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AUTONOMIA DO TRABALHO DOCENTE:

caminhos para sua organização político-pedagógica

A CONSTRUÇÃO DO TRABALHO DOCENTE A PARTIR DO CONCEITO


GRAMSCIANO DE CLASSE SOCIAL

Juliana Mezomo Cantarelli (UFPel/ IFFar)


jucacantarelli@yahoo.com.br
Patrícia de Faria Ferreira (UFPel)
patriciafariaf@hotmail.com

RESUMO: O presente estudo tem como objetivo analisar a construção do trabalho


docente a partir do conceito gramsciano de classe social, na perspectiva de Kate Crehan.
Para tanto, a pesquisa de abordagem qualitativa e de cunho bibliográfico parte do seu
livro “El sentido común em Grasmci: la desigualdade y sus narrativas ” versão em
espanhol, publicado em 2018. No livro Kate Crehan, através das ideias de Gramsci,
expõe que a Classe não está atrelada unicamente à questão econômica, mas também à
perspectiva política da qual as pessoas veem o mundo e a concepção que se tem dele.
Com isso, expande a noção de classe para além do econômico abarcando aspectos em
que as desigualdades estruturais reproduzidas de geração em geração se manifestam na
vida de mulheres e homens. A partir desse entendimento de classe percebe-se que
querendo ou não, todo ser humano pertence a determinados coletivos e faz opções
políticas. Mas, expõe Kate Crehan (2018, p.73) que “El puntoesestudiar com mirada
lasopciones que tenemos y tomar uma decisón consciente”, pois a permanência ou
transformação das situações e da própria cultura só acontece a partir do estudo empírico
cuidadoso das mesmas. Para tal, é necessário o entendimento de 3 conceitos: senso
comum, subalternos e intelectuais, visto que esses estão entrelaçados com o modo que
os grupos sociais, inclusive professoras e professores percebem a sociedade em que
vivem, seus acontecimentos, bem como seu trabalho dentro desses contextos. Porém,
lembra Kate Crehan, para Grasmci qualquer conclusão, análise que diga respeito a como
se desenvolverá o futuro é necessariamente hipotético. A partir disso, entende-se então
que sempre é possível ter esperanças de novas possiblidades de ser e agir que
contrariem o determinismo que, muitas vezes, coloca na inércia do “sempre foi assim”
toda possiblidade de mudança social e educacional.

PALAVRAS-CHAVE: Classe Social; Gramsci; Trabalho Docente.

INTRODUÇÃO
Sabe-se que “a educação tem desempenhado um importante papel, tanto no
sentido de contribuir para a construção de uma hegemonia ideológica conservadora
quanto no de reforçar movimentos contra hegemônicos” (GANDIN; HYPOLITO, 2003,
p. 59). Entretanto, para que uma perspectiva contra hegemônica aconteça, a formação,
profissionalização e qualificação do trabalho docente deve estar centrada em outra
concepção. Essa, para Frigotto (1996), deve envolver a formação humana na sua

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integralidade, perpassando todos os aspectos e conhecimentos, sejam eles científicos,


históricos, culturais, políticos, etc.
Para que isso aconteça percebe-se necessário que professores e professoras
assumam seu lugar nesse espaço de lutas e tensões. Afinal, “não assumir nosso lugar e
responsabilidade nesse espaço significa entregá-lo a forças que certamente irão moldá-
lo de acordo com seus próprios objetivos e esses objetivos podem não ser exatamente os
objetivos de justiça, igualdade e um futuro melhor para todos” (TADEU, 2010, p. 13).
Nesta perspectiva, o conceito de classe social torna-se é importante de ser
pensado, visto que pode acabar contribuindo e influenciando, direta ou indiretamente,
no que se construiu como valores, modo de pensar, de agir, se relacionar e até no modo
como se percebe o “outro”, seu cotidiano e seu entorno. Sendo assim, essa pesquisa de
abordagem qualitativa e de cunho bibliográfico tem como objetivo analisar a construção
do trabalho docente a partir do conceito Gramsciano de classe social.

