, mantendo-
a velada, podemos negá-la, aceitá-la, legitimá-la ou, ainda, lutar contra ela. Isso
porque, para além de uma trangressão dos direitos humanos, a violência contra as
mulheres contempla vínculos afetivos que legitimam, de forma explícita ou não, a
desvalorização e a discriminação da mulher. Mais ainda, favorece a convivência
entre mulheres e homens, dentro de uma estrutura de submissão e domínio.
Vejamos, a seguir, algumas reflexões a partir de nossos trabalhos de pesquisa.

Ética e sentimentos nos conflitos de gênero


Os conflitos de gênero são fenômenos complexos e, como tal, seu
enfrentamento requer o estudo da elaboração subjetiva de uma problemática
social em que os sentimentos desempenham uma importante função.
Com o intuito de identificar e analisar os sentimentos projetados numa
relação de casal permeada por violência (física e psíquica), realizamos uma
pesquisa na qual solicitamos a 78 jovens brasileiros, homens e mulheres de 12 a
16 anos de idade, que analisassem um conflito real, vivido e escrito por uma

*
Professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.

Mestranda pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo.
adolescente e que contém agressões físicas e insultos cometidos por seu
namorado.
A leitura do texto produziu estados afetivos que desempenharam uma
função central na interpretação que os sujeitos deram à situação apresentada.
Para exemplificar, faremos referência a dois grupos de sujeitos cujas respostas se
destacaram.
No primeiro grupo os sujeitos propuseram o rompimento da relação e, como
justificativa, identificaram e recriminaram explicitamente a violência cometida pelo
namorado. Além disso, apresentaram a imagem de um homem que desejava
dominar sua mulher; e a imagem de uma mulher que não estava disposta a
subordinar-se ao seu parceiro. Trata-se, pois, de uma lógica na qual os sujeitos
reconhecem e recriminam estruturas afetivas de domínio e submissão.
No segundo grupo os sujeitos propuseram alternativas conciliatórias para a
resolução do mesmo conflito, o que lhes levou a negar, total ou parcialmente,
alguns dados da situação analisada como, por exemplo, as agressões sofridas
pela mulher. O fato de não reconhecerem a violência lhes permitiu “olhar” para a
figura masculina como uma pessoa triste, frágil, insegura e que, acima de tudo,
necessitava de cuidados e ajuda. Dentro dessa lógica, que de certa forma justifica
e/ou explica o comportamento masculino, trouxeram uma idéia que consistiu
basicamente em colocar a mulher num lugar de condescendência, benevolência
e/ou generosidade.
Eis os princípios que, mal entendidos, podem conduzir-nos ao que se
chama de ética do cuidado e a um modelo de amor unilateral, no qual a mulher
deve amar e cuidar. Dito de outra forma, uma certa cumplicidade entre quem
exerce e quem se submete ao poder. Cumplicidade que, num sistema patriarcal e
machista, legitima hierarquias e estabelece padrões que, além de provocarem a
exclusão e a invisibilidade das mulheres, naturalizam a desigualdade de gênero.
As origens dessas representações parecem estar nas interações entre as
histórias pessoais e uma ordem social que utiliza as diferenças de sexo para
estabelecer o domínio de umas pessoas sobre as outras. Ocorre que muitas vezes
não somos conscientes dessa estrutura social - de dominação-submissão -, que

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permeiam não só a violência de gênero como também o fenômeno da violência
escolar, que tanto nos aflige.
Assim sendo, defendemos que um programa educacional de ética e
cidadania deve abordar questões de gênero, de forma a evidenciar os “pactos”
velados contidos nos conflitos interpessoais. Deve, ainda, promover o diálogo no
cotidiano escolar, pois, através dele, criar-se-ão “novos e diferentes olhares” para
aquelas práticas que foram, coletivamente, naturalizadas. A escola é, por
excelência, o espaço privilegiado para fazê-lo. O diálogo e a problematização dos
aspectos sociais, culturais e psicológicos presentes nos conflitos de gênero podem
promover ações que previnem, identificam e atuam contra as exclusões, os
preconceitos e as discriminações advindas das diferenças de sexo. E isso nos
conduz a propostas de trabalho com a resolução de conflitos de gênero no
contexto escolar.

A resolução de conflitos no contexto escolar


Concebendo os conflitos interpessoais como um conteúdo essencial para a
formação psicológica e social dos seres humanos, um caminho profícuo para a
construção de sociedades e culturas mais democráticas e sensíveis à ética nas
relações humanas há que se inserir o trabalho sistematizado com situações
conflitivas no cotidiano escolar. Ora, uma formação que visa à construção de
valores de democracia e de cidadania não pode, em nossa opinião, ignorar os
problemas pessoais e sociais vividos por seus atores, mas conceder um lugar
relevante às relações interpessoais.
O diálogo reflexivo pode trazer à tona diferenças entre os significados
atribuídos a uma mesma problemática, bem como dar visibilidade a aspectos da
“realidade” que foram ignorados ou não percebidos pelas partes envolvidas. Para
resolver um conflito temos que nos aproximar da outra pessoa envolvida na
situação e tentar entender como ela se sente e por que chega a conclusões
diferentes das nossas. Por outro lado, a partir de nossa perspectiva pessoal,
temos que mostrar nossos sentimentos e defender nossos direitos e nossas
razões para que a outra pessoa possa, por sua vez, compreendê-los. Tal

