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GUARULHOS
2023
MARCELO GOES TOMASSINI
GUARULHOS
2023
______________________________________________________
Tomassini, Marcelo Goes
O mal-estar dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo / Marcelo Goes Tomassini.
Guarulhos, 2023. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2023.
Orientação: Marian Ávila de Lima e Dias.
Título em Inglês: The malaise of teachers in the state education network of São Paulo
1 Mal-estar. 2. Professores. 3. Trabalho. I. Marian Ávila de Lima e Dias. II. O mal-estar dos
professores da rede de ensino estadual de São Paulo.
Aprovação: ____/_____/_____
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Profª. Drª. Marian Ávila de Lima e Dias (Orientadora)
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
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Prof. Dr. Roger Fernandes Campato
Universidade Presbiteriana Mackenzie
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Prof. Dr. Tales Afonso Muxfeldt Ab’Saber
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
AGRADECIMENTOS
É uma alegria poder concluir esta dissertação que envolve tantas questões e experiências
pessoais de trabalho e estudo. Saio de todo este processo, sem dúvida, enriquecido culturalmente
com as leituras e o aprofundamento que tive nesses dois anos e meio de trabalho científico.
Gostaria de dedicar esta dissertação primeiramente ao meus pais, Maria Helena e Alceu,
que me deram um nome, um lugar no mundo e a possibilidade de amar e ser amado. Sem eles,
não seria possível. Meu pai, infelizmente, faleceu em abril de 2022 enquanto produzia esta
dissertação. Dedico esta pesquisa a ele, em especial. Obrigado Pai! Seguimos nas lutas da vida.
Agradeço à minha esposa Renata, nosso amor e companheirismo tornam a vida mais
leve e significativa. Como professora de formação também, foi uma interlocutora das questões
as quais a pesquisa suscitou.
Agradeço à professora Marian Ávila de Lima e Dias, minha orientadora, por ter me
acolhido em seu grupo de estudos e de pesquisa, pela aposta no projeto, pela leitura crítica dos
textos e a liberdade que me deu para criar neste período. Este trabalho de pesquisa não seria
possível sem sua orientação.
Agradeço aos professores da Unifesp, Márcia Aparecida Jacomini, Maria Angélica
Pedra Minhoto, Marcos Cezar de Freitas e Marian Ávila de Lima e Dias que contribuíram em
suas disciplinas para o meu desenvolvimento intelectual e para o aprofundamento da pesquisa.
Ao coordenador da Pós-Graduação em Educação da Unifesp, Luiz Carlos Novaes, e ao
Secretário Erick Dantas, pela disponibilidade a qual sempre se colocaram aos estudantes.
Agradeço aos colegas mestrandos e doutorandos do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Cultura, Diversidade e Educação, entre eles, Ingrid, Francis, João, Herik, Marcos, Patrícia,
Jociene, Téo, Paula, Larissa, Gabriel e Lucas, que foram interlocutores generosos neste período.
Agradeço à professora Maria Angélica Pedra Minhoto e à professora Celia Giglio pelo
convite para acompanhar algumas reuniões do Grupo de Pesquisa “Avaliação e Política
Educacional” (GPAPE), assim como seus doutorandos e mestrandos pela generosidade nos
debates e apresentação dos seus trabalhos de pesquisa: Claudia, Saulo, Deise, Marcos,
Alessandra, Ana Márcia, Daniel, Edmilson, Karen, Tiago, Veríssimo, Rosyane, Lilian,
Vanessa, Larissa, Josete, Fernanda, Eduardo, Edson, Cida, Marineide, Edilson e, também, ao
Wálber que, apesar de não ser deste grupo de pesquisa, foi um colega de disciplinas em comum
que sempre trouxe questões importantes para pensar a educação e a escola pública.
Agradeço aos professores Daniel Revah e Roger Campato pela leitura crítica e
considerações na banca de qualificação. Elas foram fundamentais para o desenvolvimento posterior
do trabalho. Agradeço também à banca da defesa, os professores Roger Campato e Tales Ab’Sáber.
Agradeço aos professores e aos amigos que fiz na História da PUC-SP que, com mais
de 20 anos de amizade, tornaram-se parte importante da minha vida. São interlocutores sempre
fundamentais. Meus amigos Tiago e Jociene, César e Tânia, Adilson, Tonhão, Toninho, Eder e
Rafaela, Jomo, Michel, Daniel, Marta, Larissa, Ricardo B., Audrey, Shisleni, Sybille, Xênia,
Micheline, Belmiro e Raquel, Wellington e Maria Helena, Waldomiro, Sandro, Gustavo e
Gabriela, Ana Barbara e Mario, Monique, Carol, Juliana, Maurício, Paulão, Rodrigo, Aldo,
Alex, Arilton, Lúcia, Sandra, Ana Luisa e Junior, Ariana, Guilherme, Douglas e tantos outros.
Agradeço aos professores da Filosofia do Mackenzie e aos amigos e interlocutores: Igor,
Fabiano, Vinicius, Leandro, Tadeu, Gyorgy, Riva, Renata, Carine, Cintia, Haroldo, Mili,
Geraldo, Vivian, Lâmia, Oséias, Isabella, Márcio, Sara, Michele, Samir, Keila, Moira,
Georgina, André e tantos outros.
Gostaria de dedicar este trabalho à professora Graciela Deri de Codina, que foi minha
professora tanto na PUC quanto no Mackenzie, e que, infelizmente, faleceu, mas nos deixou
um legado de seu espírito crítico e dedicação ao ensino da Filosofia. Ao Francisco Jesus da Paz,
carinhosamente chamado por nós “Doutor Francisco”, nosso colega de Filosofia, que faleceu,
infelizmente, neste contexto político regressivo que vivemos na pandemia. Sua história de luta
pela democracia no Brasil é uma referência para todos nós.
Faço um agradecimento em particular ao Vinicius Xavier, que fez a revisão final desta
pesquisa, um intelectual crítico e um amigo querido, desde os tempos da Filosofia do
Mackenzie, onde nos formamos.
Aos professores Sergio Braghini e Fabio Keinert, da Fundação Escola de Sociologia e
Política, pelas trocas e ensinamentos. Aos amigos Silvia, Marcelo, Jean, Luiza, Monica, Juliane,
Elizabeth, Carla, Priscila, Mônica, Eliton e tantos outros pela interlocução.
Aos amigos que tive a possibilidade de conhecer através da minha esposa: Fabiane e
Carlos, Gisele e Daniel, Clarice e Miguel, Débora, Raquel, David e outros aos quais tantas
conversas e confraternizações tivemos.
Agradeço às psicanalistas e sociólogas Carina Martins e Heloiza Abdalla, à psicanalista
e psicóloga Nara Akemi, amigas fundamentais neste processo de interlocução das questões
psíquicas e sociais desde os tempos iniciais da formação no Centro de Estudos Psicanalíticos.
Agradeço à minha Supervisora Clínica, Cleide Monteiro, do Instituto Sedes Sapientiae,
pelas trocas em torno dos casos clínicos e das questões relacionados ao mal-estar
contemporâneo e ao trabalho.
Aos psicanalistas Luiz Gallina, Rita Hentz e Cida Vella, colegas de formação do Sedes
pelas interlocuções em nosso grupo de intervisão.
Agradeço ao professor Alexandre de Freitas Barbosa que coordena o grupo do
Laboratório Interdisciplinar do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (LABIEB-USP) com a
temática “Repensando o desenvolvimento” e sua comissão executiva Vinicius, Ricardo,
Larissa, Patrícia, Flóres, além de todos os membros, por terem acolhido minha entrada no grupo
de forma tão generosa neste ano para aprender e contribuir com suas discussões.
Aos meus pacientes que me ensinam a todo momento sobre o quão profundo é o mal-
estar humano, mas, igualmente, sobre as enormes possibilidades que a vida pode nos oferecer.
Agradeço aos professores com quem trabalhei nesses 16 anos de educação básica. São
dezenas de colegas que tornaram possível e necessária esta pesquisa e reflexão. São
interlocutores diretos deste trabalho. Gostaria de dedicar esta dissertação a dois professores em
especial, professor Erlani, com quem trabalhei na rede estadual de São Paulo em 2010, e o
professor Valdemar, colega da rede municipal de São Paulo, ambos faleceram devido à
pandemia de covid.
Agradeço aos meus alunos das redes estadual e municipal de São Paulo que tanto me
ensinaram nesse período da educação básica.
Agradeço aos meus familiares de modo geral, tios, tias, primos e primas, em especial minha
Avó Bela que já é falecida, a qual, também, dedico este trabalho, minha Tia Belinha, Alfredinho,
Carlos, Marcos, Fátima, Sônia, minhas primas e primos Luciana, Isabela, Fernanda, Patrícia, Fábio,
Gustavo, Daniela, Mariana, Duda, Paulo e tantos outros que constituem minha rede familiar.
Agradeço a Arnaldo Domingues Oliveira, Sergio de Gouvea Franco e Jorge Broide que, em
momentos diferentes da minha vida, com suas escutas, me ensinaram a radicalidade da psicanálise.
Um agradecimento especial aos professores Luiz, Vera, Ana, João, Pedro, Fernando,
Denise e Luana (nomes fictícios), pelos depoimentos que deram à pesquisa e a confiança que
depositaram em mim. Esta dissertação só foi possível devido ao relato de vocês sobre a
condição de ser docente.
Gostaria de fazer uma última menção de agradecimento ao meu cachorrinho, Thomy,
nome que meu pai deu a ele, sua presença alegra sempre nossos dias.
Muito obrigado!
RESUMO
Education and school institutions in contemporary societies present a series of situations that
indicate a teacher's malaise from an economic, social and psychic perspective. The present
research seeks to investigate this malaise associated with the profession of basic education
teachers in the state education network of São Paulo, and the way in which it manifests itself
mediated by its social dynamics and the precariousness of work. We investigated the particular
way in which teachers' malaise establishes itself as suffering and how, from this, it makes a mark
on the ways of being a teacher. Through interviews with teachers from the state education network
of São Paulo, under different hiring regimes and teaching periods, we analyze malaise as a
phenomenon that is simultaneously part of the civilizing process and the result of a historically
determined social dynamic. Based on Sigmund Freud's book The Discontents in Civilization and
listening to four professors interviewed, we understand the bases and foundations of the intensity
of this malaise, which manifests itself in a hegemonically destructive and destructive suffering
and not creative. Based on semi-structured interviews, we analyzed that teachers' malaise in the
state education network of São Paulo produces a social dynamic within schools that favors
regressive sociability, illness and particular modes of individual or group defense mechanisms.
The analysis of the research data allows us to broaden the reading of the set of Freudian texts, as
well as their relationship with the writings of Theodor W. Adorno on education and building. As
this malaise spreads to various social and cultural perspectives, Adorno helps us understand the
regressive ways in which modernity and malaise have established themselves today. Works by
the psychoanalyst Sándor Ferenczi were also used, who expanded the possibilities of
understanding traumatic phenomena and their relationship with social reality, through denial and
manifestations of splits of the Self. Our investigations pointed out that teacher malaise reflects a
complex variable of economic, cultural, social and psychic phenomena that cannot be analyzed
without proper mediations, as they can construct a mutilated reading of this malaise, sometimes
blaming the teacher individually and sometimes reflecting determinisms. without apprehending
the individual particularities of the teaching way of suffering.
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA .......................................................... 17
1.1. Participantes da pesquisa .......................................................................................... 25
1.2. Roteiro da entrevista ................................................................................................. 28
2. O MAL-ESTAR NA CULTURA ............................................................................................. 31
2.1. Mal-estar e desamparo .............................................................................................. 33
2.2. Mal-estar, adoecimento e vida danificada ................................................................. 40
2.3. Mal-estar, agressividade e barbárie ........................................................................... 52
2.4. Mal-estar e superego ................................................................................................. 61
3. O MAL-ESTAR DOCENTE .................................................................................................. 75
3.1. Mal-estar e herança arcaica ....................................................................................... 81
3.2. Mal-estar e transferência........................................................................................... 85
3.3. Mal-estar e autoridade .............................................................................................. 90
3.4. Mal-estar e formação ................................................................................................ 98
4. O MAL-ESTAR E A DESTRUTIVIDADE.............................................................................. 109
4.1. Mal-estar, cisões, desfusão e sonhos ....................................................................... 118
4.2. Mal-estar, pandemia e “greve pela vida” ................................................................. 131
4.3. Mal-estar, monopolização do capital e fascismo ...................................................... 135
5. MAL-ESTAR E SOFRIMENTO ........................................................................................... 140
5.1Um diálogo crítico com uma leitura psicanalítica do mal-estar e sofrimento docente150
5.2. Análise dos dados sobre o sofrimento e a adaptação dos professores ..................... 159
6. MAL-ESTAR, NARCISISMO E TRABALHO ........................................................................ 173
6.1. Do trabalho ideal ao ideal de trabalho ..................................................................... 183
6.2. Análise dos dados da pesquisa referentes ao trabalho e às relações de trabalho ..... 186
6.3. Os efeitos psíquicos e corporais da precarização do trabalho .................................. 194
7. MAL-ESTAR, ADMINISTRAÇÃO E AUTONOMIA ............................................................. 219
8. MAL-ESTAR, PRAZER E ELABORAÇÃO ............................................................................ 232
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 241
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 246
ANEXO 1 ............................................................................................................................ 257
ANEXO 2 ............................................................................................................................ 258
10
INTRODUÇÃO
A grandeza de Freud (...) consiste em que ele deixa tais contradições irresolvidas e recusa
a pretensão da harmonia sistemática onde a própria coisa encontra-se cindida em si
mesma. Ele torna evidente o caráter antagônico da realidade social, até onde é possível à
sua teoria e à sua práxis no interior de uma divisão do trabalho predeterminada. A
incerteza da própria finalidade da adaptação, a desrazão da ação racional, que a
psicanálise revela, refletem algo da desrazão objetiva. (ADORNO, 2015a, p. 68).
1
Utilizaremos a conceituação de instinto no mesmo sentido que o de pulsão, visto que estamos usando a tradução da
Companhia das Letras, cuja tradução de Paulo César de Souza explicitada na nota do texto Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade humana, indica que: “No original, Geschlechtstrieb, formado de Geschelecht, ‘sexo’ e Trieb; note-se
que este último termo, tão discutido na psicanálise, é aqui usado tanto para o ser humano como para os animais. Há
quem recorra sistematicamente a ‘impulso’ e ‘pulsão’; mas nesta coleção ele já é usado para Regung, Drang, Impuls
e, às vezes, Strenbung; apenas excepcionalmente o empregamos para Trieb.” (FREUD, 2016, nota 1, p. 20).
2
No artigo Professores, modernização e precarização, de Aparecida Neri de Souza, um estudo sobre a
precarização do trabalho dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo, aponta-se que: “A noção de
precarização é compreendida aqui como um processo de institucionalização da instabilidade no emprego e no
trabalho (Appay e Thébaud-Moy, 1997, 2000). Caracteriza-se, no plano do emprego e no trabalho, sobretudo pelo
12
desemprego e pelo trabalho temporário e, no plano do trabalho, pelo questionamento da formação e da qualificação
profissional e pela ausência de reconhecimento e perspectiva de trabalho dos professores (Paugam, 2000; D.
Linhart, 2009). Essa noção se revela contraditória com a concepção de que o trabalho no setor público se
caracteriza pela estabilidade no emprego. (...) As pesquisas na sociologia do trabalho evidenciam uma
desregulamentação de direitos vinculados ao trabalho, o que permite o uso do trabalho precário. Situações de
trabalho precárias são legalizadas, por exemplo, o trabalho eventual e temporário, assim como a subcontratação
de funcionários de apoio pedagógico e administrativo. Situações de emprego consideradas atípicas passam a ser
típicas. Esse processo tem por consequência o questionamento dos direitos trabalhistas e das formas de
representação político-sindical.” (SOUZA, 2013, p. 219).
3
No Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, temos que o “ideal do Eu” é uma “expressão utilizada
por Freud no quadro da segunda teoria do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência
do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais
coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do Eu constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-
se.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 222).
4
Segundo Christophe Dejours (2022): “A investigação clínica dessas estratégias de defesa implementadas caso a
caso para conter o sofrimento psíquico no trabalho leva a um discussão metapsicológica embaraçosa em muitos
aspectos, uma que sugere: tendencialmente, essas defesas prejudicam os poderes do pensamento; essas defesas
desempenham um papel importante como propulsores subjetivos da servidão e da dominação; essas defesas podem
contribuir de maneira significativa à formação da violência coletiva e até da violência de massa. (...) Na medida
em que trabalhar, não é apenas produzir, mas também de proteger-se contra os riscos do trabalho, as estratégias de
defesa que se deve construir podem avariar em profundidade a mobilização da inteligência individual e mesmo
entrar em concorrência com a inteligência coletiva.” (DEJOURS, 2022a, p.60-1).
13
5
Freud, como veremos no percurso desta dissertação, evidenciou uma grande preocupação com a intensidade da
repressão na Cultura, a qual afetaria diretamente o desenvolvimento individual e social dos instintos. Esta
intensidade produz efeitos mortíferos nos modos de sofrimento e tornam necessários que sejam revistos (FREUD,
2011c). Marcuse (2010) irá cunhar o termo “mais-repressão” para caracterizar o modo de organização social
determinado pela monopolização do capital.
6
Esta regressão pode se estabelecer tanto do ponto de vista psíquico em processos de adoecimento ou de defesas
psíquicas, agressivas, autorrecriminativas ou persecutórias; como regressivas na própria sociabilidade no interior
da escola entre gestores, professores e estudantes, carregados por relações de destrutividade, de desligamento,
hegemonizadas pelas pulsões de morte.
14
Demarcar o mal-estar docente como objeto de estudo não é uma tarefa simples. Primeiro
porque é expressão de dinâmicas externas e internas ao professor. Sendo externas, estamos
conectados à perspectiva da totalidade social e, neste sentido, consideramos que esta totalidade
não tem a possibilidade de se apresentar de forma fechada e categórica, visto que é da leitura
da realidade social uma fragmentação relacionada ao próprio processo de alienação. Desse
modo, nesta pesquisa consideramos que
Não é possível reduzir a dimensão interna e externa dos indivíduos pela metodologia.
Corremos o risco na pesquisa de, ao harmonizar metodologicamente a relação entre indivíduo
e sociedade, mutilar a própria dimensão cindida do indivíduo através do seu inconsciente,
produzindo um determinismo social absoluto na análise da singularidade ou, por outro lado, um
psicologismo que considera este indivíduo sem dimensão social e historicidade.
18
O que motivou Freud a conceder especial peso aos processos individuais na infância
é, embora de forma não explícita, o conceito de ferida [Beschadigung]. Uma
totalidade do caráter, tal como pressuposta pelos revisionistas como dada, é um ideal
que somente seria realizável em uma sociedade não traumática. Quem, tal como a
maioria dos revisionistas, critica a sociedade atual, não pode se furtar ao fato de que
ela é experienciável em choques, em golpes repentinos e abruptos, condicionados
precisamente pela alienação do indivíduo em relação à sociedade, que com razão é
ressaltada por alguns revisionistas quando falam de um ponto de vista sociológico. O
caráter que eles hipostasiam é bem mais o efeito de tais choques do que de uma
experiência contínua. Sua totalidade é fictícia: poderíamos denominá-lo um sistema
de cicatrizes, que somente poderiam ser integradas sob sofrimento, e nunca
completamente. Perpetrar essas feridas é propriamente a forma pela qual a sociedade
se impõe ao indivíduo, não aquela continuidade ilusória a favor da qual os
revisionistas prescindem da estrutura formada por choques da experiência individual.
Mais do que olhar de soslaio efêmero às circunstâncias sociais destes revisionistas,
Freud salvaguardou a essência da socialização ao se deter firmemente na existência
atomizada do indivíduo. (ADORNO, 2015a, p. 48).
Freud (2018) trabalhou os efeitos desta questão em um de seus últimos textos, em 1937,
Análise terminável e interminável. O que se denominava “cura”, “normalidade psíquica”, está na
ordem do impossível para o processo analítico, tanto no que tange ao tratamento analítico quanto à
possibilidade dos instintos se amansarem completamente na produção do mal-estar da cultura.
Isso tem efeitos na posição do indivíduo na sociedade. Em especial em uma sociedade
marcada por condições objetivas que empobrecem a individualidade e produzem mecanismos
de capturas profundas, com novas configurações psíquicas, numa forma cada vez mais
19
irracional de sociabilidade. Pensamos uma metodologia, portanto, que não se restrinja a uma
análise voltada ao circuito fechado da individualidade, do psiquismo.
O fato de não existir reconciliação possível entre indivíduo e sociedade, entre princípio
do prazer e princípio de realidade, não impediu que tanto Freud quanto Adorno indicassem os
aspectos repressivos e destrutivos, ou mesmos de barbárie do desenvolvimento social. Os
efeitos que estas manifestações mais evidentes da pulsão de morte, sem a mediação da cultura
ou de Eros, podem produzir nas formas regressivas de sociabilidade humana.
Não menos importante foi a visão de Freud, ao estabelecer que, como as renúncias
cada vez maiores impostas não encontram uma saída equivalente nas compensações
pelas quais o ego as aceita, os instintos assim reprimidos não têm outro caminho senão
o da rebelião. A socialização gera o potencial da sua própria destruição, não só na
esfera objetiva mas também subjetiva. (ADORNO, 1973, p. 41).
7
O desmentido é uma categoria criada por Sándor Ferenczi para explicitar o caráter traumático da negação da dor
e do sofrimento do outro. Para Ferenczi: “Na análise dos pacientes traumatizados, é o ato de o analista acreditar
nas experiências reais relatadas pelo paciente – independente das experiências fantasísticas correlatas – o que
facultará a integração dos registros traumáticos clivados que ficaram apartados em decorrência do desmentido.”
(KAHTUNI, SANCHES, 2009, p. 121).
20
(...) nós muito cedo procuramos inserir as chamadas ponderações psicológicas no que
se denomina teoria objetiva da sociedade. Ou seja, antes de mais nada devido à
simples e concreta razão de que sem o conhecimento preciso da extensão da sociedade
ao âmbito dos indivíduos seria incompreensível que permanentemente incontáveis
indivíduos – e pode-se mesmo dizer: a maioria avassaladora dos homens – agem
seriamente de modo contrário a seus interesses racionais. (ADORNO, 2008, p. 274).
é importante enfatizar que a dialética, para ser materialista e histórica, não pode constituir-
se numa “doutrina”, ou numa espécie de suma teológica. Não se pode constituir em uma
camisa de força fundada sob categorias gerais não historicizadas. Para ser materialista e
histórica tem de dar conta da totalidade, do específico, do singular e do particular. Isto
implica dizer que as categorias totalidade, contradição, mediação, alienação não são
apriorísticas, mas construídas historicamente. (FRIGOTTO, 2018, p. 79).
o suporte de um ponto de ignorância para reintroduzir o que não se sabe como eficácia
operatória (...) exige considerar a hipótese do inconsciente.” (VORCARO, 2018, p. 43).
Foram realizadas entrevistas com oito professores entre outubro e dezembro de 2021. O
ano de 2021 foi um dos mais duros da pandemia, atingindo seu pico de casos de Covid e mortes
no primeiro semestre e que se arrefeceu no segundo semestre devido ao aumento da vacinação.
A partir de agosto de 2021 temos o fim do rodízio das aulas presenciais e a volta da totalidade
dos estudantes para a escola, o que produziu algumas importantes reflexões por parte dos
professores. O segundo semestre foi marcado também pela votação, em outubro de 2021, de um
projeto de lei, PL268 (transformado na lei complementar (LC) 1.361/21, publicada no Diário
Oficial do Estado em 22 de outubro de 2021), na Assembleia Legislativa de São Paulo, que retirou
direitos, como as faltas abonadas dos professores, assim como reorganizou as licenças prêmios;
marcado também por uma tumultuada atribuição de aulas dos professores categoria O e por uma
proposta de lei complementar que ficou conhecida como a “Nova Carreira do Magistério” que
começou a ser discutida no final do ano de 2021 e foi aprovada na câmara no dia 29 de março de
2022 (transformado em lei complementar (LC) 1.374, publicada no Diário Oficial do Estado em
30 de março de 2022) com grande oposição sindical, pois aumenta o salário dos professores
através de subsídios (não incorporados na aposentadoria) desde que os professores aceitem a
mudança de seu contrato de trabalho, com perdas de direitos (quinquênios, sexta parte e
bonificações) em especial os professores efetivos e estáveis. Os professores categoria O e os
novos ingressantes em futuros concursos da rede já estarão automaticamente sob este novo
contrato aprovado pela câmara.9
8
Assim a Associação dos Funcionários Públicos (Afpesp) noticiou a aprovação do PL: “O Projeto de Lei
Complementar (PLC) 26/2021, que altera regimes legais da carreira do servidor público no estado de São Paulo,
foi aprovado na Assembleia Legislativa (Alesp) na noite desta terça-feira (19). O texto base teve 50 votos
favoráveis (...) Enviado pelo Governo do Estado de São Paulo à Alesp, em regime de urgência, a chamada reforma
administrativa altera pontos da bonificação por resultado, vinculando a desempenho institucional (não mais a
avaliação individual); extingue a possibilidade de faltas abonadas — hoje, servidores podem acumular até seis
faltas por ano sem necessidade de justificativa; permite a contratação de servidores temporários em caso de greve
que "perdure por prazo não razoável" ou considerada ilegal pelo Poder Judiciário, já que altera a Lei
1.093/2009.(...) O texto também acaba com o reajuste de adicional por insalubridade com base no IPC (Índice de
Preços ao Consumidor) da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e reduz, ainda, de 30 para 25 dias
o número de faltas, no prazo de cinco anos, que garante o direito à licença-prêmio aos servidores.” In:
https://www.afpesp.org.br/noticias/politica/plc-26-2021-e-aprovado-na-alesp-com-50-votos-favoraveis
9
Reportagem do FolhaPress, de 29/03/2022, “Sob protestos, novo plano de carreira para professores de SP é aprovado”.
A matéria traz que: “Com clima tenso do lado de fora e no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp),
deputados aprovaram, nesta terça-feira (29), o projeto de lei que institui plano de carreira para professores do ensino médio
e fundamental, diretores de escola e supervisores educacionais da rede estadual pública. (...) Um dos pontos criticados por
opositores é o de que, com a mudança, educadores passam a integrar o regime de remuneração por subsídio, o que exclui
a incorporação de gratificações, bônus ou prêmios atualmente existentes.(...) Outro dispositivo, contestado pela oposição,
é o que disciplina o magistério no PEI. De acordo com trecho do artigo 51, é permitida, no interesse da administração
escolar, o imediato encerramento da atuação do docente nas escolas. O deputado Carlos Giannazi (PSOL) classificou essa
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Nas entrevistas buscamos compreender a formação dos professores, como construíram seu
caminho profissional, como se percebem como professores, como entendem e compreendem a ideia
de um mal-estar e sofrimento no cotidiano escolar. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas
por uma amostra por conveniência a partir da indicação de contatos do pesquisador.
As entrevistas duraram em média uma hora, de modo remoto pelo Google Meet, com
gravação de áudio e parecem ter produzido um efeito positivo nos entrevistados no sentido de
se sentirem valorizados. Alguns mencionaram que este tipo de conversa deveria se repetir na
própria escola como possibilidade de reflexão sobre o mal-estar e as condições de trabalho.
Como já apontado, as entrevistas foram resultado da rede de contatos do pesquisador
produzida ao longo destes anos como professor das redes estadual e municipal e cursos em comum
na área da educação. A amostra por conveniência favoreceu a confiança dos entrevistados de modo
que se sentissem à vontade para abordar temas complexos e profundos da condição docente.
No geral, o pesquisador não teve grandes dificuldades para buscar professores para as
entrevistas. Isso ocorreu apenas quando as indicações não foram da rede direta do pesquisador.
Uma entrevistada comentou que “é difícil falar das dores do trabalho”, mas as resistências que
porventura existiram foram diluídas ao final das entrevistas. Avaliamos que o professor também
se sente muito cobrado por sua prática em condições muito adversas de trabalho, e uma
entrevista como essa, mesmo que respeitando o sigilo dos entrevistados e a assinatura do Termo
Livre de Consentimento (ANEXO 1), no qual detalha a pesquisa, pode representar a sensação
desta cobrança, o que é um risco.
Utilizamos um roteiro de entrevistas semiestruturado com o objetivo de abordar várias
dimensões do ofício docente – tanto pessoais como sociais –, o mal-estar, as condições de trabalho
e os prazeres do trabalho como professor. O roteiro abarcou questões sobre os ideais que constituem
o professor no seu próprio trabalho, sobre sua formação, seu percurso profissional, assim como
familiar e geracional; perguntamos, também, sobre sua autonomia no trabalho e autoridade docente,
suas relações com estudantes, professores e gestão (ANEXO 2).
Além das entrevistas, alguns autores que estudam o sofrimento do professor na rede de
ensino estadual de São Paulo servem de base para reflexão. São recursos que, combinados ao
arcabouço teórico, nortearam a pesquisa e nos ajudaram a ter uma visão mais profunda de nosso
objeto de estudo.
avaliação como uma armadilha para o educador. ‘A única classe que faz greve contra o governo é a do magistério, e quem
garante que eles não serão punidos por diretores de ensino e governantes? Criam uma avaliação que só vai intensificar o
assédio’, diz Gianazzi”. In: https://esportes.yahoo.com/noticias/sob-protestos-novo-plano-carreira-004900317.html.
23
A partir da leitura mais sistemática das obras de Freud e Adorno refletimos sobre o
material coletado em busca de identificar se haveria e qual seria a particularidade do mal-estar
existente no ofício do professor, na sua experiência do cotidiano escolar, na própria relação
com outros professores, com estudantes e com a gestão escolar, bem como a partir das políticas
públicas em educação adotadas no Estado de São Paulo. Avaliamos que tanto Freud quanto
Adorno nos permitem compreender os fundamentos, as tendências sociais e psíquicas do
desenvolvimento da modernidade.
Compreendemos que, apesar das singularidades, é provável que ocorra um discurso
comum do sofrimento entre professores da rede de ensino estadual de São Paulo. A partir das
suas respostas é possível aprofundar conceitualmente os aspectos econômicos, culturais e
sociais no sentido que Adorno traz ao mencionar as entrevistas como recurso de pesquisa:
Optamos por trazer a análise das entrevistas no conjunto dos capítulos, visto que são
nosso referencial principal nas possibilidades de reflexões com a teoria. As perguntas tratam de
temáticas amplas do mal-estar, estão em diálogo com o conteúdo teórico e o enriquecem, ao
mesmo tempo em que permitem uma conexão diante da fala viva dos professores.
Nosso cuidado foi considerar o trabalho de análise sem transformar o método em mera
técnica que produz um produto que universaliza o objeto e apaga sua manifestação singular.
Consideramos o mal-estar docente a partir da escuta das singularidades de modo a captar sua
objetividade social. Se, como nos lembra Freud (2014f), o sintoma traz uma verdade do sujeito,
pensar no modo como sofre o professor pode revelar um modo de ser docente na perspectiva
de um contexto social.
A partir do nosso referencial teórico acreditamos que as entrevistas podem contribuir
para captar as nuances, mediações e contradições na investigação, sendo que nosso trabalho
analítico é dar destaque às falas como uma experiência singular, as quais reflitam também os
aspectos mais gerais que a teoria nos traz.
O que realmente importa é que haja uma apreensão das mediações – ou melhor – que,
no específico campo temático em que nos aprofundamos, haja a apreensão das
interações objetivas que nele ocorrem de maneira imanente, no sentido em que
propriamente em cada campo temático de que a Sociologia se ocupa haja
necessariamente também outros campos temáticos. (ADORNO, 2008, p. 262).
10
No tópico Mal-estar e transferência do capítulo três discutimos e caracterizamos o significado desta categoria
na psicanálise freudiana, em especial a relação entre professores e alunos. Por ora, segundo o Vocabulário da
Psicanálise: “Designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre
determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro
da relação analítica”. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 514).
11
Número registrado pelos pesquisadores da REPU em maio de 2022. (GEPUD/REPU,12 jun.2023, p. 5).
Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e www.repu.com.br/notas-tecnicas
25
Desse modo, os dados decorrentes das entrevistas estão presentes nos capítulos, por uma
opção epistemológica e de estilo pessoal do pesquisador. As citações muitas vezes podem
parecer extensas, contudo, o que nos guiou foi a relação entre o depoimento e os temas
associados ao mal-estar docente privilegiados naquele capítulo. Praticamente todas as temáticas
abordadas e perguntadas aos professores, de alguma forma, foram utilizadas para análise.
Consideramos que esta é uma dentre outras análises possíveis deste material e, evidentemente,
a riqueza de dados ali presentes não se esgota no trabalho aqui apresentado.
Entrevistamos oito professores da rede de ensino estadual de São Paulo que estavam
ativos, trabalhando, sem nenhum tipo de afastamento ou desvio de função, com diferentes
contratos de trabalho, tempos de magistério distintos, de várias áreas de formação, sendo quatro
mulheres e quatro homens. Consideramos este número de entrevistados pela diferença de
contratos de trabalho. Em especial focamos em quatro destes contratos:
- Professor efetivo, categoria A;
- Professor estável, categoria F;
- Professor contratado, categoria O; e
- Professor eventual, categoria V.
Dos oito professores entrevistados, três são professores efetivos, categoria A (dois
homens e uma mulher), contrato que representa cerca de 70% da rede de ensino; 1 professor
categoria F, contrato que representa cerca de 15% da rede de ensino; três professores categoria
O, contrato que representa cerca de 15% da rede de ensino (duas mulheres e um homem); e
uma professora categoria V, eventual. Escolhemos entrevistar mais mulheres na categoria O e
V por verificar um aumento delas nos contratos mais precarizados (ZAFALÃO, 2021).
Optamos por um número maior de entrevistados na categoria O12 por representar um contrato
no qual o até então governo João Dória (2019-2022) escolheu como paradigma de suas políticas
para Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), com projetos de lei que aproximam os
12
Utilizamos os dados da pesquisa de Zafalão (2021) os quais eram baseados nos registros de 2018 da Seduc. Os
últimos dados de maio de 2022 registrados pela REPU (GEPUD/REPU, 12 ju, 2023) demonstram que os
professores categoria O já representam cerca de 40% dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo.
Após mais de 10 anos sem concursos para efetivação dos professores, a Secretaria Estadual de Educação lançou
um edital neste primeiro semestre de 2023 na qual registrou 289 mil inscritos para concorrer a 15 mil vagas
docentes. Número abaixo das necessidades da rede. Fonte: https://g1.globo.com/sp/campinas-
regiao/educacao/noticia/2023/05/11/concurso-publico-para-professores-da-rede-estadual-de-sp-tem-11-vagas-na-
regiao-de-campinas-veja-cidades-cargos-e-regras-do-edital.ghtml .
26
contratos dos efetivos e estáveis aos do categoria O, em especial o que aumenta o salário dos
professores (a chamada “Nova Carreira do Magistério”) desde que aceitem um contrato de
trabalho sem direitos adquiridos como quinquênio e sexta parte 13 , algo característico do
contrato dos professores da categoria O.
É importante lembrar que muitos dos entrevistados tiveram experiências com outros
contratos de trabalho. Apenas um professor, Pedro 14 , entrou na rede de ensino estadual
diretamente como efetivo; todos os outros tiveram experiências com mais de um contrato ao
longo do seu percurso docente, o que enriquece os dados da pesquisa.
O pesquisador convidou, diretamente, seis participantes através de sua rede de contatos
(professores João, Pedro, Ana, Vera, Luiz, Fernando) e dois professores que sem contato direto,
foram indicados por sua rede de contatos (professoras Denise e Luana), totalizando oito
entrevistados. Todos foram apresentados à pesquisa e consentiram em participar através da
assinatura do Termo de Consentimento Livre (TCL). Receberam cópia das entrevistas
transcritas para leitura antes que fosse realizada a análise dos dados. Combinamos também que
após as entrevistas, no momento de análise dos dados, se fosse necessário retomar alguma
questão, poderíamos contatá-los novamente. Isso ocorreu apenas uma vez com o professor João
ao qual foi perguntado sobre seus sonhos relacionados ao trabalho docente.
Dos oito professores, dois deles acumulam suas atividades de trabalho tendo dois cargos
como professores na rede de ensino estadual (Professores Luiz e Pedro), dois deles têm um cargo
como professor na rede estadual e um na rede municipal de ensino (professores João e Ana), dois
deles acumulam o trabalho como professores da rede estadual com outros trabalhos fora da
educação (Professores Fernando e Denise), e dois deles trabalham apenas na rede estadual – no
que pese serem as duas professoras que relataram, na entrevista, ter filhos (Professora Vera e
Luana). A professora Luana tem um filho pequeno que demandou cuidados inclusive enquanto
participava da entrevista. A professora Vera, já com filhos adultos, contou, em vários momentos
da entrevista, que acumulou seu trabalho como professora também em outras escolas. Temos,
portanto, que a maioria dos professores entrevistados trabalham com uma jornada acima das 40
horas semanais, definidas pela legislação trabalhista como adequadas.
13
Segundo comunicado da APEOESP, sindicato dos professores da rede estadual de São Paulo em 18/12/2021:
“Novamente, uma proposta que causa impactos na vida de milhares professores na rede estadual de ensino é
formulada em gabinetes, sem diálogo com as entidades e com a comunidade escolar. Importante salientar também
que a proposta ocorre em sequência de outras alterações profundas para o conjunto dos servidores públicos
paulistas, como o confisco das aposentadorias e pensões e a reforma administrativa (PLC26).”
14
As identidades de todos os entrevistados foram preservadas com o uso de nomes fictícios.
27
Igualmente, há uma marca histórica e cultural nestes professores: todos são filhos de
trabalhadores, por vezes com avós e pais da zona rural e analfabetos, com pais e avós migrantes
de outros estados brasileiros para São Paulo, sendo que alguns dos entrevistados se tornaram
os primeiros da família a ter ensino superior. O que se apresenta como uma questão para pensar
em torno das mudanças e contradições de ideais familiares a partir de uma perspectiva de
ascensão social ou mesmo regressão social dentro de uma sociedade de classes. Além, é claro,
da própria relação que eles estabelecem com os estudantes, em sua maioria oriundos das
periferias da região metropolitana de São Paulo. Os professores colocam, muitas vezes, sua
vida pessoal como modelos para estes estudantes pensarem em sua própria condição, em que
pese ser o lugar social do professor também contraditório para os próprios entrevistados.
Nos trechos das entrevistas utilizados para análise de dados nos capítulos, os professores
foram apresentados pelo nome, o tipo de contrato de trabalho e o tempo de magistério
exclusivamente na rede estadual.
No quadro abaixo aprestam-se algumas referências de cada professor(a) como idade,
tempo de atuação como docente exclusivamente na rede de ensino estadual, o tipo de contrato
de trabalho e os possíveis acúmulos que podem ter na rede de ensino estadual, em outras redes
de ensino ou mesmo trabalhos distintos da educação, assim como a formação específica
educacional de cada um deles.
Entendemos que organizar estes referenciais são importantes visto que determinam o
tempo de experiência de cada professor, ou seja, a própria condição pela qual foi exposto a maior
ou menor experiência docente de seu mal-estar, assim como estabelece sob quais condições
contratuais ou de acúmulo de trabalho o docente está apontando a particularidade deste mal-estar.
A idade dos professores, tal como suas formações específicas, contribui nesta investigação.
Pedro, 50 anos 21 anos Categoria A (é efetivo em dois cargos desde o Letras, professor de
início de sua entrada na rede de ensino Língua Inglesa e
estadual) Português
João, 38 anos 13 anos Categoria A (os primeiros dois anos na rede História, professor de
foi como temporário. Acumula como História
professor da rede de ensino municipal)
Ana, 34 anos 15 anos Categoria A (ficou afastada durante 2 anos -
07-2019 a 07-2021, pelo artigo 202). Geografia, professora
Acumula como professora na rede de ensino de Geografia
municipal
28
5-Qual a história profissional e educacional dos seus pais e avós? Você teve
incentivos familiares para ser professor?
Questões relacionadas ao mal- 7 – O que você considera que seja o seu papel social como professor?
estar e aos ideais culturais, 9- O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter
sociais e políticos da profissão. autonomia no seu trabalho como professor?
10-Como você avalia a afirmação: “o professor não tem mais autoridade em
sala de aula”
14 -Você avalia que é valorizado socialmente como professor? Por quê?
21 -O que você acha da afirmação: “houve um tempo em que o professor era
mais respeitado pelo seu trabalho”
Questões relacionadas ao mal- 2-Na rede estadual qual é seu contrato de trabalho? Como avalia este
estar da perspectiva da contrato?
precarização do trabalho, das 8-Quais são as maiores dificuldades no seu trabalho?
condições de trabalho e das 11-Como você avalia sua formação para o trabalho docente? Há espaços de
relações de trabalho. formação significativos na escola?
12-Você vivenciou algum atrito referente ao trabalho seja com alunos,
professores ou gestão ou de algum outro tipo? Como se deu? Como foi
solucionado? Qual foi o papel da gestão nesse episódio?
13-Na sua avaliação há divisões de grupos na escola entre professores, seja
na perspectiva geracional, por contrato de trabalho, por modos de trabalhar
ou por outra questão? Como se manifesta isso?
15-Como você avalia suas condições de trabalho e salário?
16- Como você avalia o processo de evolução na carreira do professor do
estado?
20 -Você viveu situações em seu trabalho em que sentiu não ter amparo da
gestão? E viveu situações em que se sentiu amparado pela gestão? Poderia
contar?
30
Questões relacionadas ao mal- 17-Você acha que há sofrimento decorrente do trabalho de professor? Como
estar relacionadas ao ele se manifesta?
adoecimento, sofrimento e 18-Você já teve algum problema de saúde que avalia ser resultado do seu
adaptação do professor. trabalho como professor?
19-Você já sofreu algum tipo de violência física, verbal, psicológica
decorrente de sua profissão? Qual foi o encaminhamento dessa situação?
Quem te ajudou?
22-Você acha que há um processo de adaptação do professor. Que com o
tempo ele vai perdendo sua capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço
do seu trabalho?
2. O MAL-ESTAR NA CULTURA
Sigmund Freud
em especial dos textos de Freud, O mal-estar na civilização15 e Psicologia das massas e análise
do eu, no qual diz “que mereceriam ampla divulgação.” (ADORNO, 2006c, p. 120).
Se a sociedade contemporânea perdeu a capacidade reflexiva, é preciso compreender
como retomá-la, pois esta é a base para constituição de uma autonomia. Esta autonomia é
pensada, a partir dos textos de Freud, nas marcas mais iniciais da constituição de cada indivíduo
e como elas produzem conexões de tensão entre a sociedade e a cultura.
Adorno se preocupará com a educação infantil e a produção de um clima intelectual,
cultural e social que não permita que processos regressivos se desenvolvam. Neste sentido, para
o autor, seria necessário construir formas autônomas, que não fossem dependentes de
autoridades externas. (ADORNO, 2006c).
O livro O mal-estar na civilização16, de Sigmund Freud, é uma das obras clássicas do
autor, presente como referencial teórico para debater o mal-estar na atualidade. Muitos
pensadores, inclusive de perspectivas teóricas distintas (ADORNO, 2006; MARCUSE, 2010;
BAUMAN, 1998; HAN, 2020; BIRMAN, 2011), partem de Freud e desta obra, em específico,
assumindo suas balizas ou mesmo as criticando para compreender o mal-estar contemporâneo.
Neste capítulo, em especial, faremos uma leitura de O mal-estar na civilização
associada a outras obras de Freud e à entrevista de Adorno para Becker, Educação contra
barbárie (ADORNO, 2006b), juntamente com o texto Educação após Auschwitz (ADORNO,
2006c). Acreditamos, como Adorno, que Freud é um referencial para a compreensão dos
15
Optamos, nesta dissertação, pela tradução utilizada em O mal-estar na civilização, no que pese Freud não
distinguir as palavras “civilização” e “cultura”. No texto O futuro de uma ilusão, 1927, o psicanalista diz que “a
cultura humana – refiro-me a tudo aquilo em que a vida humana se ergueu acima de suas condições animais e em
que diferencia a vida animal – e eu me recuso a distinguir cultura de civilização – apresenta, notoriamente, dois
aspectos àquele que a observa. Por um lado, abrange todos os conhecimentos e habilidades que os homens
adquiriram para controlar as forças da natureza e dela extrair os bens para a satisfação das necessidades humanas;
e, por outro lado, todas as instituições necessárias para regulamentar as relações entre os indivíduos e, em especial,
a distribuição dos bens obteníveis.” (FREUD, 2014b, p. 233).
16
O psicanalista Christian Dunker, no dia 11/04/2014, numa palestra intitulada “A voz nO mal-estar na
civilização”, discute sobre a tradução de “O mal-estar na civilização”. Ele diz que “no alemão ‘Unbehagen in der
Kultur’, a palavra mal-estar, Unbehagen, só aparece duas vezes na obra. Ambas no segundo parágrafo na parte
VIII, logo no seu encerramento. O prefixo Un (prefixo de negação em alemão), e behagen (agradável) formam o
sentido da palavra mal-estar. Quando Freud começou a escrever este livro ele dá um título inicial a obra: ele
chama de Ungluck, que é infelicidade em alemão. Ele manda a primeira versão para Ernest Jones e eles começam
a ter um problema de como traduzir o Kultur, que em alemão tem um sentido mais amplo que pode ser relacionado
a Bildung, que é a formação propriamente dita, uma formação integral, ou Kultur e Zivilisation, relacionada a
patrimônio e costumes no geral. Joan Rivière, que estava encarregada da tradução para o inglês, traduz para
“Infelicidade”, Discomfort, desconforto na cultura. E Freud diz que não poderia ser essa a palavra. Quando ele vê
a dificuldade de tradução da palavra, busca uma palavra de baixa incidência no texto que é Unbehagen. Esta
palavra em alemão reúne três séries de conotações: uma série corporal que tem a ver com prazer, desprazer, com
estar confortável no espaço; uma série moral, que tem uma coisa errada do ponto de vista moral, se criou um mal-
estar daquilo que foi dito, e, por último, além disso, Unbehagen remete a algo teológico transcendental que teria a
ver com uma epifania, uma revelação, um encontro transformador do ponto de vista do espírito. O mal-estar, em
português, se a gente lê sob estas três perspectivas, tem uma caracterização correta da tradução em alemão.” In:
https://www.youtube.com/watch?v=e4Tmrh-L9oI&t=1061s.
33
Professor Luiz
Normalmente nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos, de nosso
Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem demarcado de tudo o mais.
Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se prolonga para dentro, sem
fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que denominados Id, à qual
ele serve como uma espécie de fachada – isto aprendemos somente com a pesquisa
psicanalítica, que ainda nos deve informar muita coisa sobre a relação entre o Eu e o
Id. Mas ao menos para fora o Eu parece manter limites claros e precisos.
34
Freud, então, discute a própria constituição do Eu e o que nele permanece no adulto como
camadas relacionadas aos traços mnemônicos do psiquismo. Este Eu não é unitário, unificado,
completamente racional. Ele é cindido e tem fronteiras não muito claras na qual o próprio
indivíduo não tem total consciência. Aquilo que muitas vezes parece ser do mundo exterior, são
dimensões internas, e aquilo que aparenta ser somente interno podem ser estímulos externos.
Além disso, reconstrói o surgimento do Eu, mostrando que o bebê primeiramente não
separa seu Eu do mundo exterior. As primeiras relações objetais com o seio materno são
fundamentais para distinguir o dentro e o fora, mesmo que num primeiro momento o bebê seja
Um com a mãe. É desta relação inicial que o bebê vai percebendo sensações de dor e desprazer
que o princípio do prazer busca eliminar e evitar. Há uma tendência a isolar do Eu tudo que
pode se tornar fonte de desprazer, formando um Eu-prazer ao qual se opõe um ameaçador fora:
Nesta construção, Freud vai delimitando a relação deste Eu inicial com o mundo externo.
O Eu-primitivo seria uma expressão do todo. Com o desenvolvimento, o Eu separa de si o mundo
externo, o princípio de realidade. Só que no Eu-maduro se apresenta um vestígio deste sentimento
que em algum momento foi total, indissolúvel, que fica “como uma espécie de contraparte dele,
e os seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o
todo, os mesmos com que meu amigo ilustra o sentimento oceânico.” (FREUD, 2010a, p. 19).
Assim, já no início do texto percebemos o modelo de psiquismo proposto por Freud, em
que há uma conservação junto com o próprio desenvolvimento do indivíduo. Uma parte do
impulso instintual permaneceu inalterada e outra parte continua a se desenvolver. Logo, o
inconsciente é atemporal. Este Eu-desenvolvido traz consigo um Eu-primitivo como marca
constitucional. Ou como diria Freud: “na vida psíquica nada que uma vez se formou pode acabar,
de que tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz em circunstâncias
adequadas, mediante uma regressão de largo alcance, por exemplo.” (FREUD, 2010a, p. 20).
Uma das expressões das experiências iniciais das fases primitivas da vida que marcam
o sujeito adulto é a relação com o desamparo infantil, relacionado à condição de dependência
do outro pela fragilidade corporal e existencial do bebê. Nos adultos isso se manteria pelo medo
das circunstâncias imprevisíveis da vida.
35
Neste contexto, que marca a constituição do sujeito a partir do desamparo infantil que
atravessa a todos, e de um cenário cada vez mais incerto relacionado às condições civilizatórias,
pensamos que o professor é um trabalhador cujo ofício tem certas especificidades em que a
todo momento o desamparo pode ser intensamente vivenciado.
36
Isso daí era, igual eu estou te falando, antigamente o professor tinha esta importância.
Hoje não tem, a sociedade não vê mais a gente como a gente é. Não sei o que
aconteceu, eu ia falar agora. Não sei, é da geração, foi mudando a geração e o
professor foi ficando dessa maneira. Não tem mais o valor, para minha família a minha
profissão é importante. Mas as pessoas mais novas que não têm professor na família
não veem o professor... Se você vir e parar para pensar eu mesmo desvalorizo minha
classe, eu não quero que meu filho seja professor. Pela desvalorização, não sei se é o
próprio Estado que dá isso também, essas más condições que a gente tem de trabalho.
(Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
O desamparo não se apresenta como algo da ordem somente negativa, do ponto de vista
social. Sobretudo, como expressão do mal-estar civilizatório inerente à condição humana, que
pode, entretanto, igualmente abrir espaços de reflexão, de autorreflexão e leitura da realidade
social, movimentando o professor. A professora Denise encontrou formas de pensar e trabalhar
com os estudantes relacionadas à realidade do seu trabalho.
Sim, antigamente até se cantava o hino nacional antes de entrar em sala de aula. O
professor entrava em sala de aula e eles eram mais quietos. Chegava o “Dia do
Professor”, na minha época, dava lembrancinha para os professores, páscoa e tudo e
mais. Hoje em dia não. Mas sabendo lidar com eles a gente também não pode ver só
esse lado onde nós hoje em dia somos mais desrespeitados e às vezes menosprezados.
Não, porque os alunos às vezes eles se manifestam com uma falta de comportamento,
com agitações. Com alguns costumes ali bem diferenciados do que era na nossa época.
Mas paralelo a isso os alunos têm muita carência também. Os alunos dependendo da
região que a gente trabalha se você chega na sala de aula e você consegue conversar um
pouco com eles, trabalhar um pouco mais, como eu já falei, não só aquela matéria do
livro e a lição na lousa e cópia e vamos pro visto, vamos pra pergunta, aquela coisa
metódica que isso cansa demais eles. Isso que faz com que também fiquem cansados de
tudo da vida. Então se você tem um plano de aula um pouco diferenciado, você acaba
percebendo um outro aluno. Um aluno que é carente. Um aluno que quer sim aprender
e que depende da gente. Então isso é o que eu gosto de ver na sala de aula e é o que eu
tenho visto em algumas salas. Onde eu deixei de lado aquela de olhar só “nossa eles não
param”. E fui trabalhar com eles outras questões, outras coisas e ali eu descobri uma
nova sala. E aí que você percebe que você não é tão assim menosprezado, porque às
vezes o professor não está sabendo trabalhar com o aluno também hoje em dia. Parte do
educador também transformar a sua aula para que você também seja reconhecido. Se o
professor também não trabalhar isso em sala de aula, cada vez mais nós vamos ser
menosprezados. Então aluno tem uma parte muito importante da gente trabalhar com
ele e a gente depende deste trabalho para ter o inverso da gente ser reconhecido. A gente
precisa deles, mas a gente precisa fazer a nossa parte para que isso aconteça. (Professora
Denise, categoria V, três anos de magistério).