DESENVOLVIMENTO
O ser humano não nasce pronto, vai se moldando e se construindo a partir de
suas experiências e aprendizados. Nesse sentido, Kate Crehan, em seu livro “El sentido
común em Grasmci: la desigualdade y sus narrativas 1 ” expõe que a partir da classe
pertencente o ser humano vai moldando seu processo desde seu nascimento, começando
a construir a partir da sua própria realidade o seu modo de ser, pensar, agir, se
posicionar, etc.
Kate Crehan (2018) expõe a partir das ideias de Gramsci, que a Classe não está
atrelada unicamente a questão econômica, mas também a perspectiva política da qual as
pessoas veem o mundo e a concepção que se tem dele. Com isso, expande a noção de
classe similar à forma de produção ou a base econômica e abarca outros aspectos em
que as desigualdades estruturais reproduzidas de geração em geração se manifestam na
vida de mulheres e homens. Desigualdades essas que podem mostrar-se de várias
maneiras, podendo inclusive fundir-se em classes conscientes de si mesmas que se
convertem em base de bloco histórico capaz de provocar transformações sociais

1
Livro traduzido para o espanhol em 2018, ainda sem tradução para o português. Sendo assim, as ideias
expostas neste subcapítulo são de minha livre tradução.

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radicais, ou não conscientes que se deixam levar pelo senso comum difundido pela
opinião popular.
Opinião popular que, conscientes de si ou não, geralmente é onde primeiro as
idéias se dão e são construídas, visto que, de acordo com Crehan, (2018), em certos
momentos todos são seres de opinião popular. Essa, a partir do “sentido común” em
Grasmci é explicado como sendo as opiniões coletivas que moldam de maneira
considerável o modo como à pessoa vive sua vida cotidiana, bem como os processos
que permitem o intercâmbio e as transformações de tais opiniões. Essa mudança de
pensamento será possível a partir do diálogo dos subalternos com os intelectuais,
proporcionando a criação de um novo senso comum que irá estabelecer e provocar
mudanças que possam vir a beneficiar a sociedade e não apenas a classe dominante.
Sendo assim, é necessário o entendimento de 3 (três) conceitos utilizados por
Grasmci e explicados atualmente por Kate Crehan: senso comum, subalternos
eintelectuais. Esses conceitos estão entrelaçados, mesmo que indiretamente, com o
modo que os grupos sociais, inclusive professoras e professores, percebem a sociedade
em que viveme seus acontecimentos, bem como seu trabalho dentro desses diferentes
contextos.
Emrelaçãoaoconceito de sensocomum, Kate Crehan (2018, p. 2) apresenta como
“todas aquellas conclusiones heterogéneas a las que las personas llegan no por medio de
una reflexión crítica, sino porque constituyen verdades pre-existentes del todo
evidentes”. Acrescenta ainda que o ser humano tem necessidade de sentir que entende o
mundo em que vive, buscando constantemente processos para dar sentido a essa
realidade. Porém, a maior parte do tempo não se tem consciência dessa ação, ou seja,
sente que conhece e que é capaz, relativamente sem pensar, de vincular o que ocorre
consigo mesmo, com o relato preexistente sobre como e porque as coisas são,
funcionam de tal modo, etc. Por isso, em geral, o sentido comum é uma concordância de
verdades aparentemente óbvias e por isso, aceitas no contexto de um mundo social
particular.
Nesse sentido, são importantes as ideias de Gandin; Hypolito (2003) que
corroboram com o conceito de senso comum e seu papel na sociedade. Apontam os
autores que

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Mais do que qualquer ideologia constituída e coerente, é o senso comum que


dita os parâmetros para nossa vida prática, que necessita de respostas e
reações ágeis para os vários problemas experimentados no cotidiano. No
senso comum reside a origem da maioria das ações do dia-a-dia; ele é
formado pelas crenças – contraditórias muitas vezes – que fundamental os
processos de decisão cotidiana (GANDIN; HYPOLITO, 2003, p. 71).