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processo, interativo e dinâmico, pressupõe a coordenação de diferentes aspectos
e pontos de vista.
Nesse sentido, a resolução satisfatória de um conflito exige que
descentremos do próprio ponto de vista para contemplarmos, simultaneamente,
outros pontos de vista diferentes e, muitas vezes, opostos aos nossos. Exige-nos,
ainda, a elaboração de fusões criativas entre os diferentes pontos de vista. Tal
processo implica, necessariamente, operações de reciprocidade e síntese entre as
diferenças. Para tanto, faz-se necessário analisar a situação enfrentada, expor
adequadamente o problema e buscar soluções que permitam resolvê-lo de
maneira satisfatória para os envolvidos. Tudo isso requer um processo de
aprendizagem que pressupõe romper com o paradigma ganhar-perder, cuja lógica
binária limita a construção de ações coordenadas que considerem as diferenças.
Promovendo o diálogo e a participação coletiva em decisões e acordos, a
resolução de conflitos torna-se um instrumento para repensar a própria cultura, a
transformação dos discursos institucionais e culturais. Uma oportunidade, pois, de
crescimento e desenvolvimento. (Schinitman & Littlejohn, 1999‡).
Assim, o processo de aprendizagem da resolução de conflitos requer
práticas sistemáticas de análise de suas causas, conseqüências, estados afetivos,
mudanças de perspectivas e elaboração de encaminhamentos para a situação
enfrentada. Essas práticas devem, a nosso ver, ser introduzidas desde o início da
escolaridade, cuja finalidade, para além de aprender a resolver conflitos, é
desenvolver a inteligência social e emocional. É preciso aprender a pensar nas
pessoas. E a escola deve ensinar os estudantes a fazê-lo.
Apesar do pequeno espaço que um texto dessa natureza nos oferece,
gostaríamos de concluir sinalizando alguns aspectos importantes que os docentes
devem levar em conta nas atividades de resolução de conflitos. Todos eles
consideram os estudantes como construtores da realidade e tomam, como ponto
de partida, o seu protagonismo.


Schnitman, D. F. & Littlejohn, S. (org). Novos paradigmas em mediação. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1999.

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Através do trabalho sistematizado com conflitos sobre temáticas de gênero
acreditamos promover uma educação que favoreça a análise dos aspectos
sociais, culturais e psicológicos da feminilidade e da masculinidade, os
estereótipos de sexualidade e as relações de poder entre os gêneros, propiciando
condições para que o(a)s aluno(a)s desenvolvam sua capacidade dialógica e
autônoma de tomada de decisão na resolução de conflitos, consoante com a
noção contemporânea de direitos humanos.
Trata-se de favorecer que os estudantes§:

• Analisem o que aconteceu e questionem suas possíveis causas, reconstruindo


sua história;
• Analisem os sentimentos e os pensamentos de todas as partes envolvidas;
• Tomem consciência de seus próprios sentimentos e valores;
• Aprendam a discernir aquelas soluções que não são adequadas (que recorrem
à violência, que não são autônomas, que não são justas, que não incidem sobre
as causas, que são “mágicas” no sentido de não serem reais, etc.) daquelas que o
são;
• Criem coletivamente normas e regras que favoreçam a convivência do grupo;
• Aprendam a buscar soluções próprias, sem recorrer a adultos ou a pessoas
externas;
• Percebam que um mesmo conflito pode ter diferentes formas de resolução e
que elas dependem do contexto e das pessoas envolvidas;
• Analisem cada uma das soluções apresentadas para antecipar suas
conseqüências;
• Analisem a existência ou não de relações entre as causas da problemática e as
soluções propostas.

A resolução de conflitos parece-nos um caminho promissor na busca de


uma convivência efetivamente democrática. Uma possibilidade de dar novos

§
Sastre, G. & Moreno, M. Resolução de conflitos e aprendizagem emorional: gênero e
transversalidade. São Paulo: Moderna, 2002.

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significados a uma ordem social que, de alguma maneira, naturaliza as
desigualdades de gênero historicamente construídas e legitima uma visão de
mundo subordinada aos interesses masculinos.
O trabalho a ser desenvolvido nas escolas, com o intuito de superar o
sexismo e favorecer a construção de relações entre homens e mulheres pautadas
em valores éticos, democráticos e de cidadania pressupõe, entre outras coisas,
que o(a)s professore(a)s tomem consciência da necessidade de se romper com
uma cadeia de transmissão social de atitudes patriarcais e, acima, de tudo, tomem
consciência da força que têm para fazê-lo e para promover mudanças. Elas são
necessárias e urgentes.

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