A professora Denise tem três anos de rede de ensino estadual. Interessante observar que
este é um dado importante na construção de sua argumentação e que reflete o conjunto de
experiências de intensidade de seu mal-estar vivenciadas em um tempo menor como professora
da rede estadual comparada a outros professores com mais tempo.
Já o professor Luiz discute que é comum referências a um passado, em especial sob o
regime militar, em que se tem uma imagem do professor como um profissional mais respeitado.
Diante de um cenário adverso de trabalho, que mobiliza o desamparo, alguns professores podem
rememorar um momento histórico em que se sentiriam mais amparados.
Isso me lembra um pouco do saudosismo que inclusive vejo de professores mais velhos,
de gerações passadas. Mas eu tomo um cuidado também, porque este saudosismo muitas
vezes ele acaba vindo de uma visão romanceada também do passado. Por exemplo, o
que eu já ouvi muito este ano: “na ditadura militar a educação era melhor”. Para em
seguida enaltecer a ditadura militar, que tinha mais segurança, os professores eram mais
respeitados, aquela coisa toda. Então não, eu não concordo plenamente com esta
afirmação de que no passado os professores eram mais respeitados. Não
necessariamente. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
38
O professor Fernando amplia a reflexão, o que nos faz pensar que a maneira como o
professor lidava com o próprio desamparo em outros tempos estava relacionada à produção do
medo no outro, no estudante, através da violência simbólica ou mesmo da exclusão como um
fenômeno que não se dava somente na sala de aula simplesmente, mas um fenômeno social em
que a escola amplia a exclusão da própria sociedade.
Eu considero isso aí como viúvas da ditadura. Professores que sentem muita falta, na
minha época era bom que tinha ditadura. Toda 10 horas da noite todo mundo estava
em casa preso. Dentro de casa em cárcere privado. Ai não tem bandido a noite. Lógico
está todo mundo preso, você está maluco! Então era mais ou menos isso. Na minha
época todo mundo era mais respeitado. Na época dele todo mundo era analfabeto.
Todo mundo que estava na favela era analfabeto. Só estava na escola quem gostava
de estudar. E aí fica fácil de dar aula. Você dá aula para 10 alunos, os 10 gostam de
estudar. Os 10 gostam de ser tratados com autoridade. Os 10 contemplam esta
subserviência. E aí o professor obviamente funciona. Nessa época funcionava mesmo.
Professor era um autoritário respeitado pelas pessoas que queriam ser controladas por
autoridades. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
A professora Vera, que tem 52 anos, discute se houve uma época em que os professores
eram mais respeitados, e complementa o professor Fernando, dizendo que na época dela de
criança os professores batiam nos estudantes para marcarem sua autoridade em sala de aula,
evidenciando um tempo em que isso era aceito socialmente.
Então não sei se teve esta época. Eu acho que esta época foi dos nossos pais, dos
nossos avós, ou até da minha época que eu era aluna de ensino médio, de fund. 2, que
era o primário, o ginásio e o colegial. Pela minha idade foi o que eu fiz. E ali a gente
dava respeito para o professor e o professor respeitava o aluno também. E a gente
tinha medo do professor. Eu me lembro que eu levava puxão de orelha da minha
professora quando eu fazia bagunça ou quando eu gritava ou era espoleta na sala de
aula. E eu não falava nada, nenhum aluno, o pessoal tinha medo do professor. Você
fala assim, o professor não pode bater em aluno. Tá, mas naquela época a gente
apanhava. O professor não precisa fazer isso, mas ele tem que ter autonomia de falar
cala a boca, vamos ficar quietos e vamos aprender e o aluno tem que respeitar. Não
existe isso. Então você tem que ter uma, duas, três cartas na manga pra você poder dar
uma aula. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
Eu acho que isso é uma fala que remete ao passado do tempo que a escola segregava.
Que escola que só entrava os filhos das pessoas que tinham condições de colocar os
filhos na escola. Meu pai por exemplo não estudou. Só estudou até a quarta série porque
ele tinha que trabalhar. Minha mãe estudou só até a oitava, depois é no nono agora.
Depois ela fez a faculdade e o magistério, então ela tinha que trabalhar, então o filho do
pobre ele tinha que trabalhar, principalmente nos anos 70, 80 e aí nessa época a escola
era boa, porque você tinha pessoas que queriam e podiam estudar. Quando a escola se
torna maior porque ela pega todo mundo ela tem uma quantidade, mas ela perde a
qualidade. Mas essa qualidade também é relativa porque tem um problema aí, eu acho
39
que a situação é bem difícil você analisar por esta perspectiva, era boa porque tinha
poucos alunos. Hoje em dia que acho que é o principal desafio, você tem todos os alunos
ali. E o professor é respeitado, pode ser que era respeitado sim, mas ele estava dentro de
um nicho, hoje em dia é diferente. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Os professores entrevistados trazem uma série de reflexões que retomam suas próprias
experiências pessoais e geracionais que ajudam a visualizar a dimensão histórica onde a imagem
de um professor respeitado foi construída, apontando as contradições desse saudosismo, fazendo a
crítica à ideia de que o professor era mais respeitado em sala de aula por si mesmo, isoladamente.
Mas mesmo esta época que eu acho que foi a época de ouro da escola pública, final
dos anos 40, 50 até meados dos anos 60, era uma escola pública que se baseava na
exclusão. Então este professor era valorizado, havia um discurso oficial que
valorizava este professor, havia uma política de salário que mais ou menos o colocava
dentro de uma classe média. Só que também era uma escola que não dava acesso a
toda a população como dá hoje. Então eu acho que hoje quando alguém afirma, “ah o
professor tinha autoridade, não tem mais”, eu acho que é uma meia verdade.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
O professor João aponta que na escola do passado havia melhores condições de trabalho,
contudo, era uma escola excludente. O que indica que nos últimos anos houve uma piora das
condições de trabalho e salário do professor. Tendo que ficar sob condições objetivas mais adversas,
o professor pode construir a imagem, que ele sequer viveu, de um tempo em que era mais
respeitado, excluindo desta imagem as bases sociais e econômicas que ajudaram a produzir isso.
As experiências culturais e históricas da sociedade podem ser mobilizadas no presente em
camadas do psiquismo que não desaparecem, que permanecem no sujeito preservadas como
experiências geracionais e podem ser reavivadas novamente diante de processos de regressão.
Alguns professores entrevistados, quando pensam sobre a questão de um tempo em que
o professor teria sido respeitado, mobilizam figuras familiares, “na época dos meus pais e avós”,
o que nos faz pensar que camadas do psiquismo, profundas e preservadas, estão sendo
mobilizadas na reflexão. Tal como nos lembra Freud, da inseparabilidade da relação indivíduo
e sociedade, mas também da tensão entre eles.
As relações do indivíduo com seus pais e irmãos, com o objeto de seu amor, com seu
professor e seu médico, isto é, todas as relações que até agora foram objeto
privilegiado da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar ser apreciadas como
fenômenos sociais, colocando-se em oposição a outros processos, que denominamos
narcísicos, nos quais a satisfação dos instintos escapa à influência de outras pessoas
ou a elas renúncia. (FREUD, 2011a, p. 14).
Professor Fernando
A tentativa de controle dos instintos de modo religioso ou espiritual também sacrifica parcelas
significativas da vida. (FREUD, 2010a).
Para Freud, o prazer, na realização de um instinto selvagem, não domado pelo Eu, é
mais forte do que o de um instinto domesticado. Uma forma mais moderada de possibilidade
de destino dos instintos se dá em destiná-los para atividades reconhecidas na cultura. A
sublimação, o investimento da sexualidade para atividades culturais, produz uma satisfação a
partir dos instintos que não é sentida tão dolorosamente como nas situações de inibição total.
“A satisfação desse gênero, como a alegria do artista no criar, ao dar corpo as suas fantasias, a
alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade
especial, que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente.” (FREUD, 2010a p. 35).
Tal forma sublimatória é mais fina e elevada. Todavia, sua intensidade é amortecida,
comparada à satisfação de impulsos grosseiros e primários. Poucos têm acesso a ela. Além disso,
o trabalho, para Freud, está relacionado ao desenvolvimento humano, criando possibilidades de
ampliação do mundo, da comunidade. Por isso seus efeitos adversos, obstaculizados, quando
impossibilitados de serem realizados podem produzir graves efeitos no sujeito.
Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à
realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa
porção da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que oferece de deslocar
para o trabalho e os relacionamentos humanos a ele ligados uma forte medida de
componentes libidinais – narcísicos, agressivos e mesmo eróticos – empresta-lhe um
valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a afirmação e justificação da
existência na sociedade. A atividade profissional traz particular satisfação quando é
escolhida livremente, isto é, quando permite tornar úteis, através da sublimação, pendores
existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados. E, no
entanto, o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade. As pessoas não se
lançam a ele como a outras possibilidades de gratificação. A imensa maioria dos homens
trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa
natural aversão humana ao trabalho. (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).
17
O psicanalista Christophe Dejours salienta que a relação com o trabalho não só amplia a subjetividade como interfere
na própria constituição do corpo subjetivo: “A clínica do trabalho, por sua vez, atesta, como tentei mostrar no capítulo
dedicado à inteligência do corpo no trabalhar (capítulo primeiro), que o engajamento da subjetividade na confrontação
com a resistência do real (termo material externo que se opõe ao esforço) pode fazer advir novos registros de sensibilidade
que não estavam presentes no Eu antes da experiência do real e da perseverança no esforço em face da resistência do real
e do sofrimento decorrente (...) O desenvolvimento do corpo subjetivo pelo exercício do trabalho é efetivamente a fonte
de prazer que, então, não seria acessível não fosse a mediação do trabalho.” (DEJOURS, 2002, p. 94).
42
do modo em que o trabalho se organiza sob o capital e de uma sociabilidade com formações
históricas regressivas e destrutivas, aos quais discutiremos ao longo da dissertação.
O que podemos perceber pelas entrevistas com os professores são manifestações de
sofrimento por causa do trabalho. As disposições libidinais e individuais dos professores que,
pelas condições de trabalho, não podem ser deslocadas efetivamente para a docência e
sublimadas, tornam-se fonte das maiores angústias, ansiedades e desprazeres. O que analisamos
é uma intensidade, inclusive traumática, na fala de alguns professores, os quais só de pensar em
passar por determinada experiência novamente, o corpo começa a responder sintomaticamente.
É o que nos traz a professora Ana:
Eu tenho pressão baixa. Quando eu fico muito nervosa minha pressão cai. E eu comecei
a passar mal em 2013 do nada, assim. O ano passado eu nunca mais tive queda de
pressão. O ano passado eu trabalhei o ano inteiro em casa, basicamente. Este ano eu
também não tive, mas acho que foi por causa do tratamento que eu estou fazendo. E eu
acho que era isso. Era o estresse, a ansiedade de ter que lidar... eu sou uma pessoa que
fico trazendo muita coisa para casa. Não para fazer o trabalho em casa, mas eu fico
pensando nos problemas, e isso me faz mal assim. E eu fui percebendo que eu
começava a ter umas quedas de pressão, passando mal, falta de ar. Toda vez que eu
começava a ficar nervosa. No começo é quando eu estava muito nervosa. Mas depois
lá para 2018, 2019, só de pensar em algumas coisas que eu poderia passar na escola
isso já me fazia me sentir mal, muito mal assim. Minha pressão vivia baixa, 9 por 6 por
exemplo. Um exemplo: em 2019 uma escola que eu dava aula perto de casa, lá eu tinha
5 sétimos anos, e a direção, sei lá por que eles faziam isso, eles separavam os alunos
por nível de aprendizado. A turma A era maravilhosa porque todos os alunos tiravam
10. A turma B também porque era 9. A turma E era insuportável porque todo mundo
tirava 3 e 4 na sala. Todos os alunos indisciplinados do sétimo ano estavam numa turma
só. Então toda vez que eu tinha que dar aula no sétimo E era um sofrimento para mim.
Porque eu já ficava nervosa, ansiosa, angustiada. Sentia muito mal, vinha embora,
faltava aula, mas eu sabia que eu... eu acho que este sétimo me ajudou a pegar a 20218,
a pegar a licença, sabe... Essa situação e aí tinha um mal-estar ali na escola porque
quando você é um professor que não controla os alunos você não é um bom professor.
E aí o pessoal que era puxa-saco da diretora ficava falando mal de você. Era uma
situação muito complicada e aí eu achei melhor sair de lá e foi a melhor coisa que eu
fiz. Mas foi um exemplo quando a situação é caótica, porque a situação era caótica.
Esse negócio de ficar separando aluno por nível de aprendizagem, isso é ridículo, 2019
não foi esse ano, mas mesmo assim ela faz isso até hoje porque a gente sabe. Hoje ela
faz isso, toda turma E, D, F é insuportável nessa escola. Então piora a situação do
professor... (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
O que a professora Ana descreve como caótico, para Adorno (2006c), pode ser descrito
como barbárie. A organização da escola separa os estudantes como aqueles mais aptos e menos
aptos a estar numa sala. É um processo de violência e exclusão dentro da escola no qual os
estudantes responderão exatamente do lugar em que a direção os colocou, com agressividade e
18
Afastamento não remunerado de até 2 anos da rede estadual para tratar de assuntos particulares. Sua única
exigência é ter um professor para substituir aquele que se afastará e continuar pagando o IASMPE, que é o Instituto
de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual.
43
A incapacidade para identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante
para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas
e inofensivas. (...) O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto. A frieza da
mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino
do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem
disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 2006c, p. 134).
Outro aspecto a pensar sobre a fala da professora Ana diz respeito ao fato de que se o
professor não “controla” a sala de aula, “não é visto como um bom professor”. Este referencial
de controle socialmente mediado pela “punição”, de ser mal-vista pelos colegas, pode constituir
um modo de ser docente também excludente. Ou seja, da mesma maneira que a direção
construiu salas segregadas para excluir os estudantes considerados “não aptos” para integrar as
primeiras letras do alfabeto das salas, assim também faz com os professores “não aptos” que
não controlam a sala, a partir de um referencial externo, e são marcados pelos olhares de
reprovação dos colegas de trabalho. Restou à professora Ana sair da escola, se “autoexcluir”,
resultado das dinâmicas sociais regressivas que a escola produz.
É o que nos coloca o professor Fernando que diz que a “escola é uma máquina de moer
gente”. Ele consegue observar claramente os efeitos em sua saúde neste ambiente que classifica
como “insalubre”. O professor diz que acredita ter sintomas decorrentes do trabalho em sala de aula:
Sim, gastrite, úlcera. Esse ano recebi o laudo tudo. Inclusive tenho tratamento para
fazer, não posso ficar fumando. Mas aí que está só o dia 23 [de dezembro] para cá eu
estou tão mais tranquilo, já não estou mais sentindo... o ambiente do trabalho... e olha
já não tinha estudante na escola, não tinha aluno na escola. E eu passando mal, foi
terminar o ano, entregar o diário parece que jogou aqui (referência com as mãos ao
alívio do estômago) assim... É aquilo mesmo, de fato era aquilo. Era um trabalho de
direção, de coordenação, aquele ambiente escolar insalubre. (Professor Fernando
categoria O, 12 anos de magistério).
Aqui, abordamos professores que não estão afastados por problemas de saúde: estão na
escola, em sala de aula. Isto evidencia uma dinâmica de trabalho que produz, como diz Freud,
“aversão ao trabalho”. Impede que as disposições agressivas, libidinais, eróticas encontrem um
destino. Nossa hipótese é que estas disposições individuais obstaculizadas produzem efeitos
sintomáticos corporais e psíquicos como relatam os professores, assim como impede a própria
experiência na sua positividade do mal-estar civilizatório, tornando-a insuportável.
É nessa ordem social que é necessário pensar os limites subjetivos de felicidade, do qual
fala Freud em O mal-estar na civilização. Algo que cada indivíduo terá que dar conta. Não
haveria um manual para todos de como realizar o princípio do prazer e este não é absoluto na
cultura. “No sentido moderado em que é admitida como possível, a felicidade constitui um
44
problema da economia libidinal. Não há, aqui, um conselho válido para todos; cada um tem que
descobrir à sua maneira particular de ser feliz.” (FREUD, 2010a, p. 40-1).
No que pese Freud tratar da relação do princípio do prazer em dimensões do processo
de evolução, filogenético, podemos observar que as bases da cultura produzem intenso
sofrimento comum e, nesse âmbito, infelicidade não apenas individual, mas social.
Adorno, em sua leitura de O mal-estar na civilização, nos mostra que mesmo Freud não
percebeu a abrangência de sua tese. Estamos diante de um processo civilizatório que produz
uma intensidade no sofrimento sem precedentes:
Adorno nos mostra como esta pressão civilizatória, esta intensa produção de mal-estar
na cultura, volta-se de modo insuportável para o indivíduo que responde, segundo as entrevistas
com os professores, pelo adoecimento. O professor Luiz, que já chegou a trabalhar em cinco
escolas para completar jornada, relata sintomas que tem tido com certa frequência, em especial
quando vai para a escola ou está nela:
Por exemplo, segunda-feira da semana passada eu dei aula de manhã numa escola, aí a
tarde fui para outra escola, quando deu... como já não tinha aluno, eles estavam fazendo
uma prova ou coisa do tipo; eu senti que eu não estava muito bem. Desde as quatro e
pouco da tarde eu estava sentindo um aperto, como se meu coração estivesse
encolhendo, aqueles sintomas que já conhecia de algum tempo. E aí começou a dar
aquelas fisgadas na perna, começou a sentir falta de ar, a minha mão não estava
tremendo na hora nem nada... aí eu falei, tenho que sair daqui. Parece que minha máscara
não era uma só, parecia que tinha 10 máscaras por cima. Eu saí, fui saindo de fininho,
peguei minha bolsa, me despedi de algumas pessoas ali, chamei o UBER, fui direto para
casa. Cheguei em casa tomei banho, tomei o remédio, mandei mensagem para a vice-
diretora falando que eu não ia. No outro dia mandei mensagem para a vice-diretora
dizendo porque eu não fui. Para não me mandarem uma falta injustificada a noite. Então
sim, já houve momentos que minha saúde prejudicou meu desempenho no trabalho.
Falta de concentração, letargia... (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
A cena que o professor Luiz nos revela do uso da máscara por causa da pandemia de
Covid, mesmo aqui já vacinado, é amplificada pela sensação de sufocamento psíquico que o
ambiente de trabalho parece produzir. Ao sentir estar usando 10 máscaras pensamos se esta não
é justamente a sensação psíquica que um professor na sua atividade como docente tem. Dar
conta do mal-estar exige uma série de estratégias de defesa, “armaduras psíquicas”, que
certamente também tem seu custo quando não encontram espaços de simbolização. O corpo
passa a determinar os limites, mas também a nortear as sensações de desprazer até o ponto em
que a única possibilidade de aliviar o mal-estar é a fuga deste espaço.
45
Há um sofrimento muito grande. Porque a gente tem colegas que adoecem. A gente
tem colegas que adoecem, que estão em licença, que estão readaptados. Esta rotina da
sala de aula ela adoece mesmo as pessoas. Não sei te dizer exatamente se eu realmente
não fiquei doente e não percebi, se eu já não tive depressão e não percebi, mas eu
penso que a questão da saúde do professor ela está realmente ligada a condição de
trabalho. Soma-se a isso não só a condição de trabalho em sala de aula, mas a condição
de trabalho da escola. Se você trabalha num ambiente tóxico, se você trabalha com
uma gestão tóxica, isso vai refletir, você pode ter os melhores alunos do mundo, mas
se você tem uma gestão que não te incentiva, que não te valoriza, uma gestão que
veste só a camisa de uma Secretaria da Educação, aí a doença é inevitável. Realmente
a pessoa tem uma chance muito grande de ficar doente. Nós temos lá na escola a gente
tá com a sala de leitura. Nós temos um, dois, três, quatro na sala de leitura, quatro
readaptados na secretaria, nós temos mais um, e vai ter mais uma professora de
educação física de readaptação, pelos mais diversos motivos, desde problemas
psiquiátricos, depressão, problemas físicos mesmo, problemas cardíacos, existe uma
questão que me parece que professor é uma das profissões que apresenta mais casos
de doença. Eu li isso em um compêndio que a Apeoesp19 fez uns anos atrás. E não
deve ter mudado muito não. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
No que pese nossa investigação entrevistar os professores que não estão afastados da sala
de aula por qualquer motivo, justamente para compreender a dinâmica social específica do mal-
estar escolar, parece-nos que a readaptação do professor pelo seu adoecimento não produz
necessariamente amparo para o mesmo, mas podem aumentar em muito os processos de
discriminação, constituindo outras formas de adoecimento docente e de sociabilidades regressivas
na escola, ao se caracterizar uma crise da identidade do professor, de sua imagem, assim como
todas as questões que envolvem sua nova função em um espaço por vezes precarizado. O professor
19
Associação dos professores do Estado de São Paulo, o principal sindicato da categoria e um dos maiores da
América Latina.
46
Sim, existe sofrimento. Essa pergunta é no sentido psicológico, de saúde mental e por
aí vai, eu acho que sim, existe muito sofrimento. Eu posso até como diz o ditado pagar
com a língua, mas felizmente eu tenho conseguido de alguma forma driblar este
sofrimento pessoalmente. Mas pessoas bem próximas têm tido muita dificuldade. Eu
entendo que isso acontece por causa disso que a gente está conversando, pelas condições
de trabalho, pelo salário, agora nas últimas semanas a situação se intensificou porque na
rede estadual o governo tirou alguns direitos e benefícios. Então é perceptível na rede
estadual que as pessoas estão mais angustiadas, mais preocupadas. E você vai
percebendo que um certo desânimo vai tomando conta. Esse sofrimento se manifesta de
várias formas: tem aqueles casos mais agudos que as pessoas ficam realmente mal
psicologicamente. E aí ela vai buscar ajuda. Você tem a questão salarial que: como é
que o professor que ganha um salário líquido de 2.500, 3 mil reais que seja, como que
ele vai buscar uma ajuda especializada de um psicólogo, um psicanalista, uma
psiquiatria, se uma consulta vai custar dependendo da situação, 100, 200, 500 reais
dependendo da situação. Tem o convênio médico, ele tem ala de psiquiatria. Só que é
tanta demanda e são poucos profissionais que você só consegue agendar, como costumo
brincar com meus colegas professores, se você estiver babando. Se tiver naquela
situação que está babando aí você vai ter um atendimento. Não sei muito bem como se
chama isso na psicanálise, digamos que um atendimento preventivo você não tem
acesso. O professor tem que pagar pra isso, pra conseguir ter acesso. Tem pessoas
próximas que estão pagando. Se você paga um aluguel, tem filhos, não sei o que, tem
que ajudar um pai, uma mãe, não tem condições. Ou você sofre calado, eu vejo isso em
muitos professores, ficam sofrendo calados, volta e meia tira uma licença de 10, 15 dias.
E vão tocando o barco. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
20
Como nos mostra o artigo (Oliveira; Schmidt, 2023) que trata dos professores readaptados da rede estadual de
São Paulo: “Para Antunes (2014, p. 150), “[...] o processo que se inicia com o mal-estar, passando pelo
adoecimento e culminando na situação de readaptado, impactam a identidade profissional”. Com base na
Psicodinâmica do Trabalho, foi possível compreendermos que, para estes professores, é preciso a retribuição moral
e afetiva em sua identidade, em termos de reconhecimento e gratidão. Sobretudo, pelo fato de alguns não se
sentirem mais professores, de terem perdido essa identidade profissional, posto que o reconhecimento se expressa
na dinâmica subjetiva de contribuição/retribuição, sendo este fundamental para a construção da identidade do
sujeito no trabalho, e consequentemente para sua saúde mental (DEJOURS, 2004). A perda da identidade foi
revelada no decorrer das entrevistas, como exemplificam os relatos: “[...] uma coisa que me doeu muito foi perder
a identidade de professora, porque assim quem me conhecia antigamente sabia que eu era professora” (S9). “Em
relação a escola, eu esqueci que sou professora, lembro que sou profissional administrativo, doei e aboli tudo que
se diz de escola [...]” (S13). “Achei que a parte mais difícil era a aceitação de que eu não podia ser mais professora”
(S1).” (OLIVEIRA; SCHMIDT, 2023, p. 18,19).
47
Há, sem dúvida, muitos tipos de silêncio, alguns significativos, resultado de processos
de elaboração e reflexão, contemplativos. Todavia, quando o professor João caracteriza “o
sofrer calados”, estamos diante de um silêncio destrutivo, de desligamento consigo e com o
outro, que não encontra no outro uma possibilidade de vazão através da palavra. Há de se pensar
também os limites da palavra em um espaço escolar em que o adoecimento não encontra amparo
objetivo, na qual o professor só terá acesso a um cuidado médico e psiquiátrico “se estiver
babando”. Parece-nos a forma de comunicar com o corpo aquilo que na palavra se banalizou.
A baba como uma formação reativa21 das palavras mal digeridas, que não encontram no espaço
escolar ambiente acolhedor, subjetiva e objetivamente, de serem ditas.
Como o professor João colocou, o IAMSPE (Instituto Assistencial do Servidor Público
Estadual) tem muita demanda na ala da psiquiatria, o que faz com que o professor não tenha o
atendimento adequado. O professor João, que é categoria A, tem acesso ao IAMSPE como
benefício. Os professores categoria O e V não têm esse direito, o que dificulta ainda mais as
possibilidades de tratamento. A professora Vera, categoria O, relata que foi a um hospital
público buscar atendimento e nem o psiquiatra quis ouvi-la, tamanha a demanda de professores.
Sim, tomei remédios fortíssimos tanto para dormir quanto para relaxar. Eu procurei um
psiquiatra este ano. Tenho até a data que eu tenho todos os documentos. Foi dia 3 de
março deste ano. Fevereiro inteiro foi presencial, não sei se você lembra, você
acompanhou? Mais ou menos né... fevereiro deste ano foi presencial. Um mês eu estava
acabada. Tava no chão. Aí eu faltei, eu peguei a licença de 10 dias. Nossa a hora que eu
cheguei no psiquiatra: “você é o que Professora? Tá peraí toma é isso que você quer.”
Eu falei o que que isso? “Não é o atestado...” Falei eu quero, mas peraí você não vai
conversar comigo? “Não. Você vai procurar essa pessoa para conversar. Eu tô
recebendo muito professor e é sempre a mesma coisa.” Nem o psiquiatra quis me ouvir.
Te juro. Ele já me deu atestado de 10 dias pra eu ficar em casa. Depois se volta pega
mais 10. Aí ele me deu dois remédios fudidos que resolveu. Fiquei mais calma sim
tomei. Esse tratamento eu fiz. E procurei a pessoa que ele pediu. Tava esquematizado,
estava tudo na mesa dele pronto. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
Freud, em 1919, no livro Além do Princípio do Prazer (2010d), discute que as “neuroses
traumáticas”, apesar de ter dúvidas como surgem em tempos de paz, tem como uma de suas
caraterísticas o fato de serem ocasionadas pelo fator surpresa e por sua intensidade.
A constância de fatores surpresa, de intensidades variadas, com pouca possibilidade de
reflexão e elaboração, produz adoecimentos. Os relatos dos professores, no conjunto desta
21
Segundo o Vocabulário de Psicanálise: “Do ponto de vista clínico, as formações reativas assumem um valor
sintomático no que oferecem de rígido, de forçado, de compulsivo, pelos seus fracassos acidentais, pelo fato de
levarem, às vezes diretamente, a um resultado oposto ao que é conscientemente visado.” (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001, p. 200).
48
Com efeito, a expressão “traumática” não tem outro sentido que não esse, econômico.
Chamamos assim uma vivência que, em curto espaço de tempo, traz para a vida psíquica
um tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível da forma
costumeira, disso resultando inevitavelmente perturbações. (FREUD, 2014h, p. 367).
A professora Vera relata que suas pernas “travaram”, “paralisaram”. Sua associação, em
conjunto com o médico, é que elas ficaram assim pelo peso da escola em sua vida. Justamente para
não ir à escola se expressou corporalmente seu sintoma psicossomático23, a paralisia das pernas.
A professora Ana teve que se afastar da escola, mal podia pensar em ir para lá. O
professor Fernando teve gastrite, quando entrou em férias melhorou. O professor Luiz padeceu
de um conjunto de sintomas que o obrigou a ir para casa. Todos os professores citaram situações
de colegas que adoeceram ou que se “readaptaram”. Nestes relatos vemos situações de terror,
22
A psicanalista Myriam Uchitel, estudando a neurose traumática, define-a como, primeiramente, “um
acontecimento intenso que, vindo de fora, produz impacto emotivo e que, transformado em lembrança, gera pela
carga contida, o sintoma. Um segundo componente dessa definição destaca o sentimento que tem o sujeito de
sentir sua vida ameaçada. É a sobrevivência física ou psíquica que, ameaçada pelo impacto de uma sobrecarga,
imobiliza o processo de resposta. (...) O terceiro elemento da definição alude à reação fisiológica que o impacto
desencadeia, que impede organizar a resposta de luta ou fuga e, então paralisa.” (UCHITEL, 2011, p. 57-9).
23
Há todo um trabalho de pesquisadores e psicanalistas na atualidade, muito rico e interessante, sendo feito em torno
das “neuroses atuais” e a “psicossomática”. O psicanalista Flávio Ferraz, um dos expoentes nesta pesquisa, em seu
artigo Do ‘fator atual’ das neuroses atuais à pulsão de morte como dispositivo antirrepresentacional, diz que: “A
figura das neuroses atuais surge nos estudos iniciais de Freud, ainda no fim do século XIX, para depois sair de cena
sem muito alarde, apenas com um desvanecimento paulatino. Aqui e ali, em textos mais tardios, ainda deu sinal de
vida, mas perdeu a força conceitual que lhe parece destinada, uma vez que o interesse da investigação de Freud no
campo da psicopatologia foi se restringindo às psiconeuroses. No entanto, é interessante observar como, hoje em dia,
muitos dos aspectos que lhe eram peculiares podem se articular com o campo da psicossomática e de outras
manifestações do sofrimento psíquico, por exemplo, os transtornos de pânico.” (FERRAZ, 2022, p. 93).
49
medo e angústia que se relacionam tanto com as disposições individuais como também à
intensidade dos fenômenos sociais.
A angústia, nesse caso, seria sempre a angústia automática da qual Freud veio a falar
em “Inibições, sintomas e angústia” (1926/1980), e que retoma, de certo modo, aquela
angústia definida como descarga em 1895 no caso das neuroses atuais. Trata-se de
uma modalidade de angústia que é, sobretudo, somática, numa contrapartida da
angústia sinal, essencialmente psíquica. A angústia automática é aquela que marca
uma falha do ego diante do perigo, quando este não tendo tido condições de examinar
os processos de realidade, deixa-se tomar de surpresa. É claro que estamos falando
aqui do trauma, ou seja, do irrepresentável que se articula exatamente à pulsão de
morte. Grosso modo, o sujeito da neurose atual funciona no registro da neurose
traumática. Responde de maneira automática, passando ao largo dos processos
psíquicos na sua montagem sintomática. (FERRAZ, 2022, p. 103).
Não se espantem, portanto, se os senhores ouvirem que o médico por vezes toma o
partido da enfermidade que combate. Não lhe cabe, no enfrentamento de todas as
situações da vida, restringir-se ao papel do fanático pela saúde; ele sabe que, no mundo,
não existe apenas a infelicidade provocada pela neurose, mas também sofrimento real,
irremovível, e que a necessidade de um ser humano pode requerer o sacrifício da própria
saúde; assim, o médico descobre também que, mediante tal sacrifício de um indivíduo,
pode-se frequentemente impedir que um infortúnio imensurável se abata sobre tantos
outros. Se pudemos dizer que, diante de um conflito, o neurótico sempre busca refúgio
na doença, temos que reconhecer que em muitos casos essa fuga é plenamente
justificada, e o médico que percebeu esse estado de coisas se retirará em silêncio, pleno
de consideração para com o enfermo. (FREUD, 2014g, p. 506).
É assim que, explicando mais uma vez a ocorrência de neuroses mistas, ele afirma
que “as causas específicas da neurastenia, as perturbações contemporâneas da vida
sexual, atuam ao mesmo tempo como causas auxiliares da psiconeurose, cuja causa
específica, a lembrança da experiência sexual precoce, elas despertam e revivem.”
(...). O ponto fundamental a ser destacado é que, segundo essa visão, as causas das
neuroses podiam se entrecruzar entre si – muito comumente o faziam –, de forma que
a etiologia de determinado quadro costumava ter um pé no presente e outro no passado
– uma causa atual e outra antiga. Assim, tanto as características das práticas sexuais
da vida adulta como as experiências sexuais infantis podiam atuar na produção de um
único quadro neurótico, que seria então uma mescla de uma neurose atual com uma
psiconeurose de defesa. (RITTER, 2022, p. 78).
24
Em Estado neurótico comum (1917), há um trecho que Freud reflete: “Mas os sintomas das neuroses atuais –
pressão no interior da cabeça, sensação de dor, irritabilidade em um órgão, enfraquecimento ou impedimento de
uma função – não têm um “sentido”, um significado psíquico. Eles não apenas se manifestam sobretudo no corpo,
como sucede com os sintomas histéricos, por exemplo, como são também processos inteiramente físicos, em cujo
surgimento não atuam os complicados mecanismos psíquicos de que tomamos conhecimento. São, de fato, aquilo
que por tanto tempo se acreditou que eram os sintomas psiconeuróticos.” (FREUD, 2014g, p. 513).
25
Freud utiliza esta expressão para se referir “ao umbigo do sonho”, um local que representaria o impossível da
construção de um significado ou sentido em um sonho. No contexto das relações entre neuroses traumáticas e
psiconeuroses, Freud também relata em Inibição, sintoma e angústia que: “De fato, é muito de lamentar que não
exista uma única análise aproveitável de uma neurose traumática. Não porque iria contradizer a importância
etiológica da sexualidade – há muito essa contradição foi eliminada com a introdução do narcisismo, que situa o
investimento libidinal do Eu na mesma categoria dos investimentos objetais e sublinha a natureza libidinal do
instinto de conservação -, mas porque perdemos, com a falta dessas análises, a mais valiosa oportunidade para
conclusões decisivas sobre a relação entre angústia e formação de sintomas.” (FREUD,2014c, p. 69).
51
O que vimos nas entrevistas com os professores foi que a hipótese de Freud sobre “os
graves problemas sociais que derivam desta natural ‘aversão humana ao trabalho’”, é
intensificada pela dinâmica de acirramento das contradições da civilização, que expressam mais
claramente sua faceta de barbárie – que Adorno desdobra a partir da obra de Freud. Há
degradação da cultura, tanto daquilo que oferece do ponto sublimatório, de autonomia do
sujeito, como de possibilidade de reparar estas dinâmicas sociais de adoecimento. “Penso que,
além destes fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem
simplesmente como a da falência da cultura.” (ADORNO, 2006b, p. 164).
É nesta falência da cultura, na promessa de autonomia que não pode se realizar, que se
estabelece uma “vida danificada”27, a qual tem, igualmente, um “núcleo traumático” como
balizador, inclusive dos momentos de “não-trabalho”, “o tempo livre”. “Sob as condições
vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo
em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade
criativa.” (ADORNO, 1995, p. 77).
26
No livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (2020) organizado por Vladimir Safatle, Nelson
da Silva Júnior e Christian Dunker, temos um panorama da atualidade do mal-estar relacionado ao modo como o
neoliberalismo produz uma gestão do sofrimento psíquico, afetando os pressupostos da maneira como o indivíduo
se relaciona com seu sofrimento sob determinada realidade social.
27
No conjunto de aforismos sob o título de Mínima Moralia: reflexões a partir da vida danificada (1992), escrito
entre os anos de 1944 e 1947, Adorno discute, através de uma série de temas cotidianos ou gerais, suas críticas à
violência em que se constituiu a modernidade.
52
Se fosse possível algo como uma psicanálise da cultura hoje prototípica; se o absoluto
predomínio da economia não escarnecesse de toda tentativa de explicar os estados de
suas vítimas a partir da vida psíquica delas e se os próprios psicanalistas não tivessem
feito há muito tempo um juramento de fidelidade àqueles estados – uma tal
investigação mostraria necessariamente que a doença própria de nossa época consiste
precisamente no que é normal. Os atos libidinosos que se exigem do indivíduo que
tem um comportamento físico e psíquico sadio são tais que somente podem ser
efetuados ao preço da mais profunda mutilação, de uma interiorização da castração
nos extroverts, em face da qual a velha tarefa da identificação com o pai é a
brincadeira infantil na qual aquela era ensaiada. O regular guy, a popular girl têm que
reprimir não só seus desejos e conhecimentos, mas também todos os sintomas que na
época burguesa decorrem da repressão. Assim como a velha injustiça não é alterada
pelo emprego maciço e generoso de luz, ar e higiene, mas, sim, precisamente
encoberta pela cintilante transparência da empresa racionalizada, do mesmo modo a
saúde interior de nossa época consiste em ter bloqueado a fuga para a doença sem
alterar em um mínimo sua etiologia. (...) Até hoje nenhuma investigação explorou o
inferno em que se forjam as deformações que, mais tarde, vêm à luz do dia sob a
forma de alegria alvoroçada, de fraqueza, de sociabilidade, de uma adaptação bem-
sucedida ao inevitável e de um desembaraçado sentido prático. Há razões para supor
que essas deformações ocorrem em fases do desenvolvimento da criança que são
anteriores até mesmo à origem das neuroses: se estas são o resultado de um conflito
no qual a pulsão foi derrotada, então a situação, que é tão normal quanto a sociedade
deteriorada à qual ela se assemelha, resulta como que de uma espécie de intervenção
pré-histórica que inibe as forças antes mesmo de surgir qualquer conflito, e a
subsequente ausência de conflitos reflete decisão prévia, o triunfo a priori da instância
coletiva, e não a cura pelo conhecimento. (ADORNO, 1992, p. 49,50).
Professora Ana
(...) a maior parte do que a compulsão de repetição faz reviver causa necessariamente
desprazer ao Eu, pois traz à luz atividades de impulsos instintuais reprimidos, mas é
um desprazer que já consideramos, que não contraria o princípio do prazer, é
desprazer para um sistema e, ao mesmo tempo, satisfação para o outro. Mas o fato
novo e digno de nota, que agora temos que descrever, é que a compulsão à repetição
também traz de volta experiências do passado que não possibilitam prazer, que
também naquele tempo não podem ter sido satisfações. (FREUD, 2010d, p. 179).
Para refletir sobre esta natureza indomável, o psicanalista busca suas bases filogenéticas
no processo de evolução cultural. Num determinado momento, o homem primitivo teve que se
voltar ao trabalho e foram sendo criadas relações a partir do trabalho. Junto a isso veio o hábito
de construir famílias. As famílias, por conseguinte, estariam relacionadas à ideia de
permanência da satisfação sexual, por parte dos machos. As fêmeas, por sua vez, teriam o
interesse de viver em família para assegurarem proteção aos seus filhos.
A perda do olfato e a hegemonia da visão são características da evolução cultural. O fato
de o homem ficar ereto escondeu os órgãos sexuais e a menstruação passou a perder a importância
como estímulo. Freud (2012a), então, retoma sua obra Totem e Tabu, de 1912. A cultura totêmica
estabelece as restrições para se viver em comunidade. Os preceitos do tabu constituíram o
primeiro “direito”, que reprimiram a natureza indomável, e os mais fortes desejos humanos.
A cultura e suas leis, nesse âmbito, obrigam homens e mulheres a muitas restrições à
sexualidade. Sua primeira fase, a do totemismo, implica na proibição incestuosa como
expressão dos fortes desejos humanos, de natureza indomável. Tais restrições da cultura são
também produtos do imperativo da necessidade econômica, pois têm de subtrair à sexualidade
um elevado montante da energia psíquica que desprendem.
A civilização tenta retirar da sexualidade a possibilidade de unir os indivíduos numa
comunidade cultural pelo trabalho e pelos interesses em comum. Mobiliza um grau máximo de
libido inibida com o objetivo de fortalecer os vínculos comunitários. Por este caminho
fundamenta a oposição à sexualidade. De tal modo, para se viver em sociedade, um grau dessa
natureza indomável e desses fortes desejos humanos relacionados à sexualidade e à
agressividade ficam reprimidos, mas podem escapar à repressão.
O quê de realidade por trás disso, que as pessoas gostam de negar, é que o ser humano
não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando
atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte
quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui
apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para
satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para
humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. (FREUD, 2010a, p. 77).
Para Freud, esse quinhão de agressividade está presente nas relações humanas e obriga
a civilização a grandes dispêndios, produzindo formas de dar conta da agressividade, seja do
ponto de vista da razão ou do amor, assim como inibir a sexualidade em sua meta. Não haveria,
portanto, forma de aplacar totalmente a agressividade porque ela é constitucional e porque tem
sua utilidade se for deslocada para a produção da cultura.
Foi esse o debate de Freud com os comunistas na década de 1930 que, segundo ele,
acreditavam que, abolindo a propriedade privada, estariam produzindo um ideal de sociedade
que pudesse suprimir tal traço da natureza humana.
cultural pode encetar, mas uma coisa é lícito esperar: que esse indestrutível traço da
natureza humana também a acompanhe por onde vá. (FREUD, 2010a, p. 80).
Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. As manifestações
de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas; era de supor que o instinto de morte
trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo, para dissolução deste, mas isso não
constituía prova, é claro. Levava-nos mais longe a ideia de que uma parte do instinto se
volta contra o mundo externo e depois vem à luz como o instinto de agressão e
destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na medida em
que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si próprio.
Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a
autodestruição, aliás sempre existente. Ao mesmo tempo, a partir desse exemplo
podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente – talvez nunca – surgem
isoladas uma da outra, mas se fundem em proporções diferentes e muito variadas,
tornando-se irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito conhecido
como instinto parcial da sexualidade, teríamos uma fusão assim, particularmente forte,
entre o impulso ao amor e o instinto de destruição, e na contraparte, o masoquismo, uma
ligação da destrutividade dirigida para dentro com a sexualidade, o que faz visível e
notável a tendência normalmente imperceptível. (FREUD, 2010a, p. 87).
É no sadismo, em que ele modifica a seu favor a meta erótica, mas não deixa de satisfazer
plenamente o ímpeto sexual, que atingimos a mais clara compreensão de sua natureza e
de sua relação com Eros. Mas também ali onde surge sem propósito sexual, ainda na mais
cega fúria destruidora, é impossível não reconhecer que sua satisfação está ligada a um
prazer narcísico extraordinariamente elevado, pois mostra ao Eu a realização de seus
antigos desejos de onipotência. Domado e moderado, como que inibido em sua meta, o
instinto de destruição deve, dirigido para os objetos, proporcionar ao EU a satisfação das
suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza. (FREUD, 2010a, p. 89-90).
56
Por sua vez, Adorno (2006b) dirá que Freud, melhor do que ninguém, estabeleceu as
bases subjetivas desta destrutividade, que nomeia como barbárie. Tal destrutividade atingiu a
cultura de modo que esta passa a estar a serviço da barbárie. A promessa da cultura de
emancipar o indivíduo falhou e produziu um efeito de agressividade e destrutividade contra a
própria ideia de cultura.
Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que
designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua
própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os
homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo
ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer
nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra
o não-cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de
cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-
se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir. (ADORNO, 2006b, p. 164).
(...) o que eu quero acrescentar o que foi pior foi a PCG, a coordenadora geral da
escola esse ano que eu tava mexendo no computador fazendo planejamento de aula,
toda a semana, isso é um absurdo, se você faz um plano de aula anual ou semestral
você não precisa fazer toda semana. Ela queria semanal. Por quê? Ela é a boa, ela que
manda. Ela chegou perto de mim, ela viu alguma tela particular minha. Eu tava com
4, 5 telas abertas ela gritou no meu ouvido. Surdou, eu tive que ir procurar um
remédio, alguma coisa para melhorar o meu ouvido. Inflamou. Ela gritou “você está
fazendo o quê?” “É para fazer o plano de aula!” Eu disse quem disse que eu não estou
fazendo. “Você está com outra janela aberta!” E daí? Eu estou fazendo o que você
pediu. Então ela gritou, Marcelo ela me surdou. Por isso que estou te falando, eu não
tive direito do bônus porque eu faltei muito. Eu peguei vários atestados. Eu peguei 10
dias com um psiquiatra, depois mais 10 dias com psiquiatra. E com a fono eu acho
que peguei mais 5. Porque o clínico geral falou assim: “é olha isso é otorrino. Eu
entendo eu vou te passar um medicamento você vai passar, mas procura uma fono
também porque surdou.” Demorou uns 10 dias para eu conseguir ouvir novamente,
de novo. Surdou, ficou surdo um ouvido, foi o direito. Só ouvia do esquerdo. Falei
olha que situação. E dói a cabeça quando atinge alguma coisa aqui na cabeça. Dói
muito a cabeça, então eu peguei também mais 5 dias. Então isso foi o pior, por isso
eu não quero PEI28 mais. Talvez outra PEI fosse dar certo para mim, como a N. falou
para mim, porque eu sou da N. Olha a gente pode atribuir aula em outra PEI para
você. Tem aula de Filosofia, Sociologia, História em outra PEI. Não quero, vou voltar
para o regular, vou trabalhar menos. Vou ganhar menos, mas eu vou cuidar da minha
vida. Eu vou cuidar de mim também. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de
magistério).
28
Programa de Ensino integral. Escolas da rede estadual de ensino que tem uma programação específica e horários
estendidos. Nas entrevistas, vemos professores criticando este modelo de escola pelo alto índice de assédio moral.
57
Interessante que a professora Vera usa a palavra “surdou”, que é corporal, relacionada
aos ouvidos e à audição, e psíquica na medida que o “surdou” é um corte em sua audição, como
se a lógica psíquica fosse a do “surtou”, produzindo um corte na forma de ser social e hostil do
princípio de realidade. Trata-se de um mecanismo de defesa29 psíquico com relação aos gritos
e hostilidade que recebeu.
O professor Fernando relata um diálogo que teve com o diretor que demonstra a forma
como se dão os conflitos na escola, mediados por uma agressividade destrutiva que produziu
efeitos psicológicos e sintomas corporais no professor. Podemos caracterizar também,
combinado ao assédio moral, uma manifestação de sadismo na relação da direção com o
professor que, concomitante às más condições de trabalho, salário e o próprio controle das
aulas, temos um panorama de destrutividade, daquilo que não tem condição de representação,
de simbolização, que marca a própria cultura de nosso tempo.30
Não foi somente isso não. Também foi a questão de falta, para você ter uma noção eu
cheguei atrasado 5 minutos e tolerância era 10 minutos. Eu tenho este problema com a
falta que o TDAH 31 me arrebenta com esta coisa do horário. E eu tenho até alguns
artifícios que eu uso aqui para lembrar das coisas. Você percebe que eu atraso e esqueço
(risos). E aí tipo é complicado, mas eu chegando no horário eu consigo fazer o controle,
cheguei lá 5 minutos atrasado. A tolerância era 10 minutos escrita no grupo. Aí me chega:
“oh lá na minha sala agora, por favor!” Na frente de todo mundo, já é constrangedor isso
aí. Aí você vai para a sala do patrão. Aí chega lá: “o que a gente já conversou este negócio
de atraso”. A gente conversou, eu entendi. E hoje eu não atrasei, eu tô no limite aí tal.
“Não, o limite não é, não está estipulado para segunda aula, é para a primeira aula.” Então,
mas isso não está escrito no grupo e eu não tenho a primeira aula. Só tenho a partir da
segunda, a primeira aula no caso é a segunda aula. “Não, não é assim, a regra não é essa”.
Então escreva a regra porque no grupo não está dizendo nada disso. “Ah não então vou
ter que mudar a regra! Então vou fazer o seguinte, eu vou mudar a regra e vou falar para
todos os professores que foi por sua causa que é para poder contemplar suas vontades,
tá!?” Eu falei pô mano faz isso. Faz isso, você vai entrar lá escrever a regra, vai mudar
ela. Coloca no grupo, fala que foi por minha causa e fala para todos os professores porque
aí mano vai dar para mim aquilo que eu precisava. Porque eu tenho um monte de pessoa
29
Segundo o Dicionário de Psicanálise de Roudinesco e Plon (1998), “Sigmund Freud designa por esse termo o
conjunto das manifestações de proteção do eu contra as agressões internas (de ordem pulsional) e externas,
suscetíveis de constituir fontes de excitação e, por conseguinte, de serem fatores de desprazer. As diversas formas
de defesa em condições de especificar afecções neuróticas costumam ser agrupadas na expressão “mecanismo de
defesa.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 141).
30
O filósofo Sérgio Paulo Rouanet, em seu livro, Teoria crítica e psicanálise, traz o pensamento de Erich Fromm,
um dos psicanalistas que trabalharam a relação dos aspectos sociais aos psíquicos, sob a tradição freudo-marxista
da década 1920. Rouanet cita um trecho interessante do trabalho de Fromm sobre as perspectivas subjetiva e
objetiva da violência da modernidade. Trata-se da relação sadomasoquista entre os indivíduos que se dá por
determinantes econômicos e históricos em que a posição masoquista expressaria a forma de adaptação e defesa
desta época: “quanto mais se agudizam as contradições dentro da sociedade..., quanto mais cegas e incontroláveis
as forças sociais, quanto mais catástrofes como a guerra e o desemprego se impõem à existência individual como
forças fatídicas, tanto mais violenta e mais generalizada é a estrutura pulsional sadomasoquista, e portanto a
estrutura caracteriológica autoritária, e tanto mais incondicional é a submissão do Destino, ao mesmo tempo
virtude suprema e fonte de prazer. É esse prazer que permite ao homem suportar tal existência, e nesses termos o
masoquismo revela-se como uma das condições psíquicas mais importantes para o funcionamento da sociedade,
como um elemento essencial do cimento que assegura sua coesão.” (FROMM apud ROUANET, 1983, p.58).
31
Transtorno de deficit de atenção e hiperatividade.
58
fazendo fila aqui pra ser testemunha se eu te processar por assédio moral, agora se você
faz isso, você já me dá um documento escrito por você falando que você está me
assediando moralmente. É só o que eu preciso, faz isso por favor. Aí ele entrou em
choque. “Oh não se faz de vítima não”. Eu falei olha eu vou explicar para você, vou te
dizer e vou provar para você que ser vítima não significa ser coitado. E eu estou sendo
vítima sim dos seus abusos o ano inteiro. Eu tenho testemunha, eu tenho áudio. Agora é
o seguinte, só falta uma prova documental, faz ela para mim por favor, por causa de 5
minutos. Falei tô com laudo médico, tô com gastrite por causa desse seu trabalho. Então
assim, você não está ligado, é eu passar um final de semana bem, descansado, falar pô
amanhã vou trampar o bagulho dos moleques, vai ser dá-hora. Eu pegar minha mochila
no domingo para arrumar o material começar a queimação aqui. O esôfago queimando.
Vomitando sangue. E só de pegar na mochila. Se fala porra na moral esta porra vai me
matar. A gente já está sendo vigiado, a mulher já está punindo. Sabe não tem paz. Salário
então nem se fala. Aquilo é ridículo. Aquilo é ilusão, 2 mil por mês, pelo amor de Deus
é 7 reais o litro da gasolina. Não vou nem comentar a atual circunstância do mantra da
escola sem partido. Os alunos não compram estas ideias imbecis, mas os pais adoram.
“Então, mas o senhor está trabalhando para a escola sem partido?” Aqui não é partidário
não, mas também ninguém é besta. Eu não tenho partido, não faço parte, não sou filiado
a nenhum partido, mas uma coisa que eu também não faço é passar pano histórico para
ninguém não. Ditadura é ditadura, ah revolução?! não tem essa! Então complicado,
complicado. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
É isso o que nos mostra o professor Pedro ao falar sobre as relações dentro da escola
que se dão no sentido de reafirmação da hierarquia a todo o momento. Não há mais uma forma,
um cuidado no espaço escolar para preservar um modo de trabalho mais dialógico no sentido
de construir uma autoridade e relações esclarecidas.