É importante destacar que esses processos de decisões cotidianas, em grande


parte construída e fundamentadas pelas crenças, não se limitam apenas ou
exclusivamente as “massas”. Entende-se que em certa medida todos vivem em um
mundo com sentido comum, diferenciando-se apenas pelo fato de que não são os
mesmos para todos os grupos, visto que cada classe social vai formando o seu.
Nessa construção do senso comum, o conhecimento deriva dos círculos que o
indivíduo frequenta, das suas experiências de vida e dos relatos que tem acesso. “O
senso comum é formado por diferentes posições ideológicas, que não são “falsas
imagens” da realidade ou produto de uma “falsa consciência”, mas visões particulares
da realidade que se baseiam em relações materiais de classe, gênero e raça” (GANDIN;
HYPOLITO, 2003, p. 72).
Essas relações de classe, gênero e raça vão contribuindo para a construção do
conhecimento. Esse, com o passar do tempo vai se constituindo em um núcleo sólido e
emocionalmente persuasivo em relação à maneira como explica o mundo, as situações,
o cotidiano, etc. Com isso, muito desse conhecimento adquirido será compartilhado ou
divergido com as pessoas do seu entorno, conforme a proximidade da relação.
Porém, é importante destacar que mesmo o senso comum contribuindo na
construção de “verdades óbvias”, elas são múltiplas e variadas demais para transformar-
se em um sistema coerente. A incoerência é uma característica fundamental do
ambíguo, do contraditório e multiforme sentido comum que os subalternos utilizam,
mesmo que sem perceber, para dar sentido ao seu mundo, defender aquilo que
acreditam e poder agir de acordo com suas próprias crenças. Assim, a incoerência é uma
qualidade negativa, reflexo da condição da subalternidade em si mesma (CREHAN,
2018).
Etimologicamente subalterno tem origem no latim que se constitui como
“colocado abaixo do outro”. No dicionário de língua portuguesa é apresentado como
“Que ou aquele que está subordinado a outro”, “Que ou aquele que, por se sentir

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inferior, age com submissão”, sendo subalternidade o “estado ou condição de


subalterno”. Kate Crehan (2018) afirma que Gramsci não define com precisão os
subalternos, mas aponta como uma totalidade que aglutina todos aqueles que são
oprimidos e governados.
Desse modo, percebe-se que não há tipos específicos de subalternos, sendo
definidos a partir de como são incorporados dentro do Estado. Assim, abarca todas as
formas, inclusive a subordinação internalizada, ou seja, aquela em que as pessoas
pensam que “sempre foi assim”, que “não tem como ser de outra forma”, etc. Além
disso, os subalternos podem rejeitar certos aspectos do discurso hegemônico em voga,
mas sua condição de subalternidade lhes impede de formular alternativas coerentes para
superar ou mesmo analisar as referidas questões (CREHAN, 2018).
Sem ter condições de analisar por si mesmo algumas questões é que se entende
que os subalternos devem estar numa relação dialógica com os intelectuais. Expõe Kate
Crehan (2018), que para Grasmci o que define um intelectual não é particularmente suas
habilidades mentais, mas a função que cumpre dentro da sociedade. Assim, os
intelectuais não são simplesmente quem pensa de uma maneira específica, mas aqueles
cujos pensamentos e afirmações são considerados com certo valor ou autoridade e por
isso conseguem “convencer” os demais que sua fala consiste em uma verdade.
O conhecimento gerado pelos intelectuais não é resultante de um pensamento
puro, ao contrário, se molda a partir das crenças, conjunturas, atitudes próprias do
mundo em que se desenvolvem, ou seja, é produto do seu tempo e do seu lugar, se
entrelaçando com as estruturas de poder existentes. Assim, os intelectuais orgânicos2, a
partir de um conhecimento gerado através das experiências vividas por um determinado
grupo social é que tem o potencial de convertê-los em hegemônico através de sua
autoridade e coerência. Esses intelectuais transformam as ideias do bom senso que
encontraram no sentido comum diário em análises coesas e elaboradas que explicam o
mundo pelo ponto de vista dessa classe, posteriormente sendo transmitidas por
narrativas políticas coerentes que serão reintroduzidas a um novo sentido comum.

2
Gramsci diferencia intelectual orgânico, ou seja, aquele vinculado a sua própria classe e que contribuiu
com suas lutas, do intelectual tradicional, isto é, aquele que se vincula a uma determinada classe por
interesses particulares.

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Porém, os intelectuais orgânicos não são necessariamente progressistas, visto


que todas as principais classes têm os seus próprios intelectuais. Esse fato pode ser
exemplificado através das ações anunciadas no Brasil, pelos distintos ministros da
educação que estiveram à frente da referida pasta, que em diferentes proporções sempre
utilizaram de economistas e técnicos financeiros para argumentar em prol de suas
ideias. Com isso tornam a explicação, mesmo que incorreta ou não real, em algo
coerente para o entendimento dos “subalternos”, proporcionando a aceitação de
determinados pensamentos e concepções inclusive pelas pessoas que serão prejudicadas
pelas ações, como é o caso de muitos professores, professoras e estudantes.
Em relação a isso, argumenta Gandin; Hypolito (2003) que todo discurso para se
tornar dominante, de algum modo, está historicamente ligado ao senso comum.
Assim, o que o discurso dominante promove não é uma ideia totalmente
estranha à sociedade, tampouco uma realidade totalmente “falsa”. Os grupos
hegemônicos transformam seu discurso em hegemônico porque são capazes
de “convencer” os grupos dominados a usarem suas “lentes” para
“enxergarem” a realidade e guiarem suas ações da vida cotidiana (GANDIN;
HYPOLITO, 2003, p. 76).

Desse modo, muitas pessoas acabam por pensar a partir das ideias hegemônicas
que não necessariamente são definidas pelas suas condições reais de classe social, mas
por uma “falsa” inclusão e percepção da realidade que não condiz de fato com aquilo
que realmente acontece ou existe. Esse convencimento gerado pelos intelectuais faz
com que certas ações, posturas e pensamentos sejam construídos e embase inclusive o
trabalho e o que dele se espera como resultado.
Mas, sabe-se também que essas ideias hegemônicas podem ser construídas tendo
como base os argumentos criados pelo bom senso. Esse, nascido do sentido comum que
representado a partir da consciência formada pelas experiências concretas dos
subalternos, são sementes das quais podem emergir novos discursos políticos. Discursos
esses que podem se tornar hegemônicos com a contribuição dos intelectuais orgânicos
que através de suas habilidades e conhecimentos transformam uma experiência bruta e
incipiente em discursos articulados e coerentes, afinal, eles mesmos emergem de tais
experiências.
A partir disso, entende-se que para Grasmci o caráter dos intelectuais orgânicos
não está relacionado com suas origens pessoais, mas pela geração de conhecimento que

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cumprem em prol de uma determinada classe. Sendo assim, se entende que nada está
determinado e sempre poderá haver novos começos (CREHAN, 2018).
Entretanto, os relatos que se tornam hegemônicos geralmente são aqueles que
refletem o mundo a partir da perspectiva de quem governa. Com isso, as pessoas
oriundas dos entornos menos privilegiados se veem obrigadas a existir entre os espaços
das explicações dominantes que tem habilidade de impor as verdades próprias do
sentido comum, as que dizem que tal forma é a única possível de se entender a vida em
sociedade. A partir do momento que se aceita as situações, sejam econômicas ou sociais
a partir do relato hegemônico que retrata o mundo visto da perspectiva de quem detém o
poder se pode afirmar que se habita em um mundo real e compartilhado.
Expõe Gandin; Hypolito (2003), em relação a ideias hegemônicas, que essas
assim se transformam porque tem a capacidade de agregar e convencer outros grupos de
que o que está sendo apresentado é real e verdadeiro. Assim,
A consolidação da hegemonia dos grupos dominantes está relacionada com
sua capacidade de englobar parte dos interesses dos grupos dominados.
Quanto maior a capacidade desses grupos de oprimidos e dos movimentos
sociais progressistas de articular e reforçar seus discursos contra
hegemônicos, maiores dificuldades os grupos dominantes encontrarão para
manter estável sua hegemonia. O estabelecimento de um novo senso comum
está diretamente relacionado a esses processos políticos (GANDIN;
HYPOLITO, 2003, p. 86).