Primeira semana de agosto deveriam voltar alguns alunos já em rodízio. Aí a nossa escola
optou por não voltar, porque a gente tem que preparar Google Sala de Aula, preparar uma
série de coisas e eu faço meus ATPCs32 de quarta-feira, então fico o dia inteiro sem entrar
em sala de aula, só fazendo ATPCs, no cargo de Português, no cargo de Inglês, e era na
parte da tarde. Então eu saí um pouco para andar, as costas doendo, aquela coisa de idade
e aí eu fui ao banheiro e voltei. E aí eu parei para conversar um pouco com os dois
inspetores. Passaram-se alguns minutos a coordenadora veio e me questionou se eu não
tinha nada para fazer. Se meu Google Sala de Aula estava em dia, porque eu estava ali
batendo papo. Eu considero isso um atrito porque assim... essa coordenadora foi
professora lá. Ela está como coordenadora agora, ela já me conhece. Ela sabe do meu
trabalho, sabe do meu método de trabalho. Foi na frente de dois inspetores e foi a vice-
diretora da escola que viu e mandou ela lá chamar minha atenção. Eu imediatamente falei
com ela bem educadamente tudo que estava acontecendo. Mas eu me reportei a direção
da escola, e falei que não queria mais ser tratado daquela maneira porque eu tenho já
bastante tempo de casa, a coordenadora me conhece, vice-diretora me conhece e eu não
queria ser tratado daquela maneira. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
32
Aula de trabalho pedagógico coletivo (ATPC).
60
dúvida, uma expressão de uma violência que diz sobre a perspectiva da barbárie. O direito de
velar os mortos da família como algo da tradição cultural, da própria “evolução cultural”. É o que
a professora Luana nos coloca sobre a licença-nojo, a qual não teve direito como professora da
rede estadual, categoria O, comparado com outras profissões de seus familiares que tiveram. E,
agora, sem direito às duas abonadas, retiradas pelo PL26 (Lei Complementar 1.361/2021).
A gente não tem mais as abonadas, para você conseguir a licença prêmio mudou
bastante. Então caiu muito para a gente. Por exemplo, para você ver a diferença, o
efetivo tinha 6 abonadas, nós categoria O só 2. Meu avô faleceu eu não tinha direito.
Eu tive que abonar o dia que meu vô faleceu. Porque eu fui categoria O eu não tenho
a chamada licença nojo que seriam 2 dias, o parentesco avô não me dava o dia. Eu
tive que usar uma abonada porque ainda tinha abonada quando meu avô faleceu, ele
faleceu em setembro. Eu abonei porque eu não tinha direito. (...) Que absurdo! As
minhas primas todas tiveram o atestado, valia o atestado de óbito para elas. Uma é
psicóloga, trabalhava em escritório, a outra trabalha em mercado, e minha irmã teve
o dia por ser enfermeira e eu tive que abonar. Senão eu ia ser descontado meu dia.
(Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
E aí teve uma vez que eu passei mal por causa da minha pressão, porque ela caiu, eu
acho que foi consequência do trabalho porque a escola era ruim e aí um dia o diretor
virou para mim e eu tinha acabado de me efetivar na prefeitura, ele virou para mim e
falou assim: “professora como é que você passou na perícia se você é doente, você passa
mal na escola”. Ele falou isso. Na hora assim minha vontade era ter ido no sindicato.
Mas como eu tinha acabado de entrar na prefeitura, em período probatório, na escola
estava dando advertência para outros professores que estavam lá há anos por besteira
assim... Eu fiquei na minha e fiquei lá empurrando com a barriga até acabar o ano e pedi
remoção para cá. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
61
Os determinantes de uma organização social e cultural com marcas desta barbárie vão
minando as possibilidades desse professor preservar alguns princípios civilizatórios, da tradição
e da experiência geracional como um saber pessoal e de seu mundo interno. Assim, o ideal da
cultura, que é uma das marcas que constitui o superego individual, igualmente se afeta pelas
condições social e cultural, o que traz implicações das mais diversas para o modo como o
professor vive e trabalha.
Professora Luana
indivíduo perde o amor, perde também a proteção contra os perigos da vida. Renuncia ao mais
absoluto princípio do prazer, na perspectiva da ontogênese, a fusão com a mãe, pela entrada de
um terceiro, a autoridade do pai33, que é internalizada constituindo o Supereu.
Ao internalizar a figura dos pais, internalizam-se também, do ponto de vista cultural e
social, ideais destes pais. As figuras parentais expressam a cultura determinada historicamente.
“De modo que o Super-eu da criança é construído não segundo o modelo dos pais, mas do
Super-eu dos pais; preenche-se com o mesmo conteúdo; torna-se veículo da tradição, de todos
os constantes valores que assim se propagaram de geração a geração.” (FREUD, 2010n, p. 205).
É o que percebemos nas entrevistas com os professores que trazem um pouco os ideais
geracionais e culturais, e como eles se estabelecem no próprio ideal do professor naquilo que
permanece como experiência geracional, como fio da humanidade e naquilo que é superado ou
que marca um conflito do indivíduo com seus próprios ideais.
Perguntamos sobre a escolha profissional do professor e de como isso se deu a partir
dos ideais familiares. O professor João, em suas respostas, indicou um ideal familiar
relacionado à estabilidade, à importância de ter estudo e, a partir disso, um emprego com bons
salários. Alguns de seus familiares trabalharam em empregos públicos como bancos públicos,
o que foi um referencial para o professor João.
Na época eu ainda era muito jovem e pensava a partir um pouco da pressão que você
recebe em casa, familiares, a sociedade. Você tem que fazer um curso mais tradicional,
que te dê uma perspectiva de bons salários (...). Olha eu não vou dizer que eles me
desincentivaram, na verdade o incentivo familiar sempre foi um pouco genérico no
sentido de que você tem que estudar. Você não pode ficar sem estudar. Precisa fazer o
ensino médio, precisa fazer uma faculdade, acho que meus pais tinham lá aqueles
sonhos, tem que fazer de repente um Direito, uma Medicina. Não sei, eles não deixaram
isso muito claro, mas a cobrança no meio familiar até de parentes próximos que tinham
influência na minha criação, da minha e dos meus irmãos é que o que não dá é pra ficar
sem estudar. Eu venho de uma família que os meus pais... meu pai hoje tem quase 72
anos, minha mãe tem 60 anos. Eles têm ensino médio completo, eles fizeram a escola
no tempo regular. Que no Brasil de 40 anos atrás é algo diferente. Meus bisavós já
sabiam ler e escrever, sempre teve esta pressão na família que você tem que estudar.
Como um mecanismo de manutenção econômica, social, mais neste sentido mesmo.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
O professor João acrescenta que, em sua trajetória, passou do curso de Economia, que
não concluiu, para o curso de História. E que seus pais “ficaram com o pé atrás”, visto ser uma
profissão que não teria bons rendimentos, ao contrário de profissões como Direito e Medicina.
33
É importante frisar que há uma leitura destas relações edípicas nas quais não necessariamente as figuras biológicas da
mãe e pai vão determinar esse desenvolvimento. O que seria mais importante destacar são determinadas funções
maternas e paternas (que inclusive são feitas pela mãe no estabelecimento de limites nesta fusão mãe-bebê), e são
significativas nas formas de ligação afetiva, de cuidado, amparo, limites e investimento libidinal no bebê.
63
Havia aquela expectativa difusa de que várias famílias brasileiras têm. “Ah é bom fazer
Direito, é bom fazer Medicina”. Eu tenho primos que são médicos. Primos próximos,
tem parentes próximos que são da área. Mas eu quando decidi mudar da Economia para
a História eu acho que eles ficaram um pouco de pé atrás, mas ao mesmo tempo eu tenho
primas que são professoras. Tem primas lá em Salvador que são professoras. Uma delas
hoje já é inclusive professora na Federal da Bahia. Então eu acho que eles ficaram um
pouco apreensivos. Porque sempre se fala da dificuldade que é trabalhar em sala de aula,
os problemas, o salário baixo. Na verdade, não me desincentivaram, foi algo: “ah tá tudo
bem, você vai mudar de faculdade, mas tem que terminar esta outra, tem que estudar,
não pode parar por aí”. Era mais nesse sentido mesmo, quanto a isso eles foram bem
tolerantes, bem abertos. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
Observa-se como o ideal geracional em torno do magistério está carregado por uma
imagem negativa. No caso do professor João, parece que outro ideal familiar se sobrepôs, que
foram as estabilidades do estudo e do emprego que não fizeram o professor enfrentar intensa
oposição familiar à sua escolha pelo magistério. Quando perguntado se escolheria ser
novamente professor se estivesse iniciando seus estudos, reafirma o ideal de estabilidade,
inclusive com preocupações relacionadas às crises econômicas e que marcam sua trajetória
profissional com estabilidade, na medida que é professor efetivo da prefeitura e do estado.
Você vai achar engraçado, mas se fosse para escolher eu escolheria de novo fazer
faculdade para ser professor. Bom hoje as coisas estão mudando um pouco. Mas ainda
é uma área que eu gosto de trabalhar. Gosto da sala de aula, tem muita dificuldade,
claro não é fácil você lidar com pré-adolescentes e adolescentes. Eles trazem muitas
questões, seja de casa ou seja da faixa etária. Às vezes são de meios familiares
desestruturados ou às vezes não, são famílias até estruturadas. Mas por serem crianças
e adolescentes em formação eles trazem questões que dão trabalho, que você tem que
ficar mediando. Mas eu escolheria, acho que a questão da estabilidade é algo que me
prende bastante. A gente está voltando a viver uma crise econômica que parecia algo
do passado. Nós que temos 35, 40, 45 anos você vai se lembrar disso lá no começo da
infância... e no geral você ter um emprego público num país como o Brasil acaba
sendo um pouco uma tábua de salvação. Mas acho que no fundo no fundo eu gosto de
fazer isso que eu faço sabe. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
O professor João ironiza (“você vai achar engraçado”) a própria condição pela qual o
magistério é visto tanto do ponto de vista familiar (“o pé atrás”) quanto da possibilidade deste
trabalho lhe produzir gratificação material e psíquica (“no fundo no fundo” ele gosta do
trabalho). No entanto, é importante observar que o que o move pessoalmente e enquanto
transmissão geracional é um medo das necessidades produzidas pelas indeterminações da
economia do país. O que nos faz refletir sobre a perspectiva mais geral das crises econômicas
e políticas e do quanto elas influenciam a intensidade do mal-estar dos indivíduos em um país
com a particularidade histórica do Brasil.
O professor Pedro traz como experiência familiar e ideal geracional uma tia que era
professora, de quem teve a oportunidade de acompanhar a trajetória, influenciando-o a buscar
este caminho. Além disso, discute uma certa possibilidade de produzir relações na educação às
64
quais seu emprego anterior no mundo corporativo não possibilitava. Diz que teve um relativo
apoio em sua decisão no que diz respeito à sua escolha de caminho profissional.
Mas eu acho o que me influenciou muito foi a questão familiar. Eu tenho uma tia que é
professora, e eu acompanhava a rotina dela de perto. E minhas experiências
profissionais antes da educação eram todas voltadas na área financeira. Eu trabalhava
em banco, depois fui trabalhar na extinta FEPASA34, na área de orçamento, mas eu
sempre gostei muito de divulgar conhecimento, de passar informações, de trocar ideias,
e um ambiente corporativo isso é pelo menos na minha experiência inexistente. Então
eu vi na educação o ambiente propício para o meu perfil de pessoa. Acho que foi o meu
perfil mesmo que me levou para educação. (...) Então eu não tive um incentivo para ir
para educação. Mas eu também não tive críticas, quando eu decidi fazer faculdade de
Letras, nada do tipo “ah ganha pouco”, “é uma profissão desvalorizada”, nem nada do
tipo. Minha família me apoiou, falou que era uma profissão muito bonita. E todas essas
questões, então indiretamente eu posso dizer que tive o apoio deles sim quando eu tomei
minha decisão de ser professor. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
Se eu faria tudo de novo? É uma questão complicada, eu deveria pensar se fosse neste
contexto agora dessa sociedade que a gente vive, eu acho que não. Neste contexto agora
não. Talvez eu fosse para uma área um pouco mais teórica da educação. Mas por outro
lado eu fico pensando assim, conversei outro dia isso, chegaram os professores novos
na escola, 25, 26 anos, estão começando agora e me perguntaram a mesma coisa e eu
disse para eles assim: que se todo o professor que está muito tempo no meu caso
desincentivar quem está chegando agora, o que já está escasso vai piorar, já está caindo
muito o número de alunos que procuram a licenciatura. Então eu acho que é uma
responsabilidade muito grande eu falar para alguém que não faria de novo. Mesmo para
você eu acho que se eu falar para você que... eu não sei se sua pergunta implica uma
espécie de arrependimento ou uma constatação de realização profissional, eu acho que
profissionalmente me sinto mais realizado, se eu pegasse sua pergunta e fizesse assim,
voltasse no tempo, eu faria de novo, escolheria de novo esta profissão até pela minha
história de vida, pelo que você deixa para trás, mas hoje neste contexto para um jovem
eu falaria assim: pensa bem, eu não iria desestimular, mas diria pensa bem, falaria dos
prós e contras que existem na nossa profissão. Mas para resumir a pergunta que você
fez eu acho que sim. Eu faria novamente sim, eu acho que existe um crescimento
profissional que acaba refletindo no nosso crescimento pessoal. Então você saber que
você ajudou um pouco certas pessoas a se formarem, você plantou sementes, você
consegue ser um pouco terrorista pedagogicamente falando, porque você consegue
suplantar algumas ideologias que são impostas ali, eu acho que sim, eu acho que eu faria
de novo sim. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
A Professora Ana fala de um ideal familiar relacionado à sua mãe, que era professora e,
por isso, avaliava que facilitaria seu percurso de formação profissional e o próprio percurso
34
Empresa estatal paulista de transporte ferroviário de cargas e passageiros.
65
Na realidade eu queria fazer Geografia e minha mãe é professora, eu acho que foi
também que a gente acaba vendo e acha que vai conhecendo o caminho e às vezes é
mais fácil quando você tem um pouco mais de conhecimento. Porque nos anos 2000
era mais difícil ter informação do que hoje, então eu acho que fui porque eu queria
estudar Geografia e eu sabia mais ou menos como era começar na carreira porque
minha mãe é professora de Geografia também. Eu acho que foram essas duas coisas
principais e porque é uma... eu acho também, na época eu não pensei nisso, mas hoje
eu acho que tem uma demanda tão grande por professores que acabam sendo mais
fáceis que outras profissões. Tem muita escola, precisa muito, principalmente
professor de Geografia, porque não tem muito professor de Geografia. (Professora
Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Perguntada se escolheria novamente esta profissão, a professora Ana foi direta dizendo
que não escolheria e que também as condições de trabalho, principalmente a quantidade de
estudantes com os quais precisa trabalhar, são fatores de intensidade no desgaste do professor.
Acho que não, acho que não porque é bem complicado, toda a situação, e eu acho que não
sou... eu tenho um problema de lidar com a sala de aula. E quando foge a meu controle eu
fico bem irritada. Se eu soubesse como era, eu possivelmente não teria sido professora.
Então se eu fosse escolher hoje, então eu acho que procuraria outra coisa. Ou me tornaria
professora só se não tivesse outra possibilidade. (...) Sim, tudo é mais complicado, é um
trabalho desgastante eu acho... e é repetitivo, é muito repetitivo. Eu tenho 425 alunos e
você vai fazendo sempre a mesma coisa toda hora, toda hora, passando as mesmas coisas
todos os dias. É bem complicado. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Então quando eu estava no cursinho e falei para meu pai que queria prestar história, ele
ficou um pouco desgostoso. Quando meu pai saiu do curso de história ele saiu num
momento que a educação já estava começando a declinar em diversos fatores. Ele queria
que prestasse concurso para eu me tornar um oficial de justiça ou um técnico do tribunal
de justiça ou coisa do tipo, e ele estava estudando para prestar concurso para auditor
fiscal. A gente teve até uma discussão feia por causa disso. Eu tentei Direito dois anos,
fiquei fazendo cursinho. E no último ano eu não passei em Direito na PUC por bem
pouco pelo que me explicaram. Mas para História que seria minha outra opção, para
66
outras áreas como Letras e assim por diante daria. Eu vou fazer aquilo que eu quero
fazer, aquilo que eu me identifico, eu sempre fui estimulado desde que eu era pequeno
a ler, por exemplo, eu lembro dos livros que ele tinha em casa, do Clóvis Moura,
“Dialética radical do Brasil negro”. Então ele era uma pessoa que lia bastante. Falava
muito do Milton Santos também. Diversos outros intelectuais, ativistas políticos. Ele
vivenciou isso, então por parte dele, por parte de um tio. Um irmão dele, eu tive este
incentivo, então para mim foi esquisito quando eu falei que ia prestar História ele fica
meio desgostoso com isso. Ele disse olha a maioria que acabam prestando História
acabam caindo na sala de aula. E você vai pegar uma fase muito provavelmente bastante
difícil. E em termos de formação da família dele, o tio-avô, o vô deles, e um tio mais
novo foram os primeiros a ingressar no ensino superior. Então ele fez USP, História, um
tio-avô. Meu tio G. ele fez Direito, e meu tio fez Filosofia. E faleceu já tem uns 20 anos.
Então foi este estímulo que eu tive não diretamente para eu ser professor, mas eu já tinha
as ferramentas ali. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
O professor Luiz reivindica uma experiência paterna primária com o “pai professor”, no
sentido de que foi através desta experiência que acessou autores que pensavam a sua identidade,
entre elas, a racial. Quando o pai abandona a educação e se opõe, frustra-se com seu caminho
profissional. O entrevistado Luiz reivindica justamente a identificação primária do pai com a
educação. Quando perguntado sobre se estivesse começando seus estudos se iria por este
caminho profissional novamente, responde que sim, mas que não “fecharia o cerco” somente
no ensino básico, que buscaria outras “ramificações” na educação, como o ensino superior.
Pensamos se a expressão “fechar o cerco” não nos remete, aqui, pelas falas ambivalentes
dos professores em relação aos seus trabalhos, a própria forma histórica como a educação básica
está marcada. Ou, para ser mais preciso, mais do que “fechar o cerco” no sentido de não ficar
somente em uma opção profissional, pensamos se esta expressão não seria a própria forma de
realização do trabalho docente. Como se a marca desta profissão fechasse de alguma forma as
possibilidades de desenvolvimento psíquico e autônomo dos professores. Estar na escola ou na
educação básica, na perspectiva social em que ela se apresenta, é estar trancado, cercado, limitado.
A professora Luana formou-se em Química e trabalhou na indústria até que uma amiga
a indicou a possibilidade de ser professora. Apesar de gostar da profissão, ressente-se das
condições de trabalho e salário.
Foi uma coisa bem aleatória mesmo, eu não tive formação. Eu fiz química bacharel, fui
para trabalhar no laboratório e indústria. Não tinha intuito de ser professora, mas aí
minha amiga tinha acabado de se formar e ela falou olha faz a inscrição para 2014. E aí
fui e sabe assim eu gosto de ser professora. Sai da indústria, igual eu te falei eu pretendo
67
ficar na educação, mas a gente sofre com esta precariedade do Estado. Eu pensei até em
ir para prefeitura. Tenho uns colegas na prefeitura de São Paulo, lá faz carreira, a gente
no Estado não tem carreira. Por mais que eu passe no concurso, vai melhorar um pouco
para mim, mas esse negócio da atribuição vai ser melhor, mas a estabilidade mesma a
gente não tem muito... o salário é muito baixo por tudo que a gente faz, o salário do
Estado é muito ruim, mas por eu ter me identificado muito em ser professora eu gosto e
pensei até em fazer o concurso da prefeitura, pelo Estado não tem plano de carreira,
infelizmente. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
Os ideais familiares de Luana foram se constituindo com base em ter uma profissão,
visto que sua mãe, dona de casa, não teve. Seu pai trabalhou na roça e cursou o ensino
fundamental como exigência para se tornar metalúrgico. Ele era, segundo a professora Luana,
bastante “antigo” nos costumes, e não quis, por isso, que sua mãe trabalhasse – tal como sua
avó, que igualmente foi dona de casa.
Assim, para ela e a irmã, terem uma formação no ensino superior e uma profissão
representa a superação da condição material e dos ideais familiares, constituindo seus próprios
ideais ao superar uma certa repetição geracional do feminino. Para Luana e sua irmã, é um salto
na condição do ideal do feminino da família ter uma profissão, uma independência financeira, o
que produz um paradoxo a partir da sequência da argumentação, na qual Luana aborda que gosta
de ser professora, mas não gostaria que seu filho fosse, por causa da precariedade das condições
de trabalho e salário.
Há uma ambígua projeção narcísica deste ideal do magistério para o filho, o que nos faz
pensar que as condições objetivas do trabalho interferem diretamente na dimensão subjetiva da
professora Luana. Certamente é uma questão imaginar os efeitos que produzirá no filho ver a
mãe carregada de ambivalência com relação à profissão, a mesma profissão que a fez superar
uma repetição do ideal feminino geracional. Perguntada se teve incentivos familiares para ser
professora, ela diz:
Não, mas ele sente orgulho por eu ser professora. Minha avó de idade ela acha muito
bonito que eu sou professora. Minha mãe não tem profissão, então para ela é muito
importante que eu tenha. Que ela sempre quis, que ela se casou e logo engravidou de mim,
meu pai é antigo assim vamos dizer, não quis que ela trabalhasse mais, então minha mãe
não tem profissão. Então para eles é importante. Minha irmã também tem profissão, ela é
enfermeira. Por a gente ter estas duas profissões para minha família é importante. (...) Eu
gosto de ser professora. Mas é bem difícil, é bem complicado para nós porque eu ia até
tentar a carreira na prefeitura para ver se melhora um pouco mais. Mas eu não quero que
meu filho seja professor. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
O professor Fernando fala do conflito do ideal familiar com o seu percurso de formação
profissional. Este conflito de determinados “mundos” representados pela periferia de São Paulo
e do ideal do Eu de seu pai, que não queria que ele estudasse, tornou sua formação universitária
cheia de intensas contradições e ambivalências. Perguntado se teve incentivos familiares para
ser professor, responde:
Não. Nunca na vida. A minha mãe é analfabeta, ela é costureira. A gente nasceu na
periferia de São Paulo, eu nasci na periferia de São Paulo. Minha mãe é baiana. Meu pai
nasceu também na periferia, minha mãe só assina o nome dela só. Não lê, não escreve,
em casa não tinha nem revista. É complicado isso porque a dificuldade que eu tive, isso
eu fui perceber depois bem mais velho, a grande dificuldade que eu tinha em entender,
me conectar com livros não vinha nem por conta do problema que eu descobri de TDHA
que eu tenho. Sou uma pessoa inquieta. Mas também pela falta disso, de livros, este tipo
de material em casa. Então meu pai ele lia, ele escrevia. Meu pai era o grande
incentivador, ele queria que eu fosse trabalhar com ele, fosse jogar bola. Meu pai era
boleiro de boteco, tiozinho de vida de malandro mesmo. Então assim eu ir para uma
universidade, uma faculdade, para minha mãe é legal, porra que bacana, ninguém na
família foi. Para o meu pai era uma grande vergonha. “Oh o que se tá fazendo, estudando
para ser o que?” “Ninguém na família que estudou virou alguma coisa”. Então nunca
tive este incentivo. Quando eu entrei na faculdade era um universo completamente
diferente e muito complicado, muito difícil. Era um mundo acadêmico, mundo das
ideias onde não contempla a história oral. Então assim alguma coisa que eu tivesse
aprendido tinha que ser em sala de aula. E depois que eu tinha que descer para pegar os
textos e ler eu me fodia. Eu precisava de uma série de outras informações que me
faltavam. Eu lembro de companheiros nossos que entraram na faculdade bem mais
novos do que eu com uma bagagem bem maior que a que eu tinha. Porque eram
bagagens que vieram desde a sua adolescência, da família. (Professor Fernando,
categoria O, 12 anos de magistério).
Perguntado se escolheria ser professor se estivesse iniciando os estudos, diz que sim,
entretanto, não voltaria à universidade para continuar outros estudos. O que marca uma superação
do ideal paterno35 e uma permanência ao mesmo ideal ao constituir um caminho de formação
35
A afirmação do pai do professor Fernando ao não querer que ele estude visto que “ninguém na família que
estudou virou alguma coisa” necessitaria de uma leitura crítica e social, pois acreditamos que não se trata aqui de
uma afirmação por alguma “ignorância”, mas nos parece de um realismo para com as marcas da experiência social
69
universitária, mas que está conectada à sua experiência primária, inconsciente, geográfica, social e
afetiva com o bairro em que mora, cresceu e se sente reconhecido para realizar suas atividades.
Escolheria ser professor porque acho que não é uma escolha. Depois que chegou um
determinado momento pareceu um chamado, não tem outra coisa que eu consiga pensar
em fazer que contemple tanto a minha existência e a minha existência aqui na favela. O
que eu seria, engenheiro? Pra contemplar melhor os caras? Eu por exemplo não voltei para
a universidade mais, justamente por conta disso. Acho que está completa minha
caminhada, o que eu tinha que aprender. O que os defuntos europeus tinham para ensinar
acho que já foi suficiente. Como também não tenho maiores vislumbres de estar dentro da
universidade que nem seu caso com o mestrado, acho importante para caralho, o T. acabou
de fazer o dele, também sobre educação. Eu acho muito louco, mas cada um trabalha na
sua... para mim eu perderia tempo. Não teria muito o que fazer. Então eu faria de novo
sim, só que não sei se de História, não sei se eu não faria na área da educação, na
Pedagogia. Não sei, eu faria na parte de Ciências Sociais, Sociologia. Mas História eu
acredito que eu não faria não. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
A professora Vera fala de uma certa frustração que imagina ser de todos os professores.
Devido as circunstâncias de ser mãe muito cedo, acreditou que precisava ir pelo caminho que
avaliava ser mais fácil para ter um emprego.
Vai ser difícil... isso é uma mágoa que eu tenho tá... Eu desconfio ainda não tenho
certeza porque estou me analisando: por falta de opção, infelizmente. Porque eu fui
mãe muito jovem, eu estou com 52, mas eu fui mãe de um menino, de um moço, acho
que da tua idade. Não tem a sua idade, mas meu filho tem 36 anos. E como eu fui mãe
muito jovem eu deparei com um sistema de vivência humana... Eu falei eu preciso
fazer alguma coisa na minha vida, alguma coisa que me sustente. Na hora você não
pensa. Eu acho que todos os professores são frustrados. Eu acho que quem é professor
teve uma frustração na infância ou dentro da escola onde estudava. Ou por falta de
opção foi escolher porque foi o caminho mais fácil, se ganhava até bolsa de estudo.
(Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
e geracional do estudo, em especial formal, nas periferias de São Paulo, tanto do ponto de vista da possibilidade
de ascensão econômica como da rede de significados do espaço acadêmico que podem estar dissociados de
determinadas realidades sociais, como a própria experiência da “história oral” como nos traz o professor Fernando
em seu tempo de formação universitária. Neste sentido um dos marcadores do ideal paterno é um ideal do Eu de
classe social estabelecido pela diferença de códigos sociais relacionados ao ensino superior e ao conhecimento
formal, que nos parece, marca profundamente a própria forma de trabalhar com a educação do professor Fernando.
Por outro lado, os próprios dados relacionados a 2 milhões e oitocentos mil pessoas com diploma superior que
estão cadastrados no Bolsa Família nos apontam que a fala do pai do professor Fernando também revela uma
crítica sobre a crise social que atinge estes segmentos e tornam questionável a tese liberal de que basta estudar e
se esforçar para mudar de vida. Em um artigo de Nildo Ouriques em 4 de junho de 2023 ele diz: “A informação é
oficial: segundo o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, no cadastro do Programa
Bolsa Família estão inscritos mais de 2 milhões e oitocentos mil brasileiros com diploma de ensino superior,
muitos deles com pós-graduação, a despeito da ideologia liberal, que afirmou a relação positiva entre o nível de
renda e a formação educacional.” Disponível em: https://disparada.com.br/o-diploma-no-bolsa-familia/ . Acesso
em 13 de julho de 2023.
70
professor, do ponto de vista mais geral, só pode estar relacionado a uma “frustração na infância
ou dentro da escola onde estudava”, a professora Vera remete a experiência presente do ser
professor há uma dimensão psíquica mais arcaica, da infância, traumática dos professores.
Mesmo que seja uma experiência estritamente pessoal ou não, esta fala trata de um modo de
explicação social do mal-estar docente que, pelos relatos comuns dos professores, carrega a
própria dimensão do discurso social de “aversão ao magistério” que encontra eco nas variáveis
econômicas, culturais, sociais e psíquicas como estamos apontando no conjunto da dissertação.
A professora Vera comenta que o pai era engenheiro da GM e queria que ela também
fosse. Ela chegou a fazer engenharia. Porém, pelas dificuldades do curso, nas disciplinas de
cálculo, acabou abandonando. Resolveu, influenciada pelo pai, a fazer Física e então descobriu
a Filosofia que era de fato o que gostava.
Aí comecei a fazer Física para agradar o pai. Para agradar meu pai, fiz porque tinha uma
grade de leitura muito grande. Foi ali que eu descobri a Filosofia porque quando você
vai estudar Física, tanto o bacharel quanto a licenciatura você vai ler Aristóteles. Você
vai ler os caras, os Filósofos. Mas é isso que eu gosto, eu tô fazendo tudo errado. Mas
foi bom, pai obrigado por você ter dado esta sugestão para eu fazer Física porque eu
descobri realmente o que eu gosto. Eu gosto de Filosofia. Só que eu não queria ser
professora. Não, eu fui para fazer o bacharel em Filosofia, mas você vai fazer o bacharel
em Filosofia, mas você não sabe o que você quer da vida.... Você não vai ser ninguém,
o que você vai fazer como Filósofa neste planeta? Não sei, nem se for para ir embora do
Brasil, mas eu faço alguma coisa. Mas depois eu conheci o professor no M. que fez a
minha cabeça para eu fazer licenciatura. Mas eu fui mesmo para estudar só o
bacharelado para depois saber o que eu ia resolver, o que ia fazer. Mas é isso, eu fiz
Física por causa do meu pai que era engenheiro físico. E depois eu já não consegui entrar
na GM para trabalhar. Porque eu não fiz engenharia, mas ele tentou... Hoje talvez se eu
tivesse feito engenharia propriamente dita hoje eu estaria na GM trabalhando ganhando
bem. Não sei se foi certo ou errado, a gente não sabe se foi certo ou errado, eu tenho um
pouco de angústia sobre isso também. Mas eu como bacharel em Física não consegui
me colocar dentro da GM. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
O meu fato de não ser professora universitária é que eu não fiz mestrado nem
doutorado. Eu comecei, mas é como eu estou te falando, todo professor que começa
a fazer o mestrado e o doutorado ele tem que largar a escola. Porque não dá para unir
as duas coisas. Tem gente que une eu não consigo porque a minha dedicação é a
escola. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
Como a cultura obedece a um impulso erótico interno que a faz unir os homens em
uma massa intimamente ligada, só pode alcançar esse fim mediante um fortalecimento
cada vez maior do sentimento de culpa. O que teve início com o pai se completa na
massa. Se a cultura é o curso de desenvolvimento necessário da família à humanidade,
então está inextricavelmente ligado a ela – como consequência do inato conflito
ambivalente, da eterna disputa entre o amor e busca da morte – o acréscimo do
sentimento de culpa, talvez a ponto que o indivíduo ache difícil tolerar.
(...) toda satisfação instintual contrariada tem ou pode ter por consequência uma
elevação do sentimento de culpa. (...) Isso parece possível apenas por um rodeio: que
o impedimento da satisfação erótica desperte um quê de pendor agressivo contra a
pessoa que atrapalha a satisfação, e que essa agressividade mesma tem de ser
suprimida. Mas então é somente a agressividade que se transforma em sentimento de
culpa, ao ser suprimida e transmitida para o Super-eu. (FREUD, 2010a, p. 112).
terapêutico tenta diminuir as recriminações individuais, coisa parecida deveria acontecer com
o Supereu da cultura – no que pese vermos pela análise dos dados das entrevistas com os
professores justamente o contrário.
Freud (2010a) entende que o fim da propriedade privada pode produzir uma real
mudança entre as pessoas, desde que não se pense que esta mudança vai suprimir dimensões da
“evolução cultural” inerentes ao mal-estar civilizatório. Então, podemos avaliar que Freud
confia que é necessário produzir uma cultura que reconheça este mal-estar, que igualmente
possa diminuir a intensidade do sofrimento dos indivíduos. Termina O mal-estar na civilização
com uma questão em aberto sobre se a evolução cultural irá controlar as perturbações trazidas
à vida comum pelos instintos ou favorecerá justamente aspectos regressivos de destruição.
A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a
sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida comum pelos
instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a época
de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos
atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a
elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte,
o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra
das duas “potências celestiais”, o eterno Eros, empreenda um esforço para afirma-se
na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o
desenlace? (FREUD, 2010a, p. 121-2).
Vemos, aqui, que Freud e Adorno se aproximam bastante, pois, para Adorno, há um
processo de falência da cultura na qual o sujeito fica dependente de autoridades externas a ele.
É preciso, para Adorno, reafirmar a autonomia do sujeito, que é um modo do esforço de Eros
em afirmar-se contra o instinto de morte, a barbárie, relacionada à sua capacidade de reflexão
em torno das contradições produzidas pela cultura e pelas condições objetivas. Com isso,
superar a consciência coisificada, expressão radical do instinto de morte, da barbárie, diante da
qual as questões que se apresentam como fenômenos sociais não sejam vistas como imutáveis,
mas justamente como possibilidades do vir-a-ser, de Eros.
autonomia e formação daquilo que se refere à disputa de uma consciência coisificada e uma
aberta ao mal-estar e ao vir-a-ser.
75
3. O MAL-ESTAR DOCENTE
Sigmund Freud
Theodor Adorno
As instâncias que lutam entre si, Eros e Thanatos, apresentam-se diante da singularidade
do analista e de seus impulsos inconscientes, o que torna o trabalho de análise uma tarefa da
ordem do impossível diante de tantas possibilidades, as quais, inclusive como traz Freud, estão
relacionados também a herança arcaica dos indivíduos (filogênese) e não somente em suas
próprias experiências infantis.
(...) a experiência analítica nos impôs a convicção de que até mesmo determinados
conteúdos psíquicos, como o simbolismo, não têm outras fontes senão a transmissão
hereditária, e várias investigações etnopsicológicas tornam plausível supor que há, na
herança arcaica, ainda outros precipitados igualmente específicos deixados pela antiga
evolução humana. (FREUD, 2018, p. 309).
De modo que deveríamos talvez nos habituar à ideia de que uma conciliação das
exigências do instinto sexual com os reclamos da cultura não é possível, de que não
podem ser evitados a renúncia e o sofrimento, assim como, num futuro remoto, o
período de extinção da espécie humana, em consequência de sua evolução cultural. Este
sombrio prognóstico baseia-se, é verdade, apenas na conjectura de que a insatisfação
cultural é a consequência necessária de certas peculiaridades que o instinto sexual
adquiriu sob a pressão da cultura. Mas a própria incapacidade de o instinto sexual
produzir plena satisfação, tão logo se submete às primeiras exigências da cultura, torna-
se fonte das mais grandiosas realizações culturais, obtidas através da sublimação cada
vez maior de seus componentes instintuais. Pois que motivo teriam os homens para dar
outras aplicações às energias instintuais sexuais, se delas resultasse, por qualquer
distribuição, plena satisfação do prazer? Eles nunca abandonariam tal prazer e não
realizariam mais nenhum progresso. Parece, então, que a diferença inconciliável entre
as reivindicações dos dois instintos – o sexual e o egoísta – torna os homens capazes de
realizações cada vez mais altas, é certo que sob uma constante ameaça, à qual atualmente
sucumbem os mais fracos, na forma da neurose. (FREUD, 2013c, p. 363).
É interessante este trecho porque Freud já esboça que o progresso pode levar à extinção
humana, mesmo antes da experiência da primeira grande guerra (1914-1918), que trouxe um
nível de destrutividade nunca visto e, também, da consolidação, como categoria, do arcabouço
freudiano do instinto de morte, o qual só aparecerá de modo mais claro no texto Além do
Princípio do Prazer. Isso, aliás, a psicanalista Sabrina Spielrein já havia delineado de alguma
77
forma em 1912, mesmo ano do trecho supracitado, demonstrando que já pairava no horizonte
do circuito da psicanálise os elementos destrutivos no campo da sexualidade humana.36
Também pode-se ver, no trecho citado, como a determinação da evolução cultural,
quando o instinto renuncia ao modo absoluto de sua satisfação, traz grandiosas possibilidades
de obras produzidas através da sublimação, do deslocamento dos instintos sexuais para outros
fins, em especial a cultura. É na diferença irreconciliável, neste momento da obra de Freud,
entre “o sexual” e o “egoísta”, que estão justamente as possibilidades de destruição ou de
criação. É a marca da teoria dualista de Freud até o fim de sua vida.
É sobre essas bases que Freud está trabalhando no texto Análise Terminável e
Interminável: das (im)possibilidades de cura, de absoluta normalidade psíquica, de técnicas
fechadas como manuais ou de controles de situações que atravessam o imponderável do
inconsciente do analista e do paciente. É sobre esses fundamentos do impossível da atividade
que ele compara o trabalho do analista como profissão aos atos de educar e governar.
36
Na nota 31 da parte VI de Além do princípio do prazer, Freud diz: “Num trabalho substancial e pleno de ideias, embora
não inteiramente claro para mim, Sabrina Spielrein antecipou boa parte dessa especulação. Ela caracteriza o componente
sádico do instinto sexual como “destrutivo”. “A destruição como causa do vir-a-ser.” (FREUD, 2010d, p. 227, nota 31).
78
Acho que não, acho que não porque é bem complicado, toda a situação e eu acho que
não sou... eu tenho um problema de lidar com a sala de aula. E quando foge a meu
controle eu fico bem irritada. Se eu soubesse como era, eu possivelmente não teria
sido professora. Então se eu fosse escolher hoje eu acho que procuraria outra coisa.
Ou me tornaria professora só se não tivesse outra possibilidade. (Professora Ana,
categoria A, 15 anos de magistério).
O centro de seu mal-estar se dá quando algo “foge ao seu controle”. É, sem dúvida, uma
marca daquilo que Freud nos traz como as profissões impossíveis, a impossibilidade do controle
absoluto do trabalho docente. A professora Ana prossegue:
É muito estressante, toda hora você tem que falar, então isso vai te irritando, então eu não
consigo não ligar. Isso me faz mal. Nas duas redes, não é só no Estado, as duas me irritam.
Eu não seria professora se eu fosse escolher hoje em nenhuma das duas redes. É uma
relação complicada, tem que estar preparado para ser professor. Eu acho que o jeito que
comecei muito novinha não tinha preparo. Hoje até falo para o meu esposo a melhor parte
de dar aula é hora da saída. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Aqui ela marca que não se trata somente da rede estadual: na rede municipal, em que as
condições de salário e trabalho são melhores, relatadas pela professora em outro trecho da
entrevista, também lhe produz intenso mal-estar que, combinado às condições de trabalho, o
tornam intolerável e a adoecem.
Essa foi uma das preocupações de Freud em seus breves textos sobre educação. Diante
de tarefas tão árduas, que envolvem tantas variáveis, o psicanalista chegou a propor que uma
parte da formação do professor fosse fazer análise, como medida profilática, para sustentar os
mal-estares produzidos na escola.
Por melhor que seja a formação do professor, no que pese ela ser fundamental, o conjunto
de experiências na sala de aula não estarão, pela impossibilidade que isso exista, de modo absoluto
em nenhum manual educacional. E é justamente através dessas experiências que se produz um saber
muito singular do professor, que nenhum curso universitário superior pode ensinar de fato.
79
(...) a faculdade você tem uma ideia de escola e quando você chega na escola é outra
coisa. Principalmente nessa questão pedagógica, da didática em si. Nenhuma
faculdade prepara bem. Você vai aprendendo ali no dia a dia. Porque é totalmente
diferente que... sei lá, estes teóricos falam muitas coisas que na prática é complicado:
você tem que lidar com 40 alunos, uma parte dos alunos não sabe ler, outra parte não...
você tem alunos de inclusão. Na faculdade não falaram isso. (...) Quando eu fico muito
nervosa minha pressão cai. E eu comecei a passar mal em 2013 do nada assim. O ano
passado eu nunca mais tive queda de pressão. O ano passado eu trabalhei o ano inteiro
em casa [devido a pandemia], basicamente. Este ano eu também não tive, mas acho
que foi por causa do tratamento que eu estou fazendo. E eu acho que era isso. Era o
estresse, a ansiedade de ter que lidar... eu sou uma pessoa que fico trazendo muita
coisa para casa. Não para fazer o trabalho em casa, mas eu fico pensando nos
problemas, e isso me faz mal assim. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de
magistério).
Elas nos mostram o Eu dividido, decomposto em dois pedaços, um dos quais se enfurece
com o outro. Esse outro pedaço é aquele transformado pela introjeção, e que contém o
objeto perdido. Tampouco o pedaço que se conduz tão cruelmente nos é desconhecido.
Ele contém a consciência moral, uma instância crítica do Eu que também em épocas
normais se contrapôs criticamente a este, mas nunca de maneira tão inexorável e tão
injusta. Já em ocasiões anteriores (“Narcisismo”, “Luto” e “Melancolia”) fomos levados
à suposição de que em nosso Eu se desenvolve uma instância que pode se separar do
resto do Eu e entrar em conflito com ele. Nós a chamamos de “ideal do Eu” e lhe
atribuímos funções como auto-observação, consciência moral, censura do sonho e
principal influência na repressão. Dissemos que é a herdeira do narcisismo original, em
que o Eu infantil bastava em si mesmo. (FREUD, 2011a, p. 67-8).
Freud traz sua elaboração incipiente – Psicologia das massas e análise do Eu, de 1921
– sobre o “Supereu” que ficará mais explicitada em 1923, em Eu e o Id. O psicanalista leva em
consideração que pode se constituir um ideal do Eu bastante ligado ao narcisismo infantil ao
qual se “bastava a si mesmo”. Podemos supor, do ponto de vista metapsicológico, que a
necessidade de controle da professora estaria ligada a um ideal do Eu bastante indiferenciado a
um narcisismo infantil que se bastaria a si mesmo.
37
Na maneira e na importância que Freud estabelece os processos de identificações: “a identificação é a mais
primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma
ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer
nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais. Quanto mais
significativo esse algo em comum, mais bem-sucedida deverá ser essa identificação parcial, correspondendo assim
ao início de uma nova ligação. (FREUD, 2011a. p.65).
80
No entanto, a professora Ana nos revela que, no processo de volta às aulas presenciais
durante a pandemia, teve a oportunidade de trabalhar com turmas com menor número de estudantes
e isso lhe permitiu lidar com o mal-estar do trabalho de forma diferente. Isto demonstra que, mesmo
supondo certas disposições individuais, narcísicas, uma certa realidade social precarizada e
obstaculizada é um elemento capaz de produzir a intensificação dessas disposições.
Eu acho que nessa pandemia, até dia 30 de outubro a gente estava com 50% dos
alunos. E a gente teve uma experiência diferente. Nunca tive esta experiência de ter
50% dos alunos. Eu percebi que é muito mais fácil. Eu acho que a quantidade de
alunos, como eu já disse, como é muito grande, é um problema. Que se diminuísse ia
ser bem melhor. Uma das principais dificuldades é a quantidade de alunos, porque eu
não consigo desenvolver o trabalho da forma que eu deveria. Por exemplo, quando eu
tinha 15 alunos eu conseguia corrigir o caderno de todo mundo, eu conseguia perceber
a dificuldade de cada um, eu conseguia reexplicar. Agora não consigo corrigir
caderno, eu corrijo na lousa, eles acompanham. Então eu não consigo perceber se o
aluno aprendeu ou não. Então para mim isso é uma dificuldade, essa quantidade
imensa de alunos. Outro problema eu acho que é a falta de infraestrutura da escola.
Essa escola que estou é até que uma escola razoável, grande, mas eu já trabalhei...
essa escola que trabalhei 10 anos em I., por exemplo, a escola era um puxadinho. Não
tinha espaço para nada. Não tinha nem pátio. O pátio da escola era a quadra. Então
quando tinha educação física não tinha quadra. Não tinha recreio. Então eu acho que
a infraestrutura, de materiais, eu acho que estes são os maiores problemas do meu
trabalho. E a falta de valorização dos profissionais em si, todos que trabalham na
educação, não só os professores. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Por outro lado, a civilização, que compele à frustração é aceita por ela, senão de forma
francamente acrítica, certamente de forma resignada. Em nome do princípio de
realidade, ela justifica o sacrifício psíquico do indivíduo, sem expor o próprio
38
Importante ressaltar que não sabemos que tipo de trabalho terapêutico a professora Ana está fazendo, além de
um tratamento psiquiátrico. Sabemos que o campo da psicologia é amplo em abordagens terapêuticas o que não
limita a crítica de Adorno, muito pelo contrário, ao focar nos psicanalistas com quem estava dialogando na época,
estava em tese discutindo com uma área do saber que se coloca muitas vezes como uma expressão da “anti-
psicologia”, pela demarcação do inconsciente em sua práxis, ao contrário de outras linhas que focam o trabalho na
dimensão diretamente racional, consciente e adaptativa do indivíduo.
81
Professor Pedro
Retomando a ideia de uma herança arcaica como parte ativa da vida psíquica inconsciente
proposta por Freud (2018), Adorno (2006a) discute um tema que ultrapassa o tempo presente e
que seria, segundo ele, uma “aversão ao magistério” que estaria para além das bases econômicas.
Não se trataria somente de manifestações racionais contra o magistério, mas de elementos
inconscientes e pré-conscientes que se tornaram não-ditos, tabus que marcam a cultura.
Estas representações inconscientes tornam-se força ativa nas relações escolares. O que
torna a experiência do magistério uma profissão que gera um mal-estar intenso e específico,
porque as determinações do impossível da profissão expressam imperativos ao longo de uma
tradição cultural com a qual todo professor tem que lidar.
Uma dessas imagens é a do professor como um profissional que castiga, que exerce uma
certa violência ou que regulamenta. Adorno (2006a) busca na palavra alemã Pauker (quem
ensina com palmatória), ou inglesa, Steisstrommler, termos que caracterizam o elemento de
violência (aquele que malha o traseiro), até mesmo militar do magistério. Assim, comparada a
82
outras profissões acadêmicas, como médico e advogado, a profissão de professor estaria numa
segunda ordem: “o professor, embora seja um acadêmico, não seria socialmente capaz; quase
poderíamos dizer: trata-se de alguém que não é considerado um “senhor” (...) relacionadas à
alegada igualdade de oportunidades educacionais.” (ADORNO, 2006a, p. 99).
Para Freud (2010a), o psiquismo reflete uma das metáforas do trabalho do arqueólogo,
com camadas mais profundas e outras mais superficiais que preservam restos mnemônicos.
Adorno (2006a) vai pelo mesmo caminho, traz os traços mnemônicos que se preservaram na
cultura relacionadas ao papel social do professor.
O filósofo encontra a aversão ao magistério na história e na herança filogenética, que
estaria presente já na Idade Média na figura do escriba, do escrivão, nas referências aos
professores como escravos ou mesmo guerreiros capturados ou inválidos e que não podem mais
exercer seu poder, visto que a violência passa a não ser mais bem vista, assim como a própria
aversão e rancor dos analfabetos frente às pessoas que têm alguma autoridade baseada no estudo.
“O professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio
ou a ambiguidade que caracteriza o ofício do monge é transferido para o professor” (ADORNO,
2006a, p. 103). O docente é aquele que perde o poder e está relacionado a certas figuras, do ponto
de vista da herança arcaica, que podiam exercer alguma violência para determinar sua autoridade,
o que produz um ressentimento ancestral contra o professor.
Pela perspectiva da perda deste poder na tradição ocidental, o professor representa na
cultura um segmento menos ousado e livre do ponto de vista do capital – em especial aqui, dos
funcionários públicos que não podem exercer seu poder no mundo competitivo dos negócios.
Seu trabalho é mediado por sujeitos que não são plenamente autônomos, as crianças.
Por sua vez, os juízes e funcionários administrativos têm algum poder real delegado,
enquanto a opinião pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder
sobre sujeitos civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é
execrado porque só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como
“tirano da escola” lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão
irracionalmente despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na
medida que não consegue exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas
vítimas, algumas pobres crianças, quaisquer. (ADORNO, 2006a, p. 104).
O professor João relata um pouco desta crise relacionada ao poder do professor que se
enfraquece pelas condições de trabalho e que acaba tendo uma função de “contenção social”.
O professor João expressa, através da linguagem, a “contenção social” pela brincadeira com
seus pares. Diz que “eu procuro brincar com colegas e amigos” antes de trazer esta expressão
“contenção social”. Tira, assim, a força, a violência da expressão, por ela ser contrária, pelo
83
menos na linguagem, à ideia moderna de escola, por isso o professor encontra uma saída
mediada pelo humor.39
Por outro lado, encarnar a figura daquele que contém é tornar-se aquele que sustenta a
agressividade do outro, destituindo-se, enfraquecendo, portanto, sua própria agressividade,
fator constitucional dos indivíduos e importante no sentido de dar um destino a esse impulso
mediado pela cultura.
Eu entendo que meu papel social é contribuir para melhoria da sociedade através da
formação destas crianças e adolescentes. Só que hoje em dia eu tenho um certo pé no
chão que assim: tem hora que não dá pra contribuir, a verdade é essa. Tem hora que
simplesmente você está lá fazendo... eu costumo brincar com colegas e amigos, que é
fazendo a contenção social. Muitas vezes você entra numa sala e basicamente você
vai acabar com conflitos, mediar situações. Tem hora que é por causa dos alunos, tem
horas que é por causa da precariedade da sala de aula. Então eu vejo meu papel como
professor hoje em dia de uma forma bem pragmática, apesar de gostar da profissão,
de que não querer mudar, não ter o menor interesse e não sair da área. Mas eu entendo
assim: é um papel social relevante, pode contribuir para uma sociedade mais justa,
com mais oportunidades. Às vezes até mudar o futuro dessas crianças e adolescentes,
mas ao mesmo tempo eu entendo que tem limites e que nós não somos salvadores da
pátria. Não dá para você sozinho querer fazer uma mudança radical. (Professor João,
categoria A, 13 anos de magistério).
O professor João acaba por se tornar uma pessoa “pragmática”, segundo suas palavras,
e aqui se esvazia um pouco a própria potência do mal-estar trazida por Freud, de que é
justamente o impossível do trabalho docente que também cria possibilidades. O professor fica
totalmente tomado pelas circunstâncias, “acabar com conflitos”, “mediar situações” – só resta
a sentença de sua própria impotência, diante de tantas cobranças do ideal da cultura e da
realidade concreta: “não somos salvadores da pátria”, “não dá para você sozinho querer fazer
uma mudança radical”.
Em Adorno (2006a) há essa imagem na tradição cultural do professor como “aquele que
castiga”, “do carrasco”, mesmo que essas práticas não sejam mais comuns na escola. Trata-se,
para o autor, de um tabu acerca do magistério:
(...) que este imaginário é exitoso em firmar a crença de que o professor não é um
senhor, mas um fraco que castiga ou um monge sem cargo, isto pode ser comprovado
de maneira drástica no plano erótico. Por um lado, ele não tem função erótica; por
outro, desempenha um grande papel erótico, para adolescentes deslumbrados, por
exemplo. (ADORNO, 2006a, p. 107).