Processos políticos que podem também proporcionar novos sentidos comuns e


tornar as ideias dos oprimidos e dos movimentos sociais progressistas em pensamentos
hegemônicos. Porém, para tal é necessário fazer com que seus intelectuais sejam
capazes de construir um discurso que convença, inclua e represente essas classes,
proporcionando pensar em uma nova forma de sociedade.
Nesse sentido, Kate Crehan (2018)expõe que é necessário estudar com atenção
as opções que se tem para poder tomar decisões conscientes, corretas e necessárias,
visto que a permanência ou transformação das situações e da própria cultura só acontece
a partir do estudo empírico cuidadoso das mesmas. Assim, para que se deixe de ser
subalterno há a necessidade de uma troca da cultura de subordinação, por uma nova
cultura que permita imaginar outra realidade.
Para pensar e criar outra realidade o diálogo se torna não somente necessário,
mas também fundamental. Assim, é o diálogo entre o grupo de subalternos e os
intelectuais que se embasarão no bom senso que existe dentro do senso comum que irão

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proporcionar a criação das novas ideias coerentes. Por isso, a função do intelectual é
essencial, pois organiza as crenças e opiniões, identificando elementos, definindo
vínculos, visto que existem razões para que algumas pessoas sigam determinadas
situações e outras não.
É importante salientar que a função do intelectual orgânico é diferente da
aderência interessada a um partido político. O político pode não deixar suas análise
submetidas à crítica, o que não pode acontecer com o intelectual que deve recursar-se a
ajustar seus pensamentos e ações aos “ventos” políticos predominantes. Ao mesmo
tempo deve-se ter consciência de que nunca se está fora da política, pois o ser humano é
moldado por forças, contextos, situações a partir do momento histórico que vive, ou
seja, não se fala fora de seu tempo e lugar.
Portanto, as coisas não acontecem ao acaso, são contextos, situações, momentos
que levam a certos acontecimentos que formam determinado senso comum. Os agentes
práticos dessas mudanças são os subalternos, mas a eficácia depende do surgimento de
seus próprios intelectuais orgânicos. Os dois juntos dão lugar a uma nova cultura e a um
novo senso comum que levará consigo as experiências de vida dos subalternos, mas
agora refletidas racional e coerentemente.
Lembra ainda Kate Crehan (2018) que para Grasmci qualquer conclusão ou
análise que diga respeito a como se desenvolverá o futuro é necessariamente hipotética.
Assim sendo, entende-se que sempre é possível ter esperanças de novas possiblidades
de ser e agir que contrariem o determinismo que, muitas vezes, coloca na inércia do
“sempre foi assim” toda possiblidade de mudança social e também educacional.
Corrobora para com esse determinismo o discurso neoliberal, de ideologia fatalista e
imobilizante que com “ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada
podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar
„quase natural‟”(FREIRE, 1996, p. 19).
Em relação à educação, essa perspectiva ignora a escola como um bem público e
um direito social, pois “Os êxitos, as culpas e as responsabilidades das aprendizagens
passam a ser uma incumbência pessoal; as obrigações e os compromissos da sociedade
para com cada pessoa se tornam invisíveis”(TORRES SANTOMÉ, 2003, p. 186).
Dentro dessa visão de sociedade, “todos possuem as mesmas oportunidades, aqueles

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que fracassam são incompetentes e sofrerão o processo de seleção natural (darwinismo


social)” (GANDIN; HYPOLITO, 2003, p. 61).
Essa perspectiva é percebida ainda hoje no cotidiano escolar e na fala de muitos
professores e professoras que afirmam ser o mérito individual a forma justa para
aprovação ou reprovaçãoao final do ano letivo, como também de acesso à universidade;
afinal, a educação é pública e gratuita, ou seja, “não estuda quem não quer”, “não
aprova quem não se esforça o suficiente”, “todos tem as mesmas oportunidades, o que
diferencia uns dos outros é à força de vontade”. Esse discurso faz com que muitos
docentes não se percebam responsáveis por questões relacionadas à formação humana e
cidadã, alegando que educação vem de casa e que os professores têm muitos conteúdos
a serem ensinados.
Porém, sabemos que a escola também pode ser um espaço democrático e de
resistência desde que seus profissionais tenham condições de perceber, analisar e pensar
outras formas e condições de trabalho, relacionamento, ideias e ações. Afinal, “as
crenças e ações humanas são construídas e modificadas em função das circunstâncias
em que se vive e se trabalha” (TORRES SANTOMÉ, 2003, p. 240).
Por isso afirma Grasmci que não se pode ficar preso em um mundo que ratifica e
reproduz a cultura de subordinação. Entretanto, superar essa subalternidade implica uma
mudança cultural, visto que a própria desigualdade de classe se estabelece através da
cultura instituída que coloca na renda e não no trabalho as características que
possibilitariam a união e integração dos grupos sociais (CREHAN, 2018).
Contudo, toda mudança sociocultural e/ou educacional baseada numa concepção
coesa de mundo requer um considerável trabalho político, pois não surgem de maneira
automática. Logo, o trabalho docente se torna fundamental porque a cultura da forma a
diversas maneiras de viver, porém sempre transitórias e não definitivas. Além disso, a
divulgação do conhecimento tem tanta importância quanto a sua produção e as relações
sociais em que esse é produzido, o que torna professores e professoras profissionais
fundamentais nesse processo.

Os professores e professoras são os principais intermediários culturais que a


sociedade oferece a garotos e garotas, com enorme poder em suas mãos, pois
se encarregarão de apresentar a história, o passado da humanidade e,
logicamente, da comunidade à qual pertence a instituição escolar em que
trabalha. De acordo com a seleção do passado, tentará explicar o presente,
buscando nesse passado as razões do que acontece atualmente. E, enquanto

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trabalha esse passado e presente da sociedade com alunos e alunas, esta


fazendo algo decisivo: apresentando o mundo das possibilidades (TORRES
SANTOMÉ, 2003, p. 211).
Mas, para que o trabalho docente se constituía como uma ferramenta para a
mudança social que prioriza a justiça através do bem comum e do bom senso, talvez
seja necessária uma maior reflexão das professoras e professores sobre sua condição de
classe. Condição essa não associada a sua renda que, muitas vezes, os coloca em uma
posição economicamente favorável dentro do contexto social vivido, mas como classe a
partir do “ser trabalhador (a)” que o constitui. Afinal, expõe Gramsci que, muitas vezes
os subalternos também lamentam e consideram injusta sua situação, mas sempre dentro
da lógica de vida hegemônica. Lógica essa que na contemporaneidade justifica através
da meritocracia e da renda econômica toda a condição de vida, de “sucesso” e de
“fracasso”, inclusive a dos próprios professores, professoras.
É importante destacar que no Brasil, segundo Hypolito (1997), o sistema público
de ensino iniciou concomitantemente com a formação do Estado Liberal, seguindo
preceitos do capitalismo. Em consequência dessa situação surge a profissão docente
para atender as demandas provocadas pelas mudanças sociais. A partir disso, o Estado
torna-se responsável por todas as questões envolvendo o sistema público de ensino, hoje
equivalente ao ensino fundamental, além de também passar a regular profissionalmente
os docentes e suas responsabilidades.
É nesse momento que o Estado começa a se implantar como organizador e
controlador do sistema. Algumas funções burocrático-administrativas
importantes já existiam – como, por exemplo, a de inspetor escolar; eram, no
entanto, insuficientes para garantir uma eficiência político-ideológica da
escola e exercer um controle sobre o trabalho docente (HYPOLITO, 1997, p.
31).