39
Em um texto chamado O humor (1927), Freud diz que no humor “o traço grandioso está claramente no triunfo
do narcisismo, na vitoriosa afirmação da invulnerabilidade do Eu. Este se recusa a deixar-se afligir pelos ensejos
vindos da realidade, a ser obrigado a sofrer; insiste em que os traumas do mundo externo não podem tocá-lo,
mostra, inclusive, que lhe são apenas oportunidades para a obtenção de prazer.” (FREUD, 2014h, p. 325). Mais a
frente, discorre: “com sua rejeição da possibilidade de sofrer, ele assume um lugar na série de métodos que a
psique humana desenvolveu para fugir à coação do sofrimento, uma série que tem início com a neurose e culmina
na loucura, e na qual se incluem também a intoxicação, o ensimesmamento e o êxtase.” (FREUD, 2014h, p. 326).
84
Mas eu acho que não ser reconhecido profissionalmente, não ter a importância
reconhecida no dia a dia, não só em datas específicas, em campanhas de televisão, não
é só em projetos “professor nota mil”, e outras ferramentas aí, mas eu acho que o
empecilho maior é você entrar numa sala de aula e não se sentir respeitado. Você sentir
que você está à margem da sociedade. Eu me sinto às vezes marginalizado socialmente
falando, nós fizemos uma reunião de pais recentemente, e este sentimento está muito
forte. Eu costumo dizer na sala dos professores que muitos pais parecem que tem raiva
da gente, não sei exatamente por que, mas eu sinto esta espécie de raiva, questão do
funcionalismo público, do serviço público que não funciona, então eu me sinto
marginalizado socialmente. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
Adorno (2006a) aborda que este professor é castrado do ponto de vista imaginário. O
professor é colocado num certo processo de infantilização (concreta ou imaginária), por mover-
se num ambiente infantil. “Nesta medida acrescenta-se o desprezo pelo professor um aspecto
suplementar: por mover-se num ambiente infantil que é o seu ou ao qual se adapta, ele não é
considerado inteiramente um adulto que deriva suas exigências desta sua existência como tal.”
(ADORNO, 2006a, p. 109).
O professor Pedro, assim como o professor João, acaba revelando uma certa solidão
diante de questões tão maiores. O professor João sentencia “não ser salvador da pátria” e o
professor Pedro, no intuito de resgatar este plano erótico, no sentido do investimento libidinal
de si e objetal, relata que, apesar das ambiguidades com relação à carreira, escolheria
novamente ir por estes caminhos.
Mas para resumir a pergunta que você fez eu acho que sim. Eu faria novamente sim,
eu acho que existe um crescimento profissional que acaba refletindo no nosso
crescimento pessoal. Então você saber que você ajudou um pouco certas pessoas a se
formarem, você plantou sementes, você consegue ser um pouco terrorista
pedagogicamente falando, porque você consegue suplantar algumas ideologias que
são impostas ali, eu acho que sim, eu acho que eu faria de novo sim. (Professor Pedro,
categoria A, 21 anos de magistério).
Sim porque a gente tem uma série de conceitos, ideias que são colocadas para gente e
são colocadas de uma maneira que se o professor optar por ficar numa zona de
conforto, ele vai ficar numa zona de conforto. Então quando eu falo do terrorismo,
olha a Secretaria de Educação tem um currículo pronto e este currículo a gente sabe
que na verdade é só para, muitas vezes, fazer Saresp ou Saeb ou só para formar uma
mão de obra barata no futuro. Então o terrorismo que eu falo é você voltar a ser um
intelectual, não só um professor de biologia, professor de educação física ou inglês,
você deixar a sua intelectualidade aflorar na sala de aula contra esta educação que é
uma educação já pensada só no mercado de trabalho. O terrorismo que eu refiro é
esse. (Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
O professor Pedro, com esta busca de uma “ação terrorista”, como nomeia, no sentido de
usar a castração remetida por Adorno (2006a) não como paralisante, mas como algo da ordem da
potência freudiana da castração, do ser que se reconhece falante e faltante, da saída do mundo
psíquico infantil para o mundo adulto. É assim que o professor destaca um plano bastante erótico
do ofício docente, a capacidade de voltar a ser um intelectual. Ficar na zona de conforto é manter-
se em um campo do infantil. Resistir como atividade é “deixar sua intelectualidade aflorar”, uma
expressão que nos remete a um plano sexual e erótico, do sublimatório.
Professor Fernando
(...) combina com os laços reais com o médico o fato de nessa inclusão ser decisiva a
“imago paterna” (para usar a feliz expressão de Jung). Mas a transferência não se acha
presa a esse modelo, pode também suceder conforme a imago da mãe, do irmão etc.
(...) não são só as expectativas conscientes, mas também as retidas ou inconscientes
produziram essa transferência. (FREUD, 2010e p. 136).
86
Das marcas da formação bastante iniciais das imagos do pai, mãe, irmãos etc., a escola se
apresentará num momento seguinte. A escola representa um campo da ampliação do mundo para
a criança. E é a partir das outras relações propiciadas pela escola que as figuras parentais, em
especial a do pai, sofrerão profundo abalo. O pai, que era todo poderoso, passa a ser percebido e
a se perceber pelos limites, e se estabelece, a partir disso, um conflito que igualmente passa a ser
fundamental na constituição do próprio ideal do Eu da criança. (FREUD, 2012b).
É nessa fase de desenvolvimento do jovem que ele entra em contato com os mestres.
Agora entendemos nossa relação com os professores do colégio. (...) Nós transferimos
para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente da infância, e nos
púnhamos a tratá-los como nossos pais em casa. Manifestávamos diante deles a
ambivalência que havíamos adquirido na família, e nessa atitude lutávamos com eles
como estávamos habituados a lutar com nossos pais carnais. Sem levar em conta as
vivências infantis e a vida familiar, nossa conduta ante os professores seria
incompreensível, mas tampouco seria desculpável. (FREUD, 2012b, p. 423).
É o que nos mostra o professor Fernando através da sua experiência em sala de aula.
Como um professor que busca ter uma prática reflexiva, ele entende que os conflitos e o mal-
87
estar estão colocados e cabe ao professor sustentá-los de modo que o aprendizado se realize. É
neste contexto que o professor relata se sentir respeitado e que a imagem de uma autoridade do
professor do passado, autoritário, não é mais viável.
(...) eles continuam respeitando, o que eles não têm mais é medo. Não tem medo, se
queria que tivesse medo de você? Tá na profissão errada. Nunca eu tive um caso de
violência. “Mas o aluno bate-boca com você.” Eu falei que bom que a gente vai
resolver trocando ideia. Nunca um caso de violência pegar carteirada, saiu na mão e
pá. Eu tive um caso de aluno com fala racista em sala de aula, e que é de uma violência
e que é criminal. É uma violência criminosa isso. E a gente levar o moleque nas ideias.
Falar oh que ideia é essa que você taí, de onde você está tirando esses negócios. Falar
oh conversa, conversa franca e dura. Não sozinho eu professor. Eu e o grupo escolar,
eu e os estudantes que não estão entendendo aquilo. E o moleque voltar na fala e falar
“não eu achava que era isso o certo”. Mano isso não é o certo, isso daí faz os outros
acharem que o cara é menos. É nos erros que a gente vai trabalhando e chegar nos
acertos. Agora violência para. Todo mundo lá. Colocaram câmera que é pro bem do
professor. Então tira porque para mim só faz mal. Só faz mal. Nunca teve um caso
aqui na escola porque está botando câmera. Nunca teve um caso de agressão. O fato
do aluno levantar e mandar o professor tomar no cú, vai se fuder. Oh mano, eu me
formei, eu me preparei para trabalhar com adolescente. Eu com toda esta maturidade,
toda minha carga, todo o meu estudo eu não estou preparado para ouvir um vai tomar
no cú de um adolescente? Eu vou ficar em choque, vou chamar a polícia? Vou me
sentir desrespeitado, desautorizado? Quem é o imaturo dessa relação? Quem é? Eu
que não consigo ouvir um vai tomar no cú, vai ser fuder, não consigo lidar com o
moleque que fala gíria, entre aspas. Então professor não tem mais autoridade... a fala
deveria ser o professor jamais deveria ter autoridade em sala de aula. Deveria ser um
igual, não um autoritário. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
O que nos faz pensar sobre as marcas constitucionais não somente dos estudantes, porém
também do professor. No que pese o ofício docente também envolver o trabalho com seus pares,
o professor Fernando reflete sobre uma crítica em um modo de ser docente. Naquilo que ele
pode ser na plenitude de sua prática em sala de aula e quais os efeitos em sua autonomia num
88
espaço escolar que tende à padronização, inclusive de professores. O entrevistado revela uma
perspectiva de autoridade quando diz que vai trabalhar “com seus iguais”, marcando a sua
individualidade no processo de aprendizagem.
É importante destacar que o que o professor nos traz não é uma relação de simetria com
os estudantes, na qual não haveria diferença deste com ele, como professor, o que certamente a
psicanálise, com uma leitura estrita da clínica diria: “neurótico!” O que ele destaca é justamente
a identificação de classe e raça como “ideal do Eu”, que o conhecimento formal ou seu modo
de se relacionar com as periferias acabam por excluir (na representação mais tradicional do
professor bacharel), grandes contingentes de estudantes pobres.
Essa forma de ver a educação tem a ver com a história do professor, branco de origem
pobre e família inter-racial (mãe negra e pai branco), nas suas próprias identificações com o
bairro onde mora na periferia de São Paulo, produzindo uma série de conflitos e diferenças,
como nos traz em outro trecho da entrevista, quando foi cursar História numa universidade da
elite paulistana, localizada em bairro de classe média alta e branca, Perdizes, a PUC-SP. 40
Um dado a se considerar é que o professor Fernando começou a trabalhar com educação
antes da formação universitária. Como nos relata na entrevista, trabalhava nas escolas do Estado
com Hip-Hop, “com dança, nos parceiros do futuro, escola da família”. Foi esta relação mais
próxima com os estudantes, como educador, que o motivou a buscar uma formação
universitária. “Puxa, ia ser louco se eu pudesse entrar na sala de aula também para poder
conversar com estes moleques. E foi mais ou menos por aí que começou”, diz o professor
Fernando no conjunto da entrevista.
O que concebe não é a negação da autoridade, a recusa de uma “lei paterna” fundamental
para estabelecer a diferença do ponto de vista psíquico, haja vista que inclusive seu pai não
queria que ele fizesse universidade e lhe dizia que “ninguém na família que estudou virou
alguma coisa”. O professor Fernando, além de se formar como professor de História na
40
O interessante estudo de Schucman (2018) sobre as famílias inter-raciais no Brasil demonstra as tensões
produzidas nos referenciais familiares e sociais, visto que o racismo atravessa a própria constituição dos indivíduos
nas diferenças no interior destas famílias. Neste sentido, a autora evidencia a complexidade da constituição dos
“ideais do Eu” em uma cultura marcada pela desigualdade social e o racismo. Ao analisar em sua pesquisa uma
família com estas formações inter-raciais, Schucman ressalta que: “As hipóteses de Mariana sobre as escolhas da
mãe nos levam ao sociólogo Du Bois quando ele apresenta uma dinâmica que entrelaça as categorias de raça,
classe e status para compreender o porquê dos trabalhadores brancos e pobres aceitarem a raça e o racismo como
divisor da classe trabalhadora norte-americana. Para ele, esta foi uma forma de se apropriar de benefícios. Du Bois
(2003) nomeia esses benefícios de salário público e psicológico da brancura, que resultavam em acesso a bens
materiais e simbólicos que os negros não podem compartilhar. Ou seja, os brancos pobres, ao aceitarem a raça
como um divisor dessa classe aproximam-se dos brancos de todas as outras classes sociais, dividindo com estes
os mesmos acessos a lugares públicos, simbólicos, e, portanto, o status dado à branquitude.” (SCHUCMAN, 2018,
p. 96).
89
Porque é o seguinte a ideia de que a gente vai chegar lá e vai dar aula de história para
eles isso aí é ilusão, eu não dou aula de história praticamente. Eu não trabalho os
conteúdos de história, os conteúdos para mim não são nem importantes, mas o fato de
estar lá usando os conteúdos de história para trabalhar as inquietudes deles, as coisas
que eles têm de inquietações mesmo, porque as coisas são do jeito que são e porque
estão do jeito que estão. Então isso já... aí sim eu uso história. Caso contrário eles que
vão determinar o que é necessário ali naquele momento. Então a maioria das aulas são
dialógicas onde todo mundo conversa com todo mundo. Dialoga com todo mundo. De
um tempo para cá isto tem sido mais complicado. A pandemia deixou todo mundo num
papel de observador silencioso, onde todo mundo observa uma tela em silêncio.
Ninguém mais conversa, isso é uma coisa que vai me preocupando bastante inclusive
pro ano que vem. Porque quando voltamos presencialmente este ano ninguém mais
queria falar. Todo mundo só queria ouvir e que fosse rápido, o que eles querem é o
contato social. Eles não querem mais nada a não ser o contato social. E aí este ano foi
terrível para trabalhar, porque a escola e o Estado nunca cobraram tanto a questão
burocrática, nunca cobrou tanto diário. A matéria, o conteúdo, “ah projetos, faz um
projetinho”. Então assim antes eu ainda tinha o respaldo deles, não trabalho este
esquema porque eu trabalho com eles desse jeito e funciona. Agora não funciona porque
eles não querem mais estar na sala de aula. A sala de aula parece que se transformou
num grande inimigo deles. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
41
Há outros autores que colocam a constituição da dimensão psíquica do ponto de vista social ou do espaço social
em primeiro plano. Podemos pensar aqui, para futuros desdobramentos da pesquisa, tanto Pierre Bourdieu com sua
categoria de Habitus, que o sociólogo caracteriza sucintamente: “Trata-se de um debate extremamente complicado,
mas a noção de habitus tem várias propriedades. Ela é importante para lembrar que os agentes têm uma história, que
são produto de uma história individual, de uma educação associada a determinado meio, além de serem produto de
uma história coletiva, e que em particular as categorias de pensamento, as categorias do juízo, os esquemas de
percepção, os sistemas de valores, etc. são o produto da incorporação de estruturais sociais.” (BOURDIEU;
CHARTIER, 2011, p. 58). Além do psiquiatra Frantz Fanon, que elabora a categoria de sociogenese: “A análise que
empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma
súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo
processo: – incialmente econômico – em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa
inferioridade. (...) Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através
da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela
perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da
filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos
que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio-diagnóstico.” (FANON, 2008, p. 28).
90
Talvez o professor Fernando, justamente pelo seu modo de trabalhar, tenha percebido
um sintoma do pós-pandemia na escola, que outros professores mais tradicionais não devem ter
notado com tanta intensidade. Ao trabalhar de modo dialógico, notou a diferença da experiência
do pós-pandemia na subjetividade dos estudantes. É importante enfatizar que o que estamos
pensando sobre o modo de ser docente do professor Fernando está relacionado aos “ideais do
Eu” a partir das dimensões da cultura e da história, tal como está em Freud:
Por último, vale apontar que quando tem apoio de uma coordenação que entende
sua forma de trabalhar, sua individualidade como professor, este apoio é visto como “munição”
o que pode demonstrar que o professor se sente realmente numa luta, numa guerra para sustentar
sua individualidade num cenário bastante adverso, precarizado e obstaculizado de trabalho.
Seguimos adiante justamente para pensar a autoridade docente e todas as complexas
questões que atravessam a sua constituição, seja da ordem psíquica, social, econômica e
cultural.
Você tem uma apostila, você tem que estudar aquilo e ministrar aquilo.
E não é mais apostila, agora é o Centro de Mídias.
Você tem que estudar aquelas aulinhas horríveis,
com pouco conteúdo que deixam o aluno, vamos se dizer assim, alienado.
Professora Vera
Alguns psicanalistas contemporâneos a Freud, pensavam sobre que tipo de educação era
possível fazer para que ela não produzisse tantas pessoas adoecidas e tantas neuroses. A tese
central era que de que na escola havia uma marca repressiva muito grande, inclusive da
sexualidade, e que isso favorecia o surgimento de diversas patologias.
Um deles foi Sándor Ferenczi (1873-1933). Em um pequeno texto intitulado Psicanálise
e pedagogia (1908), resultado de uma Conferência no Congresso dos Psicanalistas em
Salzburgo em 1908, Ferenczi diz que “a pedagogia atual constitui um verdadeiro caldo de
cultura das mais diversas neuroses.” (FERENCZI, 2020, p. 39).
Para ele, muitos sofrimentos podem ser atribuídos a princípios educativos impróprios,
em especial aqueles que produzem profundo recalcamento das emoções e representações, o que
91
ocasionariam organizações defensivas muito intensas que retirariam muita energia psíquica
para sua manutenção.
Vou citar um dos seus mais graves erros, a saber, o recalcamento das emoções e
representações. Poderíamos até dizer que a pedagogia cultiva a negação das emoções
e das ideias. (...) É difícil definir o princípio que a rege. É com a mentira que ela mais
se aparenta. Mas ao passo que os mentirosos e os hipócritas dissimulam as coisas para
os outros ou então apresentam-lhes emoções e ideias inexistentes, a pedagogia atual
obriga a criança a mentira para si mesma, a negar o que sabe e o que pensa.
(FERENCZI, 2020, p. 40).
Ferenczi, como o próprio Freud, em algum momento de seus breves textos sobre a
educação, afirmava que uma educação menos repressiva poderia produzir indivíduos menos
suscetíveis a adoecimentos – no que pese Freud compreender o papel civilizatório da cultura e
da educação na repressão dos instintos.
A senha para que a psicanálise seja aplicada à educação deve ser hoje buscada em outro
lugar. Vejamos claramente qual a primeira tarefa da educação. A criança tem de
aprender a dominar os instintos. É impossível lhe conceder liberdade irrestrita para
seguir todos os seus impulsos. Seria um experimento bastante instrutivo para os
psicólogos da infância, mas a vida dos pais ficaria intolerável, e as crianças mesmas
sofreriam graves danos, que se mostrariam imediatamente, em parte, e depois em sua
vida futura. De modo que a educação tem de inibir, proibir, suprimir, o que sempre fez
em todas as épocas. Mas aprendemos com a análise que justamente essa supressão dos
instintos acarreta o perigo do adoecimento neurótico. (FREUD, 2010b, p. 310-1).
A questão será decidir o quanto proibir, em que momentos e com que meios. E
também será preciso levar em conta que os objetos da influência educacional trazem
disposições constitucionais muito diversas, de modo que o mesmo procedimento do
42
Em um belo texto denominado O esclarecimento sexual das crianças (Carta aberta ao Dr. M. Fürst, 1907), Freud
escreve: “É uma tarefa da escola sobretudo, não evitar a menção da sexualidade, incluir os fatos principais da reprodução
e sua importância nas aulas sobre o mundo animal e, ao mesmo tempo, enfatizar que o ser humano partilha com os
animais superiores tudo o que é essencial em sua organização. Então, se o ambiente familiar não atua de maneira
intimidante sobre o pensamento, provavelmente sucederá com maior frequência aquilo que entreouvi certa vez num
quarto de crianças, quando um menino falou à sua irmãzinha: ‘Como você pode achar que a cegonha é que traz os bebês?
Você sabe que o homem é um mamífero; você pensa que a cegonha traz os filhotes dos outros mamíferos?’ A curiosidade
da criança jamais alcançará um nível elevado se encontrar satisfação correspondente em cada estágio do aprendizado.
O esclarecimento sobre as condições especificamente humanas da vida sexual e a significação social desta deveria ser
dado ao fim da escola fundamental (antes do ingresso na escola média), ou seja, antes dos dez anos de idade. Por fim, a
época da Confirmação seria a mais apropriada para explicar à criança, já esclarecida acerca de tudo relativo ao corpo, as
obrigações morais ligadas ao exercício do instinto. Esse esclarecimento sobre a vida sexual, gradual, progressivo, jamais
interrompido, no qual a escola toma a iniciativa, parece-me ser o único a levar em conta o desenvolvimento da criança,
evitando com êxito o perigo existente.” (FREUD, 2015c, p. 323-4).
92
educador não pode ser igualmente bom para todas as crianças. Uma breve reflexão
ensina que até agora a educação cumpriu muito mal sua tarefa que infligiu graves
danos às crianças. (FREUD, 2010b, p. 311).
É nesse contexto que entra o debate da autoridade do professor. Convidados por Freud
e Ferenczi, somos chamados à reflexão deste lugar que está na ordem do impossível porque
nunca será completo – dado que se trata de uma relação ambivalente – e não há controle do seu
resultado. A autoridade do professor mobiliza uma série de ambivalências que serão ao mesmo
tempo fundamentais para constituição de indivíduos em formação e para a reflexão da posição
subjetiva do professor no ato docente, visto que ele também projeta suas dimensões instintuais
nos estudantes.
De tal modo, coloca-se a ideia da possibilidade de um esclarecimento dessa autoridade que,
segundo Freud (2010b) e Adorno (2006a), se beneficiaria dos saberes da psicanálise. Adorno fala
sobre os efeitos de uma autoridade não esclarecida do professor, mas adequada, adaptada.
sala de aula”. A expectativa era de que os professores pudessem refletir a partir da sua própria
visão de autoridade.
O professor João reflete sobre as várias perspectivas da autoridade, e de que ela é um
produto da individualidade do professor em sua experiência em sala de aula e de um contexto
escolar no qual a direção ocupa o papel de organizar a escola, reforçando a autoridade do professor.
Falou, também, sobre a construção da autoridade do ponto de vista econômico, para além da escola.
A sociedade no geral ela tenta transmitir uma autoridade para este professor. É claro que
tem elementos que dificultam esta autoridade. Voltamos ao salário, uma sociedade que
valoriza pessoas que são bem-sucedidas e que ser bem-sucedido é sinônimo de ganhar
bem, é claro que a autoridade em sala de aula vai ter um questionamento. Mas quando
você tem uma escola que a direção consegue organizar a escola apesar de todas as
carências e os problemas eu acho que esta autoridade do professor fica reforçada. Eu
acho que ela não fica tão frágil. Quando a escola, a direção não consegue fazer
minimamente o papel dele: ali de gerir professores e alunos, apesar de todos os
problemas que ele tem. E que a escola entra naquele redemoinho de caos e conflito. Daí
eu acho que fica difícil falar em autoridade sabe. A autoridade, eu sei que tem uma
discussão teórica com relação a isso, talvez contribua um pouco para a pesquisa. A
prática na sala de aula, essa autoridade na sala de aula depende um pouco da maneira
como o professor se posiciona. A faculdade não ensina isso. Eu não sei também se era
papel dela ensinar sabe. Os professores no geral vão aprendendo ali no dia a dia da
profissão como se posicionar, como você encara uma dobradinha no 6F como eu
costumo brincar. E a partir daí você vai aprendendo também construir um pouco estes
elementos de autoridade. Agora eu não sei muito o que as pessoas pensam como
autoridade. Essa autoridade de antigamente do professor que ele manda e a criança
simplesmente obedece tem um pouco de idealização nisso. Eu acho que elas nunca
obedeceram viu, eu acho que as que eram mais rebeldes não obedeciam, na época dos
nossos pais, nossos avós, elas simplesmente eram expulsas da escola. E você ia deixando
na escola quem obedecia. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
O professor Pedro questiona a própria ideia de que o professor deve ter autoridade.
Associa autoridade a um certo poder um tanto quanto opressivo, de que “o professor pode fazer
o que quiser”. A dubiedade da palavra autoridade lhe incomoda. Ao final, o professor relaciona
diretamente a palavra autoridade a autoritário. Prefere usar respeito e respeitar.
Eu acho que ainda bem porque todo tipo de autoridade é perigosa. Essa frase de
autoridade para mim ela pressupõe a pessoa que pensa que o professor poderia ter
autoridade, para mim uma autoridade de poder fazer o que quiser. Em termos de
indisciplina, em termos de punição. Eu acho que a palavra autoridade ela é uma palavra
que tem significados muito dúbios. Não sei se caberia esta palavra para você falar em
sala de aula. É uma afirmação perigosa porque para muitos professores a autoridade
estaria no poder de reprovar o aluno, para muitos professores a autoridade estaria no
poder de mandar o aluno calar a boca e ele ter que ficar quieto. Autoridade de você tirar
o aluno da sala, eu quero que suspenda este aluno. Nenhuma dessas situações que eu
coloquei acontecem mais, mas a palavra autoridade eu acho que ela é diferente que a
palavra respeito. São ideias que as pessoas às vezes confundem. Eu acredito que... na
verdade eu nunca achei que eu tivesse autoridade em sala de aula, eu sempre tentei ser
respeitado e respeitar. Quando você fala o professor é uma autoridade em sala de aula,
mas qual objetivo de ele ser uma autoridade, ele vai fazer o que com essa autoridade? O
que ele quer fazer? Ele vai melhorar o processo pedagógico sendo autoritário. Eu acho
difícil, eu acho muito difícil. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
94
Um aspecto interessante a se pensar se dá quando o professor Pedro diz que “todo tipo de
autoridade é perigosa”. Pode-se refletir se não seria adequado pensar a autoridade do saber
docente, naquilo que o professor se aprofundou em seus estudos como a Língua Portuguesa ou
Língua Inglesa, que são suas áreas do saber. Ao estabelecer estritamente a marca da autoridade
associada a um poder necessariamente “sádico” do professor, consideramos que se revela na fala
do professor Pedro, um espaço escolar o qual ainda há uma série de experiências de autoridade
pouco esclarecidas.43
A professora Ana aponta o papel da escola e da gestão no suporte ao professor para
sustentar seu trabalho de autoridade. Nas escolas em que há este suporte é possível ocupar um
lugar de autoridade em sala de aula. Do contrário, o professor fica sozinho nesse papel diante
de situações e contextos maiores que ele. A professora procura trabalhar em escolas em que, na
visão dela, oferecem esse suporte aos professores, e diz que nem todas fazem isso.
Eu avalio que ela é real em partes. Eu acho que educação é uma coisa muita grande.
Eu acho que em alguns momentos sim o professor não tem autoridade. Quando você
fala e eu penso nisso eu acho que é uma autoridade relacionada principalmente com
o aluno. E aí o que eu tentei fazer, eu tentei ir para uma escola que eu sabia que eu ia
conseguir trabalhar minimamente, que eu ia ter algum suporte, mas eu sei que tem
lugares por aí que o professor não tem mais autoridade. Ele não consegue desenvolver
o método de trabalho. Porque os alunos não querem, a direção não ajuda. Eu acho que
já passei por isso em outras escolas, hoje eu acho que não. Eu consigo fazer o meu
trabalho, mesmo que seja estressante por causa do ambiente que eu trabalho. Eu acho
que não dá para colocar todas as escolas num balaio só, eu acho que dá para separar.
Mas são poucas, eu acho que tive sorte de estar em duas escolas que são relativamente
boas na minha concepção. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
O professor Luiz resgata as dimensões internas dessa autoridade, como identificar seus
próprios limites e produzir um autoconhecimento mais profundo sobre si, ao mesmo tempo em
que reflete a relação da autoridade com práticas de violência pelo professor em momentos da
história da educação. Diz que esta autoridade tem que ser construída com os estudantes de modo
dialógico e cita a experiência de estabelecer contratos pedagógicos com os estudantes, de modo
a estabelecer as regras coletivamente.
Eu acho que assim, eu pensei muito nisso depois de um incidente que eu tive esse ano
aqui. Eu acho que a autoridade que eu tenho que ter antes de qualquer outra coisa é sobre
43
Não podemos desconsiderar o quanto o aspecto histórico da relação liberdade, autoridade e autoritarismo no Brasil
(SCHWARCS, 2019) atravessam a sociedade brasileira como uma grande questão. Como a escola não está a parte
da sociedade, ela reflete para além de suas mediações particulares as dimensões sociais e históricas profundas. Paulo
Freire, um dos mais importantes e conhecidos educadores brasileiro, coloca que: “Noutro momento deste texto me
referi ao fato de não termos ainda resolvido o problema da tensão entre a autoridade e a liberdade. Inclinados a superar
a tradição autoritária, tão presente entre nós resvalamos para formas licenciosas de comportamento e descobrimos
autoritarismo onde só houve o exercício legítimo da autoridade (...) O grande problema que se coloca ao educador
ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja
assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais
autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome.” (FREIRE, 1996, p. 117-8).
95
mim mesmo, sobre minhas faculdades até onde foi possível. Para eu me conhecer, para
estar nesta busca para me conhecer, conhecer meus limites, que não é uma coisa tranquila.
Mas quando se diz que o professor não tem mais autoridade, muitas vezes eu vinculo isso
a um modelo mais arcaico de educação que inclusive eu fui formado. Eu estudei nos anos
80 e 90, onde parecia que a palavra do professor era lei ou às vezes o professor parecia
um “Monarca do Absolutismo”. E você está numa turma que às vezes as pessoas, os
estudantes, alguns deles pelo menos enxergam você dessa forma. Até pode parecer que
facilite seu trabalho, mas eu não acho isso hoje uma coisa legal. O que eu penso que é
legal é você tentar construir uma relação de empatia, de respeito e eu tive problemas em
relação a isso. Até por conta de uma outra formação minha também, ou processo de
formação das artes marciais; tem algumas coisas em sala de aula que eu não consigo
deixar passar ainda. Ele [estudante] não é uma folha em branco, ele tem uma bagagem
cultural, tem um capital social. Eu não sei como colocar isso de uma forma um pouco
mais objetiva. Tem alguns colegas que utilizam uns termos como contratos, firmar alguns
contratos com os alunos. Uns acordos, olha eu sou assim, meu estilo de aula é esse, meus
trabalhos são dessa forma, o que vocês acham, o que vocês pensam a respeito disso.
Basicamente isso. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
A professora Luana avalia que o professor de antigamente era mais respeitado pelos
estudantes, e que a própria lógica deste respeito se dava pela exclusão, visto que hoje “manda
para a diretoria, aí volta para a sala de aula”. A perda da autoridade, para a professora Luana,
está relacionada a você ter que “sempre incluir aquele aluno” que é indisciplinado, que não
participa da aula. A professora lamenta e expõe uma certa impotência de como lidar com estas
situações que sentem serem maiores do que ela. Num certo sentido, revela a importância da
escola, da gestão no trabalho de fortalecimento da autoridade do professor.
Eu penso que o professor era mais respeitado pelos alunos. Hoje não é muito mais. E
não tem muito o que se fazer, este negócio de se mandar para diretoria aí volta para a
sala de aula. Professor não é mais igual antigamente, esse negócio da autoridade. Aí
vai para fora, não vai assistir minha aula. Porque você tem que sempre incluir aquele
aluno, é tipo isso. Você tem que fazer acontecer para aquele aluno não fazer este tipo
de coisa, para aquele aluno participar da sua aula e fazer que aquilo aconteça. A gente
não tem muito o que fazer. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
A professora Denise, que é categoria V, eventual, diz que é preciso ter pulso firme, que
as dificuldades existem, mas que o professor tem que encontrar formas de trabalhar.
Normalmente, os professores eventuais, por não terem uma turma definida e entrarem em sala
de aula quando algum professor falta, enfrentam dificuldades maiores em seu trabalho.
... se a gente não tiver pulso firme eles não deixam o professor falar mesmo. Então a
nossa falta de autonomia é essa. Mas tem que saber lidar com eles. Tem que saber
colocar a sala para prestar atenção na nossa aula. E a gente tem que fazer o nosso
trabalho, embora haja dificuldade por causa do comportamento deles hoje em dia sim.
O ensino médio também, tem também algumas dificuldades de eles não pararem na
sala, mas a gente tem que lecionar. A gente precisa da nota deles depois. Eu no meu
caso sou eventual, mas o professor normal presente precisa da nota e dar o conteúdo
para eles aprenderem. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).
Ele acredita que os próprios professores acabam sendo contaminados pela perspectiva cultural
e histórica da autoridade como distorção e que, na atualidade, o estudante não está mais
aceitando essa perspectiva de autoridade, que ele associa diretamente ao elemento autoritário.
Isso não significa que o professor não discuta dimensões do trato dos limites éticos, morais,
sociais que estão colocados no trabalho educacional e na relação com os estudantes.
Essa avaliação, não tem é péssimo. Você é um fantoche na mão deles. Puro fantoche,
você é comandado. Dá a impressão que tem alguém dentro de você falando por você.
Não tem muito para dizer, eu acho que você tem que perceber que nós somos bonecos.
Você tem uma apostila, você tem que estudar aquilo e ministrar aquilo. E não é mais
apostila, agora é o Centro de Mídias. Você tem que estudar aquelas aulinhas horríveis,
com pouco conteúdo que deixam o aluno, vamos se dizer assim, alienado. E aquilo
que você tem que passar. E se você não passar aquele conteúdo você está errando. E
se alguém escutar alguma coisa que está fora daquele conteúdo você vai ser punido.
Eu fui dentro da escola pública do Estado. Eu não recebi o abono. Sabe aquele bônus?
Eu não recebi. Saiu agora o pessoal recebeu agora, o meu é zerado. Foi a punição que
eu recebi. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
de sua constituição psíquica. Os fatores levantados pelos professores são diversos e avaliamos
que estão conectados em camadas da realidade educacional, algumas mais diretas, outras mais
profundas, relacionais, dialéticas, ligadas à estrutura da sociedade e da educação.
Em primeiro lugar, há de se destacar que, na maioria dos professores, a reflexão sobre
a temática levou em conta vários elementos para caracterizar em sua posição o que é de fato o
papel intelectual do professor na construção de uma autoridade esclarecida, não violenta, tal
como Adorno (2006b) apresenta. Violência que foi tratada por vários deles no sentido de não
repetir uma educação com traços autoritários, inclusive de violência física.
É possível, portanto, através dos relatos dos professores e das considerações de Adorno,
pensar que a autoridade, para se realizar, deve efetivar um lugar autônomo do professor, sua
própria singularidade. Assim, políticas de controle, administrativas, tendem a enfraquecer essa
autoridade, como nos coloca a professora Vera.
Outro aspecto interessante é justamente pensar o papel da escola na sustentação dessa
autoridade. Uma escola que consegue constituir um corpo docente que trabalha e pensa em
conjunto, uma gestão que se oferece como suporte do trabalho pedagógico, e não somente do
burocrático, são questões igualmente levantadas pelos professores, mostrando que a autoridade
do professor é construída não somente individualmente, mas coletivamente, num contexto em
que se reforça.
Uma certa sensação de impotência do professor quando pensa sua autoridade, também
se apresenta em algumas entrevistas. Acreditamos que, relacionadas às condições objetivas e
tudo que envolve este professor em sala de aula em questões imediatas do próprio trabalho e da
vida social, acaba por acarretar grandes dificuldades para o professor. Diante deste contexto,
mobilizado de forma intensa em seu desamparo, o professor pode buscar saídas pedagógicas
excludentes e/ou autoritárias para dar conta de seu mal-estar.
Se, como nos lembra Freud, “um procedimento do educador não pode ser bom para
todas as crianças” (2010b), em um contexto de precarização do trabalho, de salas de aulas cheias
e extensas jornadas de trabalho, estamos diante de um difícil equilíbrio para a construção de
uma autoridade esclarecida. Conforme Adorno (2006d, p. 36):
98
(...) a ideologia dominante hoje em dia define que, quanto mais as pessoas estiverem
submetidas a contextos objetivos em relação aos quais são impotentes, ou acreditam
ser impotentes, tanto mais elas tornarão subjetiva esta impotência. Conforme o ditado
de que tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende
das condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem
intocadas. Na linguagem da filosofia poderíamos dizer que na estranheza do povo em
relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesmo.
Como fica a formação desse professor diante de tantas questões subjetivas e objetivas
que lhe atravessam? Este será nosso desafio de reflexão e análise para concluir este capítulo.
Professora Luana
Diante de tantos aspectos psíquicos, culturais e sociais que vimos até aqui, em especial
relacionados ao mal-estar do ofício do professor sob a herança arcaica, a transferência e a
autoridade, analisaremos neste tópico o tema da relação dos professores com sua formação.
Freud (2010b) indica como possibilidade no percurso da formação do professor a
passagem por um processo analítico.
O melhor seria que ele mesmo fosse analisado, pois, afinal, não se pode assimilar a
psicanálise sem experimentá-la na própria pessoa. A análise dos professores e
pedagogos parece ser uma medida profilática mais eficaz do que a das crianças mesmas,
e também há dificuldades menores para a sua realização. (FREUD, 2010b, p. 312).
Não muito, já neste ponto aí foi mais no tête-à-tête do dia a dia. Foi a prática que me
trouxe mais ganho de experiência. Não foi tanto os estudos da faculdade. A faculdade
me deu mais a teoria. Geografia tem muitos historiadores, muitos geógrafos que eu
estudei. Isso foi muito importante para minha bagagem no ensinar no que é a Geografia.
Agora a bagagem de você lidar com uma sala de aula. De você ter o domínio ali da sala.
Isso foi mais a prática. Teve um pouco nos estudos da faculdade, lógico a disciplina de
didática, de metodologia ajuda, mas nada como a prática. Teoria é um pouco, prática é
outro. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).
Já a professora Ana diz que nunca a formação universitária será suficiente para se tornar
professora. Assim, ela se aproxima da questão do mal-estar do ofício docente, visto que, de
fato, sob a perspectiva freudiana, algo sempre faltará. Foi na experiência do dia a dia que a
professora foi se constituindo como professora. No entanto, ela aponta para além do
aprendizado a dimensão da intensidade do mal-estar, do “choque de realidade” que trata das
condições objetivas de trabalho.
Eu acho que nunca é, né... a faculdade você tem uma ideia de escola e quando você
chega na escola é outra coisa. Principalmente nessa questão pedagógica, da didática
em si. Nenhuma faculdade prepara bem. Você vai aprendendo ali no dia a dia. Porque
é totalmente diferente que... sei lá. estes teóricos falam muitas coisas que na prática é
complicado, você tem que lidar com 40 alunos, uma parte dos alunos não sabe ler,
100
outra parte não... você tem alunos de inclusão. Na faculdade não falaram isso.
(Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Eu acho que depende viu. Agora no alto dos meus 10 para 15 anos do magistério às vezes
eu olho para minha prática lá no começo, primeiro, segundo ano e até não muito distante
e sabe o que eu vejo: às vezes nós professores queremos resolver uma situação de uma
maneira que a gente acaba intensificando o conflito. Não que nós sejamos responsáveis
pelo aluno xingar a gente. Não é exatamente isso que quero dizer. Só que às vezes a gente
naquela ânsia de controlar a sala de aula, de passar o conteúdo, de dar a sua aula você
tenta resolver rápido um conflito e às vezes o máximo que dá para você fazer em algumas
situações é simplesmente segurar a situação até tocar o sinal. Até acabar aquele ano
letivo, até aquele aluno ir para o ensino médio e você não vai mais vê-lo. Hoje em dia eu
sinto das gestões das escolas que estou das estaduais também, é que tem respaldo dentro
do que eles conseguem fazer é claro, alguns colegas meus reclamam que não tem muito
respaldo, mas às vezes eu tenho essa impressão, eu vou colocar essa opinião mais como
uma dúvida. Tem colegas professores com uma certa frequência se veem em situações
de conflito e você tenta observar um pouco a prática daqueles colegas e você percebe que
um pouco daqueles conflitos ele acaba gerando também, a maneira que ele se posiciona.
A maneira que ele tenta resolver alguma coisa. Hoje em dia o que percebo das minhas
aulas, os conflitos, claro que eles existem, é claro que tem situações que fogem a meu
controle, mas eu acho que consegui diminuir muito os conflitos em sala de aula, às vezes
que eu tenho um conflito ou outro nos últimos dois, três anos eu tenho sentido um certo
respaldo da direção. Mas eu entendo hoje que é um pouco da experiência, você vai
ficando mais maduro ou mais conservador sei lá, e você entende que a gestão também
tem limites. Qual respaldo que uma gestão vai dar? O aluno vai e xinga você, a gestão
vai lá dá aquela bronca no aluno, fica ali importunando a família para ver se a família dá
jeito nessa criança. Só que nós temos um conjunto de legislação que para que você
consiga fazer alguma coisa te dá um trabalho tão grande que essa burocracia vai te
sufocando. Eu não acho que a saída seja ficar punindo esses alunos, embora eu recorra a
isso com frequência. Eu acho que deveria ter espaços para poder conversar com esses
alunos, mas aí volta o começo da conversa, não tem. Às vezes a gestão dá respaldo, às
vezes não tem como dar respaldo. Às vezes a gestão é omissa. Eu acho que tenho dado
um pouco de sorte. Até um certo ponto a gestão da escola que estou, tenta trabalhar a
situação. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
universitário, o licenciando vai partir do mesmo ideal do Eu para ingressar em sua experiência na
escola básica. Estamos diante de uma segunda camada da formação docente.
Talvez seja por isso comum os professores de educação básica gostarem de dar aula para
estudantes da EJA, Educação de Jovens e Adultos. Com estudantes adultos, mesmo na educação
básica, seu ideal do Eu se aproxima dos ideais dos professores na universidade e daquelas
experiências de formação. A professora Denise nos revela que dar aula na EJA é mais tranquilo.
Inclusive eu tive ensino médio, minha disciplina Química é ensino médio, mas eu fui pegar
Química agora, este ano, foi a primeira vez que eu peguei Química. Então quando eu
eventuava no ensino médio era muito ruim, eu eventuava em duas escolas. Eu eventuava
em duas escolas de manhã, eu eventuava no ensino médio e a tarde, eu eventuava no
fundamental. O período da manhã era horrível para mim, porque eu me sentia péssima na
sala do ensino médio, muito desvalorizada. Os alunos do ensino médio não querem saber
muito, de 35 alunos, 4 alunos faziam as lições. (...) Era muito ruim, eu saia de lá muito
mal. Foram 2 anos que eventuei nesta escola, porque era minha escola sede, então eles não
aceitavam que eu não lecionava lá. Porque lá tinha muita aula de eventual. Eu trabalhava
bastante, mas era muito ruim, muito, muito... A clientela do ensino médio lá era muita falta
de respeito comigo. Eu tive até uns traumas, eu odiava esta faixa etária. Ai agora que eu
peguei o ensino médio como meus alunos de Química aí é outra coisa. E até melhorou
assim para mim, porque eu tive este trauma do ensino médio, porque eram meus alunos,
porque eventual ensino médio é ruim, mesmo com a parceria que tinha com outros
professores que eu comentei, o ensino médio não funciona muito eventual. (...) Foi ruim
mesmo, eu digo mesmo que foi traumatizante, eu tinha os alunos da faixa etária do ensino
médio aí eu comentava com meu marido: “ai meu Deus é ensino médio, nossa!” Era ruim,
era muito ruim. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
Interessante observar que a posição do professor eventual precariza seu trabalho e sua
própria experiência de mal-estar. A professora Luana destaca que sua situação melhorou, no
relacionamento com os estudantes do ensino médio, quando assumiu aulas – não mais como
professora eventual. Entretanto, teve que lidar com seus recursos psíquicos e de tempo de
magistério com o “choque de realidade” relacionado ao seu trabalho.
Sabemos que um trabalho artesanal, para se realizar, precisa de uma certa relação com o
tempo, o qual, inclusive, permita ao professor enfrentar psiquicamente situações bastante adversas,
que lhe atravessam no mundo interno e externo, que possam ser digeridas, pensadas, refletidas. A
dinâmica social e escolar mediada pela produtividade e pelos resultados produz efeitos na formação,
nas possibilidades de experiências. Colocam em crise a própria possibilidade de experiência.
Adorno (2010) aprofunda a discussão em torno da formação na contemporaneidade. Em
um ensaio intitulado Teoria da semiformação, critica a noção de formação que habitualmente está
relacionada à produtividade. O autor critica também a premissa de que a formação cultural seria
um objeto restrito à pedagogia ou à sociologia bem aplicada aos problemas cotidianos. Adorno
dialoga com uma perspectiva de formação freudiana, profunda, que leve em conta a experiência e
as marcas constitutivas do sujeito. De tal modo, Adorno (2008, p. 152) assevera que:
deve pensar bobagens” e que, em certo sentido, é bastante realista não formar o eu tanto
assim e seguir o surrado provérbio berlinense “sou bobo, mas sou feliz”.
Dentro da PEI tem aquela reunião de ATPC e tem o ATPCG. É ATPC geral. Este ATPCG
seria a formação. Só que nós não temos formação. São todas as segundas-feiras a partir
das 14h da tarde. Isso para quem faz o horário das 7h às 16h30. Então às 14h da tarde vem
a direção e eles chamam um professor de fora, um professor que tem mestrado, doutorado
para dar formação. Isso não existe, isso é conversa. Isso é lábia... Rossieli, Dória, etc.,
mentira! Por quê? Porque é só bronca, você fez isso, você fez aquilo. E ela expõe, a
direção, expõe o que fez de errado na frente de todos os professores. Eu fiquei tão mal por
isso que eu tomei remédio. Eu fui ao psiquiatra mesmo. Eu fiquei tão mal porque era o
centro do problema dentro da escola porque eu sou professora de Filosofia. Agora você
pode falar assim não era você, você que está achando isso. Não, impossível. Impossível
porque eu fazia o melhor possível, eu conheço minhas aulas. Se eu passar para você meia
dúzia de alunos meus, eles só vão falar: poxa, aquela professora é demais. Meu ela fala
mesmo a real, o que está acontecendo no planeta, fala do filósofo, descasca o filósofo para
gente. É impressionante. Eu faço isso porque eu estudo. Eu deixei de estudar para mim,
mas eu estudo para o meu aluno, isso eu faço. Isso eu faço mesmo porque eu gosto. Só
que a gestão é horrorosa. Então no espaço que você tem para ir fazer um estudo, para você
melhorar você, ele destrói você. Então essas reuniões elas são para destruir você. E poucas
formações que nós tivemos eram coisas que não há necessidade de ter. Não há, é água com
o açúcar, coisa que você sabe na prática. Não precisa ninguém falar, não precisa. Então
assim eu me senti perseguida nessas reuniões de formação. Não teve formação. A
formação que a gente tinha para não dizer que não tinha nada é o Centro de Mídias. Ah se
quer fazer uma formação vai lá no dia tal e no dia tal que vai ter uma live de um professor
que você nem conhece. Pronto, a gente vai assistir aquela formação que era sempre a
mesma coisa. Eu tenho várias formações anotadas que conforme eles iam falando eu
anotando. Se você for comparar tudo igual. Todas as mesmas falas. Não adianta mudar o
verbo, muda o verbo, mas o contexto é o mesmo. Então não acho que aquilo foi formação
é o que eu penso. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
perspectiva das gestões com relação aos professores, mas também de sociabilidades que
tornam-se persecutórias entre os próprios professores, nos quais as diferenças de identidade
docente que marcam cada professor sejam vistas como um problema, numa tentativa de
regulamentar de modo fechado a maneira como o conflito deve se estabelecer na escola44. Além
disso, convoca nos indivíduos dimensões muitas vezes (auto)destrutivas que não encontram
vazão e/ou mediação na própria realização do trabalho.
O professor João diz que, na rede estadual, em comparação à rede municipal, esses
espaços de formação são mais precários porque menores e divididos entre áreas para tornar a
discussão mais especializada. Com mais reuniões na semana, o coordenador pedagógico não
dá conta de fazer e planejar os encontros, que acabam determinados pelas necessidades
imediatas como preencher diários e planejar aulas. Ainda, muitas vezes os espaços de formação
servem para o professor descansar de uma jornada exaustiva. Esses espaços tornam-se, pelas
necessidades externas e a jornada de trabalho, lugares poucos reflexivos.
Eu vou falar do Estado que é o foco da sua pesquisa. O da prefeitura depois de você dar
10, 12 aulas a verdade é que ninguém tem paciência para pensar sobre questões
pedagógicas. O pessoal quer sentar um pouco e descansar duas aulinhas até poder ir
embora. No Estado a situação é mais precária porque os espaços de reuniões
pedagógicas são menores. O governo ele fez uma reforma recente. Esta reforma saiu em
dezembro de 2018 e nesta reforma ao mesmo tempo que ele diminuiu o tempo de aula
de 50 minutos para 45 minutos no ensino fundamental e no ensino médio durante o dia
ele aumentou as horas de ATPC, as reuniões pedagógicas. Eu por exemplo eu tinha duas
reuniões de 50 minutos. Agora eu tenho 3 reuniões de 45 minutos. E as aulas caíram de
50 para 45. Tem professores com jornada de 20 aulas, porque eu tenho só 12 aulas, é
proporcional a jornada que você tem. Eu não vou lembrar todas de cabeça, depois eu
posso até tentar achar a tabela e te mando. Tem uma tabela para isso. Quem tem 20
aulas, no caso de alguns colegas meus, eles têm que fazer 5 ATPCs por semana. E com
a nova regra, o que eu até entendo, você não pode fazer picado em cada dia. Separaram
por áreas, na terça feira são ATPCs de humanas, na quarta feira os ATPCs de
linguagens, e quinta feira são os de ciências da natureza e matemática. Eu não posso
fazer ATPC em outro dia que não seja na terça feira. A ideia do governo é concentrar
por áreas para tentar fazer uma discussão mais especializada, mais focada. As reuniões
têm sido melhores? Na prática não, o resultado é muito parecido com os ATPCs antigos.
Os professores correm pra usar este tempo para preencher diário, para preparar
44
Apesar de estarmos analisando a dinâmica de trabalho dos professores no setor público, aos quais o capital não
age de modo direto, produtivo, do ponto de vista de sua valorização, como no caso do setor privado, mas, do ponto
de vista indireto, “improdutivo” (MARX, 2004b), a lógica da racionalidade do capital atravessa de modo
específico todos os espaços sociais (LAVAL, 2019). Como aponta Ab´Saber (2016) em um paciente, pelo qual, a
simples diferença produzida pela mudança do filtro de ar no ar-condicionado para melhor respirar no trabalho, era
vista pelos colegas como forma de se distinguir, de querer aparecer. “O episódio do filtro de ar, para poder respirar
um ar um pouco melhor, que lhe desse a própria vida, que confronta os fantasmas persecutórios totalitários do
grupo onde se trabalha é altamente significativo da ordem radical da alienação contemporânea: a diferenciação
necessária, ligada à natureza do próprio self, corre o risco de ser punida por significar, imediatamente, um
excedente de valor, uma apropriação da riqueza do todo do grupo, que só faz se apropriar financeiramente da
riqueza socialmente construída. Constituir-se numa esfera de mínima identidade particular, uma qualidade, diria
meu paciente, é, de certo modo confrontar diretamente na natureza do todo, que reage em bloco com ansiedades
paranoides básicas. O sujeito precisa ter uma densidade egóica suficiente e reconhecer minimamente o valor vivo
do que não é valor de troca e fetiche para poder sair desta arapuca, pagando o preço e reconhecendo a angústia
produzida no campo do todo, na má mãe cultura, que é a nossa.” (AB´SABER, 2016, p. 21,22).
105
atividades. Os coordenadores como agora eles têm mais dias para fazer reuniões e as
demandas administrativas aumentaram por causa deste trabalho online, remoto etc., eles
não conseguem dar as reuniões. Então se tem um espaço que é pequeno que não daria
para fazer uma boa reunião pedagógica, mesmo assim ela não acontece na prática.
Voltando à sua pergunta: tem espaço? Tem! É suficiente? Não. As reuniões acontecem
como deveriam? Também não. O que explica um pouco os problemas. Você não tem
aespaço adequado para discussão. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
O professor Pedro diz que os espaços de formação na escola são para agradar à SEDUC
e não trazem as situações relacionadas à escola. Desconsideram, portanto, a realidade objetiva
do excesso de estudantes em sala de aula e as dificuldades do professor em seu dia a dia.
Eu me formei há quanto tempo... No meu tempo foi assim, eu acredito que hoje
também, os cursos de licenciatura não preparam professor para a sala de aula mesmo.
Nós temos formações oferecidas pelo governo do Estado, mas não acho eficaz, porque
são formações elaboradas por pessoas que primeiro estão fora da sala de aula. E
segundo esta formação tem que na verdade agradar a Seduc. Tem que agradar órgãos
distantes da sala de aula. Eu acho que a formação docente de um modo geral, e as
formações são ineficazes, na medida que elas desconsideram realmente a condição da
sala de aula: 30, 35, 37 alunos, alunos oriundos de lares problemáticos, alunos já com
problema de depressão. A gente deveria ter formações que explicassem realmente
uma maneira nova de se ensinar. E não ficar com um discurso somente teórico que
funcionaria com uma sala com 12, 15, 17 alunos. O distanciamento de quem elabora
estas formações para a sala de aula é muito grande, por isso que eu considero que elas
sejam ineficazes. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
Um dado muito comum das entrevistas é o relato de uma certa cisão dos que produzem
ou coordenam a formação daqueles que estão na sala de aula. Isto reflete uma visão que os
professores têm da universidade e daqueles que se afastam do trabalho na sala de aula.