Cabe destacar que esse período foi importante para a construção do modelo de
escola. Modelo esse que caracterizou a escola como “instituição que sofre as pressões
do Estado e das necessidades políticas, ideológicas e pedagógicas do capitalismo
emergente”(HYPOLITO, 1997, p. 34).
Assim, entende-se que as mudanças empreendidas na educação do Brasil, são
em grande medida, investimentos com a promessa de qualificar o sistema público
educacional. Porém, grande parte dessas iniciativas irá emergir de agendas
internacionais que são criadas através de princípios meritocráticos, de eficiência, de

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competitividade, e busca de resultado através de avaliações externas. A qualidade da


escola e seu papel fica atrelada a elevação dos resultados métricos.
Ainda em relação ao capitalismo é importante destacar que Hypolito (1997),
aponta que não há consenso entre os estudiosos no que se refere a classe social ocupada
pelos docentes. Assim, alguns estudos assinalam que os professores e professoras se
identificam com os operários em função da proletarização do trabalho docente; outros,
que os docentes pertencem à classe média em função de sua renda.
Destaca-se que esse trabalho comunga da ideia de que professores e professoras
se percebem pertencentes à classe média em função salarial e também do seu trabalho
intelectual, não se considerando e identificando, muitas vezes, como um trabalhador
operário, mesmo que sofrendo a proletarização e as consequências da desvalorização de
seu trabalho docente. Afinal, como expõe Hypolito (1997, p. 35), “é preciso considerar
que a situação de classe não pode ser confundida com nível de renda; portanto, não
basta ser ou estar assalariado para integrar o proletariado”.
Entretanto, é difícil a análise do trabalho em certos serviços públicos, incluindo
nesse os relacionados à educação escolar, pois para o capitalismo o importante são as
relações de produção que são estabelecidas. Com isso, para o capitalismo trabalho
produtivo é todo aquele que produz mais-valia, convergindo na valorização do capital.
Esse modo de pensar afeta direta ou indiretamente a educação, a escola e o trabalho
docente. Afirma Hypolito (1997, p. 84) que
A partir desse fenômeno, o olhar de pesquisadores da educação começa a se
voltar para a análise da escola como um local de trabalho e dos docentes
como trabalhadores, buscando melhor interpretar a realidade do trabalho
escolar e do profissional que o realiza.

Todavia, considerando as ideias marxianas, expõe Hypolito (1997) que o


trabalho docente realizado pelos trabalhadores do Estado pode ser considerado
improdutivo, visto que não produz mais-valia. Desse modo, não ocorre a apropriação do
excedente do trabalho realizado pelo docente pelo capitalista, como acontece na rede
privada de educação.
Entretanto, considerado produtivo ou não, entende-seque o trabalho docente e o
que o mesmo representa é fundamental para que as ideias hegemônicas sejam aquelas
em que o ser humano passe a ser considerado como tal e não como uma mercadoria a
serviço de um sistema econômico e produtivo. Afirma Arroyo (2002, p. 19), que

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“quanto mais nos aproximamos do cotidiano escolar mais nos convencemos de que
ainda a escola gira em torno dos professores, de seu oficio, de sua qualificação e
profissionalismo”.
Todavia, não se pode ser ingênuo de pensar que só dos professores e professoras
depende a efetivação da educação como direito social e como ferramenta para um novo
modo de pensar, ser e agir em/da sociedade. Mas, sabe-se também que nada acontece
sem a ação docente.
Na arena educacional chamada escola circulam diferentes concepções do ser
docente, do seu trabalho e do seu papel. Professores e professoras competentes
profissionalmente, eficientes em relação ao seu saber-fazer, atualizados em relação às
mudanças e inovações tecnológicas, com bom convívio social em relação aos alunos e
também colegas. Assim, muitas vezes, são preocupados com sua autoimagem, mas não
com a consciência política em relação ao seu trabalho.
A consciência desempenha um papel central na formação dos sujeitos, das
classes, dos grupos sociais, um papel central na história social, nas condutas,
na história do avanço dos direitos. Essa consciência tem de ser educada.
Dependendo da consciência que tiverem os mestres suas práticas poderá ser
outra, a educação será outra (ARROYO, 2003, p. 203).