Consideramos que esta visão é resultado do efeito da padronização da formação combinada à
precarização do trabalho docente.
O tempo de formação é afetado pela jornada de trabalho e pelo recorte organizativo das
reuniões que servem a demandas externas, a preencher burocracia, broncas etc. Isso certamente
tem um efeito na maneira como o professor se vê, destituído de uma dimensão intelectual,
reflexiva e, também, apontando para aqueles formadores que, além de não darem repostas para
o intenso mal-estar com o qual o professor tem que conviver, aparecem como os que estão no
lugar do saber, como se expropriassem o próprio saber do professor de escola básica. Há, então,
um lugar do intelectual externo e daquele que está sob o trabalho manual. É nesta divisão de
trabalho que os professores se colocam nas entrevistas. Eles estão com “a mão na massa”, ao
contrário dos que estão fora, nas teorias.
Isto pode produzir um certo ressentimento do professor com relação à formação,
heterônoma, daqueles que se colocam neste lugar do saber. A Universidade, o Centro de Mídias,
os coordenadores acabam entrando todos, indiscriminadamente, nesse lugar. Das condições
objetivas de cisão do trabalho do professor em sua dimensão intelectual e manual se expressa
106
uma forma subjetiva de cisão daqueles que estão dentro e fora da sala de aula. É como nos
coloca o professor Fernando.
(...) Porque é raro o coordenador pedagógico que está preocupado com pedagogia, ele
está preocupado com burocracia. Entrega disso, entrega daquilo, um pouquinho mais de
salário, 300 paus. Um carguinho, não entro em sala, não lido mais com aluno
maloqueiro. É isso que eles estão preocupados. Para você ter uma noção a coordenadora
do ano passado que foi coordenadora pela primeira vez agora ela vai se tornar pela
primeira vez este ano vice-diretora. Então ela fez um ano de cargo de coordenação e
agora quer ser vice-diretora. Como foi os ATPCs este ano inteiro? Vagos, eu ficava o
dia inteiro na sala, na escola, andando pela escola. Não tinha nenhuma atividade para
ser feita. Ah então não tem atividade, então faz o seguinte, entra para lá no CMSP lá e
assiste online. É online até tinha umas atividades legais que o Estado está dando, está
oferecendo. Só que tinha umas que foi muito viajando, pô professor que foi lá ensinar o
que era RPG. Se fala mano, sério? A gente sabe né... o que a gente não consegue é fazê-
lo com 40 alunos. Faz essa, quebra este galho, como a gente vai fazer esta aventura de
RPG com 40 alunos da favela. A gente vai falar de Delfos, Orgues e dragões, outra
realidade. A Idade Média aqui foi diferente. A gente pode contemplar porque no P.
continua a haver Idade Média, lá ainda não tem esgoto, ainda lá não tem asfalto. Então
assim difícil estes momentos de aprendizado, de formação de fato que fosse relevante
deste povo. Para o professor até é relevante, para mim é até legal porque eu acabo
aprendendo mais. Agora para os estudantes eu não sei como isso é convertido para os
estudantes. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
Esta divisão, daqueles que estão fora da sala de aula e daqueles que estão dentro,
combinada à precarização da formação do professor, produz, muitas vezes, uma aversão ao que
se denomina como trabalho intelectual, seja real ou aparente. O trabalho teórico na educação
acaba por ser mal-visto pelos professores. O efeito disso pode se apresentar através de um certo
anti-intelectualismo resultado das condições objetivas do ofício docente. Para Adorno (2008, p.
136), o anti-intelectualismo se “relaciona, em última análise, com a divisão do trabalho intelectual
e trabalho braçal e com o ressentimento daqueles que são excluídos do trabalho intelectual e do
ócio, mas que, em razão de mecanismos sociais de obnubilação, não se dirige contra as causas e
sim contra os que são os seus beneficiários, pretensos ou reais.”
Por outro lado, Adorno (2010) nos coloca que é próprio da pseudoformação a utilização
de um campo epistemológico que acaba por cindir as condições objetivas em que se estabelece
a formação. O próprio trabalho de pesquisa em educação, sob esta dinâmica, separa as
condições subjetivas das condições objetivas. É o que denúncia o professor Fernando, “a Idade
Média aqui foi diferente”. É nesse contexto, pelo viés da produção científica, que se
constituíram as formulações da Teoria Crítica:
Não é o significado da teoria em geral que é questionado aqui, mas a teoria esboçada
“de cima para baixo” por outros, elaborada sem contato direto com os problemas de
uma ciência empírica particular. (...) Na medida em que o conceito da teoria é
independentizado, como que saindo da essência interna da gnose (Erkenntnis), ou
possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria
coisificada (verdingkichte) e, por isso, ideológica. (HORKHEIMER, 1989, p. 33-5).
107
Como se pudéssemos formar um sujeito que não vive diante das próprias pressões
imediatas de sobrevivência, inclusive gestores e coordenadores, que lhes fazem recorrer às
categorias fixas de entendimento para dar respostas ao próprio ritual de funcionamento da
máquina educacional. Há toda uma formação que se constitui através destas cisões, destas
separações que se dão no campo da realidade social e seus conflitos e no campo epistemológico.
É assim que Adorno (2010) ironiza os professores e intelectuais que viveram na época
do nazismo, pois o fato de terem acesso a uma formação erudita não lhes privou de servirem ao
nacional-socialismo. Tal dissociação torna-se uma marca da pseudoformação.
Max Frisch observou que havia pessoas que se dedicavam, com paixão e compreensão,
aos chamados bens culturais, e, no entanto, puderam encarregar-se tranquilamente da
práxis assassina do nacional-socialismo. Tal fato não apenas indica uma consciência
progressivamente dissociada, mas sobretudo dá um desmentido, objetivo ao conteúdo
daqueles bens culturais – a humanidade e tudo o que lhe for inerente – enquanto sejam
apenas bens, com sentido isolado, dissociado da implantação das coisas humanas. A
formação que se esquece disso, que descansa em si mesma e se absolutiza, acaba por
converter-se em semiformação. (ADORNO, 2010, p. 10).
A formação acadêmica foi legal, foi bacana. Eu achei que foi ótima até para área da
educação em geral, bem ampla. Mas por exemplo nenhuma das disciplinas que a gente
teve com a H., com ninguém na parte da educação você contemplava de fato a educação
para ex-escravos. A gente não tinha na formação a ideia de que a gente tem que trabalhar
de maneira diferente com as pessoas que são tratadas como ex-escravos, como marginais,
como bandidos que não produzem cultura. A gente não teve uma disciplina para trabalhar
isso. Então era muito louco porque a gente tinha lá um pensamento de escola estruturada
dentro da ideia da igualdade, sim é era muito legal. Vamos trabalhar o Piaget, as formas
artísticas... e escola da Ponte, que legal vamos trabalhar sem fronteiras, sem barreiras,
sem limites. A gente dá aula dentro de uma sala de cadeia. E se a gente sai da sala de aula
é pior, porque a visão é mais feia. O pátio é mais feio, a quadra é mais feia, tudo dentro
da escola é horroroso, causa angústia. Então assim nenhum dos pensadores contemplava
para esta realidade, porque esta realidade é muito recente. Ninguém trabalha isso de fato.
Quem está trabalhando estas questões, às vezes nem é da educação. Você vai trabalhar
com um pessoal que trabalha a parte... tem gente de psicologia e psicanálise que entende
108
muito melhor essas questões do que a própria educação, do que a história. A gente foi
começar a trabalhar, a gente tem um quadrinho sobre escravidão do Brasil a menos de 10
anos aí, de um especialista o Marcelo d´Salete. Então assim antes não tinha nem isso. Os
negros não falavam sobre eles. A cultura dos negros, que ainda é considerada banditista
até hoje é considerada banditista. Funk ainda é coisa de bandido. Então o moleque vai
vestido de funkeiro é bandido. E aí depois de tanto tempo que você é tratado desse jeito
por que não ser? Só leva, tô passando fome, passando mó veneno, por que não ser? E o
problema é quando ele começa a acreditar que ele realmente é. Ou então tá bom, eu não
vou ser, o que eu tenho que ser? Então eu vou ter que abdicar da minha cultura, da minha
experiência de vida para ser um civilizado como você quer que eu seja? Bacana,
obrigado, é isso que eu preciso. Aí fica aquele pobre de direita reproduzindo os valores,
reproduzindo aquilo que o patrão classe média quer dele. É triste porque aí este cara
vendeu toda a história dele, ele já não se enxerga como igual. Ele se enxerga como
superior. Dentro da própria quebrada. E vai gerando conflito dentro da quebrada. A
Universidade não consegue observar essas minúcias, estas microrrelações que acontecem
do macrocosmo que é a favela. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
4. O MAL-ESTAR E A DESTRUTIVIDADE
Walter Benjamin
Sigmund Freud
Friedrich Nietzsche
45
Em 1914, Freud escreve Contribuição à história do movimento psicanalítico, no qual faz um balanço da construção
da psicanálise até ali e levanta as questões que, a seu ver, produziram as rupturas de Jung e Adler. Freud demonstra
estar bastante incomodado. “Não é coisa fácil ou invejável narrar a história desses dois movimentos de separação, já
que, por um lado, faltam-me fortes impulsos pessoais para fazê-lo – não esperava gratidão, nem sou vingativo em grau
eficaz; por outro lado, sei que nisso me exponho às invectivas de adversários pouco escrupulosos e ofereço aos inimigos
da psicanálise o tão ansiado espetáculo de ‘psicanalistas dilacerando uns aos outros’. Foi-me necessária muita
superação para não pelejar com adversários de fora da psicanálise, e agora me vejo obrigado a encetar a luta com
aqueles que dela foram seguidores, ou ainda se consideram tais. Mas não tenho opção; silenciar seria cômodo ou
covarde, e prejudicaria mais a causa do que a revelação direta dos danos existentes.” (FREUD, 2012c, p. 303).
46
Urania Tourinho Peres no posfácio de Luto e Melancolia, de 1915, obra que o psicanalista escreveu em meio à
guerra, assinala que “Freud confronta-se, ainda, com a possibilidade da morte de uma pessoa amada. Dois de seus
filhos encontram-se na guerra, e a expectativa angustiante de notícias o acompanha. Ele será avisado de que uma
bala atravessara o gorro e outra havia roçado o braço de seu primogênito que lutava na Galitzia (...) Constatamos,
desse modo, que o tema da morte o domina: o temor da perda de filhos amados e a iminência do afastamento de
um discípulo idealizado, que lhe acenava a decisão de abandoná-lo na luta pelo avanço da psicanálise. Vive, assim,
a possibilidade tanto da perda de um ente querido pela morte, como a perda, por abandono, de um discípulo
igualmente querido. Podemos ainda lembrar que havia perdido Emmanuel, irmão por parte de pai, em um acidente
ferroviário ocorrido um ano antes. Empreende, então, uma rica leitura, a partir de sua clínica, da circunstância em
que está inserido e de fatos da própria vida.” (PERES, 2013, p. 64).
110
instinto de morte – está amalgamada à própria lógica do progresso civilizatório o que nos faz
pensar, com Freud, de que não é simples postular a sua existência e dinâmica.
Não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. As manifestações
de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas; era de supor que o instinto de morte
trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo, para a dissolução deste, mas isso
não constituía prova, é claro. Levava-nos mais longe a ideia de que uma parte do
instinto se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão
e destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na medida
em que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si
próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar
a autodestruição, aliás sempre existente. (FREUD, 2010a, p. 86).
É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável:
a faculdade de intercambiar experiências. (...) No final da guerra, observou-se que os
combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres
em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de
livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca
em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais
radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a
experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde
puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera
inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e
explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.
Sabemos que Freud não passou incólume a esses períodos históricos, tanto do ponto de
vista pessoal (ao se exilar em Londres, ao fugir do nazismo, além de ter dois filhos diretamente
envolvidos no front da guerra e perder uma filha e um neto para a pandemia de gripe espanhola;
assim como atender pacientes que voltavam da guerra), quanto sua produção na psicanálise foi
também influenciada por esse contexto.
Já no início da Primeira Guerra Mundial, o psicanalista refletiu sobre os efeitos e o
legado da guerra. Em Considerações atuais sobre a guerra, de 1915, diz:
Quer nos parecer que jamais um acontecimento destruiu tantos bens preciosos da
humanidade, jamais confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão
radicalmente o que era elevado. Até mesmo a ciência perdeu sua desapaixonada
imparcialidade; profundamente exasperados, seus servidores buscam extrair-lhe
armas, para dar contribuição à luta contra os inimigos. O antropólogo tem que declarar
o adversário um ser inferior e degenerado, o psiquiatra tem que diagnosticar nele uma
perturbação espiritual ou psíquica. Mas provavelmente sentimos o mal desse tempo
com intensidade desmedida, não tendo o direito de compará-lo com aquele de tempos
que não vivenciamos. (FREUD, 2010l, p. 210).
111
Neste texto, Freud reflete sobre a importância das ilusões na manutenção da saúde
psíquica e como a guerra, de certa forma, produziu apenas desilusão e decepção. A guerra
desmascarava aqueles Estados que se apresentavam como guardiões das normas éticas, mas
que foram capazes das maiores barbaridades e, igualmente, desmascarava a brutalidade dos
indivíduos que nem a mais elevada cultura arrefeceu.
Por um lado, percebemos as questões do espanto de Freud com tamanha brutalidade e
destrutividade humana que a cultura não conteve. Neste sentido, sem dúvida a guerra é um
fenômeno social e político da maior importância para a virada da teoria freudiana. Por outro
lado, vemos que sua preocupação não era apenas em compreender a dinâmica psíquica, era
também perceber a dinâmica social articulada a ela.
Mas a guerra não pode ser eliminada; enquanto as condições de existência dos povos
forem tão diferentes, e tão fortes as aversões entre eles, há de haver guerras. Então se
apresenta a pergunta: não deveríamos ceder e nos adaptar a ela? Não deveríamos admitir
que com nossa atitude cultural diante da morte vivemos psicologicamente acima dos
nossos meios, mais uma vez, e voltar atrás e reconhecer a verdade? Não seria melhor
dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco
mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos
cuidadosamente? Isso não parece uma realização maior, seria antes um passo atrás em
vários aspectos, uma regressão, mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade
e nos tornar a vida novamente suportável. Suportar a vida continua a ser o primeiro
dever dos vivos. A ilusão perde o valor se nos atrapalha nisso. (FREUD, 2010l, p. 246).
processo civilizatório criou modos de dominação nos quais a agressividade não pode ser
totalmente suprimida e assume determinadas dinâmicas sociais.
À intenção de matar talvez se oponha a reflexão de que o inimigo pode ser empregado
em serviços úteis, quando é deixado com vida e amedrontado. Então a violência se
limita a subjugá-lo, em vez de matá-lo. É quando se começa a poupar o inimigo, mas
doravante o vencedor tem de contar com a expectante sede de vingança do vencido,
sacrifica uma parte de sua segurança. (FREUD, 2010i, p. 420).
Freud alerta para como se ignora “a hostilidade mais latente das camadas favorecidas
da sociedade”, que ficam obscurecidas pela destrutiva ação dos menos favorecidos. Esse
aspecto é fundamental, visto que a dominação se dá muitas vezes pelos discursos e ações
aparentemente mais “virtuosos”. Em nome de combater o mal, praticam-se as maiores
barbáries. A história está recheada de exemplos, mas parece que Freud nos mostra que a
114
dominação tem tamanha força porque ela está nos meandros, nas marcas inconscientes da
cultura, do seu cotidiano.
Na mesma carta para Einstein, Freud refletiu em que condições seria possível conter as
dimensões destrutivas e de violência na evolução cultural. Assumiu as balizas relacionadas aos
instintos de vida e de morte, e como eles estavam em conexão um com o outro. Ambos são
fundamentais para os fenômenos da vida.
47
Em um artigo intitulado O mal-estar na modernidade e psicanálise: a psicanálise à prova do social, Joel Birman
faz uma crítica a tradição psicanalítica que não incorporou o que ele chama do “último Freud”. “Contudo, é preciso
ainda evocar que quase nunca a tradição psicanalítica se manteve fiel a esse deslocamento teórico operado no
discurso freudiano. Em geral, aquela tradição misturava alguns fragmentos do último Freud com alguns dos
conceitos do primeiro, de forma que a tese de que a psicanálise foi colocada decisivamente em questão pelo social
foi esquecida e recalcada. Com isso, a fulgurância crítica do gesto teórico do último Freud foi colocada em
suspensão e no limite conduzida ao silêncio. Isso quer dizer, pois, que nem sempre a tradição psicanalítica se
mostrou condizente e à altura com a leitura crítica de Freud sobre a modernidade. (...) Tudo isso nos revela o
conformismo crítico assumido pela tradição psicanalítica pós-freudiana. Ao silenciar a radicalidade da crítica
freudiana sobre a modernidade, a psicanálise assumiu um tom ao mesmo tempo triunfalista e cientificista, que são
incompatíveis com os argumentos radicais sobre o mal-estar na modernidade. A psicanálise não saiu indene,
contudo, desse esquecimento e silêncio. Essa solução de compromisso lhe custou caro, pois algo da argúcia
psicanalítica se perdeu, evidentemente. Com efeito, a psicanálise como discurso teórico perdeu suas dimensões
ética e política, ficando restrita a uma mera perspectiva terapêutica na qual a harmonia do sujeito no campo social
seria sua finalidade maior. Vale dizer, a psicanálise incorporou, assim, em seu corpo teórico, uma perspectiva
normativa pela qual a medicalização do social pôde se realizar sem resistências na medida em que foi silenciado
o potencial crítico da tese sobre o mal-estar na modernidade.” (BIRMAN, 1998, p. 126).
48
Na época de Freud, as guerras ainda estavam ligadas estritamente aos ideais patrióticos de nacionalidade. O
impactante livro Blackwater: a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo, de Jeremy Scahill,
relata como a empresa de treinamento militar Blackwater tornou-se na guerra do Iraque em 2003 um monopólio
empresarial que treinava e recrutava mercenários no mundo para combater pelos EUA no Oriente Médio,
financiado pelo Estado americano e que representava um novo paradigma para as guerras contemporâneas,
elevando a destrutividade da guerra a um negócio lucrativo para toda ordem de interessados e indivíduos de
nacionalidades distintas. A guerra para a democracia e a liberdade foi um slogan defendido por Bush quando
115
Eu ia para a escola com o uniforme novo, muito bem arrumado, tinha um boné novo, de
fita amarela, ornado de uma notável placa de metal que tinha as iniciais entrelaçadas da
escola, entre dois ramos de três folhas. Nas costas, uma sacola nova com os livros de
invadiu o Iraque em 2003, quando dois militares da Blackwater foram emboscados em Fallujah, cidade ocupada
iraquiana: “Nós enfrentaremos os bandidos e os terroristas que preferem continuar matando inocentes a aceitar o
avanço da liberdade no Iraque.” (SCAHILL, 2008, p. 172).
49
Como traz o historiador Eric Hobsbawn (2002, p. 78) em seu clássico Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-
1991: “No fim, os interesses de Estado da União Soviética prevaleceram sobre os interesses revolucionários mundiais
da Internacional Comunista, que Stalin reduziu a um instrumento da política de Estado soviético, sob estrito controle
do Partido Comunista soviético, expurgando, dissolvendo e reformando seus componentes à vontade.”
50
Em uma troca de cartas e artigos com o Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores) nos Estados
Unidos sobre a natureza política da URSS, Trotsky ironiza: “Alguns camaradas, ou ex-camaradas, como Bruno R.,
tendo esquecido as discussões e decisões anteriores da Quarta Internacional, tentam explicar minha análise pessoal
sobre o Estado soviético, recorrendo à psicanálise: “Uma vez que Trostky participou da Revolução Russa, é difícil
que abandone a idéia de Estado operário, porque teria que renunciar à causa de toda sua vida. (...) Creio que o velho
Freud, que era muito perspicaz, teria dado um grande puxão de orelhas nestas espécies de psicanalistas. Naturalmente,
não me atreveria a fazer o mesmo. No entanto, atrevo-me a assegurar aos meus críticos, que o subjetivismo e o
sentimentalismo estão neles, e não em mim.” (TROTSKY, 1942, p.39).
116
Será que estamos diante da “vingança dos dominados”, como nos lembra Freud nessa
cena um tanto curiosa que Trotsky nos revela? A mesma agressividade que produz a barbárie
produz também o protesto social, afinal, assim há os deslocamentos de poder, tornando mais
igualitárias as relações na história? A marca do pensamento freudiano é que não é possível a
reconciliação dos instintos com a cultura. Isso não significa que a dinâmica social não possa
favorecer em maior ou menor medida impulsos destrutivos dos indivíduos51. A guerra, na forma
em que ela assumiu no século XX, talvez seja a expressão maior dessa destrutividade sem limites.
Freud também dará sua saída para conter ou deslocar estas dimensões destrutivas. A
educação de indivíduos autônomos e determinados pela razão são fundamentais para a
constituição de uma comunidade que fique menos refém destes impulsos. Freud sabia que, em
sua reflexão em Psicologia das massas e análise do eu, as massas são facilmente guiadas por
líderes por identificação.
51
Adorno, em Educação contra barbárie (2006), discute a ação de jovens e adultos mediadas por reflexão, as
quais, mesmo que rompam os limites da legalidade, não expressariam a barbárie (que ele define como esta
violência primitiva a qual se aproxima da caracterização da destrutividade, do instinto de morte de Freud), mas
que a intervenção exagerada da polícia em movimentos como este, sim. “Certamente penso assim. Se examinarmos
mais de perto os acontecimentos que ocorrem atualmente na rebelião estudantil, então descobriremos que de modo
algum se trata neste caso de erupções primitivas de violência, mas em geral de modos de agir politicamente
refletidos. Se neste caso esta reflexão é correta ou equivocada, isto não precisa ser discutido agora. Mas não é
verdade que se trata de uma consciência deformada, imediatamente agressiva. Os acontecimentos são entendidos,
na pior das hipóteses, como estando a serviço da humanidade. Creio que, quando um time de fora que vence é
ofendido e agredido num estádio, ou quando um grupo de presumíveis bons cidadãos agride estudantes ainda que
só mediante palavras, podemos apreender de um modo radical, a partir desses exemplos tão atuais, a diferença
entre o que é e o que não é barbárie.” (ADORNO, 2006b, p. 160).
117
Freud finaliza seu texto na aposta, apesar dos descaminhos da civilização, do papel da
cultura no deslocamento dos impulsos destrutivos. A razão, o intelecto, assim como a internalização
da agressividade voltada ao convívio social, tornam-se ganhos do processo civilizatório. “Duas
parecem ser as mais importantes características psicológicas da cultura: o fortalecimento do
intelecto, que começa a dominar a vida instintual, e a internalização da tendência à agressividade,
com todas as suas consequências vantajosas e perigosas.” (FREUD, 2010i, p. 434).
Do ponto de vista clínico, a Primeira Guerra Mundial resultou em homens que estiveram
sob o impacto de imensa violência. A “neurose de guerra” transformou-se no sintoma daquele
momento histórico. E a teoria freudiana teve que se modificar para compreender o fenômeno da
destrutividade que aparecia na clínica com pacientes que resistiam inconscientemente às mudanças,
tomados pela chamada “compulsão à repetição”, que se estabelecia pela transferência entre paciente
e analista e, também, por conta de fenômenos externos, sociais (FREUD, 2010d).
A “neurose de guerra” torna mais complexa, igualmente, a teoria do trauma na psicanálise.
Ou seja, um mundo externo pode produzir um transbordamento que rompe e ultrapassa as defesas
e barreiras do psiquismo nos adultos. E inclusive pode se sobrepor às próprias memória e
singularidade que marcaram o indivíduo em sua fase infantil. 52 A guerra, como nos mostram
Benjamin e Freud, é um fenômeno externo de destruição da experiência singular. O que faz com
que o próprio sonho não seja mais a realização de um desejo, mas a tentativa de uma forma
“enviesada” de elaboração por compulsão desse transbordamento, deste impacto.
Aqui seria, então, o lugar de admitir pela primeira vez uma exceção à tese de que o sonho
é uma realização de desejo. Os sonhos de angústia não constituem exceções tais, como já
demonstrei repetidamente e em detalhe, e tampouco os “sonhos de castigo”, pois apenas
substituem a realização proibida do desejo pelo castigo que lhe é apropriado, sendo,
portanto, a realização de desejo da consciência de culpa que reage ao instinto repudiado.
Mas os supramencionados sonhos dos neuróticos traumáticos já não se incluem na
perspectiva da realização de desejo, nem os sonhos, ocorrentes nas psicanálises, que nos
trazem à memória os traumas psíquicos da infância. Eles obedecem antes à compulsão de
repetição, que na análise, de fato, é favorecida pelo desejo (encorajado pela “sugestão”)
de evocar o que foi esquecido e reprimido. (FREUD, 2010d, p. 196).
Diante dos efeitos das dinâmicas sociais e históricas no psiquismo dos indivíduos, aos quais
afetam diretamente os caminhos e deslocamentos da libido e da agressividade, como nos mostra
Freud no percurso de sua obra, avançaremos no decorrer dos próximos capítulos nos
52
Em Inibição, sintoma e angústia, Freud levanta a possibilidade da angústia também ser determinada pela
intensidade dos fatores externos e não somente pelo “medo”, “angústia de castração”. “Há a considerar também
que nas vivências que levam à neurose traumática é rompida a proteção contra estímulos externos e quantidades
muito grandes de excitação se aproximam do aparelho psíquico, de maneira que uma segunda possibilidade se
apresenta: a angústia não apenas é sinalizada como afeto, mas também é produzida como algo novo nas condições
econômicas da situação.” (FREUD, 2014c, p. 70).
118
desdobramentos psíquicos destes efeitos. A análise dos sonhos observada por Freud nas neuroses
traumáticas no colocam como questão para pensarmos a relação dos professores com seus sonhos.
O fenômeno clínico dos sonhos, em Freud, nos fez pensar, a partir da análise dos dados
da pesquisa, se os professores sonham com o trabalho. Diante da intensidade dos fenômenos
sociais de conflito no trabalho, como será que o sonho aparece em suas vidas? Esta não foi uma
pergunta feita aos entrevistados e nem apareceu espontaneamente nas entrevistas. No entanto,
para pensar se esta é uma questão válida, resolvemos retomar o trabalho de escuta, como
combinado com os professores conforme as análises de dados fossem colocando questões, e
perguntar a um dos professores entrevistados se ele sonha com o trabalho. Sua resposta foi
muito interessante e realmente dá margem para a ampliação das pesquisas sobre o mal-estar
dos professores a partir dos sonhos relacionados ao trabalho docente53.
Raramente tenho sonhos. Durmo como uma pedra. Isso no geral... Sobre o trabalho,
acho que já olhei tempo demais para o abismo. No geral, volto para casa e sigo de
boa. Alguns dias mais cansado, outros menos. Mas acho que tem mais relação com a
jornada extensa. Quando dou uma prensa num aluno encapetado, isso não me abala
mais, eu acho. Pelo menos não tem produzido sonhos ou pesadelos. Talvez seja de
pessoa para pessoa. Sou um sobrevivente. Com o tempo, você aprende a ser um ator.
Sério! Hoje dou aquelas explosões controladas em sala. No momento seguinte tô
fazendo piada na sala dos professores. E minha pálpebra nos olhos não treme há anos.
Parece uma forma de adaptação...
Ah deve ser isso mesmo. Vejo minha irmã. Ou alguns colegas novos. Vejo eles
sofrendo coisas que sofria anos atrás. Mas hoje devo ter feito esse processo que você
falou. Daí vejo uns colegas que não seguram a sala de aula. Eles saem extremamente
alterados das aulas no fim do dia. Atualmente eu só saio cansado. Sei lá viu... A gente
precisa sobreviver né... E vamos tocando o barco... (risos). Hoje eu entendo o R.
(antigo diretor de sua escola que se aposentou). Nossa agora fiquei pensando... Por
que não tenho sonhos ou pesadelos? Ou se tenho, não consigo lembrar? Estranho.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
Resolvemos escolher o professor João para fazer esta pergunta porque, após a entrevista,
ele disse que só aceitou participar e falar de todas as questões porque sabia de minha origem e
história como professor de educação básica também. Acreditamos que esta constatação de
53
José de Souza Martins, em seu livro A sociabilidade do homem simples, resgatou a tradição sociológica dos estudos
dos sonhos. Em um determinado trecho diz: “Florestan Fernandes, num estudo sociológico pioneiro sobre os sonhos
de habitantes da cidade de São Paulo, no início dos anos quarenta, sugere justamente, em curta e fundamental
passagem que o sonho é, para o homem comum, mais do que o sonhar. Para o homem comum, o sonho não se separa
da interpretação do sonho. Sociologicamente, o sonhado é o interpretável. Basicamente, “porque o indivíduo se
utiliza, nessas circunstâncias, de representações coletivas, a interpretação do sonho aparece como um fenômeno
social, estando mais em função da cultura do grupo, que do próprio indivíduo.” (MARTINS, 2015, p. 60). O
lançamento recente do livro Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia, de 2021, por
eminentes psicanalistas, que trata da dimensão traumática da pandemia representada no sonho dos brasileiros, mostra
como o espaço para a análise da dimensão social no psiquismo é campo rico para pesquisas e interpretações.
119
identificação e transferencial com o pesquisador é um dado de pesquisa que diz sobre sua
condição docente. Nos parece que esta afirmação do professor João entra na “cisão externa”
que se estabelece através da precarização do trabalho docente que já discutimos nesta
dissertação, no tópico de formação.
A “cisão externa” é resultado de um processo de empobrecimento intelectual do professor
a partir da desvalorização e da separação, alienação 54 do “trabalho manual” do “trabalho
intelectual”. Aqueles que estão fora (acadêmicos, especialistas, gestão...) da sala de aula, passam
a serem reconhecidos socialmente como os que têm as respostas para o mal-estar docente, o que
produz ressentimento social e uma ligação libidinal que unifica o grupo dos professores em um
discurso do “nós e eles”, “aqueles que estão no chão da sala de aula” e os que não estão.
Libido, aliás, como nos mostra Freud, que quando obstaculizada, empobrecida em seus
objetos (de intelectualidade), precisa encontrar outro investimento, seja em si ou em outro
objeto. Neste sentido, o professor tem receio de ser desmentido55 “por aqueles que estão fora,
portanto não conhecem a sala de aula e a escola”.
A resposta do professor João sobre seus sonhos é muito significativa e tentaremos
desenvolver os desdobramentos conceituais que ela mobiliza ao longo da dissertação.
É importante destacar que o professor vai produzindo uma defesa não só externa, da “cisão
externa”, daqueles que estão dentro e daqueles que estão fora da escola, sobretudo, interna, no que
Ferenczi denomina “cisão do Eu”56, a qual se torna a expressão de uma forma de adaptação do
indivíduo a situações constantemente hostis. Uma parte do Eu é reprimida e a outra introjeta o
54
Sobre o processo de alienação, Karl Marx estabelece que: “O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se
exterioriza, é um trabalho de auto-sacriício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Ausserlinchkeit) do
trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o
trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim como
na religião a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do
indivíduo sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do
trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.” (MARX, 2004, p. 83).
55
Sándor Ferenczi em sua teoria do trauma demonstra que um indivíduo pode sofrer uma situação de violência,
de abuso, de dor num primeiro tempo, porém, em um segundo, o ambiente. ao não reconhecer sua dor, produz
uma intensificação do sofrimento ou a própria dimensão traumática, tornando a experiência mais dolorosa pelo
desmentido do que pelo ato de violência em si. Como diz o psicanalista e pesquisador de Ferenczi, Eugenio
Canesin Dal Molin, na revista Cult de agosto de 2022, “Em situações de violência contra criança, as tentativas de
comunicação que esta faz sobre o primeiro choque são invalidadas, desacreditadas, negadas, desmentidas pelos
adultos”. Esta categoria pode ser utilizada, por exemplo, nos casos de racismo ou de abuso sexual em que a vítima
é desacreditada e culpada pelo ato de violência. Bastante comum no Brasil, no caso dos professores, há uma prática
de culpá-lo individualmente por uma crise educacional que tem vários determinantes.
56
Como nos coloca Eugênio Canesin Dal Molin na revista Cult de agosto de 2022, “sentindo-se completamente
sozinho, a agonia física e psíquica torna-se mais intensa e conduz a uma clivagem do eu que se faz acompanhar,
paralelamente, da identificação com o agressor (...) ao render-se, o indivíduo faz algo da ordem do ‘fingir-se de
morto dos animais’. Experimenta estar fora do próprio corpo, como um observador insensível da violência de que
é alvo. Na medida em que uma parte sua ainda é acessível a emoções, ele volta aos seus interesses, escreve
Ferenczi, para os únicos sentimentos que sobram do processo, isto é, os sentimentos do agressor.”
120
ambiente hostil. Na expressão utilizada por Ferenczi, “introjeta o agressor” para melhor se adaptar
às dinâmicas sociais da escola. Dormir como uma “pedra” ou ser uma “pedra”, não se “abalar
mais” com a realidade, “ser um ator”, “não ter mais as pálpebras trêmulas” são sintomas desta
cisão do Eu, de uma certa desafetação e indiferença como estratégias de defesa que atravessam o
próprio corpo.
Importante ressaltar que Freud, em 1919, em seu texto Introdução à psicanálise das
neuroses de guerra, percebia as dinâmicas psíquicas de um conflito no Eu ocasionado pelas
dinâmicas traumáticas da realidade exterior:
(...) as neuroses de guerra devem ser compreendidas como neuroses traumáticas que
foram possibilitadas ou favorecidas por um conflito do Eu. A contribuição de Karl
Abraham traz boas indicações acerca desse conflito do Eu; também os autores ingleses
e americanos citados por Jones o perceberam. Ele se dá entre o velho Eu pacífico e o
novo Eu guerreiro dos soldados, e torna-se agudo assim que o Eu-de-paz enxerga o
enorme perigo de vida que lhe trazem as audácias de seu parasitário sósia recém-
formado. Tanto podemos dizer que o velho Eu se protege do risco de vida mediante a
fuga na neurose traumática, como que se defende do novo Eu, percebido como
ameaçador para sua vida. Assim, a precondição, o solo nutriz para as neuroses de
guerra seria o exército nacional de conscritos; em mercenários, em soldados
profissionais, não haveria possibilidade de ela surgirem. (FREUD, 2010h, p. 385).
57
Talvez Winnicott nos ajudasse com sua conceituação de falso e verdadeiro self, categorias constitucionais e
complementares no modo de ser, suas maneiras muito cindidas de se apresentarem em um indivíduo, podem
indicar processos de defesa e adoecimento importantes. Uma obra winnicottiana muito interessante como
desdobramentos da pesquisa, para aprofundarmos essas possibilidades de cisão e adaptação, é a de Júlio de Mello
Filho, Vivendo num país de falsos-selves. Em um determinado momento de sua construção analítica compara os
pacientes “normóticos” com os “falsos-selves”: “O normótico tem identidades com o falso-self, mas também
dessemelhanças. Ambos são hiperadaptados à realidade, o que faz com que se sintam normais, o que faz bem ao
121
(...) A separação que se processa entre as características e a base pulsional, assim como
entre elas e a ipseidade que as comanda lá onde antes apenas as mantinha juntas, leva o
homem a pagar sua crescente organização interna com uma crescente desintegração. A
consumação da divisão do trabalho no indivíduo, sua objetivação radical, conduz à sua
cisão doentia. Daí o “caráter psicótico”, o pressuposto antropológico de todos os
movimentos de massa totalitários. Precisamente essa transição de características fixas a
modos de comportamento que disparam em precisão – uma aparente vivificação – é
expressão da crescente composição orgânica. Reações rápidas, sem a mediação do que
constitui o indivíduo, não restauram a espontaneidade, mas estabelecem a pessoa como
instrumento de medida disponível e decifrável pela autoridade central. Quanto mais
imediata é a sua decisão, tanto mais profundamente sedimentada está, na verdade, a
mediação: nos reflexos de pronta resposta, desprovidos de resistência, o sujeito
extinguiu-se por completo. Assim, os reflexos biológicos – modelos dos atuais reflexos
sociais -, quando confrontados com a subjetividade, são também algo objetivado,
estranho: não é por acaso que são chamados com frequência de “mecânicos”. Quanto
mais os organismos estão próximos da morte, tanto mais regridem ao estado de
self. Isso também diminui os conflitos interpessoais e com a realidade ambiental, diminuindo o sofrimento egóico.
Mas, em troca, diminui as suas sensibilidades e a capacidade de modificar o ser (...). Vejo no normótico uma vida
mais comum, plana, regular, com o mundo das coisas. Já no falso-self – principalmente nos ostensivos – vejo uma
vida mais tumultuada, mais dominada pela ambição, pela necessidade de maiores falsidades para viver, enquanto
o falso-self patológico faz da falsidade o seu zelo existencial.” (FILHO, 2003, p. 93).
58
No tópico 5.3 desta dissertação sobre os processos de adaptação e sofrimento dos professores veremos que esta
forma de perceber a realidade do professor João expressará fenômenos psíquicos e sociais relacionados ao cinismo
como estratégia de defesa.
122
convulsões. De acordo com isso, as tendências destrutivas das massas, que explodem
em ambas as modalidades de estados totalitários, não seriam tanto desejos de morte,
quanto manifestações daquilo que já são. Eles assassinam para que a eles se iguale o que
lhes parece vivo. (ADORNO,1992, p. 202).
Aquilo que lhes parece “vivo” e tem qualquer expressão de espontaneidade, passa a
incomodar as formações sociais fixas e destrutivas pelas quais os indivíduos se associam nos
agrupamentos (massa). Para Adorno é na base material da sociedade, na própria divisão social
do trabalho que se realiza sua objetivação radical em um modo de cisão doentia do indivíduo,
na qual o sujeito se extingue por completo. E este processo de regressão social se dá, segundo
Adorno, também pela “introjeção ao agressor” que está colocado desde muito cedo na
adaptação pela qual são submetidas as crianças e adolescentes na cultura, a um certo
conformismo com o mundo, o que nos faz pensar uma dimensão social mais profunda das cisões
do Eu59.
(...) a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens -, de
forma que este processo de adaptação seria realizado hoje de um modo antes automático.
A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da
universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de
fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação. Se posso crer em minhas
observações, suporia mesmo que entre os jovens e, sobretudo, entre as crianças
encontra-se algo como um realismo supervalorizado – talvez o correto fosse: pseudo-
realismo – que remete a uma cicatriz. Pelo fato de o processo de adaptação ser tão
desmensuradamente forçado por todo o contexto em que homens vivem, eles precisam
impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação
a si mesmo, e, nos termos de Freud, identificando-se ao agressor. A crítica deste
realismo supervalorizado parece-me ser uma das tarefas educacionais mais decisivas, a
ser implementada, entretanto, já na primeira infância. (ADORNO, 2006f, p. 144-5).
A relação que o professor João faz com os professores mais novos, inclusive sua irmã
que também é professora, é um dado que aparece na pesquisa em outras entrevistas. Os
professores mais novos, ou nem tanto, que lutam contra o embrutecimento do espaço escolar,
59
Apesar de haver diferentes abordagens e profundidades nas leituras das cisões e clivagens do Eu, todas tomam a
relação intensa, traumática com o ambiente, com a realidade exterior como paradigma de análise. Os autores
denominados freudo-marxistas (ROUANET, 1983) da década de 20 partiam da questão de o porquê as massas terem
ações que se colocavam em última instância contra elas mesmas? Wilhelm Reich (2001), em Psicologias de massas
do fascismo, ao criticar as análises marxistas sobre a ascensão do fascismo, aponta que: “Ora, este marxismo comum
afirmava que uma crise econômica como a de 1929-33 tinha uma tal proporção que conduziria necessariamente a uma
orientação ideológica esquerdista das massas por ela atingidas. Enquanto, mesmo depois da derrota de janeiro de 1933,
se continuava a falar de um “ímpeto revolucionário” na Alemanha, a realidade mostrava que a crise econômica, em
vez de provocar a esperada virada para a esquerda nas ideologias das massas, conduzia a uma extrema virada para a
direita na ideologia das camadas proletárias da população. Disso resultou uma clivagem entre a base econômica, que
pendeu para a esquerda, e a ideologia de largas camadas da sociedade, que pendeu para a direita. Esta clivagem foi
ignorada, o que impediu que se perguntasse como era possível que as largas massas se tornassem nacionalistas num
período de miséria. Palavras como ‘chauvinismo’, ‘psicose’, ‘consequências de Versalhes’ não explicam a tendência
da classe média para a direita radical em períodos de crise, porque não apreendem efetivamente os processos
envolvidos nessa tendência. De fato, não era só a classe média que se voltava a direita, mas também inúmeros, e nem
sempre os piores, elementos do proletariado.” (REICH, 2001, p. 7).
123
têm medo, têm receio de ficar como os professores mais velhos, adaptados, cindidos à realidade
social ou mesmo objetivamente doentes psíquica ou corporalmente.
Neste sentido, ao adaptar-se à realidade o professor João torna-se, mesmo, um agente
adaptador do outro. Ou seja, de “agredido” passa a “agressor”. A psicanalista Anna Freud, ao
estudar, em sua clínica, as experiências de “introjeção do agressor”, relata:
Os exemplos que citei até agora ilustram um processo com que estamos muito
familiarizados. Uma criança introjeta uma certa característica de um objeto causador de
ansiedade e, assim, assimila uma experiência de ansiedade que acabou de ser sofrida.
Neste caso, o mecanismo de identificação ou introjeção combina-se com um segundo e
importante mecanismo. Ao personificar o agressor, ao assumir os seus atributos ou
imitar a sua agressão, a criança transforma-se de pessoa ameaçada na pessoa que
ameaça. Em Beyond the Pleasure Principle, o significado dessa mudança do papel
passivo para o ativo, como um meio de assimilar experiências desagradáveis ou
traumáticas na infância, é examinado em detalhe. “Se um médico examina a garganta
de uma criança ou realiza uma operação de pouca monta, a alarmante experiência será
certamente o tema do próximo jogo, mas neste o prazer obtido de uma outra fonte não
pode ser ignorado. Ao transitar da passividade da experiência para a atividade da
brincadeira, a criança aplica aos seus companheiros de jogo a ocorrência desagradável
que recaiu nela e assim se desforra por procuração”. (FREUD, 1974, p. 96)
60
“Acting out: Noção criada pelos psicanalistas de língua inglesa e depois retomada tal e qual em francês, para
traduzir o que Sigmund Freud denomina de colocação em prática ou em ato, segundo o verbo alemão agieren. O
termo remete à técnica psicanalítica e designa a maneira como um sujeito passa inconscientemente ao ato, fora e
dentro do tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo para evitar a verbalização da lembrança recalcada e para se
furtar à transferência. No Brasil também se usa ‘atuação’.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 5).
124
dimensão social mais ampla da adaptação, o que observamos é que há um processo que vai
minando a capacidade psíquica e corporal do professor sustentar sua individualidade. Trata-se
de um conjunto de violências mais ou menos intensas, permanentes, que produzem esse
sintoma. Acreditamos que a “cisão externa” diz respeito preponderantemente às dimensões
conscientes e pré-conscientes e a “cisão do Eu” mobilize um trabalho mais demorado e
profundo sob as camadas do inconsciente, inclusive no Eu, produzindo uma manifestação de
uma neurose atual, marcada pelo seu núcleo traumático.
O professor João diz gostar, em outro momento de sua entrevista, do trabalho como
docente e que não se vê fazendo outra coisa. Ao mesmo tempo, a sensação de cansaço, o
abismo, em referência a Nietzsche61 “ao olhar tanto para o abismo, o abismo olha para você”,
“um sobrevivente”. Palavras fortes, que lembram cenários e metáforas das guerras.
Os sonhos certamente fazem parte da riqueza da vida psíquica. O sonho é uma forma de
descansar psiquicamente, como nos lembra Freud em seu clássico A interpretação dos sonhos
(2019). Ter sonhos traumáticos compulsivos ou não os ter, ou não os lembrar em nenhum
momento, revela sobre a saúde psíquica das pessoas. Em Complemento metapsicológico à
teoria dos sonhos, Freud (2010k, p. 153) diz:
É possível que uma “pedra” sonhe? O professor João tem uma jornada de trabalho entre
50 e 60 horas semanais na escola. Com esta vivência na escola, no mínimo se esperaria, em
algum momento, restos diurnos importantes do espaço escolar. Para além de pensar que ele
possa ter algum “benefício secundário” sintomático ao trabalhar assim, há de se refletir como
um sistema educacional na cidade mais rica do Brasil permite que um professor trabalhe com
crianças e adolescentes em formação com esta extensa jornada de trabalho.
Isso não parece ser uma contingência do princípio de realidade, mas através de Marcuse
(2010), de um “princípio do desempenho”, o qual se realiza do ponto de vista histórico como o
atual estágio do princípio de realidade. É uma forma histórica do princípio de realidade se
realizar que justamente convoca as dimensões instintuais mais destrutivas dos professores,
61
É Nietzsche que nos lembra, antes mesmo de Freud, em Para Além do Bem e do Mal, no aforismo 146: “Quem
combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um
abismo, o abismo também olha para dentro de você.” (NIETZSCHE, 1992, p. 79).
125
interna e externamente. É isso que nos ensinou Freud sobre os efeitos das dinâmicas sociais
sobre o psiquismo. Em seu clássico O problema econômico do masoquismo, de 1924,
desenvolve as interconexões das dinâmicas sociais e psíquicas com profundidade:
O que vemos é que não só determinada realidade social e cultural pode convocar as
dimensões mais destrutivas dos indivíduos, pode também intensificar as dimensões mais
autodestrutivas e sádicas, que atuam como complemento de “benefícios secundários”, como o
próprio processo de adaptação (o Eu masoquista como processo de autoconservação) e a cisão
do Eu para dar conta e/ou não entrar em pane nessa realidade social e cultural.
A questão feita mobilizou o professor João a pensar sobre o porquê de não ter sonhos.
Ao se indagar sobre o aspecto “estranho” deste fenômeno, pensamos sobre o inquietante, o
estranho familiar em Freud. Pelos dados da pesquisa, parece ser a forma como também os
professores mais jovens veem os professores mais velhos que estão adaptados pela “cisão do
Eu”.62 O estranho familiar, o inquietante de buscar não ser como eles, mas, ao mesmo tempo,
estar sob a mesma condição de trabalho que eles.
Neste estranho familiar, a relação “eu e o outro” se reduz, mobilizando dimensões muito
profundas do desamparo e da castração. “Uma hora o abismo olha para você” nos lembra o
professor João ou, como diz Freud, “o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido
quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real
que até então víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função e o significado pleno
do simbolizado, e assim por diante.” (FREUD, 2010g, p. 364).
62
Como nos lembra o psicanalista Luiz Claudio Figueiredo no capítulo Modernidade, trauma e dissociação: “É
certo que podemos observar no desenvolvimento da psicanálise um retorno freudo-ferencziano ao traumático e à
clivagem. Em Além do princípio de prazer, Freud coloca a experiência do trauma no centro e na base do processo
de constituição do psiquismo. É para lidar com as experiências e ameaças de efração decorrentes da incidência
sobre a substância viva de forças externas muito poderosas que se cria uma crosta mineralizada e mortificada. Da
mesma forma, é para enfrentar as inevitáveis rupturas dessa crista de proteção que devem se formar as reservas de
energia quiescente no interior da vesícula viva. Serão essas reservas que acudirão em socorro das partes injuriadas
se a crosta for rompida, e quando essa mobilização for intensa será vivida como dor. Temos aí reconhecida a
necessidade de que a substância viva passe por um processo de cisões, na forma de uma diferenciação interna,
capaz de produzir áreas relativamente especializadas e separadas umas das outras de forma a enfrentar os riscos
do traumatismo, sendo as próprias experiências de trauma e dor as que criam e fortalecem essas regiões
relativamente dissociadas umas das outras.” (FIGUEIREDO, 2018, p. 19).
126
Ou, como nos diz a professora Ana sobre seu encontro com o estranho familiar:
eu trabalhei com uma professora que todo dia ela: “ah podia acabar alguma coisa,
acontecer alguma coisa para acabar a água, acabar a luz, para não ter aula.” Todo dia ela
falava isso, e eu ficava pensando meu Deus do céu, essa professora não quer dar aula?
Mas hoje em dia, mas eu era mais nova, hoje em dia eu entendo ela. Porque é difícil,
porque ela já estava há bastante tempo. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de
magistério).
A professora Ana complementa de outra forma as questões que o professor João trouxe.
O que estamos observando, a partir da análise do mal-estar docente, é um fenômeno muito mais
complexo, visto que o professor João diz que, no conjunto da entrevista, apesar de perceber os
adoecimentos na escola, físicos ou emocionais, de seus colegas professores, de certa forma
conseguiu passar incólume por eles. Ou seja, o professor João seria um professor visto e
reconhecido pelos seus pares como aquele que dá conta do mal-estar docente comum, que todos
os professores passam no âmbito das “profissões impossíveis”.
Vemos, no entanto, que este passar “incólume” significa constituir um modo de ser
adaptado e cindido no Eu como defesa. Um processo que produz um sofrimento relacionado à
desconexão consigo e com o outro, pois certos adoecimentos corporais e emocionais fazem
parte da saúde psíquica. São uma resposta do corpo ou do psiquismo que algo não vai bem, seja
do ponto de vista interno ou externo.63 Ponderamos, a longo prazo, qual o impacto desse modo
de ser adaptado para os professores? Não parece ser dos melhores e talvez mobilize, igualmente,
a desfusão da pulsão de vida e da pulsão de morte, sob hegemonia desta.
É o que vemos na teoria freudiana a respeito da disjunção, da desfusão da pulsão de vida
e da pulsão de morte. Certamente, uma das formas desta separação é o impacto das experiências
traumáticas. Sabemos também que Freud faz a análise desta disjunção da pulsão de vida e da
pulsão de morte a partir da etiologia da neurose como, por exemplo, em casos de neurose
obsessiva e melancolia.
Havendo admitido a concepção de uma mescla [ou junção] das duas espécies de instintos,
impõe-se-nos a possibilidade de uma – mais ou menos completa – disjunção desses
instintos. No componente sádico do instinto sexual teríamos o exemplo clássico de uma
mescla instintual adequada a um fim; no sadismo que se tornou independente como
perversão, o modelo de uma disjunção, embora não levada ao extremo. Então se
descortina para nós um largo âmbito de fatos, que ainda não foi considerado sob esta luz.
Percebemos que o instinto de destruição é habitualmente posto a serviço de Eros para
63
O psicanalista Pierre Fédida, em seu livro Dos benefícios da depressão, alerta que “(...) a psicanálise freudiana
constitui, com sua psicopatologia e sua clínica, a única tentativa para manter no centro da experiência humana a
função de uma negatividade (pulsão de morte, destrutividade, culpabilidade, masoquismo originário) entrando na
compreensão da subjetividade da vida psíquica. Ora – segundo eixo maior –, é no momento em que presenciamos
uma banalização médica da depressão (as neurociências sendo convocadas em auxílio) que os próprios psicanalistas
sentem-se tentados a abandonar o paradigma freudiano da vida psíquica e a promover uma psicoterapia intersubjetiva
regulada por critérios de eficácia da readaptação do indivíduo.” (FÉDIDA, 2009 p.14-5).
127
fins de descarga, suspeitamos que o ataque epiléptico seja produto e indício de uma
disjunção de instintos, e aprendemos a ver que, entre os efeitos de algumas neuroses
graves – as neuroses obsessivas, por exemplo –, merecem particular atenção a disjunção
instintual e a proeminência do instinto de morte. (FREUD, 2011b, p. 52).
Percebemos que esta desfusão dos instintos de morte e de vida se dão, para Freud,
também na cultura. Em O mal-estar na civilização, Freud se preocupava com a frustração
excessiva no psiquismo e de como a destrutividade poderia se voltar para o próprio indivíduo
como sentimento de culpa e recriminações, sendo a fonte de toda ordem de ressentimentos.
Suas preocupações relacionadas a como a sociedade produziria meios para diminuir a
intensidade da destrutividade são muito significativas. Isso o fez polemizar com os comunistas
de seu tempo. Apesar de evitar qualquer tipo de idealização das possibilidades de transformar a
realidade pelos comunistas, e inclusive criticá-los por desconhecerem a natureza humana, Freud
asseverou: “parece-me que uma real mudança nas relações das pessoas com a propriedade será
de maior valia, neste ponto, que qualquer mandamento ético.” (FREUD, 2010a, p. 119).
Trata-se de bases materiais e não um mandamento do “amar o próximo como a si
mesmo”, o qual Freud critica de forma contundente. Na educação, isso teria como correlato “o
trabalhar por amor”, a “vocação” e toda ordem de filosofias moralistas. O dilema em torno da
destrutividade da humanidade e de como ela vai evitar a desfusão dos instintos em seu
desenvolvimento cultural, transformou-se numa preocupação crescente, resultado do próprio
contexto histórico em que estava inserido e de suas experiências clínicas.
A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a
sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum
pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a
época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos
atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a
elas para exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí seu medo. Cabe
agora esperar que a outra das duas “potencias celestiais”, o eterno Eros, empreenda
um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem
pode prever o sucesso e o desenlace? (FREUD, 2010a, p. 122).
Quando uma professora, categoria V, diz que não sabe a hora que poderia dar a entrevista
porque não sabia na semana quando daria aula, quantas aulas daria, nem em que período do dia
ou da noite, nos perguntamos se isso não é carregado de um mal-estar destrutivo? Ou seja, a
professora está à serviço da escola nos três períodos letivos. Não há contenção externa que facilite
o processo de contenção do mundo interno da professora. Para além de questões relacionadas “ao
128
complexo de castração” que ela possa ter, a lógica é que a professora só recebe se der aula. Eis o
contrato precarizado e perverso em plena rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.64
A professora Vera, categoria O, em um primeiro momento teve que desmarcar a
entrevista por causa da desorganização nas atribuições de aula, comentando que houve
professores que falaram em suicídio se não conseguissem alguma aula. Não é muito difícil
realizar um levantamento e verificar que anualmente há problemas nas atribuições de aula da
rede de ensino estadual65. São situações humilhantes, nas quais os professores passam às vezes
horas em pé, sem se alimentar, sob todas as intempéries do clima à espera e na incerteza de
aulas para completar sua jornada de trabalho.
Contudo, por que estes professores não saem da educação ou vão procurar outras redes
de ensino? Eles saem e é o que mostra a pesquisa de João Zafalão (2021) Do que adoecem os
professores e as professoras, de que há um processo de envelhecimento na rede estadual de
ensino de São Paulo, visto que os professores mais jovens e com mais possibilidades procuram
outras profissões ou outras redes de ensino com melhores condições de trabalho e salário. Há uma
série de determinantes sociais nesta saída, visto que esse movimento não é possível para todos.
Numa sociedade capitalista, o desamparo é intensificado quando há possibilidade maior
de desemprego. Parece que a “evolução cultural” não tem sido capaz de conter as dimensões
instituais destrutivas humanas; ao contrário, tem produzido mais desfusão instintual. Neste
sentido, pensamos que Freud era um psicanalista preocupado com as questões de sua época e é
interessante observar que ele aponta não a exclusão do debate econômico, mas sua
64
Como nos lembra o psicanalista Hélio Pelegrino em seu clássico artigo Pacto Social e Pacto Edípico, em que articula
a constituição do psiquismo com as dinâmicas sociais: “O pacto com a sociedade, como ficou visto, é preparado e
caucionado pelo pacto primordial. A renúncia edípica prefigura e torna possível a renúncia posterior, exigida pelo
trabalho. Se o pacto social é iníquo, e avilta o trabalho, ele vai aviltar e tornar iníqua a renúncia pulsional por ele próprio
exigida. O amor ao trabalho só é possível na medida em que os direitos do trabalhador sejam minimamente respeitados.
Se isto não ocorre, há uma ruptura do pacto social. O trabalho torna-se sem sentido, aviltante e humilhante, tanto quanto
o sacrifício e a renúncia que, em seu nome, me disponho a fazer. Rompo, aí, com a sociedade, e esta ruptura terá,
inevitavelmente, profundas repercussões intrapsíquicas, que irão sacudir, sob a forma de um abalo sísmico, os
fundamentos do pacto primordial com o Pai simbólico – e com a Lei da Cultura.” (PELLEGRINO, 1983).
65
A chamada do G1, de 24 de janeiro de 2020, aponta um problema recorrente nas atribuições de aula dos
professores da rede estadual de São Paulo: “Professores da rede estadual de SP relatam problemas e tumulto no
processo de atribuição de aulas. Docentes deveriam escolher turmas e escolas de acordo com um sistema de pontos,
mas classificação errada prejudicou resultados. Secretaria de Educação nega problemas e alega aumento na
demanda, mas prorroga prazo para atribuição.” G1. “Professores da rede estadual de SP relatam problemas e
tumulto no processo de atribuição de aulas”, 24 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/educacao/noticia/2020/01/24/professores-da-rede-estadual-de-sp-relatam-problemas-e-tumulto-no-
processo-de-atribuicao-de-aulas.ghtml. Acesso em: 04 jan. 2023. Enquanto escrevo esta dissertação, os
professores da rede estadual de ensino liderados pelo seu sindicato, a Apeoesp, organizaram um ato, no dia 4 de
janeiro de 2023, em pleno período de férias, por causa das mudanças repentinas nos modos de atribuição de
2022/2023. Cf. G1. “Professores estaduais fazem ato no Centro de SP para pedir ao governo anulação do processo
de distribuição de aulas”, 04 jan. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2023/01/04/professores-estaduais-fazem-ato-no-centro-de-sp-para-pedir-ao-governo-anulacao-do-
processo-de-distribuicao-de-aulas.ghtml. Acesso em: 04 jan. 2023.
129
“Isto é verdade, mas muito provavelmente não é toda a verdade”. Freud dialoga com as
questões e os interlocutores políticos e econômicos de seu tempo, buscando no psiquismo a
dimensão filogenética e histórica das ideologias. Ou seja, Freud, em sua obra, não produz uma
clínica fechada em si. Sobretudo, amplia substancialmente este lugar, trazendo importantes
perspectivas de pensar o social e a cultura. O Super-eu é o herdeiro do complexo de Édipo numa
dimensão cultural e histórica. São esses objetos primários e históricos que se internalizam.
No caso da educação, em especial, pensamos que, quando Freud atribui “governar,
analisar e educar” às profissões impossíveis, que lidam diretamente com o desamparo e a
incompletude, ser professor tem uma particularidade social e histórica que talvez ser
psicanalista e governante não tenham.
Primeiro que estamos falando de uma situação no atual contexto histórico em que a
maioria da população tem acesso ao ensino básico fundamental público e com ela constitui
laços diretos entre colegas ou professores e profissionais de educação. 66 Nem todo mundo vai
passar por um psicanalista, profissão ainda marcada pelo segmento das classes médias
urbanas67, e a própria relação dos governos, além de ser limitada a uma minoria geralmente
66
Em 2015 um forte movimento dos estudantes da rede estadual de ensino de São Paulo ocupou dezenas de escolas
para se contrapor à política de reorganização das escolas por parte do governo estadual, na época comandado por
Geraldo Alckmin. O movimento por vários dias organizou uma série de atividades políticas, culturais e
educacionais nas escolas com amplo apoio dos bairros e da população, o que obrigou o governador a ceder e
negociar com os estudantes. O lastro de sociabilidade que as escolas têm nos bairros em São Paulo é uma referência
restrita a poucas instituições. Fonte: https://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/12/30/retrospectiva-2015-o-
movimento-secundarista-que-chacoalhou-educacao-brasileira/
67
Essa era inclusive uma preocupação de Freud. Em seu texto Caminhos da terapia psicanalítica, de 1919, diz:
“Pode-se prever que em algum momento a consciência da sociedade despertará, advertindo-a de que o pobre tem
tanto direito a auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais. E que as neuroses não afetam menos a
saúde do povo do que a tuberculose, e assim como esta não podem ser deixadas ao impotente cuidado do indivíduo.
Então serão construídos sanatórios ou consultórios que empregarão médicos de formação psicanalítica, para que,
mediante a análise, sejam mantidos capazes de resistência e de realização homens que de outro modo se entregariam
à bebida, mulheres que ameaçam sucumbir sob a carga de privações, crianças que só tem diante de si a escolha entre
neurose e o embrutecimento. Esses tratamentos serão gratuitos. Talvez demore muito até que o Estado sinta como
urgentes esses deveres. As circunstâncias presentes podem adiar mais ainda esse momento. Talvez a beneficência
privada venha a criar institutos assim; mas um dia isso terá de ocorrer. (...) Veremos, provavelmente, que os pobres
130
com amplo poder econômico, se dá com a população de modo geral bastante indireta na maior
parte do tempo.68
A educação é uma experiência que afeta diretamente o conjunto da sociedade. Num
contexto político e histórico, é na escola que se depositam, atualmente, as maiores ilusões e
desilusões, os discursos mais inflamados e os mais críticos, as esperanças mais potentes e as falas
mais absurdas. Das profissões impossíveis, a mais impossível. A escola é fonte, na atualidade, de
variadas disputas políticas e públicas ou que ocultam interesses dos mais diversos.69
se acham ainda menos dispostos a renunciar a suas neuroses do que os ricos, porque a difícil vida que os espera não
atrai, e a doença significa, para eles, mais um título à assistência social. É possível que só consigamos realizar algo
se pudermos juntar auxílio psíquico e apoio material, à maneira do imperador José.” (FREUD, 2010f, p. 292).
68
O livro de Elizabeth Ann Danto, As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, não só analisa o
papel importante da formação e do papel das clínicas públicas, mostrando o engajamento de Freud nesta prática,
como também mostra toda a importância dos debates de ordem sociais, políticas e econômicas que estão colocados
entre as décadas de 1920 e 1930 no interior do movimento psicanalítico, com a participação direta de psicanalistas
de orientações liberais, progressistas, socialistas, comunistas etc. Uma história que, nos parece, ficou reprimida e
até recusada se formos pensar em como a psicanálise pós-freudiana empobreceu sua crítica social, como nos
lembra Joel Birman (1997). Assim como Freud faz com a psicanálise e as clínicas públicas, também caracterizamos
a educação em sua particularidade histórica, portanto, a mais impossível das profissões. “Como se antecipando
aos seus críticos, Freud apontava que essa escassez de recursos conferia ao tratamento o caráter de um privilégio,
e esse privilégio limitava os benefícios que a psicanálise poderia alcançar caso seu escopo fosse ampliado.
Segundo, ‘existe apenas um punhado’ de médicos qualificados para praticar a análise. A escassez de terapeutas e
de pacientes sugeria que a psicanálise poderia cair nas garras de um elitismo perigoso. Essa situação deveria ser
superada se os analistas alertassem mais pessoas para o seu potencial curativo. Terceiro, ‘mesmo trabalhando
muito, cada [analista] pode dedicar-se, em um ano, somente a um pequeno número de pacientes’. Esse dilema é
intrínseco ao formato intensivo e demorado do trabalho analítico, mas para Freud também significava que os
analistas não poderiam assumir uma posição de responsabilidade social que fosse compatível com sua obrigação
(...) O quarto ponto de Freud, de que a ‘enorme quantidade de miséria neurótica’ real que o analista pode eliminar
é, na melhor das hipóteses, ‘quase insignificante’ quando comparada à sua realidade no mundo, parece um simples
termo de isenção de responsabilidade. É neste trecho, entretanto, que ressurge a consciência social dos tempos da
adolescência e da universidade de Freud. O sofrimento humano não precisa ser tão difundido na sociedade nem
tão profundamente doloroso para o indivíduo. De mais a mais, o sofrimento não deriva apenas da natureza humana,
porque é, pelo menos em parte, imposto injustamente e em grande medida pelos status econômico e pela posição
na sociedade, uma desigualdade social que Ferenczi descreveu vividamente na carta de 1910. A desigualdade,
resumiu Freud, é o problema fundamental, e ele lamentava que fatores socioeconômicos explícitos restringissem
o tratamento psicanalítico às ‘classes abastadas’.” (DANTO, 2019, p. 10-1).
69
O percurso da escrita desta dissertação acontece no contexto eleitoral brasileiro. O primeiro debate dos candidatos
à presidência da República do Brasil, em 28 de agosto de 2022, na rede Bandeirantes, demonstra que o tema da
educação é fértil em afirmações de efeito. Separei algumas frases dos candidatos para identificar no social que tipo
discurso é proferido sobre uma temática tão complexa. “A educação foi abandonada no país” (Lula); “O padrão de
escola que se oferece hoje na rede pública, salvo muito maravilhosas exceções, é o ensino do século XIX, é o ensino
do século XX, é o decoreba, é o ensino sem graça, é o enciclopedismo raso em que o menino é obrigado a decorar
coisas que não têm sentido pra ele em tempos de Google. Isso é puro lixo.” (Ciro Gomes); “Neste Brasil em que nós
gastamos 5,8% do PIB com educação há tantos anos, as crianças continuam não aprendendo, os professores
continuam não ensinando.” (Felipe D´Ávila) ; “O nosso jovem vai ganhar dinheiro todo ano, e no final do terceiro
ano do ensino médio, vai ganhar cinco mil reais pra fazer o que ele quiser, dar uma entrada numa moto ou num
celular, mas pra que ele não saia.” (Simone Tebet) ; “Por isso a nossa primeira proposta, é revolucionária, é isentar...
escutem bem, escutem bem, isentar de imposto de renda todos os professores.” (Soraya Thronick); Apesar de
Bolsonaro, neste debate, não ter tocado na questão da educação, o que já é algo significativo do ponto de vista do
silêncio, sabemos que seus temas relacionados a colégios militares, “ideologia de gênero” e controle do trabalho do
professor fazem parte do seu programa de governo. UOL. “Íntegra do debate presidencial”, 29 ago. 2022. Disponível
em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/08/29/debate-uol-integra.htm. Acesso em: 29 ago. 2022.
131
70
A nota da REPU sobre a implementação do novo ensino e dos chamados itinerários formativos diz: “O cenário
mostrado nesses dados é alarmante: é como se os/as estudantes tivessem, em vez de cinco dias letivos por semana,
apenas quatro. Diferentemente da exclusão gerada pela pandemia e pela falta de acesso a equipamentos e recursos
suficientes para o ensino remoto, agora estamos diante de um cenário de aulas presenciais e regulares, no primeiro
semestre de implementação daquilo que o governo do estado de São Paulo costuma chamar de ‘revolução
educacional’. Para o segundo semestre de 2022, a situação não é melhor, pois o montante de aulas sem
professores/as aumenta para 24.943 (27,8% do total). (...) A rede estadual de ensino paulista tem um déficit
histórico de professores concursados, sendo fortemente dependente da presença de docentes temporários e
eventuais. O último concurso público para contratação de professores/as para o Ensino Médio e os anos finais do
Ensino Fundamental foi realizado em 2013. Longe de facilitar a atribuição de professores/as nas aulas, o NEM
promove uma violenta intensificação do trabalho docente, uma vez que um/a docente que antes trabalhava com
uma única disciplina em várias turmas ou escolas agora completa a sua carga horária com diversos itinerários
formativos em várias turmas ou escolas. Tal condição se soma à já conhecida desvalorização do trabalho docente
na rede estadual (BARBOSA et al., 2021).” REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE. “Novo Ensino
Médio e indução de desigualdades escolares na rede estadual de São Paulo [Nota Técnica]”. São Paulo: REPU, 02
jun. 2022. Disponível em: https://www.repu.com.br/notas-tecnicas. Acesso em: 04 jun. 2022.
132
estadual”71. Todo final de ano se espera alguma famigerada surpresa relacionada às políticas
que interferem diretamente no trabalho do professor na escola.
Ainda sob o contexto da pandemia de Coronavírus, no início do ano de 2021, os
professores entrevistados vivenciaram o governo estadual de São Paulo flexibilizar as medidas
para conter a disseminação da Covid e indicar a volta às aulas presenciais em forma de rodízio
dos alunos. Com os conflitos entre o governo estadual de São Paulo de Dória e o governo
federal de Bolsonaro sobre o uso da Coronavac, vacina de origem chinesa, o processo de
vacinação no Brasil atrasou alguns meses, o que produziu uma CPI no Senado Federal sobre a
política federal de vacinação.72
O início da vacinação em janeiro/fevereiro de 2021 entusiasmou a população de que o
pior havia passado, no que pese intensa propaganda contrária, negacionista por parte de
segmentos da sociedade identificados ao Bolsonarismo. O próprio presidente, em vídeos na
internet, indicava, imitando o até então presidente do EUA, Donald Trump, o uso da Cloroquina
para conter a Covid, questionando a qualidade da vacina de origem chinesa.73
O primeiro semestre de 2021, em especial os meses de março, abril e maio, foi o pior
da pandemia até então. A falta de vacinas para todo o território, as prioridades aos trabalhadores
da saúde e aos idosos, assim como as disputas de segmentos das classes sociais para serem
vacinados, certamente ainda produzirão muitos estudos, de como o processo de vacinação
71
Enquanto finalizo esta dissertação, vejo, através das redes sociais de professores e da imprensa, mais uma
mudança na política de atribuições de aula 2022/2023 que produz enorme mal-estar. O professor Fernando Cassio,
membro da REPU, na Carta Capital de 27 de dezembro de 2022 relata: “Ocorre que Nalva e os outros 152 mil
docentes da rede estadual paulista foram surpreendidos por uma mudança nas regras de atribuição das aulas para
2023 por parte da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP). Agora, aqueles docentes com
jornada de 32 horas em sala de aula têm prioridade na escolha das aulas. Isso significa que professores efetivos
mais experientes e com formação mais sólida, mas que tenham a chamada “jornada básica” de 20 horas semanais,
correm o risco de ficar sem aula nas escolas que lecionam há anos e com as quais têm estreitos vínculos
profissionais e afetivos (...) Com a mudança nas regras – agravada pela Reforma do Ensino Médio que dizimou as
aulas de Filosofia – Nalva se viu obrigada a ampliar sua jornada de trabalho para poder manter seu vínculo com a
escola em que dá aulas, e ainda assim não foi a professora com maior pontuação em sua área naquela escola.
Resultado: assumirá uma única aula de Filosofia em 2023, somada a 14 (catorze!) componentes curriculares
diferentes: A cultura e seus sentidos, Ativismo Digital, Cidadania Digital, Cidadania Global, Cidadania e Justiça,
Diálogos acerca dos Direitos Humanos, Eu e os outros, Juventude, Economia e Trabalho, Liberdade, determinismo
e responsabilidade, Pensamento, política e trabalho, Sociedade e meio ambiente, Tecnologia, comunicação e
cultura, Tópicos de cidadania, Trabalho e vida. Sendo humanamente impossível que qualquer professor consiga
preparar 15 cursos diferentes para ser ministrados em apenas 20 horas-aulas semanais, esta será uma oportunidade
ímpar para a professora ensinar aos seus estudantes a construção ideológica do conceito de cidadania na sociedade
neoliberal.” FERNANDO CASSIO. “De saída do governo, PSDB chantageia professores na escolha das aulas
para 2023”, Carta Capital, 27 dez. 2022. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/de-saida-do-
governo-psdb-chantageia-professores-na-escolha-das-aulas-para-2023/. Acesso em: 27 dez. 2022.
72
CORREIO BRAZILIENSE. “CPI encerra atividades e culpa Bolsonaro por tragédia da covid”, 27 out. 2021.
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/10/4958390-cpi-encerra-atividades-e-culpa-
bolsonaro-por-tragedia-da-covid.html. Acesso em: 28 out. 2021.
73
O GLOBO. “Coronavírus: na redes, Bolsonaro imita discurso de Trump na crise sanitária”, 02 abr. 2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/coronavirus-nas-redes-bolsonaro-imita-discurso-de-trump-na-
crise-sanitaria-24345653. Acesso em: 03 abr. 2020.
133
74
O filósofo Achille Mbembe (2019) discute, em um breve ensaio, o modo como o Estado atua de forma consciente
o seu poder para definir quem pode viver e ou morrer socialmente, caracterizando este modo de fazer política
como “necropolítica”, mediado pela modernidade tardia.
75
O livro de Joel Birman, O trauma na pandemia do coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas,
ecológicas, culturais, éticas e científicas, traça um panorama inicial desse momento traumático do mundo e em
especial do Brasil na qual aproximadamente 700 mil mortes ocorreram. “Não resta dúvida, então, como os
indivíduos negros e pardos foram mais atingidos pela Covid-19, se mensurarmos tanto os casos clínicos de
infectados quanto os mortos, uma vez que esse contingente populacional se encontra principalmente entre as
classes sociais pobres e precárias, muito mais expostas à disseminação do vírus do que as populações brancas,
representadas pelas classes médias e as elites”. (BIRMAN, 2021, p. 98).
76
Em 20 de março de 2021, o sindicato dos professores da rede estadual alertou: “Apeoesp: com aulas presenciais,
2.294 professores contraíram Covid e 48 morreram”. Em abril de 2021 tivemos o pico da pandemia e
conjuntamente um movimento grevista que obrigou o governo Dória a iniciar a vacinação dos professores. A
TRIBUNA PIRACICABANA. “Apeoesp: com aulas presenciais, 2.294 professores contraíram Covid e 48
morreram”, 20 mar. 2021. Disponível em: https://www.atribunapiracicabana.com.br/2021/03/20/apeoesp-com-
aulas-presenciais-2-294-professores-contrairam-covid-e-48-morreram/. Acesso em: 21 mar. 2021.
77
Faltando ainda 6 dias para acabar o mês de abril ele já se tornará o mês mais mortífero da pandemia. Em 24
dias de abril quase 68 mil mortes. G1. “A 6 dias do fim, abril se torna o mês mais letal da pandemia no Brasil”, 24
abr. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/24/abril-se-torna-o-mes-
mais-letal-da-pandemia-no-brasil.ghtml. Acesso em: 24 abr. 2021.
78
“100 dias de greve pela vida: Um professor tem 3 vezes mais chance de pegar COVID do que um trabalhador
da mesma idade. E por causa disso os professores entenderam que a luta na rua é mais segura do que a resignação
dentro de uma sala. Não é admissível ver vans escolares transportando caixões de colegas mortos em decorrência
de uma doença para a qual já existe vacina.” JACOBIN BRASIL. “100 dias de greve pela vida”, 20 mai. 2021.
Disponível em: https://jacobin.com.br/2021/05/100-dias-de-greve-pela-vida/. Acesso em: 25 mai. 2021.
134
professores enfraqueceu demasiadamente a greve. Uma das evidências mais claras disso é que
muitos diretores da rede municipal não cortaram o ponto dos professores, o que permitiu que
terminassem a greve sem descontos salariais e ficassem disponíveis apenas para as reposições.
Na rede estadual, a unidade entre os profissionais de educação não existiu, produto das
políticas de divisão da categoria organizadas pelos governos estaduais de São Paulo ao longo dos
anos, assim como o enfraquecimento sindical, fenômeno que carrega as particularidades da
Apeoesp, mas que tem dimensões históricas nacionais e internacionais.79 Os professores da rede
estadual correram mais riscos de morte pela precarização de sua organização sindical e de trabalho.
Interessante observar que esta diferença entre as redes estadual e municipal de São Paulo
é um dado comum na pesquisa, na fala dos professores com relação ao plano de carreira,
condições de trabalho e salário, e unidade política e pedagógica dos professores. A rede de
ensino municipal de São Paulo é, segundo os dados da pesquisa, mais atrativa para os
professores, no que pese também estar sob efeito da precariedade. A comparação com a rede
de ensino estadual torna mais evidente a intensidade da precariedade desta rede de ensino.
Nos dados de pesquisa percebemos que o concurso da rede municipal de educação é
uma forma mais segura para os professores deixarem a rede de ensino estadual. O que é
interessante observar no próprio processo de vacinação contra a Covid, o envelhecimento maior
dos professores da rede estadual de ensino com relação à rede municipal. A rede estadual de
ensino não é atrativa para os professores mais jovens ou aqueles que estão iniciando seu
percurso educacional, como nos mostra também a pesquisa de Zafalão (2021). Muitos dados da
pesquisa indicaram sobre a dimensão de um “mal-estar destrutivo” na rede de ensino estadual,
ou seja, um mal-estar intensificado pelas condições de precarização do trabalho e das relações
de trabalho, de desligamento, não de ampliação de Eros, de instinto de vida, mas justamente,
como nos traz Freud, instinto de morte, de Thanatos.
O uso por parte dos professores de palavras relacionadas às metáforas de guerra, em seu
trabalho na escola, nos indica isso: “afiar a espada” (professor Luiz) “munição” (professor
Fernando), “desunião” (Professora Luana), “sobrevivente” (Professor João) tornada mais
evidente pela consigna “greve pela vida”. No que pese representar alguma possibilidade de luta
79
Em O homem unidimensional, Herbert Marcuse discute o fechamento do universo político e a indiferenciação
das corporações e os sindicatos apontando internacionalmente os efeitos dos processos de integração e adaptação
dos sindicatos e partidos de esquerda ao atual estágio do capitalismo. “Esses partidos comunistas nacionais
desempenham o papel histórico de partidos de oposição legal, ‘condenados’ a ser não-radicais. Eles testemunham
a profundidade e alcance da integração capitalista e as condições que fazem a diferença qualitativa de interesses
em conflito parecerem diferenças quantitativas dentro da sociedade estabelecida.” (MARCUSE, 2015, p. 56-7).
135
dos professores para viver, o uso destas expressões aponta para dimensões de um mal-estar
destrutivo em que estão colocados os professores da rede de ensino pública estadual.
Há muitas pesquisas e especialistas que tentam adaptar o professor a estas situações
muitas vezes vistas como contingentes. A tese de doutorado de Ademir Henrique Manfré, O
mal-estar docente e os limites da experiência no tempo presente: uma leitura frankfurtiana
(2014), estudou uma série de trabalhos acadêmicos que encontraram, como saída para o mal-
estar docente, uma maior adequação frente às exigências. As pesquisas estudadas pelo autor
apontaram o que os professores buscam para o bem-estar: práticas de resiliência, fé,
afastamento dos problemas, impor limites, dialogar, harmonia no trabalho, greves, paralisações
e terapia. Manfré aponta que “esses autores defendem a tese de que os professores melhores
capacitados estariam em boas condições de evitar o adoecimento, o mal-estar, a angústia. Desse
modo compreendem o bom professor como aquele que não adoece, ou seja, o professor seria
aquele que encontra satisfação nos próprios sintomas.” (MANFRÉ, 2014, p. 67).
Manfré desenvolve sua crítica com base nos pressupostos de O mal-estar na civilização e
da particularidade do ofício docente, e a partir de Birman, Bauman, Benjamin e Adorno, a análise
do empobrecimento da experiência relacionada às transformações tecnológicas da sociedade e o
advento da racionalidade instrumental. O indivíduo ajustado seria aquele que carrega as marcas
objetivas irracionais, destrutivas. Os sujeitos, portanto, que se adaptam a esse modelo de sociedade
não são menos enfermos que os indivíduos supostamente doentes. Ao contrário, confirmam o
triunfo da sociabilidade instrumental sobre a esfera individual. (MANFRÉ, 2014).
É claro que há estudos mais longos que mostram a precarização do trabalho dos
professores, como o de Zafalão (2021) que estudou a rede de ensino de 2007 a 2018, apontando
as políticas do governo estadual que precarizaram o trabalho dos professores. No entanto, o que
está colocado se olharmos de modo mais amplo para a organização social sob o capital em
âmbito mundial, é que elas revelam uma formação social, que em nada colabora, como nos
lembra Freud, para a melhora nas perturbações trazidas pelos instintos de destruição, mas os
amplifica ao não oferecer algum amparo para o mal-estar.
80
Segundo estudo da FGV: “O estudo mostrou que o Índice de Gini – utilizado para medir o grau de concentração
de renda e apontar a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos – chegou a 0,7068 em 2020,
valor é superior ao 0,6013 calculado apenas na Pnad Contínua. Cada 0,03 ponto corresponde a uma grande
mudança da desigualdade e quanto mais perto de 1, maior é a desigualdade. O fato é que houve um aumento na
desigualdade entre os mais pobres e mais ricos no Brasil, principalmente devido ao efeito da pandemia sobre a
classe média.” Disponível em: https://ibase.br/pesquisa-da-fgv-aponta-aumento-da-desigualdade-social-apos-a-
pandemia/. Acesso: 19/07/2023.
81
Putin, que utilizou uma retórica de utilização de armas nucleares caso o ocidente ameaçasse a Rússia, diz que
“o mundo enfrenta década mais perigosa desde segunda guerra mundial”. CNN BRASIL. “Putin diz que mundo
enfrenta ‘década mais perigosa’ desde Segunda Guerra Mundial”, 27 out. 2022. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/putin-diz-que-mundo-enfrenta-decada-mais-perigosa-desde-
segunda-guerra-mundial/. Acesso em: 28 out. 2022.
137
A expansão desenfreada do capital desses últimos séculos abriu-se não apenas em resposta
a necessidades reais, mas também por gerar apetites imaginários ou artificiais – para os
quais, em princípio, não há nenhum limite, a não ser a quebra do motor que continua a
gerá-los em escala cada vez maior e cada vez mais destrutiva – pelo modo de existência
independente e pelo poder de consumo auto-afirmativo. (MÉSZÁROS, 2006, p. 109).
as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje ainda não faz justiça a seu
próprio conceito. (ADORNO, 2020a, p. 51).
O legado destes processos históricos é a relação formal da maioria dos indivíduos com
a cultura, o trabalho e a democracia. Como não se sentem parte, normalmente excluídos de suas
benesses e prazeres, tentam voltar para si exclusivamente a libido que poderia encontrar vazão
nos objetos da cultura, nas relações intersubjetivas e no trabalho.
Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, caracterizou este momento histórico sob as
bases da mais-repressão e do princípio do desempenho, a forma como o princípio de realidade
assumiria no atual contexto histórico. A dominação, para o filósofo, passou por um crescente
processo de racionalização na qual
Os homens não vivem sua própria vida, mas desempenham tão-só funções
preestabelecidas. Enquanto trabalham, não satisfazem suas próprias necessidades e
faculdades, mas trabalham em alienação. O trabalho tornou-se agora geral, assim
como as restrições impostas à libido: o tempo de trabalho, que ocupa a maior parte do
tempo alienado significa ausência de gratificação, negação do princípio de prazer. A
libido é desviada para desempenhos socialmente úteis, em que o indivíduo trabalha
para si mesmo somente na medida em que trabalha para o sistema, empenho em
atividades que, na grande maioria dos casos, não coincidem com suas próprias
faculdades e desejos. (MARCUSE, 2010, p. 58).
Neste âmbito, é interessante observar que os homens não só passam pela lógica da
dominação no trabalho, mas o seu tempo livre também está sob a mesma lógica. No atual
estágio da civilização, produziu-se uma indústria de entretenimento que controla diretamente o
tempo de lazer como se estivesse sob a lógica do trabalho.
A tese de Marcuse em Eros e Civilização é que este modelo de desenvolvimento
civilizatório produz unicamente destrutividade reconhecida como progresso, o que torna mais
complexa as saídas para construção de um outro princípio de realidade.
5. MAL-ESTAR E SOFRIMENTO
Professor João
O que vemos Freud demarcar é que o sofrimento faz parte da condição humana, mas
não significa que devemos simplesmente nos adaptar a ele. Melhorar a vida e suas condições
141
torna-se a mais virtuosa e complexa das ações. “Se não podemos abolir todo o sofrer, podemos
abolir parte dele, e mitigar outra parte – uma experiência milenar nos convenceu disso.”
(FREUD, 2010a, p. 44).
Por isso, pensar e observar as dinâmicas individuais e sociais em seus modos de
sofrimentos passam a ser fonte de pesquisa da psicanálise. Assim como há modos de sofrer
individuais, há aqueles em grupo, como nos apontou Freud em Psicologia das massas [grupo]
e análise do eu. Todavia, mesmo antes deste clássico há muitas alusões de Freud aos aspectos
comuns do sofrimento.
Quando temos contato com o conjunto dos textos de Freud, uma obra longa que
demonstra um árduo percurso de elaboração através de suas experiências clínicas e observação
da sociedade, notamos que a realidade social ou a chamada realidade exterior sempre aparece
no conjunto de seus textos e jogam luz a um modo de ser e sofrer comum.
Mesmo na Interpretação dos Sonhos, de 1900, obra que se considera inaugural da
psicanálise, em que cada sonho tem uma construção bastante singular a partir do “trabalho do
sonho”, no qual cabe ao indivíduo analisado construir o significado pela relação entre o
conteúdo manifesto e latente, temos já uma dimensão social que escapa82, chamada por Freud
de “sonhos típicos”, mais comum de significados. Estes sonhos diriam sobre a condição
humana, a experiência social de sonhar e de sofrer.
Em geral, não somos capazes de interpretar o sonho de outra pessoa se ela não quiser
nos fornecer os pensamentos inconscientes que estão por trás do conteúdo do sonho,
o que prejudica fortemente a utilização prática do nosso método de intepretação dos
sonhos. Mas, em pleno contraste com a liberdade que o indivíduo tem para formar seu
mundo onírico ao seu modo e assim torná-lo inacessível à compreensão dos outros,
existe certo número de sonhos que quase todos os indivíduos têm da mesma forma e
que nos habituamos a supor que tem o mesmo significado para todos. Esses sonhos
típicos merecem um interesse especial também porque, presumivelmente, vêm das
mesmas fontes em todas as pessoas e, portanto, parecem especialmente adequados a
nos esclarecer sobre as fontes dos sonhos. (FREUD, 2019, p. 280-1).
Nestes sonhos típicos temos aqueles de embaraço causados pela nudez, o sonho de
morte de pessoas queridas, sonhos de voar ou cair, sonhos com exames. O sonho de morte de
pessoas queridas abre, de forma mais significativa, a relação com o complexo de Édipo, pedra
fundamental da construção freudiana.
O Édipo, a relação com os pais, a relação de amor e ódio, como uma expressão da
ambivalência, é comum aos indivíduos. Isso certamente diz sobre um modelo de família
82
Não podemos deixar de considerar também que o próprio conteúdo dos sonhos revela por si expressões dos
signos e símbolos de uma cultura. Portanto, são estritamente sociais na medida em que, apesar de apresentarem
significados singulares na análise do sonho, se dão sobre imagens que tem um sentido social e comunicável, que
não excluem as lógicas de poder, distinção e dominações sociais.
142
determinada historicamente83. O que escapa nesses “sonhos típicos” é como se realiza um modo
de mal-estar e sofrimento comum.
Um outro texto interessante em que escapa uma dimensão mais social de um modo de
sofrer dos indivíduos é O chiste e sua relação com o inconsciente, de 1905, no qual se distingue
as formas como as classes sociais percebem o que é cômico, e até a forma como realizam a
dimensão agressiva que se desrecalca no chiste.
Aqui se torna finalmente compreensível o que o chiste faz a serviço de sua tendência. Ele
possibilita a satisfação de um instinto (lascivo e hostil) ante um obstáculo que se acha em
seu caminho, desviando-se dele e assim criando prazer a partir de uma fonte de prazer que
se tornaria inacessível por causa desse obstáculo. O obstáculo no caminho não é outra
coisa senão a incapacidade da mulher, tão maior quanto mais elevadas a formação e a
classe social, de suportar o que é francamente sexual. (FREUD, 2017, p. 144-5).
83
Em Temas básicos de sociologia, Adorno escreve um capítulo muito interessante sobre o conceito de “família”, no
qual situa suas bases, relações sociais e crises do ponto de vista histórico. Em um determinado trecho diz: “a
consciência ingênua vê as relações privadas como uma ilha situada em pleno fluxo da dinâmica social, como um
resíduo do estado natural. Na verdade, a família não só depende da realidade social, em suas sucessivas concretizações
históricas, mas também está socialmente mediatizada, mesmo em sua estrutura mais íntima.” (ADORNO, 1973, p.
133). Maria Rita Kehl, em seu artigo Em defesa da família tentacular, contribui para situar a família do ponto de
vista histórico e sua expressão nas formas de sintoma. “Vale lembrar que na época em que Freud começou a escutar
as expressões do sofrimento das histéricas e a entender as razões das inibições culposas dos obsessivos, a família
nuclear burguesa estava em pleno apogeu. Era do seio das famílias vienenses mais estruturadas, no final do século
XIX, que vieram os primeiros pacientes que possibilitaram ao Dr. Sigmund Freud investigar a origem das neuroses
e inventar a psicanálise. Aquele foi o modelo de família onde germinaram as modalidades modernas de mal estar,
que Freud associou às exigências da monogamia, às restrições sexuais impostas sobretudo às mulheres, à
claustrofobia doméstica que contribuía para fixar os filhos no lugar de objetos do amor incestuoso de suas mães.
Observem que estou invertendo propositalmente os termos do chamado Complexo de Édipo, ao afirmar que são as
mães, insatisfeitas tanto com as limitações de seu destino doméstico quanto com a pobreza de sua vida sexual, que
fazem dos filhos o objeto de um investimento libidinal pesado demais.” (KEHL, 2013).
143
reverter esta renúncia, e o chiste marcado pelas diferenças de gênero e classe social atua no
sentido de reparar tal renúncia ao prazer reprimido.
Quando rimos de um chiste obsceno fino, rimos da mesma coisa que leva o camponês a
rir da rude piada de baixo calão; o prazer se origina nos dois casos da mesma fonte; mas
não conseguiríamos rir de piada grosseira – nos envergonharíamos ou ela nos pareceria
asquerosa; somente rimos quando o chiste nos presta seu auxílio. (FREUD, 2017, p. 146).
Não há dúvidas que, aqui, Freud está discutindo uma forma de mal-estar e sofrimento
relacionado à condição social dos indivíduos, e de como eles expressam, do ponto de vista do
seu processo psíquico, as formas de deslocar os modos de repressão marcados pelas
determinantes de classe social e gênero.
Mesmo quando Freud se dedica ao entendimento propriamente da etiologia das
neuroses, em especial aqui a neurose histérica, em seu texto Fantasias histéricas e
bissexualidade, de 1908, na relação com determinadas impressões e vivências (traumáticas)
atuantes, as quais passam por um processo de conversão através das redes associativas
inconscientes, aponta que
Se não houver nenhuma outra forma de satisfação sexual, se a pessoa ficar em abstinência
e não conseguir sublimar sua libido, isto é, desviar sua excitação sexual para uma meta
mais elevada, estarão dadas as condições para que a fantasia inconsciente seja reavivada,
cresça e, com toda a força da necessidade amorosa, imponha-se como sintoma
patológico, ao menos numa parte de seu conteúdo. (FREUD, 2015a, p. 343).
podem ser acentuados. Portanto, estudar psicanálise associada à educação exige que
compreendamos as dinâmicas sociais do trabalho do professor também como uma realidade
social e não apenas psíquica do indivíduo isolado, relacionada às suas fantasias inconscientes.
Até do ponto de vista estritamente clínico, a relação entre realidade psíquica e realidade
exterior é muito mais complexa, na obra de Freud, do que apenas o “eu não acredito mais na
minha neurótica”.84 É o que mostra Nelson Coelho Junior no livro A força da realidade na clínica
freudiana (1995). Em seu percurso sobre a obra de Freud evidencia as dificuldades de estabelecer
um determinismo a respeito da realidade psíquica ou realidade exterior. Elas se complementam
de modo aberto. Segundo o autor: “em nenhum momento da obra de Freud, nem mesmo no
período da teoria da sedução, parece haver completa autonomia de uma realidade com relação à
outra; há sempre algum tipo de relação entre elas.” (COELHO JUNIOR, 1995, p. 105).
O que Freud pensará, em um determinado momento de sua obra, é que as determinações
das exigências culturais e individuais estão na ordem de um equilíbrio sempre em aberto,
representando modos de sofrer.
Na busca por certo equilíbrio, o prazer e a realidade não produzem uma unidade completa
absoluta. Exigem uma relação muitas vezes de difícil complementariedade. Já a partir do
nascimento (alguns psicanalistas, como Otto Rank 85 , trabalham, inclusive, um trauma do
nascimento, como uma marca desta primeira separação) temos as primeiras relações do bebê com
a mãe que se desenvolverão por uma unidade psíquica, produto da dependência do bebê,
combinada às renúncias instintuais deste desenvolvimento. Como Freud (2010a, p. 99) nos coloca:
84
Na carta 69 das correspondências com Fliess, Freud escreve esta famosa frase que marca uma virada na “teoria
da sedução” , ao estabelecer a relação no campo da sexualidade entre pais e filhos no âmbito da fantasia e não
mais da ordem estrita da realidade exterior. (MASSON, 1986).
85
Como nos coloca Érica Gonçalves de Castro na introdução à obra O trauma do nascimento, de Otto Rank, “Como
diz o título completo da obra, trata-se de delimitar o significado desse trauma inicial para a psicanálise da época. Assim,
o nascimento constitui um trauma sui generis e com consequências. A principal referência de Rank será Interpretação
dos sonhos, o que ficaria patente na exposição, mesmo se a obra não fosse dedicada a Freud. Se este, nesta obra seminal,
define o ato do nascimento como ‘a primeira experiência da ansiedade’, bem como ‘a fonte e o protótipo do afeto da
ansiedade’, em Rank, essa experiência assumirá um valor causal decisivo. Rank sublinha a importância da separação
do corpo da mãe e da perda da situação de prazer própria da vida intrauterina, trauma que, para ele, será fonte de todas
as neuroses e a chave para sua cura. A separação biológica da mãe desdobra-se, portanto, no protótipo de uma angústia
psíquica. Enquanto Freud considera que as modalidades psíquicas e fisiológicas do nascimento constituam uma causa
de angústia, mas sustenta que a fonte mesma das neuroses seja de ordem sexual, para Rank, toda e qualquer angústia
neurótica repete os fenômenos fisiológicos do nascimento.” (RANK, 2016, p. 14).
145
(...) toda renúncia instintual torna-se uma fonte dinâmica da consciência, toda nova
renúncia aumenta o rigor e a intolerância desta, e, se pudéssemos harmonizar isso melhor
com o que sabemos da história da origem da consciência, seríamos tentados a defender a
tese paradoxal de que a consciência é resultado da renúncia instintual, ou de que esta (a
nós imposta do exterior) cria a consciência, que então exige mais renúncia instintual.
Quando a mãe se afasta do bebê, por circunstâncias pessoais ou externas, estamos diante
de um princípio de realidade que produz renúncia instintual, que estabelece uma frustração para
a criança e marca sua consciência. A forma como a criança irá lidar com essa realidade será o
produto de um saber para ela, uma marca constituinte e inconsciente subjetiva.
Esse princípio de realidade se amplia socialmente, constitui novas formas de frustração
e de renúncias, novos modos de sofrer marcados por uma frustração produzida na cultura.
Essa “frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os
homens; já sabemos que é a causa da hostilidade que todas as culturas têm de
combater. Ela também colocará sérias exigências ao nosso trabalho científico; aí
teremos muito o que esclarecer. Não é fácil compreender como se torna possível
privar um instinto de satisfação. É algo que tem seus perigos; se não for compensado
economicamente, podem-se esperar graves distúrbios. (FREUD, 2010a, p. 60).
O trecho acima é muito interessante e diz da relação do indivíduo, do seu Eu, com a
transformação da realidade exterior. A importância de dar um destino para a energia pulsional
para fora, para transformar a realidade estabelecendo a “suprema realização do Eu”. Ao mesmo
tempo, Freud estabelece que a sabedoria de viver não está relacionada a tomar as paixões como
meta absoluta. É preciso fazer uma leitura da realidade para preservar a individualidade, o
próprio psiquismo, na perspectiva da autoconservação.
Essa construção freudiana nos possibilita pensar sobre o lugar do sofrimento destrutivo
no qual os professores estão inseridos. As condições de uma frustração excessiva (FREUD,
2010a) produzidas pelas dinâmicas compulsivas, destrutivas do trabalho (FREUD, 2010a),
produzem efeitos na realidade psíquica dos professores fazendo do sofrimento não uma
experiência de enriquecimento da consciência, do Eu, mas justamente de empobrecimento, de
produção de defesas e formas destrutivas do funcionamento psíquico, no qual os adoecimentos
de várias ordens se apresentam.
Se a realidade externa intensifica traços psíquicos destrutivos nos indivíduos, torna-se
ainda mais importante compreender as dinâmicas sociais do princípio de realidade, que não são
a-históricas. Dos primeiros cuidados maternos ao mundo do trabalho ele responde a complexas
147
dinâmicas sociais que, se analisadas pelo recorte exclusivo e isolados da realidade psíquica,
ficam empobrecidos e mutilados. São análises que engendram uma forma de olhar a realidade
externa muitas vezes não reconhecendo seu teor destrutivo, apenas contingente.
Esse não é um debate certamente fácil na psicanálise 86 . Atravessa a história do
movimento psicanalítico. Está na própria fundação da psicanálise a partir da “teoria da
sedução”, e em alguns momentos representa processos de ruptura dentro da psicanálise. Pelo
que observamos da bibliografia sobre o assunto, essa discussão se assemelha a um tabu 87 ,
relacionado a quem faz ou não psicanálise, o que é ou não psicanálise.88
Nosso objetivo não é certamente aprofundar nesta discussão. Entretanto, como
queremos trazer para o diálogo o psicanalista Sándor Ferenczi, contemporâneo de Freud, que a
nosso ver traz contribuições decisivas para a compreensão do trauma na psicanálise, o trauma
real89, consideramos que é necessário tocar nesse debate, visto que avaliamos que o professor,
86
“Segundo Castel (1978): “Ao que parece, este esquema foi montado através da história do movimento analítico
como uma resposta às singulares condições de seu desenrolar (isolamento num meio hostil, insegurança, tensões
internas ao grupo etc.). Fez do devir psicanalítico uma sucessão de processos, encenou sua história como um
tribunal. Toda a diferença foi percebida como uma desavença de ordem teórica e esta desavença, por sua vez, foi
interpretada como uma traição ao espírito da psicanálise. Já ao tempo de Freud, Adler, Jung e os outros não foram
condenados apenas por terem se separado da ortodoxia em pontos fundamentais (a sexualidade infantil, o
complexo de Édipo etc.). Graças a este abandono, tornaram-se renegados, pois foram acusados de terem escolhido
(por pusilanimidade, por ambição, por interesse etc.) o não-analítico contra o analítico. Excetuando a exigência
de confissão (o que não é pouco), é a pura lógica dos processos stalinistas. E não poderia deixar de ser diferente
num universo dicotômico, onde o não-analítico não pode ser pensado por si mesmo.” (CASTEL, 1978, p.24).
87
Nos últimos tempos há um esforço intelectual de pesquisas que visam resgatar a história do movimento
psicanalítico de psicanalistas que foram “esquecidos” como Otto Gross (CHECCHIA; SOUZA; LIMA, 2017),
Sabina Spielrein (CROMBERG, 2021), Marie Langer (GARCIA, 2023), ou mesmo expulsos das Associações
Nacionais ou Internacionais de Psicanálise (IPA) como Wilhelm Reich (GARCIA, 2023) e Jacques Lacan
(ROUDINESCO; PLON, 1998), entre outros. Uma prática por vezes comum destes processos é analisar o psicanalista
não pelo conteúdo do seu trabalho, mas por pretensas “análises psíquicas” pessoais, muitas vezes afirmando que
aquilo que se diz não é psicanálise, mas algum “sintoma”, de modo que o movimento psicanalítico dominante
demarque aqueles que estão fora e que estão dentro das associações ou dos grupos psicanalíticos, fortalecendo
unidades a partir da indiferenciação, da falência da crítica e do empobrecimento da capacidade criativa.
88
O resgate do psicanalista Sándor Ferenczi no cenário psicanalítico brasileiro, depois de longo esquecimento de
seu legado, tem trazido muitos debates em torno das dimensões do trauma e da realidade social. O impactante
livro de Jefrrey Moussaieff Masson, Atentado à verdade, a supressão da teoria da sedução por Freud, nos coloca
na complexidade das discussões em torno da realidade psíquica e da realidade exterior na construção da teoria da
sedução em Freud. “No ensaio de 1932, Ferenczi havia repetido a essência do ensaio de 1896 de Freud, A etiologia
da histeria, e foi mais além ao investigar as defesas que as pessoas desenvolviam para afastar o conhecimento das
suas mágoas da infância. O ensaio de Ferenczi era uma resposta ao abandono por Freud da teoria da sedução, pois
afirma que um trauma real pode por si só originar fantasias terríveis – que essas fantasias provêm de um
acontecimento real, e não as substituem. As pessoas adoecem por causa do que lhes aconteceu, não pelo que elas
imaginam haver lhe acontecido.” (MASSON, 1984, p. 174).
89
Em um dos últimos artigos antes de falecer, Confusão de línguas entre os adultos e a criança, Ferenczi discorre:
“Em primeiro lugar, puder confirmar a hipótese já enunciada de que nunca será demais insistir sobre a importância
do traumatismo e, em especial, do traumatismo sexual como fator patogênico. Mesmo crianças pertencentes a
famílias respeitáveis e de tradição puritana são, com mais frequência do que se ousaria pensar, vítimas de violências
e de estupros. São ora os próprios pais que buscam um substituto para suas insatisfações, dessa maneira patológica,
ora pessoas de confiança, membros da mesma família (tios, tias, avós), os preceptores ou o pessoal doméstico que
abusam da ignorância e da inocência das crianças. A objeção, a saber, que se trataria de fantasias da própria criança,
ou seja, mentiras histéricas, perde lamentavelmente sua força, em consequência do número considerável de pacientes,
em análise, que confessam ter mantido relações sexuais com crianças.” (FERENCZI, 2011, p. 116).
148
pela constância de situações adversas, com intensidades variadas inclusive traumáticas, está sob
um sofrimento destrutivo e não criativo.
Isso implica pensar que a intensidade é agravada pela situação de desmentido de sua dor90,
seja por um ambiente de trabalho que não consegue dar o suporte de elaboração do seu mal-estar,
seja por intervenções em várias esferas socioculturais (governos, familiares de estudantes,
gestores, especialistas etc.), seja pela precariedade das condições de trabalho na qual a libido que
não encontra vazão no objeto, volta-se para o processo de autopreservação ou autorrecriminações,
produzindo um espaço de relações interpessoais bastante embrutecedor e empobrecedor, muitas
vezes, nas escolas. Como nos coloca o psicanalista Eugênio Canesin Dal Molin (2016, p. 173):
A segunda teoria do trauma (Além do princípio do prazer, 1920), em Freud, abre para
pensarmos a relação da realidade exterior com o psiquismo. É evidente que nem todas as
experiências que os professores sofrem são de alta intensidade, no que pese isso também
acontecer.91 No entanto, consideramos, como nos lembra a psicanalista Myriam Uchitel, que a
experiência “do trauma cumulativo, em cada acontecimento, por si só, não é suficiente para ter
caráter traumático, mas a soma dos efeitos de cada um (...).” (UCHITEL, 2000, p. 148).
90
Daniel Kupermann, um estudioso da obra de Ferenczi, evidencia como ele ampliou o conceito de Verleugnung,
recusa, em Freud: “Em contrapartida, na descrição de Ferenczi o evento traumático se consuma apenas no tempo
do desmentido empreendido pelo outro em que se confiava, e quem se solicitou auxílio para representar a violência
sofrida. Assim, ao propor uma leitura relacional do conceito freudiano de Verleugnung – a recusa da castração
encontrada nas perversões – Ferenczi abre caminhos para a concepção de trauma social, indicando que o não
reconhecimento da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica no desmentido
da sua experiência e do seu testemunho pelo outro a quem se recorreu no campo social e político.”
(KUPERMANN, 2019, p. 77).