Nesse sentido se pensa importante a clareza na/da consciência de classe do


professor e professora, pois é essa consciência que permitirá que mais facilmente seu
trabalho seja efetivado considerando o “Outro” que é diferente, mas não por isso, pior
ou inferior. Desse modo, entende-se que educar a consciência se torna fundamental para
se colocar em prática a educação a partir dos preceitos legais e éticos estabelecidos na
grande maioria dos documentos referentes às políticas educacionais. Assim, comunga-
se da ideia de Torres Santomé (2003) quando afirma que ignorância e neutralidade são
dois conceitos distintos e não equivalentes. Com isso, entende-se que professores e
professoras não são neutros (as) e também não podem se deixar guiar pela ignorância
que embasa o senso comum, ou seja, a consciência de classe deve ser uma ferramenta
fundamental para desenvolver seu trabalho e guiar suas ações.

CONCLUSÃO
Reitera-se que este estudo tem como objetivo analisar a construção do trabalho
docente a partir do conceito gramsciano de classe social. Para tal, tem-se claro que a

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base teórica disciplinar adquirida na formação inicial e continuada dos professores e


professoras é extremamente importante para seu sucesso profissional e consequente
contribuição para com a aprendizagem dos seus futuros alunos. Porém, entende-se que
concomitante à formação técnica, a formação humana e constantemente reflexiva sobre
suas práticas e seu papel enquanto profissional da educação é fundamental, visto que,
irão trabalhar com seres humanos que como tal, estarão envolvidos em situações
cotidianas que precisam mais do que labor e trabalho, precisam de ações.
Nesse sentido, destaca-se o pensamento de Apple (2003) que afirma que a escola
pública e consequentemente seus professores e professoras, tem um grande e importante
desafio.
O desafio que se impõe ás escolas públicas e a outras instituições de
educação é o de promover um contexto para o desenvolvimento de outros
meios de tornar-se alguém – modos mais fortalecedores do individuo e da
coletividade, e mais condizentes com uma concepção democrática de eu e de
comunidade (APPLE, 2003, p. 35).

Para tal, entende-se necessário que professores e professoras, junto com a


comunidade escolar, tenham oportunidade de pensar, refletir, debater e dialogar sobre o
trabalho docente e seu papel dentro das instituições de ensino. Afinal, como afirma
Biesta (2013, p. 16), “a educação é sempre uma intervenção na vida de alguém; uma
intervenção motivada pela ideia de que tornará essa vida, de certo modo, melhor: mais
completa, mais harmoniosa, mais perfeita – e talvez até mais humana.”
Sendo assim, o trabalho docente se torna fundamental e consequentemente o
entendimento de professores e professoras sobre sua condição enquanto trabalhador
também é importante. Se acredita que de acordo com suas percepções em relação a
sociedade em que vive e seu papel dentro desse contexto pessoal, mas sobretudo
profissional, concomitante com suas crenças e valores, seu trabalho poderá ter
diferentes mediações, propostas e ações.
Assim, entende-se que não se pode mais fazer da escola um instrumento a
serviço da classe dominante, que coloca no mérito a justificativa para o descaso pelas
minorias e as desigualdades sociais. Portanto, acredita-se que a consciência de classe
poderá contribuir para que professores e professoras se percebam como agentes de
mudança social, profissionais que independente da renda mensal,são trabalhadores e
como tal devem ocupar seu lugar e seu espaço, deixando a subordinação e o senso

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AUTONOMIA DO TRABALHO DOCENTE:
caminhos para sua organização político-pedagógica

comum, tornando-se realmente intelectuais em prol de uma sociedade mais justa,


democrática e humana.

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