91
Há relatos públicos e notórios de professores que são agredidos, sofrem ameaças de morte por alunos ou pais,
que inclusive entram armados na escola. O caso da professora da rede estadual de São Paulo, Rosymeire de
Oliveira, é bem emblemático disso. Teve que se afastar depois de ser ameaçada por um aluno armado, não teve
apoio do ambiente escolar, entrou em depressão e teve que se readaptar das funções da sala de aula, a qual a
colocou em outro nível da indiferença e do desmentido como professora no ambiente escolar. Virou “a professora
readaptada”, perdeu o nome! Escreveu uma tese de doutorado sobre todo este processo pela qual passou que a
ajudou a elaborar e refletir sobre suas experiências. G1. “‘Acho que nunca senti tanta solidão’: professora se afasta
das salas de aula após ser ameaçada por aluno armado”, 15 out. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/volta-as-aulas/noticia/2020/10/15/acho-que-nunca-senti-tanta-solidao-professora-
se-afasta-das-salas-de-aula-apos-ser-ameacada-por-aluno-armado.ghtml. Acesso em: 15 out. 2020.
149
(...) o conceito puro de sociedade é tão abstrato quanto o conceito puro de indivíduo,
assim como o de uma eterna antítese entre ambos. Mas o certo e o errado de um e
outro momento, a sua substância e a sua mera aparência, não se deixam determinar
completamente ao nível das generalizações, tornando-se necessária a análise das
relações sociais concretas e da configuração concreta que o indivíduo assume nessas
relações. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 53).
92
Estas são questões que são objeto de estudo desde os autores chamados “freudo-marxistas”, como Wilhelm
Reich: “Mas a definição do princípio de realidade como exigência da sociedade permanece formal se não
acrescentar concretamente que o princípio da realidade, sob a forma que reveste para nós atualmente, é o princípio
da sociedade capitalista, baseada na economia privada. São numerosos os desvios idealistas em psicanálise quanto
à maneira de conceber o princípio de realidade. Assim, ele é muitas vezes apresentado como um dado absoluto.
Por adaptação à realidade entende-se simplesmente a adaptação à sociedade, o que, na pedagogia como na
terapêutica das neuroses, constitui inegavelmente uma formulação conservadora.” (REICH, 1974, p. 47).
93
Há uma série de produções que tentam compreender a dimensão histórica, social e inconsciente do sofrimento.
A psicanalista Miriam Deubiex Rosa traz que, “mais importante ou tão importante quanto à dimensão de cada
150
A seguir, dialogaremos criticamente com uma interpretação do mal-estar docente que traz
elementos para pensar a dinâmica psíquica e narcísica individual do mal-estar do professor, mas
que acaba por não avançar nas conexões necessárias com as dinâmicas sociais desse mal-estar.
Nas leituras dos trabalhos de pesquisa e da bibliografia nos chamou atenção o livro O
nome atual do mal-estar docente (2016), de Marcelo Ricardo Pereira que integra o LEPSI-UFMG
(Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas sobre a Infância – IP/FE-USP). Trata-se de
um trabalho de pesquisa no campo da psicanálise e na temática do ofício do professor.
Pereira analisa o fenômeno do estado depressivo dos professores e aponta que a saída é o
encontro com o mal-estar inerente ao ofício docente como aquele que tem que se manter transitório,
provisório, em uma dimensão de incompletude que traz significado a esta posição subjetiva.
O autor questiona se este discurso generalizado dos sintomas docentes não estaria
“inflacionado” e que as reais causas do desamparo em torno do mal-estar não estão sendo
investigadas. “Eis o que nos querem fazer inferir muitos professores, gestores, entidades de
classe e outros que, em geral, professam o discurso pedagógico. Mas devemos aqui ir devagar
com o andor! Será que esta tragédia anunciada é de todo verdadeira? Será mesmo que padecem
mais aqueles que ensinam?” (PEREIRA, 2016, p. 23).
Ele caracteriza o mal-estar docente o associando ao mal-estar contemporâneo da
sociedade ocidental e, assim, coloca em dúvida se os professores tenderiam de fato a um
sofrimento maior que o restante da população. Segundo o autor, o mal-estar da sociedade
ocidental é comum a todos e está relacionado ao
sujeito nossa hipótese forte é que há no analista uma resistência de classe social na escuta clínica desses sujeitos.
Ou seja, o psicanalista está implicado nas normativas e nos interesses de classe de seu grupo social, o que pode
ser impeditivo da escuta clínica. Consideramos que a resistência do analista é o principal entrave à escuta clínica
nestes contextos.” (ROSA, 2016, p. 48). Acompanhamos também, na produção teórica nas últimas décadas, como
a dimensão racial inconsciente é um fator de resistências às escutas em determinados contextos. O livro de Cida
Bento, O pacto da branquitude, inaugurou uma série de trabalhos com a temática “branquitude” no Brasil. Como
Bento nos coloca: “Este pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o
“diferente” ameaçasse “o normal”, “o universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do
preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele.” (BENTO, 2022, p. 18).
151
Pereira critica uma produção de pesquisa marcada pela “experiência militante” que
tende a ratificar um resultado que já se sabe de antemão. Apesar de ampliar as pesquisas na área
da saúde do professor e das condições que o geram, elas examinam, segundo o autor, apenas
superficialmente as causas subjetivas e intrapsíquicas.
O psicanalista pergunta qual seria o ganho secundário do padecimento docente. Para
ele, o sintoma “passou a ser um fenômeno subjetivo constituído pela realização deformada do
desejo. Ele é uma ‘pantomima do desejo’ ou é aquilo que nas pessoas 'há de mais real’. Neste
sentido o sintoma mescla restrição e satisfação, interdição e gozo, pois, se há alguma realização
de desejo, essa se dá de maneira enviesada.” (PEREIRA, 2016, p. 80). Os professores teriam
um ganho proveniente de seu lugar social de sofrimento. Segundo Pereira,
Seria interessante pensar, já que Pereira coloca em dúvida se professores adoecem mais
do que a população de modo geral, se o “não há saída” que os professores apontam não estaria
relacionado ao mundo do trabalho e não somente ao ofício de professor. É preciso uma
mediação do social na escuta desta singularidade.94 O pensamento freudiano nos leva a essas
94
Nos próprios dados de pesquisa de 10 professores relatados nos estudos de casos de Pereira (2016), poderia
haver desdobramentos da escuta nesse sentido. Por exemplo, quais são as implicações psíquicas das experiências
intensas e traumáticas que os professores sofrem em sala de aula?, as quais são um problema social e não apenas
individual da posição subjetiva neurótica do professor, visto que passar “o pênis na garrafa que a professora vai
beber água”, “ameaçar quebrar os dentes” de outra docente ou o aluno que “quebra o vidro de uma sala de aula
com uma mochila”, entre outros relatos descritos pelo autor, não são fenômenos banais, “gatilhos”, mas
experiências intensas, por vezes traumáticas e contínuas, e não fenômenos isolados, visto que produzem formas
de adoecimentos relacionados à clivagem do Eu, automatismos e adaptações justamente para evitar adoecimentos
mais drásticos ou mesmo formas de se afastar deste ambiente hostil. Colocamos em questão se estamos falando
somente de “covardia moral” frente ao recuo do desejo? Nas falas que Pereira nos traz, sabe-se muito pouco de
quais dinâmicas sociais, de condições de trabalho e relações de trabalho específicas, inclusive para além da sala
de aula, no ambiente escolar, estes professores estão trazendo, visto que o autor mutila o mal-estar docente em
uma leitura marcada pelo determinismo dos processos de desenvolvimento constitucional primário dos
professores. A realidade social passa a ser vista preponderante como um lugar de uma Outra cena. Os
desdobramentos de uma escuta do social a partir da fala dos professores seria uma possibilidade de pensar
profundamente o discurso sugerido por Pereira: do professor como aquele que se “vitimiza”, ou seja, poderíamos
152
possibilidades de caminho. O ofício de professor se liga à uma marca civilizatória das profissões
impossíveis, mas também está sob a lógica da objetividade do trabalho, ou seja, das mediações
da “necessidade externa”, e, segundo Freud (2010a), o trabalho tem uma importância decisiva
na economia libidinal. Freud compreende o impacto negativo de um mundo do trabalho em que
“a imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas
sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho.” (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).
Sob esta perspectiva social, Pereira diz o seguinte:
perceber as várias dimensões dos “benefícios secundários do sintoma” e não apenas que o professor goza
isoladamente com seu sofrimento, pois já que não sai da rede de ensino tendo tantos infortúnios esta seria a única
conclusão a se tirar. Importante destacar que em determinados contextos há vítimas, há abusos, há exploração,
pode ser que não seja só do professor, mas isso não exclui a escuta deste lugar social como expressão de uma
dimensão e conflito intrapsíquico também. Nos parece que Pereira poderia escutar de fato e não como uma
“hipótese a se considerar”, sem nenhum desdobramento, o que a professora que ele nomeia curiosamente de
“Dora”, nome de um famoso caso de Freud descrito em 1905, ao qual é reconhecido na tradição psicanalítica como
um caso em que Freud teve muitas dificuldades de escutar. A professora Dora que Pereira nos traz fala sobre a
dinâmica social no interior da escola, que convoca o pior das pessoas. “Ela própria suspeita de uma hipótese que
convém aqui considerar: a escola tem evocado o pior das pessoas, ela parece fazer isso com todos. ‘Não pode ser
coincidência, não – diz Dora –, toda pessoa mal-humorada, estranha, esquisita vem parar na escola [...]. Será que
junta muita gente estranha na escola ou as pessoas vão ficando desse jeito nela?’” (PEREIRA, 2016, p. 123). A
fala de Dora demonstra que o sofrimento que a escola produz é comum, o que torna necessário analisar estes
fenômenos de sofrimento com as mediações sociais necessárias para não produzir desmentido da dor do professor.
153
2016, p. 110). Isso se voltaria contra seu próprio trabalho: uma leitura da tese freudiana de
sustentar o mal-estar relacionado à incompletude deste ofício.
O que vai se colocando aqui, apesar das ponderações do autor em torno da existência de
sofrimento e mal-estar, é que o professor não renunciaria à satisfação secundária do seu
sintoma, de seu narcisismo.
Ele também discute sobre o estado depressivo que caracteriza os professores que
entrevistou e aponta que está relacionado ao “horror ante o vazio da existência”, ao mesmo
tempo em que “o horror por não se achar em condições de atender as demandas do outro social”.
O professor buscaria uma “demissão subjetiva” se retirando deste jogo ao invés de inscrever a
marca de sua individualidade diante destas demandas. “A luta de cada um é inscrever sua
própria individualidade, ao mesmo tempo, dentro e fora de tal demanda, podendo inclusive
resistir a ela.” (PEREIRA, 2016, p. 151).
O que Pereira nos traz é uma análise através de uma leitura de clínica, mais precisamente
através de Lacan no segundo tempo do Édipo, no estágio do ser ou não ser. A covardia moral,
portanto, é que os professores não entrariam no terceiro tempo assumindo que não são o falo,
mas que podem tê-lo ao entrar no jogo, responsabilizando-se pelo seu desejo, assim como o
mal-estar dele decorrente.95
Trazendo Marcuse (2010) para a reflexão, apontamos que este Eu não desenvolvido,
não autônomo, está relacionado ao modo social e econômico do atual estágio do capitalismo,
que penetra profundamente no modo de organização familiar e representa a esfera do declínio
da autoridade paterna. “O superego desprende-se de sua origem, e a experiência traumática do
pai é superada por imagens exógenas. À medida que a família se torna cada vez menos decisiva
95
No capítulo X do Seminário 5, Os três tempos do édipo, Lacan diz: “A experiência prova que, na medida em
que a criança não ultrapassa esse ponto nodal, isto é, não aceita a privação do falo efetuada na mãe pelo pai, ela
mantém em pauta – a correlação se fundamenta na estrutura – uma certa forma de identificação com o objeto da
mãe, esse objeto que lhes apresento desde a origem como um objeto rival, para empregar a palavra que surge aí
(...) a questão que se coloca é ser ou não ser, to be or not to be o falo. No plano imaginário, trata-se, para o sujeito,
de ser ou não ser o falo. A fase a ser atravessada coloca o sujeito na situação de escolher.” No parágrafo seguinte
Lacan continua o que é interessante destacar: “Ponham também esse escolher entre aspas, porque o sujeito é tão
passivo quanto ativo nisso, pela simples razão de que não é ele quem manipula as cordinhas do simbólico. A frase
foi começada antes dele, foi começada por seus pais, e aquilo a que pretendo conduzi-lo é precisamente a relação
de cada um desses pais com essa frase começada, e a maneira como convém que a frase seja sustentada por uma
certa posição recíproca dos pais em relação a ela. Mas, digamos, uma vez que convém nos exprimirmos bem, que
existe, em termos neutros, uma alternativa entre ser ou não ser o falo.” (LACAN, 1999, p. 192).
154
Essa mudança deriva dos processos econômicos fundamentais que têm caracterizado,
desde o princípio do século, a transformação do capitalismo livre em organizado. A
empresa familiar independente e, subsequentemente, a empresa pessoal independente
deixaram de ser as unidades do sistema social; estão sendo absorvidas nos agrupamentos
e associações impessoais em grande escala. Ao mesmo tempo, o valor social do indivíduo
é medido, primordialmente, em termos de aptidões e qualidades de adaptação
padronizadas, em lugar do julgamento autônomo e da responsabilidade social.
(...) apresentar-se de saída como impotente, como ocorreu com a grande maioria dos
professores escutados, não deixa de revelar-nos uma pretensão de onipotência secreta
que esses docentes preservam ao não se colocarem em risco diante de seus desafios
155
No sentido de ponderar e refletir sobre as conclusões que Pereira nos traz, pensamos
que o autor deposita demasiadamente na cultura (que não é um reflexo puro da realidade,
atravessada por dimensões traumáticas e alienantes, tanto quanto o psiquismo), a saída para os
professores exercerem plenamente seu ofício. Nada sabemos em sua pesquisa sobre as
condições de trabalho e a dinâmica social escolar dos professores de Minas Gerais escutados96.
É como se aquela realidade concreta não tivesse influência nas dimensões intrapsíquicas dos
professores. Ao tomar a realidade psíquica e a fantasia de modo isolado, “caso a caso”, a cultura
e a realidade exterior passam a ser contingentes na análise do mal-estar dos professores, como
algo dado, por isso sem mediação. Pereira recusa97 a fala dos professores sobre as dinâmicas
sociais regressivas do trabalho em nome do que ele denomina como “ausculta mais apurada”.
Adorno, que pode elucidar esse debate, em diálogo com a psicanalista Karen Horney98,
diz o seguinte:
96
O que Pereira (2016) nos traz é que escutou “quinze professores de adolescentes seja do 3º. Ciclo do ensino
fundamental, seja do ensino médio (ou de ambos), de escolas públicas de diferentes regiões da capital mineira,
que aceitaram testemunhar o que se passa consigo que os faz padecer psiquicamente. Na maioria das vezes, a
suspeita recai na lida cotidiana com adolescentes, na estrutura e na maquinaria escolares e em suas relações
pessoais malfadadas. Entretanto, a própria estrutura de enigma que cada caso apresenta requer, como veremos,
cuidados de manejo, relativizações e uma ausculta mais apurada.” (PEREIRA, 2016, p. 116).
97
Acreditamos, como Garcia (2023), que esta negação pode ser caracterizada como uma forma de “psicanalismo”.
“Evidentemente, a ronda de guarda que se faz sempre em nome de argumentos antropológicos sobre a ‘estrutura
do psiquismo’, que supostamente prevalecem sobre qualquer realidade social. E, segundo um paradoxo típico do
que em psicopatologia se costuma chamar de perversão, enquanto essa vulgata despeja seus preconceitos sobre o
homem, a mulher, a política, enquanto naturaliza a agressividade, ela autoriza o próprio avanço em nome de uma
pretensa neutralidade política que seria seu misterioso privilégio. Como todo pensamento burguês, essa psicanálise
acredita dizer a verdade sobre a natureza humana para além das diferenças culturais e históricas. Trata-se ainda de
psicanálise? Nada menos certo. Eis a razão pela qual nos propomos a falar, em relação a ela, de psicanalismo,
como discurso que participa da dominação e da fabricação da ideologia como ‘conjunto de produções ideais por
meio das quais uma classe dominante justifica seu domínio’.” (GARCIA, 2023, p. 21).
98
Interessante observar que a crítica que Adorno faz a Karen Horney em uma obra específica – A personaldiade
neurótica de nosso tempo de 1937 – tem o mesmo fundo político da própria crítica que Horney se viu obrigada a
fazer aos psicanalistas homens sobre a sexualidade feminina aos quais não levavam em conta os aspectos culturais,
sociais e históricos. Em sua obra póstuma, Psicologia feminina, no tópico sobre o “masoquismo feminino”, Horney
demarca as influências culturais e históricas que colocam a mulher nesta posição subjetiva. “Creio que estes
fenômenos aparecem em qualquer complexo cultural que inclua um ou mais dos seguintes fatores: 1- Bloqueio
das formas de liberar a comunicação e a sexualidade; 2- Restrição ao número de filhos, visto que o fato de tê-los
e cria-los proporciona à mulher diversos meios de satisfação gratificantes (a ternura, a realização, a auto-estima),
e isto se torna ainda mais importante quando se transforma em gabarito para valorização social; 3- Avaliação das
mulheres como seres em geral inferiores aos homens (na medida em que isto leva à deterioração da autoconfiança
feminina; 4- Dependência econômica das mulheres em relação aos homens ou à família, pois favorece a adaptação
dos sentimentos no sentido da dependência emocional; 5- Limitação das mulheres a certas esferas da vida,
construídas principalmente sobre ligações emocionais, como a vida familiar, a religião ou as obras de caridade; 6-
Excesso de mulheres casadouras, particularmente quando o casamento oferece a principal oportunidade de
satisfação sexual, de ter filhos, segurança e reconhecimento na sociedade. Esta condição é relevante visto que
favorece (como também (3) e (4) a dependência emocional em relação ao homem e, de forma geral,
desenvolvimento que não é autônomo, mas talhado e moldado por ideologias masculinas existentes. Ela é
pertinente na medida em que cria entre as mulheres competição particularmente forte da qual a retração é fator
importante para precipitar o fenômeno masoquista.” (HORNEY, 1991, p.226-7).
156
(...) ela [Horney] passa ao largo da raiz sociológica do narcisismo: de que o indivíduo,
devido às dificuldades quase instransponíveis que se colocam hoje em dia no caminho
de relações espontâneas e diretas entre os seres humanos, é forçado a dirigir para si
mesmo suas energias pulsionais não utilizadas. A saúde vislumbrada por Horney é da
mesma espécie que a sociedade que ela responsabiliza pelo surgimento das neuroses:
“uma autoconfiança robusta e segura se apoia em uma ampla base de qualidades
humanas, tais como iniciativa, coragem, independência, talentos, valores eróticos,
capacidade para controlar problemas. (ADORNO, 2015a, p. 60).
Pereira entende, então, que a escola pode estar protegendo esses professores que se
evadem – e se demitem subjetivamente. A escola passaria a se posicionar como uma mãe que
quer cuidar e proteger os seus. Refere-se, portanto, à maternagem pedagógica
Repensar suas condições de trabalho, sua remuneração, suas relações com o saber e
com a formação são essenciais, mas sobremaneira, precisamos auxiliar o professor a
157
99
No conjunto da pesquisa veremos que há falas de professores que apontam que ocupar um cargo de gestão numa
escola é uma das saídas para dar conta do mal-estar docente.
158
fundamental. Se assim for, retomamos a saída proposta por Freud (2010a), indicando que o
professor deve passar por um processo analítico para realizar sua formação docente.
Pensamos que, se há uma “função maternal” na escola que deixa o professor preso a uma
“manifestação regressiva narcísica, edípica” e “infantil” (infans) é certamente pela precarização
do trabalho, significado maior do declínio da autoridade paterna (MARCUSE, 2010;
PELEGRINO, 1983). Afinal, para Freud, o trabalho é a possibilidade da ampliação da
comunidade (FREUD, 2010a). A escola não faz de outra forma – não porque esteja presa a um
modo maternal e\ou adaptativo de seu corpo de gestores, mas porque sua lógica estrutural está
amarrada a formas política e econômica de organização (ZAFALÃO, 2021), na qual a autonomia
docente é um entrave tanto ao modo de organização social e histórico no Brasil, quanto ao projeto
político e econômico dos governos. Não por acaso que a escola e o professor sejam tão atacados,
na atualidade, com projetos como o das “Escolas sem Partido” 100 ou, mais recentemente, a
política curricular nacional do “Novo Ensino Médio”, que afetam diretamente o conteúdo das
aulas e a autonomia do professor.101 A autonomia docente é o horror das classes dominantes.
A defesa por melhores condições de trabalho e salário pelos professores e, inclusive, as
pesquisas que Pereira caracteriza como “experiência militante” de “autores raivosos com o
capitalismo” 102 , estão na ordem de dar um destino, na cultura, para a dinâmica social da
agressividade determinada pela realidade social e obstaculizada pelo trabalho ou da dinâmica
da dominação entre classes sociais. (FREUD, 2010i; 2014b).
Pereira corre o risco de caminhar em outra direção, mas na mesma toada da crítica que
faz às pesquisas que denomina como “experiência militante”. Ao dissociar os aspectos sociais
dos individuais, ele acaba por desacreditar o sofrimento decorrente do ato docente, produzindo
uma “experiência liberal” de pesquisa, na qual a responsabilidade é essencialmente do
indivíduo e seu conflito interno, sua “covardia moral” ou “demissão subjetiva”. Se associa,
100
A “Escola sem Partido” é um movimento fundado por Miguel Nagib. Seu programa pode ser acessado na internet:
www.escolasempartido.org. Nagib crítica “a experiência militante” dos professores em sala de aula. No site encontramos
os objetivos do programa: “Para informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados e manipulados
por seus professores. Uma vez informados, os estudantes – que são as vítimas da doutrinação – aprenderão a se defender
das condutas abusivas eventualmente praticadas por seus professores militantes.”
101
Enquanto escrevo esta dissertação um movimento nacional contra o Novo Ensino Médio é organizado pelas
entidades sindicais e educacionais de professores e da sociedade civil. Sob influência dos empresários da educação o
novo ensino médio responde as demandas neoliberais de ensino. FERNANDO CASSIO. “O ‘Novo’ Ensino Médio
é muito pior que o anterior”, Carta Capital, 13 fev. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-
novo-ensino-medio-e-muito-pior-que-o-anterior/. Acesso em: 13 fev. 2023.
102
“Autores muito raivosos com o capitalismo” e com as condições da política educacional atual que se empenham
em livrar os sujeitos desses males são importantes nesse cenário, mas infelizmente também produzem muitos
enganos quando o assunto é a produção de saberes pelo sujeito.” (FAVACHO apud PEREIRA, 2016, p.55).
159
portanto, como resultado de suas conclusões, aos discursos comuns do governo estadual de São
Paulo (ZAFALÃO, 2021).
Não, quando você sofre você não cria, você sofre. Acho que não, o sofrimento que a
gente passa ele é o sofrimento de engessar. Não é um sofrimento libertador. É um
sofrimento que engessa, que faz você se sentir incapaz. Faz criar patologias em você,
impede você de prosseguir. Você ir além: daqui eu vou fazer o mestrado. Não dá, cada
vez mais o cara se sente incapaz de qualquer coisa. O professor vai se limitando, ele
vai ficando limítrofe mesmo. Ele vai atrofiando tudo no físico ao psicológico.
(Professor Fernando, categoria O, 12 de magistério).
Observamos através deste relato o uso de palavras fortes para se referir ao sofrimento
do professor que nos remete a uma dimensão destrutiva, mortífera deste ofício. O termo
“atrofiar”, relacionado tanto à dimensão psíquica quanto ao corpo, evidencia o impacto das
dinâmicas sociais em um modo de mal-estar docente. O “engessar”, naquilo que não pode ter
movimento, plasticidade, perspectiva, tornando-o “incapaz”, assim como o “limítrofe”, que
define exatamente os limites e a extensão de seu trabalho. Justamente por buscar uma prática
que marca sua individualidade no processo educacional, o professor Fernando vive de forma
mais intensa seu mal-estar num espaço de trabalho cada mais precarizado e padronizado.
Sobre os processos de adaptação na escola e a perda da capacidade crítica e reflexiva, o
professor Fernando é enfático: a escola é “uma máquina de moer gente”. Interessante pensar que
este professor é bastante crítico e atuante no trabalho com os seus estudantes, sustentando
variados conflitos com a gestão pela defesa da autonomia docente. Isto certamente produz um
retorno intenso em sofrimento que lhe remete reflexivamente, também, a se tornar, pela introjeção
deste ambiente agressor, em um professor hostil. Seu atual estágio de sofrimento o faz pensar em
diminuir sua carga horária, o que certamente traz implicações financeiras, por outro lado.
Olha ele vai perdendo até a vontade. É o que eu falei, aquilo é uma máquina de moer
gente. Eu lembro quando eu entrei lá eu tinha que ficar sentado esperando professor faltar.
Eu era eventual. E aí o professor chegava lá falando mal de aluno e eu querendo dar aula.
Eu tinha vontade de dar aula e o professor chegava lá falando mal da aula. Eu ficava puto,
e eu falava mano então porque você não falta. Você pode faltar, você falta eu dou aula,
160
você recebe, eu também. Porra, faz essa! O dia que eu ficar reclamando o dia de entrar
em sala de aula eu paro de dar aula. E esse ano agora por causa disso tudo que aconteceu,
ano que vem vou pegar carga mínima porque estava me fazendo mal. Porque eu já estava
falando mal, já estava fazendo: putz vou ter que entrar na sala. Então eu consegui
perceber isso, e consigo lembrar da minha fala de 12 anos atrás. Então é assim é uma
máquina de moer gente. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
Você acha que há um processo de adaptação do professor? Que com o tempo ele
vai perdendo sua capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço do seu trabalho?
É chegar em sala de aula você vai ter que dar o que tem que ser e acabou. Você não vai
poder ser amigo do aluno, você não vai poder fazer aquilo que você deseja ser para
entender seu aluno, as necessidades dele, passar o que é necessário. O que ele precisa
pro futuro dele. (...) Então assim, pelo que eu entendo dessa escola, ali é um pessoal um
pouco elitizado. Eu conversei com alguns professores que deram aula nesta escola. Eles
falaram vai com calma. Não vai com crítica, não fala de governo. Mas lá dá para dar
aula. Só dá o que tem que ser mesmo. Aquilo que está no Centro de Mídias, aquilo que
está no apostilado. Faça isso, acabou. Faça sua parte e vem embora se não você vai ter
problema. E como é que é o ambiente? O ambiente é bom. O pessoal é elitizado. É um
pessoal diferente, e ali eles fazem peneira. Não é qualquer aluno que estuda lá. Se você
vem do G. e o P. eles não pegam. “É mais um pessoal dali, tem muitos alunos da L..
Pessoal da L., tem o pessoal melhorzinho ali, você vai gostar”. “Só que são um pessoal
um pouco elitizado, e você tem que só tomar cuidado com críticas dentro da sala de aula
porque levam tudo para a gestão”. Então é isso, acho que você perde as críticas, você é
um filósofo não crítico. Isso é ruim. Então assim, eu vou ter que chegar e ser uma
máquina. Descartes falou isso, isso é isso... acabou! Eu acho ruim isso porque você não
pode discorrer com o que realmente é a real daquele filósofo. E fazer uma comparação
contemporânea. Isso é muito ruim. Só dar a disciplina e pronto eu acho muito vago.
Vamos ver, vamos tentar. As professoras que já passaram por lá criticaram porque disse
que você não pode ser crítica, você não pode discorrer algo contemporâneo. Você tem
que ficar sempre naquela. É atividade que tem que ser dada e acabou. É como se fosse
uma questão que você tem que responder. Só isso. Difícil né? Mas vamos tentar né
Marcelo. É o que tem para hoje. (Professora Vera, categoria O, 13 de magistério).
A própria unidade escolar produz formas para decidir quem está apto ou não para
estudar nela, assim como, num certo sentido, quem está apto para trabalhar ali ou não. Estas
formas de exclusão são um sintoma social frequente no país, que, sem dúvida, se desdobrariam
em variadas possibilidades de análise que fogem ao escopo deste trabalho. No entanto, o que
se evidencia é de que a precarização do trabalho e da escola encontram estratégias de defesa
que reafirmam os aspectos mais perversos individuais e da cultura e história brasileiras, como
a exclusão dos estudantes mais pobres, inclusive da escola pública.
A professora Denise é cética em relação a ver alguma possibilidade criativa no
sofrimento. Aponta o desânimo dos professores nessas possibilidades: “Pode existir alguma
possibilidade criativa, mas o pessoal está meio desanimado para estas criatividades. Os
professores não estão assim muito aptos a ser criativos com inovações não.” (Professora Denise,
categoria V, três anos de magistério).
Como uma professora que está iniciando na rede de ensino, a professora Denise percebe
que as condições materiais do professor intensificam os processos adaptativos pela perda da
capacidade crítica e reflexão docente. Diante de um cenário de variados estímulos que as
crianças e adolescentes têm na atualidade, torna-se mais patente a necessidade de condições de
trabalho que construam a possibilidade de atendimento dessa juventude.
Sim. Sim, com certeza, é isso que nós estamos conversando. E alguns professores não
somente porque eles estão próximos de uma aposentadoria, com 20, 30 anos já com uma
profissão nas costas. Também pelo fato que alguns às vezes não estão contentes com a
remuneração. Às vezes só conseguiu aula longe da sua casa. Já chega ali cansado, vai
para uma escola aqui vai para outra escola lá. Isso afeta muito e com o tempo há este
desgaste. Sim, com certeza porque é uma vida do professorado que não é uma vida fácil
pelo que eu estou percebendo. Tem professor que de manhã cedo está numa escola, de
tarde está na outra. Tem prova, tem trabalho, tem um monte de coisa e nós temos a nossa
vida, nós temos a nossa família também. Então juntando tudo isso e com o ser humano
que hoje em dia não está fácil de se lidar, principalmente a juventude que é uma avalanche
das redes sociais, das mídias e um monte de coisa na nossa cabeça. Então isso acaba
trazendo um desgaste sim para muitos professores, não poucos. É triste porque a área da
educação é maravilhosa, porque ensinar é um dom. Infelizmente há o desgaste sim por
meio desses profissionais. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).
O que aparece nos dados da pesquisa é que esse professor está cada vez mais isolado em
um mal-estar, tanto o necessário à profissão, quanto o de sua intensidade destrutiva. E, num
determinado momento, mesmo os professores mais críticos e reflexivos, adoecem de alguma forma.
O olhar dos jovens professores para os professores mais velhos é uma constatação do
inquietante desse processo, porque estão igualmente inseridos no mesmo agrupamento social.
Portanto, nada lhes garante que não fiquem iguais.
A professora Luana, com oito anos de rede estadual, aponta isso. Reflete sobre a relação
entre sofrimento, experiência e criatividade. Parece que o conjunto das experiências na escola
162
não agregam mais. Por serem demasiadamente intensas e precárias, não produzem mais uma
memória significativa.
Ah não digo pelo sofrimento, mas por exemplo a gente vai se superando. A gente teve
muita dificuldade nesta pandemia e a gente descobriu outras maneiras de trabalhar com os
alunos. Agora o sofrimento em si você fica como experiência. Eu penso só a experiência
mesmo. Por exemplo esta escola que eu passei eu tive o desafio, tive esta experiência para
contar. Mas não consigo te falar o que eu consegui me beneficiar disso daí. A não ser pela
experiência. Eu passei por aquilo e fim. Não agregou para mim, não sei se é porque eu
fiquei tão chateada, tão sobrecarregada que eu não vi. Só pela satisfação por eu ter
cumprido aquele desafio. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
Você acha que há um processo de adaptação do professor? Que com o tempo ele
vai perdendo a capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço do seu trabalho?
Eu acho que não. Eu acho que a gente sempre tem a convicção, porque eu tenho a
convicção do meu valor, do quanto meu trabalho é importante, entendeu... Por isso
que eu fico chateada com este não plano de carreira. Porque por exemplo, eu não
quero sair da minha profissão, eu gosto de ser professora. Mas eu sou desvalorizada.
Eu sou desmotivada, mas eu acho que o professor sabe do valor do seu trabalho...
Você percebe isso nos seus colegas também, que eles continuam bastante críticos,
reflexivos, mesmo com o tempo de profissão, com todas estas frustrações que
você está colocando?
É então os mais velhos não mais... já perde um pouco, já são bem chateados, não
aceitam muito bem as mudanças que têm. E fica mais difícil para eles trabalharem.
(Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
O que se coloca parece ser um processo de acúmulo da intensidade desse mal-estar nos
professores ao longo dos anos, que favorece processos de adoecimento cumulativo, visto que a
professora salienta o peso da desvalorização pelas condições de trabalho. Em sua fala é possível
perceber sua luta de sustentação narcísica (“o professor sabe do valor do seu trabalho”), para
continuar na profissão, mesmo com todo processo de desmotivação externa que enfrenta.
O professor Luiz, que trabalha em três escolas da rede estadual para completar a jornada,
é contundente sobre o sofrimento e o processo de adaptação do professor. Segundo ele, o professor
vai se adaptando ao que é exigido burocraticamente na escola de modo que o pensar, a criação e
as possibilidades da positividade do mal-estar passam a ser tratados como um problema.
163
Este exemplo, o que você acha que acontece com o professor que trabalha a semana
inteira, o dia inteiro, não para para ler um livro, para ler um jornal. Uma pessoa que
vive em função do trabalho. Que não discute com os outros colegas, porque não tem
nem tempo hábil para isso. Chega na escola já vai para a sala de aula. Sai da escola
vai para a casa, come e dorme. Esse ano eu nunca me senti um alienígena, nunca me
senti um alienígena como este ano. De estar em três escolas, e eu não me senti
conectado... apesar de ter colegas que eu conheço há muito tempo, às vezes vai falar
alguma coisa do sindicato, paralisação, coisa do tipo eu não sei às vezes como entrar
na conversa, porque eu não conheço o quadro de professores plenamente ainda. E tem
professores que sim, eles têm uma visão bastante turva a respeito da própria carreira.
Não pense, trabalhe! E para algumas equipes gestoras isso é ótimo. O cara não falta,
preenche o diário tudo direitinho, não fica entregando nota com atraso, não tem
encheção de saco dos alunos. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
metafóricas de guerra como já salientamos. Até que esses professores, de modo cada vez mais
hegemônicos, mesmo que não totalmente, se adaptem à burocracia escolar pelos seus interesses
conscientes e inconscientes de autoconservação psíquica, mesmo naquilo que o masoquismo
tem de importante, que é poder sustentar algum nível de dor e adaptação para sobreviver, ou
seja, para não “quebrar” definitivamente, entrar em pane ou adoecer de modo absoluto.
Nesse âmbito, compreendemos o que o professor Luiz nos traz como uma formação de
compromisso: “Não pense, trabalhe!” Pensar não só dá trabalho; também coloca os professores
para lidar com um mal-estar intensamente destrutivo, tal como estamos observando pelos dados do
conjunto da pesquisa. Isso é um efeito daquilo que Freud (2014g, p. 506) alertou: “no mundo, não
existe apenas a infelicidade provocada pela neurose, mas também sofrimento real, irremovível.”
O “não pensar” pode ser uma estratégia de defesa, como enfatiza Christophe Dejours:
Tornar consciente e clara a situação vivenciada em um espaço cada vez mais precarizado
e padronizado de trabalho eleva a angústia, visto que as determinantes objetivas de mudança
envolvem aspectos muito mais complexos do que saídas meramente individuais. O que vai
restando ao professor para manter algum grau de autopreservação é responder às demandas da
burocracia, de modo exclusivo, expressão normalmente dissociada da experiência do trabalho,
mas que coaduna com as necessidades funcionais da forma como a escola se organiza na
atualidade. As gestões também são cobradas pelas diretrizes externas, heterônomas. Segundo o
professor Luiz: “E para algumas equipes gestoras isso é ótimo. O cara não falta, preenche o diário
tudo direitinho, não fica entregando nota com atraso, não tem encheção de saco dos alunos”.
Esse modo de adaptação do professor à burocracia escolar produz muitos efeitos
sintomáticos no ambiente de trabalho docente. Movimentos de resistências a mudanças,
dificuldades para trabalhos coletivos, formas de boicotes conscientes ou inconscientes aos
trabalhos de colegas que pensam possibilidades de refletir sobre o trabalho e suas dinâmicas.
De modo que se cria um círculo de (de)formação no interior de escola marcado pela constante
introjeção do ambiente agressor entre os professores mais antigos e mais novos. Como nos
coloca Christophe Dejours (2022, p. 66):
O que vemos, pelos dados da pesquisa, é que aqueles que lutam contra o seu
embrutecimento sentem a intensidade do mal-estar escolar, pois, como nos lembra o professor
Fernando no início deste tópico, a escola produz um “trabalho engessado, limítrofe e atrofiante”,
ou mesmo se apresenta como um “moedor de gente”. Diante das circunstâncias, “se pudemos dizer
que, diante de um conflito, o neurótico sempre busca refúgio na doença, temos que reconhecer que
em muitos casos essa fuga é plenamente justificada, e o médico que percebeu esse estado de coisas
se retirará em silêncio, pleno de consideração para com o enfermo.” (FREUD, 2014g, p. 506).
Na medida em que o social convoca as dimensões mais regressivas individuais e
grupais, o que é mobilizado nos processos psíquicos em forma de autopreservação são as
camadas mais destrutivas individuais, sem ligação de Eros. O professor entra no automático, o
que nos faz refletir se há algum nível de gratificação neste ser automático (Não pense,
trabalhe!)103, seja prazer sem representação, marcados pelas dinâmicas sociais regressivas e
pela pulsão de morte104, seja clivagem do Eu (CALLIGARIS, 2022), na qual a gratificação
103
Calligaris (2022) trabalhou, em sua tese de Doutorado, de 1991, sobre as formas perversas de relações sociais e
em grupo. Em especial a experiência nazista lhe chama atenção pelo caráter de servidão instrumental daqueles que
tiveram participação na máquina burocrática nazista. Ao mesmo tempo, o psicanalista parece ir além ao estabelecer
uma forma de gozo particular contemporânea. Calligaris adentra a tradição que discute as formas de clivagem do Eu
por uma operação semelhante ao fetichismo, na qual o Eu não produz negação da castração, mas a substitui pelo
fetiche. Na perspectiva social, o fetiche estaria conectado às formas de instrumentalidade e adequação, na qual há um
gozo próprio de submissão a lei instrumental, sem a culpa produzida pelo recalque. Este gozo estaria sobre a
“miragem narcísica” do Eu ideal que se expressaria em ser o falo materno. Como diz Calligaris: “já o fetichista
econômico, quer dizer, o homem comum, conseguindo criar em seu cotidiano não sexual uma montagem que garante
o gozo difuso e contínuo da sua adequação a um conjunto social que regula o funcionamento de todos, ele sim, terá
conseguido uma ‘perversão’ bem sucedida. Terá conseguido ser o fetiche, o órgão adequado do corpo social, graças,
é claro, à invenção de uma cena presidida por um saber – ou manual de instruções, se preferirem – que lhe garanta o
domînio sobre o seu próprio oferecimento. A vitória se mede, aliás, pelo sucesso de sua denegação, pelo fato de nada
mais impor nem permitir, em princípio, que a cena se revele como tal.” (CALLIGARIS, 2022, p. 407). Mais à frente,
complementa: “Superar vergonha, repulsa, dor, contradizer inclusive os ideais sociais mais elementares se torna
possível, pois não é em nome de um gozo narcísico, que cairia sob a pressão do recalmento, mas em nome do serviço
que se presta a um dever, ou seja, a um outro ‘ideal’ . Em suma, o que se coloca com a cena é um serviço prestado
ao “supereu” materno, que se realiza graças a um saber que dá o troco e o disfarça em serviço a um ‘supereu’ paterno,
fundado em uma nova idealidade.” (CALLIGARIS, 2022, p. 414).
104
O psicanalista Christophe Dejours aponta que: “Muitas pessoas permanecem na normalidade, mas ao preço de
sintomas psicóticos depressivos, aditivos, psicopatológicos, de caráter somáticos, com os quais elas devem
estabelecer um compromisso mais ou menos precário. Em todos esses sujeitos, que formam uma legião, o
inconsciente amencial não permanece mudo, longe disso. O tributo pago à compulsão de morte é, em certas
situações, uma clivagem imperfeita que se traduz pela angústia. (...) Na arena das relações sociais, a luta pela
dominação oferece numerosas oportunidades de encontrar saídas para a destrutibilidade dirigida contra pessoas,
contra a subjetividade do outro. A vida profissional, em particular, está repleta de situações propícias para isso, a
ponto de se tornar difícil para quem trabalha escapar de uma tal situação. É a via expressa a que eu acima já havia
referido pelo nome de ‘via social’ da compulsão de morte.” (DEJOURS, 2022, p. 172-3).
166
Sim. Trabalhei com uma professora que falou uma vez assim para mim: “professor, dar
aula no estado emburrece a gente” e eu fiquei com esta frase na cabeça, porque como eu
dou aula de inglês também eu percebi que minha pronúncia já não é tão boa quanto era,
porque não uso isso em sala de aula do Estado, não ensino pronúncia. E eu comecei a ver
assim, achei outro dia que aquelas limpezas que a gente faz de final de ano, comecei a
achar as aulas minhas de quando eu comecei a dar aulas. Eu olhava assim e pensava,
gente se eu fosse dar uma aula dessa hoje os alunos não conseguiriam entender. A gente
perde muito. A pessoa que tem a vocação mesmo ela precisa até por uma questão acho
que dela ou pensando no seu aluno de estar sempre estudando, refletindo sofre seu
processo. Refletir sobre o que está passando. Buscar novas maneiras de pensar..., mas o
discurso que eu ouço é muito assim, “ah, mas você vai atrás de novos aplicativos, você
vai atrás de novas formas de aula, mas o que o governo paga para gente...” É um
argumento que eu nem quero contra-argumentar porque para mim é uma questão de ter
foco no aluno. Então quando a gente pensa: você perde muito, no Estado você perde
muito intelectualmente. Não se vê como especialista. Nós tivemos uma reposição ontem
e eu disse nós somos especialistas em nossas áreas e algumas pessoas riram. Porque acho
que estão desacreditando delas mesmas. Eu acho que é bem por aí mesmo, é bem como
você colocou mesmo. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
(...) este professor que eu conheço, professor de Artes, ele era um excelente professor.
Ele fazia muitas coisas na escola, ele foi um dos primeiros em falar em protagonismo
juvenil na escola. Nós fizemos trabalhos muito bacanas juntos. Ele foi ficando...
adoecendo emocionalmente porque a direção da escola cedendo à pressão da Seduc
começou a podar isso, isso pode, isso não pode, então você percebe que o professor,
o sofrimento dele foi oriundo de uma mudança na postura de entender a educação.
(Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
Sim, eu acho que sim. Eu acho que a partir do que a gente passa na sala de aula e na
escola em si, nas relações com outras pessoas dentro da escola eu acho que há
105
Sabemos que a categoria “identidade” não é uma categoria psicanalítica propriamente dita. No entanto, como nos
traz Dejours: “a teoria das relações sociais de sexo e de trabalho está no direito de exigir da psicologia e da psicanálise
que essas integrem o real do social na teoria do sujeito, pois ela pode demonstrar que a luta pela identidade e pela
normalidade não se apresenta da mesma maneira para uma mulher e para um homem. (...) a identidade psicológica
define-se como procura do sentimento de unidade da personalidade – em detrimento das pressões exercidas sobre o
sujeito pelos diferentes determinismos que pesam sobre as suas condutas – e como sentimento de continuidade dessa
unidade, a despeito dos constrangimentos que levam a fragmentá-la, e que são provenientes de circunstâncias externas
ou de movimentos pulsionais que afetam a identidade e seu âmago.” (DEJOURS, 2022, p. 175-6).
168
A professora Ana revela uma indeterminação do saber que faz parte do processo do mal-
estar docente. Aponta a necessidade de reflexão, de pensar caminhos para lidar e transformar o
mal-estar. O não-saber que a professora relata parece estar relacionado também a que as
possibilidades se dão coletivamente, com os outros, sejam professores, estudantes, comunidade
escolar ou mesmo outras instâncias. O que implica pensar os efeitos na intensidade do mal-
estar quando as possibilidades coletivas estão obstaculizadas – visto que uma resposta
“terapêutica” isolada tem seus limites para dar conta desse mal-estar.
Talvez por isso o “não-saber” que a professora revela se conecte a uma sensação de
impotência: “a educação é muito grande, com redes diferentes”. Se tomarmos esta fala somente
sob um prisma exclusivo “neurótico”, “do não dar conta”, e não pensarmos as mediações
necessárias entre o individual e o social, entramos naquilo que Adorno (2006d, p. 36) criticava:
a ideologia dominante hoje em dia define que, quanto mais as pessoas estiverem
submetidas a contextos objetivos em relação aos quais são impotentes, ou acreditam ser
impotentes, tanto mais elas tornarão subjetiva esta impotência. Conforme o ditado de que
tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende das
condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem intocadas.
106
Marcuse, em O homem unidimensional (2015), apontou o declínio do universo político, da crítica e do negativo e
como isso adentrou na própria racionalidade dos indivíduos. A construção lógica, do raciocínio, na racionalidade por
si mesma, estaria impossibilitada de desenvolver a crítica. “A transformação do pensamento crítico em pensamento
positivo acontece principalmente no tratamento terapêutico dos conceitos universais; sua tradução em termos
operacionais e comportamentais... (...) O caráter terapêutico da análise filosófica é fortemente enfatizado – cura de
ilusões, decepções, obscurantismos, enigmas insolúveis, questões sem respostas, de fantasmas e espectros. Quem é o
paciente? Aparentemente certo tipo de intelectual, cuja mente e linguagem não se conformam com os termos do
discurso comum. Há, de fato, uma boa porção de psicanálise nessa filosofia – análise sem a compreensão fundamental
de Freud de que o problema do paciente está enraizado em uma doença geral que não pode ser curada pela terapia
analítica. Ou, de certo modo, de acordo com Freud, a doença do paciente é uma reação de protesto contra o mundo
doente no qual ele vive. Mas o médico tem que desconsiderar o problema ‘moral’. Ele tem que recuperar a saúde do
paciente, torná-lo capaz de funcionar normalmente neste mundo.” (MARCUSE, 2015, p. 183).
107
Christopher Lasch, em A cultura do narcisismo (1983), aponta o enfraquecimento do sentido do tempo histórico
como expressão desta cultura do narcisismo, no caso, na sociedade americana, que parece ter encontrado
ramificações particulares em todo mundo ocidental: “Desesperançadas de incrementar suas vidas com o que
interessa, as pessoas convenceram-se de que o importante é o autocrescimento psíquico: entrar em contato com
169
A minha resposta vai parecer contraditória, eu acho que sim há uma possibilidade, eu
acho que situações de conflito, de problemas e tal, elas podem mover as pessoas. Mas
ao mesmo tempo eu não sei exatamente o porquê eu acho que isso não tem movido os
professores enquanto grupo. Individualmente provoca movimentos sim, e dependendo
o desenrolar dessa reação, desse movimento.... O que eu tenho visto é que este professor
para fazer um paralelo com os alunos, este professor ele evade. Ou ele evade da sala de
aula para os cargos da burocracia escolar, ou ele evade para outras áreas de trabalho. E
aqui eu não estou nem assim julgando o professor. É um caminho possível a ser adotado.
Mas enquanto grupo o que eu tenho visto na minha experiência é que este sofrimento
ele só provoca lamentação. É lamentação, é desilusão, é reprodução de frases do tipo
assim, “se eu pudesse eu ia embora, ia fazer outra coisa”, “não vejo a hora de chegar ao
final de semana, de chegar as férias”. Não sei eu acho que algumas escolas provocaram
este movimento que você está me perguntando. Aí acho que resta fazer uma pesquisa
para ver o porquê isso, no meu ponto de vista, ele é mais pontual do que digamos
genérico. Você vai achar uma escola ou outra que este movimento na cabeça de um
diretor, de um grupo de professores de repente provocou uma escola de derrubar os
muros, provocou uma escola de fazer um projeto. Mas no geral parece que não provoca
isso não. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
seus sentimentos, comer alimentos saudáveis, tomar lições de dança clássica ou dança-do-ventre, mergulhar na
sabedoria do Oriente, correr, apreender a se ‘relacionar’, superar o ‘medo do prazer’. Por si sós inofensivas, essas
buscas, elevadas ao nível de um programa e embrulhadas na retórica da autenticidade e da consciência, significam
um recuo da política e um repúdio ao passado recente.” (LASCH, 1983, p. 25).
108
É importante destacar que este olhar restrito sobre as questões que se apresentam na escola também são
mobilizados por uma política consciente dos governos que formam, que educam os professores em um modo de
trabalho neoliberal. Como discute Aparecida Neri de Souza sobre as políticas governamentais para os professores
da rede estadual de São Paulo: “Outra característica do trabalho moderno é a individualização sistemática da gestão
dos trabalhadores mediante a vinculação entre salário e desempenhos. Nesse caso, os professores são remunerados
de acordo com os resultados obtidos por seus alunos; isso introduz uma nova concepção de trabalho docente. A
competição e os valores empresariais constituem referências para a organização e a gestão do trabalho numa visão
pragmática e utilitarista.” (SOUZA, 2013, p. 224).
170
O que se vê por este depoimento do professor João é uma forma de defesa dessa
realidade social, “eu sei o que estou fazendo, mas eu faço”, que é a expressão do cinismo109,
109
Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica, discute que: “O cínico moderno é um associal integrado, páreo para
qualquer hippie na falta de ilusões subconscientes. A ele próprio, seu olhar mau e claro não surge como defeito
pessoal ou como mania amoral a ser justificada por ele mesmo. Instintivamente, ele compreende seu modo de existir
não mais como algo que tem a ver com ser-mau, mas enquanto partícipe de uma maneira de ver, coletiva e
realisticamente conformada. Essa é a forma corrente por meio da qual as pessoas esclarecidas não se veem como
aquelas que continuam sendo tolas. Parece mesmo haver algo de saudável nisso – exatamente em favor disso fala a
vontade de autoconservação. Trata-se da postura daqueles que se conscientizaram que os tempos da vaidade se foram
(...) Psicologicamente, o cínico do presente deixa-se compreender como um caso limite de melancolia, que mantém
seus sintomas depressivos sob controle e, em certa medida, pode permanecer apto para o trabalho. Sim, é isso que
importa ao cinismo moderno: a capacidade de trabalho de seus representantes – apesar de tudo, e mesmo depois de
tudo. (...) Sabem o que fazem, mas o fazem porque as ramificações objetivas e os impulsos de autoconservação a
171
uma certa forma de “perverter” o princípio de realidade. Por isso, o professor coloca a dimensão
consciente de não perder a crítica (de optar pelo pragmatismo) ao se adaptar ao modo social
cínico e à deformação do princípio de realidade, que se apresentam nas suas condições precárias
de trabalho e em seus discursos.
É como se o cinismo das exigências do discurso pedagógico, dissociado das bases
materiais para sua realização, encontrasse, na dissociação, sua “resistência e crítica consciente”.
Por isso, a sensação pessoal do professor de não perder sua capacidade crítica. Como está isolado,
somente com seus recursos psíquicos para lidar com tamanhas questões, sua fantasia é “ludibriar
o sistema com as armas do sistema”, para não produzir uma forma de adoecimento mais intensa
e destrutiva. A questão é que tal forma de ser já é produto individual do adoecimento social.
Uma possibilidade de interpretação desse fenômeno social do cinismo se dá com aquilo
que nos coloca o instigante trabalho de Peter Sloterdijk sobre a Crítica da Razão Cínica:
curto prazo falam a mesma língua e lhe dizem que, se assim é, assim deveria ser. Dizem-lhes também que, de qualquer
maneira, ainda que eles não o fizessem, outros o fariam, talvez pior. Desse modo, o novo cinismo integrado tem
frequentemente o sentimento compreensível de ser vítima e fazer sacrifícios.” (SLOTERDIJK, 2012, p. 33).
110
Utilizo o termo “ambiente” visto que não se trata, muitas vezes, de uma relação individual específica com um
gestor, professor, supervisor, estudante ou mesmo pais, mas o conjunto das relações em que se produz que, ora ou
outra, pode se fixar em alguém de modo específico. Contudo, é na própria dinâmica social que organiza as
diferentes individualidades e sociabilidades regressivas as quais ele se apresenta.
172
111
Christophe Dejours (2022, p. 224) sinaliza que: “Desde Freud a questão do sujeito deslocou-se de um sujeito
consciente possuidor de um poder soberano pela utilização da razão para a de um sujeito dividido, ou de um Eu que
não é senhor em sua própria casa, visto que uma parte dele próprio, que reside no inconsciente sexual recalcado, lhe é
e sempre será estranha. Hoje é sem dúvida necessário dar um passo a mais: a clivagem do Eu, que atravessa até o
inconsciente, deixa-se conhecer pela duplicidade fundamental e primária do sujeito em relação a si próprio, cujo
instrumento é uma preguiça do pensamento que poderia estar no princípio da banalidade do mal, em todo ser humano.
É uma questão que, ao contrário, sugere que a coragem não deveria ser originariamente pensada em sua relação com
o perigo advindo do exterior, e sim na vontade de lutar consigo mesmo para recusar a facilidade que consiste em ceder
para a akrasia.” Para Dejours a akrasia seria uma forma do cinismo se manifestar, “vejo o melhor e o aprovo, faço o
pior” (DEJOURS, 2022, p. 222). No entanto, parece que, até pelo que Dejours traz em sua obra, as forças de dominação
que cindem o Eu são muito mais intensas que simplesmente colocadas por uma “preguiça de pensar”. Se elas
atravessam inclusive o inconsciente, estamos falando de um modo de defesa fundamental para o indivíduo sustentar
algum nível de autopreservação e organização psíquica ao custo de mutilar uma parte de sua subjetividade. Como
marca deste individuo se encontra, portanto, uma expressão da introjeção do agressor, como nos traz Adorno (2006f).
173
Professor Luiz
Após o homem primitivo descobrir que estava em suas mãos – literalmente – melhorar
sua sorte na Terra mediante o trabalho, não podia lhe ser indiferente o fato de alguém
trabalhar com ele ou contra ele. O outro indivíduo adquiriu a seus olhos o valor de um
colaborador, com o qual era útil viver. (FREUD, 2010a, p. 61).
112
São vários os autores que buscam atualizar o mal-estar contemporâneo. Para citar talvez um dos mais
conhecidos na atualidade, Zygmut Bauman, que traz a ideia de que o trabalho e o amor estão sob a lógica do
consumo e não mais da produção como na época de Freud. Sua caracterização conceitual de “amor líquido” e
“modernidade líquida” aponta que nada mais é feito para durar. Isso implica que “a vida organizada em torno do
consumo, por outro lado, deve bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e
quereres voláteis – não mais por regulação normativa. Nenhum vizinho em particular oferece um ponto de
referência para uma vida de sucesso; uma sociedade de consumidores se baseia na comparação universal – e o céu
é único limite.” (BAUMAN, 2001, p. 90).
174
Sabemos que apesar de Freud apontar a dimensão faltante inerente à condição humana
em O mal-estar na civilização, compreende que renunciar aos prazeres do amor sexual para
evitar algum tipo de perda ou dor, provoca um enorme empobrecimento da vida psíquica e
social. “De imediato queremos expor as nossas duas principais objeções. Um amor que não
escolhe parece-nos perder uma parte do seu valor, ao cometer injustiça com o objeto. Além
disso, nem todos os humanos são dignos de amor.” (FREUD, 2010a, p. 65).
De tal modo, é difícil pensar – e essa foi uma das preocupações de Freud no conjunto do
texto – na impossibilidade de abdicar do amor sexual para não ter nenhum sofrimento. Esta prática
torna-se uma tarefa muito dispendiosa que produz, evidentemente, novas formas de sofrer.
A maneira como homens e mulheres realizam o amor e o trabalho torna-se, portanto,
fundamental para a saúde psíquica. E a cultura, determinada historicamente, amplia ou reduz
as possibilidades de a energia libidinal se desenvolver pelo quantum de repressão. 113 “Já
sabemos que nisso a cultura segue a coação da necessidade econômica, pois tem de subtrair à
sexualidade um elevado montante da energia psíquica que despende.” (FREUD, 2010a, p. 68).
Freud, apesar de colocar o amor e o trabalho como dois paradigmas da evolução cultural
em O mal-estar na civilização, dedica-se mais à compreensão do amor e suas vicissitudes. O
trabalho apareceria caracterizado de modo genérico nas chamadas sublimações, as
possibilidades que os humanos têm de desviar da meta sexual a libido para fins relacionados à
cultura e ao trabalho.
A sublimação dos instintos empresta aqui sua ajuda. O melhor resultado é obtido
quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de
trabalho psíquico e intelectual. Então o destino não pode fazer muito contra o
indivíduo. A satisfação desse gênero, como a alegria do pesquisador na solução de
problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade especial, que um dia
poderemos caracterizar metapsicologicamente. (FREUD, 2010a, p. 35).
113
Em 1925 Freud escreve As resistências à psicanálise e considera que o quantum de repressão é um dado histórico,
portanto passível de ser criticado e mudado. Isso não significa que a dimensão faltante desaparecerá, mas que a
intensidade da repressão, da coação das necessidades econômicas, são construções culturais e sociais e que podem
produzir mais ou menos formas de sofrer. “A psicanálise desvela as fraquezas desse sistema e recomenda sua
alteração. Ela propõe que se reduza a severidade da repressão instintual e que se dê mais ênfase à veracidade. A
sociedade foi muito longe na supressão de determinados impulsos instintuais; a eles deve ser concedido um maior
grau de satisfação, e no caso de outros o inadequado método de suprimi-lo pela via da repressão deve ser substituído
por um procedimento melhor e mais seguro. Por causa dessa crítica a psicanálise foi considerada ‘hostil à civilização’.
Tal resistência não durará eternamente. A longo prazo, nenhuma instituição humana pode escapar à influência da
visão crítica fundamentada, mas até agora a atitude das pessoas ante a psicanálise é dominada por esse medo, que
desata as paixões e reduz a exigência de argumentar logicamente.” (FREUD, 2011c, p. 263).
175
Freud em suas transformações 114 . Assim como a sublimação, a categoria trabalho também
poderia ter um melhor desenvolvimento na teoria freudiana, considerando sua importância
psíquica115, cultural, histórica e filogenética.
Em O mal-estar na civilização, numa nota de rodapé, Freud abre a perspectiva da
necessidade de buscar uma análise mais profunda do trabalho para o desenvolvimento humano.
Não havendo uma disposição especial que prescreva imperiosamente a direção dos
interesses vitais de alguém, o trabalho acessível a todos pode ocupar o lugar que lhe é
proposto pelo sábio conselho de Voltaire. Não é possível, nos limites de um panorama
sucinto, examinar satisfatoriamente a importância do trabalho para a economia libidinal.
Nenhuma outra técnica para condução da vida prende a pessoa tão firmemente à
realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa
porção da realidade, na comunidade humana. (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).
Neste trecho, a despeito de não haver forma de determinar os interesses singulares mais
profundos, destaque-se o trabalho que, se for acessível a todos, possibilita funções psíquica e
social fundamentais. Consideramos que a referência a Voltaire, em seu clássico conto Candido,
o Otimista116, se deve ao seguinte diálogo, que se estabelece entre Cândido e o velho que o
114
A psicanalista Sissi Vigil Castiel descreve, em seu livro Sublimação: clínica e metapsicologia, que “há
momentos distintos da teorização do processo sublimatório em Freud; um primeiro momento no qual dizia que a
sublimação se caracteriza pela dessexualização pulsional, no qual haveria uma modificação da meta da pulsão, de
tal modo que os objetivos passariam de sexuais a não-sexuais. Em segundo momento, Freud define a sublimação
como um dos quatro destinos pulsionais, sendo este o mais evoluído e, mais tarde, afirma que paralelamente à
mudança da meta na sublimação haveria, também, uma mudança nos objetos. A primeira postulação de Freud
sobre a sublimação implica impasses no que diz respeito à caracterização da sublimação, enquanto as outras duas
permitem uma abertura maior do conceito, tanto no que diz respeito à metapsicologia quanto à clínica. Entende-
se que a primeira postulação freudiana tem como objetivo mostrar que a sexualidade está na origem das criações
humanas muito mais do que definir a sublimação em si mesma, enquanto as duas últimas pretendem explicar mais
detidamente o processo sublimatório.” (CASTIEL, 2007, p. 12).
115
Na própria obra de Freud, no que diz respeito ao trabalho psíquico, encontramos referências ao “trabalho do
sonho” e o “trabalho do luto”, “o trabalho de elaboração” que resulta de processos de transformação no psiquismo
fundamentais para o indivíduo. É por este caminho que Christophe Dejours constrói sua teoria na relação pulsão,
corpo e trabalho: “Contudo, a pulsão não é apenas um conceito, é também um ser: ‘representante’ psíquico. ‘A
pulsão aparece-nos [...] representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo e que atingem a alma’.
Aqui Freud emprega claramente os termos ‘corpo’ e ‘alma’, e o representante psíquico está investido do mesmo
estatuto ontológico que esses dois últimos. A pulsão, ademais, é um ser psíquico e não físico, e ela tem por
incumbência representar na alma o que, do corpo, é capaz de chegar até ela. ‘A pulsão aparece-nos [...] como uma
medida da exigência de trabalho imposta ao anímico por sua correlação com o corpóreo. Este último termo –
trabalho é finalmente aquele que causa maior estranheza nessa definição sugerida por Freud e que, na verdade, foi
o menos comentado’.” (DEJOURS, 2022, p. 64). Mais à frente, Dejours complementa: “É possível definir, com
alguma precisão, a natureza desse trabalho? Na relação entre o corpo e a alma, a pulsão agiria inicialmente como
geradora da excitação, cujo aumento provocado por seu poder de desagregação – ou mesmo de desestabilização –
exigiria em contrapartida um trabalho, efetuado pelo Eu sob o efeito da mencionada pressão em contínuo
movimento. Esse trabalho consiste em rearranjar as ligações até então estabelecidas entre os traços mnésicos.
Trata-se de um trabalho de rearranjo do Eu a suceder, em um segundo momento, à sua desestabilização sob o
efeito da pressão pulsional.” (DEJOURS, 2022, p. 76).
116
Neste conto, Voltaire, de uma perspectiva literária, discute as questões filosóficas de seu tempo. Nos chama atenção
que um dos personagens da obra, o filósofo Pangloss, defende a ideia de uma harmonia no mundo, na qual tudo tem
uma “causa relacionada ao melhor dos mundos possíveis”, de natureza divina. O otimismo de Cândido (influenciado
por Pangloss), no decorrer da narrativa, vai se perdendo pelas experiências reais com o mundo. Afinal, o mal existe e
é necessário conviver com ele. Talvez este conto de Voltaire tenha influenciado a construção de O mal-estar na
176
recebera em sua fazenda: “‘- O Senhor com certeza possui uma vasta e magnífica terra... disse
Cândido ao velho’, no que o velho responde: ‘- Tenho apenas vinte jeiras, que cultivo com os
meus filhos; o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade’.”
(VOLTAIRE, 2002, p. 233).
A referência ao tédio117, ao vício e à necessidade são expressões de dimensões humanas
que estão colocadas nos mundos interno e externo dos indivíduos. O trabalho aparece como um
organizador psíquico na cultura. As dimensões autodestrutivas que possam estar relacionadas ao
tédio e ao vício podem encontrar um destino para fora, através do trabalho e da cultura.
Freud destaca as dificuldades de analisar a importância do trabalho para a economia
libidinal em um “panorama sucinto” e logo reafirma que nada prende a pessoa de “modo tão
firme à realidade como a ênfase ao trabalho”. O psicanalista coloca o trabalho como uma
categoria central para a psicanálise e que necessitaria de melhores desenvolvimentos analíticos
e teóricos. Na continuação da nota, reforça a perspectiva psíquica sobre o trabalho.
Aqui vemos uma marca definitiva do caráter particular e decisivo do trabalho para a
economia psíquica e libidinal. Os componentes ligados à imagem do indivíduo, como ele se vê
e como o outro o reconhece, o destino da agressividade como constitucional (um desafio para
civilização, de Freud, mais do que imaginamos, tendo em vista que o psicanalista também desconstrói visões de mundo,
como o “sentimento oceânico”, “do amar ao próximo como a ti a mesmo”, “os ideais comunistas” para revelar
justamente o desamparo e o pendor agressivo constitucional dos humanos. O que resta aos humanos sabendo que a
maldade é um dado da realidade? Acreditamos aí a referência de Freud a Voltaire, pois, para o filósofo, resta o trabalho
duro e simples, “cultivar seu jardim”, “pois quando o homem foi colocado no jardim do Éden, ali foi colocado ut
operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o descanso. Trabalhemos sem
filosofar – disse Martinho. – É a única maneira de tornar a vida suportável.” (VOLTAIRE, 2002, p. 233).
117
Adorno, em um artigo denominado Tempo Livre, discute a respeito do tédio e o relaciona como Freud aos efeitos
da imposição do trabalho como necessidade externa, não-livre. “O tédio existe em função da vida sob a coação do
trabalho, e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre é
verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio;
tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional em si
mesma, como algo em si pleno de sentido. O próprio bobear não precisa ser obtuso, podendo ser beatificamente
desfrutado como dispensa dos autocontroles. Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se
não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. Tédio é o reflexo do cinza objetivo. Ocorre
com ele algo semelhante ao que se dá com a apatia política. A razão mais importante para esta última é o sentimento,
de nenhum modo injustificado das massas, de que, com a margem de participação na política que lhes é reservada
pela sociedade, pouco podem mudar sua existência, bem como, talvez, em todos os sistemas da terra atualmente. O
nexo entre política e os seus próprios interesses lhe é opaco, por isso recuam diante da atividade política. Em íntima
relação com o tédio está o sentimento, justificado ou neurótico, de impotência: tédio é o desespero objetivo. Mas, ao
mesmo tempo, também a expressão de deformações que a constituição global da sociedade produz nas pessoas. A
mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e seu atrofiamento.” (ADORNO, 1995, p. 76).
177
a cultura), a dimensão erótica, amorosa, que produz retorno em gratificação, prazer e ligação,
vínculos firmes com a realidade e com os outros.118
Justamente por reconhecer todas essas características psíquicas e sociais, Freud percebe
o impacto de uma forma de trabalho obstaculizada, controlada, imposta para os indivíduos e
que não favoreça a criação, a liberdade, o reconhecimento narcísico e, como consequência,
resulte nas impossibilidades de gratificações psíquicas.
A finalização desta nota de rodapé coloca Freud como um pensador da cultura e das
articulações das dimensões psíquicas com as dinâmicas sociais. Demonstra como as determinações
históricas produzem sofrimentos sociais comuns. O modo de organização econômico e social
transforma o trabalho em “aversão humana”. É certo que isso produz implicações psíquicas,
corporais e das dinâmicas sociais, tal como observamos na análise dos dados da pesquisa.
Ao compartilhar com Freud da necessidade de colocar o trabalho em um lugar de
importância, queremos avançar na caracterização deste conceito dentro da economia libidinal
e do narcisismo dos indivíduos. Assim, em diálogo com o texto de Freud, A teoria da libido e
o narcisismo, de 1917, daremos o estatuto de objeto libidinal para o trabalho. Neste texto, Freud
considera que: “Os investimentos de energia que o Eu dedica aos objetos de seus desejos
sexuais, nós os chamamos libido; a todos os demais, originários dos instintos de
autoconservação, demos o nome de interesse.” (FREUD, 2014e, p. 548).
Sabemos que, para Freud, a sexualidade do indivíduo o ultrapassa e ocupa o papel de
ligação com o mundo e com a espécie. Neste sentido, Freud se pergunta o que acontece com a
libido que, por algum motivo, não consegue se ligar aos objetos. Utiliza-se dos estudos de
Abraham em relação às patologias denominadas dementia praecox.
Então se levantou a questão do que aconteceria com essa libido dos dementes, afastada
dos objetos. Abraham não titubeou em responder: ela reverteria para o Eu, e essa
reversão reflexiva é a fonte da megalomania na demência precoce. A megalomania pode
perfeitamente ser comparada à conhecida superestimação sexual do objeto na vida
118
Para Christophe Dejours (2022, p. 123), “o trabalho é a um só tempo oportunidade e mediação de uma
ampliação da subjetividade que se inscreve na dinâmica da sublimação. Com essa descoberta inesperada, de que
o trabalho, contrariamente ao que reza a teoria convencional, não se presta apenas como canalização possível à
excitação, mas pode contribuir, como contrapartida, à expansão do repertório erótico do corpo e à acomodação da
economia pulsional em seu conjunto (e ainda ao enriquecimento do patrimônio pulsional).”
178
119
Theodor Adorno, em Reflexões sobre a teoria de classes, de 1942, discute a importância do trabalho que marca os
ideais de uma cultura. Assim, utiliza como exemplo a própria alegoria da caverna, de Platão, que é a metáfora da
exploração da mineração do mundo antigo. Portanto, nada escaparia à lógica e às contradições da divisão do trabalho.
“Jacob Burckhardt (1908, p. 164) suspeita que a alegoria da caverna na República platônica, a simbologia mais solene
da doutrina das ideias eternas, seja configurada a partir da imagem das horríveis minas de prata atenienses. Então,
inclusive o pensamento filosófico da verdade eterna teria surgido na contemplação do tormento presente. Toda a história
significa história das lutas de classes porque sempre foi o mesmo, pré-história.” (ADORNO, 1942, p. 260).
179
parte do narcisismo do Eu, e isso faz notar no que chamamos “superestimação sexual” do
objeto.” (FREUD, 2014e, p. 552).
Na doença orgânica há um retorno, ao Eu, da libido dos objetos. A libido, de volta ao
Eu, é resultado intensificado da parte enferma do corpo. Este retorno seria mais intenso que o
próprio interesse egoísta em relação ao mundo exterior. “A libido recolhida retorna ao Eu como
investimento intensificado da porção enferma do corpo. Podemos mesmo ousar afirmar que,
em tais condições, a retirada da libido de seus objetos é mais notável do que o afastamento do
interesse egoísta em relação ao mundo exterior.” (FREUD, 2014e, p. 555).
O que Freud estabelece no sono, no enamoramento e na doença orgânica representa
processos normais de retorno da libido ao Eu. É certo que ele está preocupado com os processos
patogênicos deste retorno e, nesse sentido, a determinadas fixações relacionadas ao que
chamará de “neuroses narcísicas” que, neste momento, se referiam à psicose.
Entretanto, dificuldades de dormir, de sonhar, de descansar, processos de luto que se
transformam em melancolia, adoecimentos corporais repetitivos podem revelar não somente
fixações relacionadas ao narcisismo primitivo, mas, igualmente, dinâmicas sociais articuladas
a dimensões primárias dos indivíduos.
Destacamos, como Freud, a importância do trabalho como objeto da cultura. Assim,
estabelecemos uma diferença do trabalho como objeto libidinal para os demais objetos
(lembrando que para a psicanálise qualquer objeto pode se tornar libidinal). A diferença se
estabelece pela mediação da necessidade externa.
A necessidade externa do trabalho torna-se um ideal introjetado pela cultura desde cedo
através dos pais, em referência à identidade profissional dos pais e, também, à situação
econômica familiar que produzirá melhores ou piores condições de vida material para os filhos,
marcando processos de identificação.
Quando analisamos as perspectivas relacionadas ao “mal-estar e superego”, percebemos
como a relação dos ideais profissionais para os professores fala sobre as dinâmicas de
transmissão geracionais na família. Como nos lembra a professora Luana: “gosto de ser
professora, mas não gostaria que meu filho fosse”. Uma transmissão geracional carregada de
ambivalência sobre sua situação no trabalho como professora.
Não é incomum o processo de constituição da identidade dos indivíduos estar
relacionado ao trabalho, “ao que o indivíduo faz” ou “o que quer ser quando crescer?” Ora, “o
que você faz?” não é uma pergunta genérica, mas tem justamente uma determinação cultural
internalizada, de modo que os indivíduos a relacionam diretamente ao trabalho, mesmo sem
180
120
“Na avaliação do IBGE, a elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios concedidos revela “uma
gradual mudança de comportamento da sociedade brasileira, que passou a aceitá-lo com maior naturalidade e a acessar
os serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos.” AGÊNCIA BRASL. “Divórcio cresce mais
de 160% em uma década”, 30 nov. 2015. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-
11/divorcio-cresce-mais-de-160-em-uma-decada. Acesso em: 21 jan. 2022.
181
indivíduos, [que] institui severas exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante
“angústia de consciência.” (FREUD, 2010a, p. 117).
Sob tais condições culturais, temos uma libido que não consegue investir no objeto e
deve retornar ao Eu como processo de autoconservação ou de autopunição, a depender da forma
como os ambientes do trabalho e o social se realizam em conexão com as dinâmicas internas
dos indivíduos.
121
Como nos coloca Maria Rita Kehl (2014, p. 36) sobre a complexidade do ressentimento nas sociedades
capitalistas: “O afeto é resistente porque conta com o que se chama ‘covalidação social’, ou mesmo com uma
covalidação ‘real’: as sociedades capitalistas frequentemente produzem as condições para que grandes
contingentes de trabalhadores sejam de fato prejudicadas e lançados à margem do campo de possibilidades efetivas
de inserção, em razão de uma ordem tão injusta que não se pode atribuir a eles a responsabilidade pelo prejuízo de
que são verdadeiramente vítimas. Nessas condições em que não são corresponsáveis por seus fracassos, o
ressentimento adquire prestígio e convoca identificações e simpatias, e o ressentido sempre encontra os motivos
para se mostrar coberto de razões em suas queixas.”
182
que aponte para um “além do princípio do mal-estar”122 , do ponto de vista de como a sociedade
se organiza no atual princípio de realidade.
Como nos coloca Freud, a frustração excessiva e as severas exigências ideais podem
mobilizar, na dinâmica interna do indivíduo, processos de autorrecriminação e autopunição intensos,
relacionados à sua constituição psíquica. O Supereu, intensificado pelas dificuldades externas,
tortura sadicamente o Eu. No texto A teoria da libido e o narcisismo, de 1917, é possível ver o esboço
da construção do Supereu, que fica mais evidente posteriormente, em O Eu e o Id, de 1923.
Ele sente, no seu Eu, a vigência de uma instância que mede seu Eu atual e cada uma
de suas atividades conforme um Eu ideal, que criou ao longo de seu desenvolvimento.
Acreditamos também que essa criação se deu com o propósito de restabelecer aquela
autossatisfação outrora vinculada ao narcisismo infantil primário, a qual, desde então,
sofreu tantas perturbações e ofensas. Conhecemos essa instância auto-observadora
como o censor do Eu, a consciência; trata-se da mesma instância que, à noite, exerce
a censura onírica, da qual partem as repressões contra os desejos não confiáveis. Ao
se decompor, no delírio de observação, ela nos revela ser originária da influência
exercida por pais, educadores e pelo meio social, da identificação com algumas dessas
pessoas modelares. (FREUD, 2014e, p. 567).
Uma das expressões da constituição deste Supereu é ser herdeiro do complexo de Édipo.
Entretanto, isso não torna menos significativa a importância de compreender uma dinâmica
social que produz adoecimento. Excluir a análise social pode implicar em processos de
adaptação do indivíduo ou mesmo cisões do Eu para se moldar à sociedade.
Se considerarmos que determinado trabalho envolve uma relação com um certo ideal na
cultura, inclusive como parte da constituição do Supereu, e que a profissão de professor, em
especial, como pudemos acompanhar até aqui, tem inclusive uma herança arcaica que atravessa
de modo geracional as famílias dos professores, parece haver um grande peso no que significaria
o professor não conseguir realizar seu trabalho de modo significativo. Há, certamente, uma crise
com esse ideal que pode se expressar diante de uma realidade precarizada e obstaculizada,
representando uma perda melancólica123, intensificando os processos de autorrecriminações.
122
É o próprio Freud que reconhece que o trabalho produz sofrimentos comuns, aversão ao trabalho. Neste sentido,
consideramos que Freud traz a referência a um modo de trabalho forçado pela necessidade, na ordem de uma
repetição destrutiva, uma “compulsão”, sem representação na possibilidade de experiência e gratificação. Não se
trata mais da dimensão faltante, com referência às gratificações e frustrações das experiências, mas de um campo
da destrutividade psíquica e física dos indivíduos.
123
Em Luto e melancolia Freud caracteriza algumas bases do luto e da melancolia: “Via de regra, luto é a reação a
perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc. Sob as
mesmas influências observamos, em algumas pessoas, melancolia em vez de luto, e por isso suspeitamos que nelas
exista uma predisposição patológica. (...) A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento
doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e
diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante
expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se consideramos que o luto exibe os
mesmos traços, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada.” (FREUD, 2010o, p.172-3).
183
Disso pudemos concluir que, de fato, o melancólico retirou sua libido do objeto, mas este,
mediante um processo que cabe chamar de “identificação narcisista”, foi estabelecido em
seu próprio Eu, foi como que projetado para o Eu. Aqui posso lhes oferecer apenas uma
imagem ilustrativa, não uma descrição topológico-dinâmica ordenada. Esse Eu passa,
então a ser tratado como o objeto abandonado e sofre todas as agressões e manifestações
do desejo de vingança que tinham por alvo o objeto. (FREUD, 2014e, p. 565).
Para iniciar essa reflexão, trazemos um dos capítulos do livro Mal-estar na escola e a
aposta docente: encontros e desencontros, de Scherer e Carneiro (2020). O capítulo trata
essencialmente da relação entre professor e estudante e o mal-estar e a angústia dos professores
no indeterminado destas relações.
O texto discute que certos professores, mesmo diante das dificuldades, conseguem
encontrar formas alternativas na realização do seu ofício. Ou seja, que não se sentem impotentes
diante das circunstâncias. Por meio da pesquisa-intervenção, dentro da tradição da clínica
psicanalítica, as autoras realizaram conversas em grupos de professores. “Tal ação visa
promover possibilidades elaborativas para o mal-estar, contribuindo para uma redução da
tensão e transformação do mal-estar em patologia.” (SHERER; CARNEIRO, 2022, p. 135).
Recorrem ao mal-estar freudiano como a marca civilizatória da renúncia instintual para
se viver em sociedade e trabalham na perspectiva que a educação tenta, muitas vezes, apaziguar
esse mal-estar, essa tensão, e que, evidentemente, em algum momento isso escaparia ao controle
e apaziguamento.
Apostamos na posição do professor que assume a função do artesão, molda seu trabalho
a partir do vazio, contorna as bordas desse furo demarcado pela emergência do
inesperado em sua prática educativa, de modo a construir saberes singulares e apostar
185
124
No entanto, o trabalho do professor de educação básica, na atualidade, é cada vez menos artesanal (COSTA;
NETO; SOUZA, 2009; OLIVEIRA, 2004; JACOMINI; PENNA, 2016; SOUZA, 2013), como realidade ou como
metáfora, e que aqui, também por condições de trabalho, por variados atravessamentos na formação naquilo que
Manfré (2014), dialogando com Adorno (2010), traz do “empobrecimento da experiência”, mas também da lógica
do estranhamento do trabalho (MARX, 2004a) ou da falência da cultura (ADORNO, 2006b). As indicações
bibliográficas nesta nota servem apenas para reforçar a complexidade da compreensão das dinâmicas sociais
relacionadas às contradições do trabalho e ao seu mal-estar. Não entraremos detalhadamente nelas. Todavia,
acreditamos que o rico material das entrevistas evidencia a intensidade deste mal-estar e é justamente nestes dados
que centramos na análise do mal-estar docente, como estamos trabalhando.
125
Marcuse atribui que “embora qualquer forma de princípio de realidade exija um considerável grau e âmbito de
controle repressivo sobre os instintos, as instituições históricas específicas do princípio de realidade e os interesses
específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além dos indispensáveis à associação civilizada
humana. Esses controles adicionais, gerados pelas instituições específicas de dominação, receberam de nós o nome
de mais-repressão.” (MARCUSE, 2010, p.52-3).
186
Para ficar mais evidente como se dão as dinâmicas sociais, analisaremos na sequência
falas dos professores, para refletir sobre como as políticas relacionadas à precarização do
trabalho contribuem com a produção do mal-estar docente em uma forma de sofrimento
comum.
Um primeiro dado da relação da intensidade do mal-estar está relacionado às políticas
dos governos na rede de ensino estadual de São Paulo, que dividem os professores e produzem
uma relação marcada cada vez mais pelo “narcisismo das pequenas diferenças”126. Como nos
coloca o professor João:
Vou tentar responder focando só na estadual. Sim tem divisões, ainda tem divisões
geracionais. Ainda tem uma parte dos professores com uma faixa etária de 50, 60 anos.
E você percebe um recorte nisso. Você também percebe um recorte de formação. Entre
aqueles professores que seja porque fizeram universidades mais tradicionais ou porque
por conta própria correram atrás de estudar ou de fazer uma reflexão por conta própria.
Também tem um recorte de contrato de trabalho. Na rede estadual hoje nós temos
basicamente 3 ou 4 grupos de professores. Você tem os efetivos, você tem os professores
estáveis que praticamente já deixaram de existir, eu nunca conheci um professor estável
na rede estadual, mas sei que tem um caso ou outro. São pessoas que ganharam
estabilidade entre os anos 80 e 90. E você tem estáveis daquela reforma de 2007, que
alguns chamam genericamente de categoria F, eles ainda existem, e você tem os novos
contratos que as pessoas chamam genericamente de categoria O, que tem um contrato
de trabalho extremamente precarizado, mas que com a nova reforma que foi feita agora
nas últimas semanas eles tentaram nivelar por baixo. E puxaram o contrato dos efetivos
para algo mais próximo destes contratados por tempo determinado. Você percebe a
divisão clara por exemplo quando tem a necessidade de você fazer um movimento
sindical, reclamar das coisas que precisam melhorar, você percebe claramente uma
primeira divisão que é: “ah eu não quero, eu não vou participar, eu não posso porque eu
sou contratado”. Os professores no recorte geracional você tem aquele pessoal da velha
guarda, que está muito cansado, que já viveu muita coisa, que não espera a hora de
aposentar. Você também tem um recorte daquele pessoal que mesmo sendo efetivo você
percebe na fala, no discurso, de que “assim que eu achar outra coisa eu vou embora.”
Também tem isso. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
126
Sigmund Freud não tem um texto específico sobre o “narcisismo das pequenas diferenças”. A primeira vez que a
expressão aparece é em Psicologia das massas e análise do Eu, de 1921. Neste momento Freud caracteriza que: “Nas
antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos, podemos reconhecer a expressão
de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si, e se comporta como se a ocorrência de
um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificá-
los. Não sabemos por que uma suscetibilidade tão grande envolveria justamente esses detalhes de diferenciação; mas
é inegável que nesse comportamento dos indivíduos se manifesta uma prontidão para o ódio, uma agressividade cuja
procedência é desconhecida, e à qual se pode atribuir um caráter elementar.” (FREUD, 2011a, p. 57).
187
É péssimo. É muito, muito ruim. Porque acaba se criando dentro da escola como se
fosse uma questão de castas. É uma hierarquização dentro da própria escola, então
você tem professores que são contratados, você tem professores que são efetivos. Não
é dado um tratamento diferente para eles, a escola não dá um tratamento diferente
para eles, os próprios colegas não dão, mas eles se sentem diferentes, mas eles se
sentem menos aptos a falar, a se posicionar, então por exemplo, tem uma professora
lá que ela tem bastante pontuação. Ela é categoria O e tem bastante pontuação. Todo
ano ela pega aula na escola. Ela já falou para mim que não gosta de se envolver em
polêmica aqui, eu não gosto de bater de frente com a direção, porque eu preciso de
aula. É cruel, é cruel isso, você entende? Então de repente um professor se submete a
certas coisas porque ele sabe que se ele for legal, se ele for bacana, se ele não der
problema de horário, se ele não se atrasar, se ele não pedir ajuda dos colegas para lidar
com questões de indisciplina e tal ele precisa daquela aula. Então esta divisão dentro
da escola eu acho cruel por isso, porque ela acaba colocando o professor, o próprio
professor, não um contra o outro, nesta escola que estou nunca percebi isso, mas a
própria pessoa fica numa posição de submissão. Então as pessoas falam: “você fala
isso porque você é efetivo”, “você fala isso porque tem tanto tempo de escola”. Eu
falo gente quando entrei no Estado eu falava. Mas é como as primeiras perguntas que
você me fez. Eu já entrei no Estado direto como professor efetivo. Mas eu nunca fiz
essa questão de falar assim, eu faço isso porque eu sou efetivo, eu faço aquilo porque
188
eu sou efetivo. Mas eu sinto muita crueldade dos colegas, que eles são contratados.
Que às vezes eles precisam se colocar numa situação de submissão mesmo como eu
disse. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
Eu acho que tem, nossa muito. Na escola do Estado que estou hoje não tem muito.
Mas a que eu trabalhei anterior do Estado tinha até o lugar dos professores separados.
Os que eram amigos da diretora.
Tem privilégios?
Não era uma coisa explícita, acho que sim. Tinha uma mesa na sala dos professores,
e na ponta da mesa sempre sentavam as mesmas pessoas. Você podia se sentar lá, não
era algo que era demarcado, mas ao mesmo tempo você sabia que você não era muito
bem-vindo se você não fizesse parte do grupo. Esse grupo muito amigo, puxa saco da
diretora e por exemplo, umas das professoras eu sabia que a diretora facilitava para
ela na hora da atribuição de algumas turmas que ela queria. Não só uma, mas duas,
três professoras lá, ela ajudava.
Mas essa diferença era por quê? Você acha que é por antiguidade, geracional,
assim...
Não, eu acho que a diferença era os que queriam ter privilégios na escola e os que não
ligavam para isso. E os que queriam ter privilégio eram amigos da gestão. E eles
formavam um grupo, e a maioria deles eram concursados. Essa escola que eu trabalhei
eu era artigo 22, era efetiva, mas estava como artigo 22. E você fica emprestado, e vários
professores vinham me perguntar se eu era contratada. E aí quando eu falava não, eu era
efetiva, estou no artigo 22 eu percebi que eles mudavam até o jeito de lidar.
Você acha que contratado é visto de uma maneira pior vamos dizer assim?
Sim. Nessa escola que estou hoje eu percebo que alguns tem isso. Que depois que
eles foram percebendo que eu era efetiva, que tinha acabado de vir do 202, e
principalmente que eu tenho prefeitura alguns começaram a chegar mais próximo
perguntando coisa, porque antes ficava distante. Mas tem isso sim, não só na rede
estadual, na municipal também. Eu percebo isso, mas é outra coisa. (Professora Ana,
categoria A, 15 anos de magistério).
O professor Luiz aponta o lugar da mesa da sala dos professores como um símbolo
dessas distinções e divisões:
Tem uma escola que eu trabalhei por exemplo e ele brincava, eu já era categoria F na
hora, “óh seguinte, aqui na mesa senta efetivo, categoria F pode sentar no sofá, na época
categoria L senta nos banquinhos mais perto da parede.” Ele falou num tom de
brincadeira, mas sabe toda a brincadeira tem um fundo de verdade. Tem sim, tem
divisões, tem a chamada panelinha. Eu mesmo por exemplo estou pensando seriamente
se eu vou participar de confraternização este ano. Porque eu ando muito “p” da vida
com algumas coisas. Eu tenho alguns amigos, alguns mais próximos que este aí “ah
vamos marcar um barzinho tal dia, vamos”. A gente só vai tomar o cuidado de não fazer
no mesmo horário da confraternização da escola, porque aí fala cumprir horário. Meu
problema é que eu trabalho praticamente... segunda e quinta-feira à noite também. Se
eu tiver que cumprir horário eu vou miar as minhas confraternizações. Dependendo da
escola e eu estou em três. Mas enfim, direto ao centro aqui: sim, tem panelinhas, tem
divisões, por idade, por cargo, por tempo de escola também. Tem por vários motivos.
E por que você avalia que existem estas divisões assim?
Olha eu acho que tem uma palavra para isso que é consciência de classe127. Quando a
gente pensa em consciência de classe, eu não vou ficar discorrendo muito aqui
também, mas assim muitas vezes a gente que não se enxerga como alguém que
pertence a mesma profissão, a mesma carreira. Você sabe que aquele cara é professor,
mas aparentemente ele não é igual a você e vice-versa. Nós nos enxergamos com
diferença, apesar de nós termos as mesmas atribuições. Mas os nossos contratos não
são os mesmos. Já começa por aí estas divisões: efetivo, categoria F, categoria O,
categoria P e assim por diante. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
127
Interessante esta observação do professor Luiz quanto “à consciência de classe”, porque nos remete às reuniões
da “Sociedade Psicológica das Quarta-feiras”, que marcaram os debates de Freud e um grupo de psicanalistas em
torno dos inícios da psicanálise no começo do século XX. No livro A controvérsia Freud-Adler, que representou uma
das primeiras rupturas no movimento psicanalítico, Bernhard Handlbauer traz o relato de uma reunião do dia 10 de
março de 1909 com o tema “A psicologia do marxismo”, apresentado por Adler. Handlbauer aponta a receptividade
do grupo à apresentação de Adler (“Freud disse que a sua atitude nessas palestras que ampliam o nosso horizonte só
pode ser receptiva”) e que Freud gostou e apontou que: “da avaliação crítica de Adler quanto às ideias como
formações de reação: Marx foi o primeiro a oferecer às classes oprimidas a oportunidade de se libertarem do
Cristianismo – por meio da visão do novo mundo que ele lhes proporcionava. Se o sadismo se convertesse em
Cristianismo (masoquismo), Marx explicou aos homens seu respectivo masoquismo, tornando-o o instinto primário
de autopreservação. Isso ilustra como, trazendo essas coisas à consciência, é possível levantar uma repressão. Desta
forma, o instinto de agressão foi passado para a consciência de classe.” (HANDLBAUER, 2005, p. 84-5).
190
A professora Luana reafirma as divisões e indica que a mesa na sala dos professores já
adentrou o imaginário129 da rede estadual de ensino como representativo dessa distinção, sendo
algo que circula na rede, mesmo sem fazer parte da experiência pessoal dela.
Tem divisões sim, vários colegas já me falaram, eu já ouvi falar que tinha mesa separada
para eventual e mesa de efetivo. Eu não passei por isso, mas eu já ouvi colegas bem
próximos de mim sofrer este tipo de discriminação. Por exemplo, nesta escola que eu
eventuei, eu entrei e este professor até conversava comigo, tinha parceria comigo e tal.
Eu entrei, era a primeira aula, já tinha passado o tempo de tolerância, a inspetora mandou
eu entrar. Eu entrei estava começando a colocar o cabeçalho na lousa aí ele apareceu na
porta e ficou olhando para mim. Tipo que era a aula dele, aí eu fiquei constrangida, eu
saí porque eu ia bater de frente com ele. Nem questionei imagina...
Ele chegou um pouco atrasado e você assumiu as aulas...
Ele chegou atrasado e ficou me olhando na porta... “oi” e aí eu “oi” e aí ficou me
olhando pra mim. Eu falei era sua aula e ele falou é. Eu falei “ah tá bom”, eu peguei
minhas coisas e sai. É constrangedor! Depois a coordenadora chegou para mim e disse
que eu não devia ter saído, porque ele já tinha passado do horário, mas aí eu ia fazer
o quê? E já ouvi que tem escola que é bem pesada a discriminação mesmo na sala dos
professores. Teve um colega meu que falou que o professor pediu para ele se levantar
da cadeira da sala dos professores que ali era o lugar que ficava os efetivos. Então tem
128
Como já abordamos na dissertação, no texto Por que a Guerra?, Freud discute uma dinâmica da agressividade
ao longo da evolução cultural relacionada à tirania e à equidade: “Daí em diante há duas fontes de inquietação
relativamente ao direito na comunidade, mas também de aperfeiçoamento do direito. Primeiro, tentativas de alguns
senhores se colocarem acima das restrições vigentes para todos, ou seja, retrocederem do domínio do direito para
o domínio da violência; segundo, constantes esforços dos oprimidos para conquistar mais poder e ter essas
mudanças reconhecidas em lei – para, bem ao contrário, ir do direito desigual ao direito igual para todos. Essa
última corrente se torna particularmente significativa quando no interior da comunidade há verdadeiros
deslocamentos nas relações de poder, como pode ocorrer devido a fatores históricos diversos. Então o direito pode
gradualmente se adequar às novas relações de poder ou, o que é mais frequente, a classe dominante se recusa a
levar em conta essa mudança, e chega-se à rebelião, à guerra civil, ou seja, à temporária suspensão do direito e a
novos ensaios violentos, após os quais é instaurada uma nova ordem jurídica.” (FREUD, 2010i, p. 422).
129
Uso esta palavra no sentido de imagem e imaginação.
191
bastante. Não sei só com eventual, com categoria O, só por ser categoria O. O
professor não é uma classe unida não. E foi este caso que eu te falei. (Professora
Luana, categoria O, 8 anos de magistério).
A cena que a professora Luana relata revela exatamente as dinâmicas contratuais e de poder
na escola e como elas afetam os professores. A professora Luana, categoria V, eventual na época,
entrou na sala para substituir o professor, mas, quando o professor chegou depois do horário, teve
que se retirar constrangida. A coordenadora jogou a responsabilidade para ela sustentar o conflito
sem mediação da direção. Como a professora só recebe se der aula, temos uma intensificação do
mal-estar, como se a professora pudesse imaginariamente “roubar a aula do professor”.
Essas experiências produzem a memória coletiva das dinâmicas sociais de divisão que
produzem a formação libidinal de identificação entre grupos. É interessante lembrar que na rede
municipal o professor eventual recebe independente se der aula ou não, pelo simples fato de estar
disponível na escola quando algum professor faltar, o que revela que na rede estadual a política de
precarização do trabalho afeta diretamente as relações interpessoais e regressivas entre professores.
Esses dados de pesquisa, relacionados às divisões dos professores, aparecem em todos
os entrevistados. A professora Denise, categoria V, que tem apenas três anos de rede, diz:
Sim, eu percebo que às vezes alguns efetivos têm seu grupinho. E às vezes a categoria
O que não é efetiva é um outro grupo e a minha a V nem se fala é a mais simples aí.
Esta divisão é por contrato de trabalho que você está falando?
Isso.
Não seria por uma perspectiva geracional ou mesmo de modos de trabalhar
diferentes?
Não.
E por que você acha que acontece isso?
Bom porque os efetivos têm um pouco mais de benefícios, o próprio nome já diz. Eles estão
mais estacionados já. O categoria O a vida não é fácil não. Uma hora está numa escola,
outra hora está em outra. O contrato já vai vencer. Então eles têm alguns atritos ali sim.
Você acha que os efetivos olham com um olhar superior para os outros
professores de outros contratos?
Sim, já vi isso nas escolas já. Já sim.
(Professora Denise, categoria V, 3 anos de magistério).
Existe porque assim... não por contrato. Ah eu sou concursado, tem escolas que tem
isso sim. Tem escola que o contratado não come na mesa do concursado. Nas escolas
que eu trabalhei nunca aconteceu isso. Agora o que eu já vejo acontecer direto é a
divisão dos professores por conta do dinheiro. Então assim vai ter lá o Saresp. Vamos
boicotar o Saresp, se a gente boicota o índice da aprovação do Estado cai e aí ele vai
dialogar com a gente o governador. Ele não vai poder chegar e falar que aqui é o
192
Estado que mais educa gente pagando a miséria que ele paga. Aí os caras pô pode
crer, vamos ai, vamos! Aí a direção já pega pesado... a gente chega e diz que quer
boicotar este negócio. Aí tem um professor que fala e o bônus, ai fudeu. Você já
segregou o negócio por conta de 500 reais de bônus. A diretora colocou este ano, a
gente ia ter o abono. Ah o abono, os professores vão ganhar o abono. Só que os
profissionais da educação não ganharam o abono, o agente não ganhou, a gerente não
ganhou, essas profissionais, a coordenadora não ganhou, a direção não ganhou... A
diretora chegou na sala dos professores e falou assim: mais do que justo vocês fazerem
uma vaquinha para a gente pagar estes caras também. Vou querer 100 reais de cada
um de vocês. Eu falei comigo que você tem que reclamar? Sério que você vai meter
essa, 100 reais? Vai tentar tocar meu coração cristão? Ah para! Então tem essa
segregação sim. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
A satisfação narcísica advinda do ideal cultural é também uma das forças que atuam
eficazmente contra a hostilidade à cultura no interior do grupo cultural. Não apenas as
classes privilegiadas que desfrutam os benefícios dessa cultura, mas também os oprimidos
podem partilhar essa satisfação, pois o direito de desprezar aqueles de fora os compensa
pelos danos que sofrem no seu próprio grupo. O indivíduo pode ser um miserável plebeu,
importunado por dívidas e pelo serviço militar, mas é um cidadão de Roma, tem seu
quinhão na tarefa de dominar outras nações e ditar-lhes as leis. Mas essa identificação dos
oprimidos com a classe que os domina e explora é apenas parte de um contexto maior.
Aqueles podem estar afetivamente ligados a esta; apesar da hostilidade, enxergam nos
senhores o seu ideal. Se não existissem tais relações fundamentalmente satisfatórias, seria
incompreensível que certas culturas se conservassem por tanto tempo, não obstante a
justificada hostilidade de grandes massas. (FREUD, 2014b, p. 244).
Teríamos que pensar de como o trabalho, no modo como ele é organizado, produz uma
relação bastante desumanizada entre as pessoas, que faz com que a professora Vera destaque
esse mal-estar intenso, traumático nas relações com os outros. Quando Freud diz sobre a
“aversão humana ao trabalho”, resultado da imposição por necessidade externa, destacamos
também a “aversão humana às relações humanas de trabalho”, isto é, as pessoas que dividem o
espaço do trabalho. E, também, qual o significado desta experiência para o conjunto das outras
relações humanas fora do trabalho, já que um indivíduo adoecido no trabalho refletirá essa
marca nas outras relações interpessoais.
Trata-se de uma dinâmica histórica e social que convoca os aspectos mais destrutivos dos
indivíduos. E eles existem, como nos mostrou Freud em seu texto para Einstein, Por que a guerra?
É interessante pensar como, nos lembra Freud em Introdução ao narcisismo, que ambientes de
ofensa ao Eu favorecem a produção de fantasias persecutórias. Não é nada difícil visualizar, como
194
sintoma a partir dessas divisões entre professores, um ambiente que favoreça fantasias cada vez
mais paranoicas, de desconfiança nas relações interpessoais e grupais na escola.
A professora Vera destaca uma questão, na sequência de seu relato, que apareceu pouco na
pesquisa, que mereceria um aprofundamento em outras investigações, que são as relações entre
homens e mulheres na rede estadual de ensino. A característica de gênero, na educação básica, uma
profissão ainda majoritariamente feminina, pode revelar algumas particularidades do mal-estar
docente: como este espaço, no qual determinada dinâmica social de mal-estar se realiza, favorece
formas de machismo e constrangimentos sexuais. A professora Vera nos relata uma situação:
130
Segundo a nota técnica da GEPUD/REPU: “De acordo o relatório do 3º ciclo de monitoramento das metas do
PNE, em 2019, a média salarial da(o)s professora(e)s paulistas correspondia a 67,4% da média salarial de
profissionais com formação equivalente, R$ 3.572,66 e R$ 5.304,32. Em 2023, a Apeoesp divulga, com base em
dados do IBGE (PNAD Contínua), que a média salarial de profissionais com formação em nível superior é de R$
5.922,49. Sendo assim, o vencimento inicial da carreira deveria ser equivalente a esse valor.” Fonte: [Nota técnica].
São Paulo: GEPUD/REPU, 12 jun. 2023. Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e
www.repu.com.br/notas-tecnicas . Acesso: 12 de junho de 2023.
196
Mais uma vez, retomando Adorno, “pelo fato de o processo de adaptação ser tão
desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os homens vivem, eles precisam impor
a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmo,
e, nos termos de Freud, identificando-se ao agressor.” (ADORNO, 2006f, p. 145).
O professor Luiz expressou a situação de precarização. Mesmo sendo categoria F, com
mais de 10 anos de magistério estadual, ainda precisa trabalhar em três escolas para compor sua
jornada de trabalho.
O professor teria que trabalhar em cinco escolas para complementar uma jornada de 20
aulas. Só conseguiu declinar desta quantidade de escolas com um laudo médico. A pergunta
que fazemos é: nesta forma de organização do trabalho, que manifestação do mal-estar pode
ser produzida? Só é possível pensar em uma manifestação de sofrimento destrutiva, visto que
estamos diante de uma rede de ensino que autoriza essa forma precária de organização do
trabalho, mesmo de um professor que tem algum nível de estabilidade por ser categoria F.
O fato de trabalhar em mais escolas lhe produziu então algum problema de saúde?
Sim, transtorno de ansiedade generalizado e depressão. Isso deu uma recuada, eu fiquei
um ano e meio afastado inclusive, eu fiquei de 2018 a 2019. O segundo semestre de 2018
e o ano de 2019. Então até este problema começar a dar um recuo, demorou um tempo,
uma medicação, não é um termo mais apropriado, mas uma medicação que até me deixar
estabilizado demorou um tempo, e sim, essa rotina de trabalho. Fora também tolerar coisas
também no ambiente de trabalho que parando para pensar não deveriam ser toleradas. Isso
também afetou minha saúde mental e acabou refletindo na saúde física também. Somatizei
muitas coisas e para completar este ano eu tive que começar a fazer tratamento para
hipertensão em março. Inclusive estou no grupo de risco, eu fiquei mais tempo online, eu
voltei para as aulas presenciais em setembro depois de ter tomado a segunda dose contra
a covid. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
Uma das questões que o professor Luiz levanta, e que não deveria ser tolerada, é a do
racismo. Tanto do ponto de vista pessoal, como um professor negro, quanto ao conteúdo das
197
aulas de temáticas afro-brasileiras. Além disso, a própria conjuntura política do país colocou os
professores, em especial os de História, sob o olhar vigilante de estudantes e pais. Perguntado
sobre algum tipo de atrito na escola, o professor Luiz responde:
Com a gestão com relação ao conteúdo do meu trabalho não. E espero que fique assim.
Agora com alunos eu já tive. Por exemplo, quando eu estava ministrando conteúdos
de história afro-brasileira. Aquela coisa de um país colonizado estruturalmente racista,
aquela coisa toda. Quando você vai falar por exemplo de mitologia nórdica ou
germânica, mitologia greco-romana, quando você vai falar até mesmo de mitos ou
melhor dizendo religiões e mitos da antiga mesopotâmia, algumas coisas até desses,
mas agora se você vai falar alguma coisa sobre mitologia dos orixás por exemplo, tem
umas pessoas que ficam fora de si. Tem alunos que ficam exaltados, então sim, eu já
tive entreveros nesse sentido, resolvi dessa forma “olha é o seguinte eu estou
respaldado legalmente para tratar desses conteúdos. Os objetivos, as habilidades, as
competências são essas. Se você quiser fazer você faz, se você não quiser fazer você
vai ficar com zero nessa atividade.” Você lidar com racismo religioso e teoria religiosa
em sala de aula, não tem muito o que fazer neste sentido. (...) Já tiveram alunos que
tentaram gravar aulas minhas. Em 2015, ano da greve, inclusive 92 dias, que teve
reflexos inclusive na saúde mental e saúde física. Terminei aquela greve com
princípio de pneumonia. Mas voltando já teve alunos tentando gravar aulas minhas e
algum me perguntou: professor, qual sua opinião sobre o Bolsonaro? Só que quando
eu fui responder eu percebi que um garoto estava com um celular, ele estava meio
dando uma disfarçada, aí eu cheguei nele com todo o carinho, com muito amor. Pedi
para que ele abrisse a galeria dele... galeria, imagens e aí ele apagou minha foto e
apagou o vídeo. E a gente resolveu ali, e falei pra ele que nunca mais gravasse
conteúdo nenhum ou professor algum sem autorização expressa dele. Se não os seus
pais vão responder por isso. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
uma vez que eu fui para escola todo vestido de preto, camiseta preta, calça preta. E os
alunos começaram a fazer umas perguntas bem babacas, sem sentido. De professores
também, de professores eu já ouvi algumas bem desagradáveis. (Professor Luiz,
categoria O, 15 anos de magistério).
131
Sabemos como, do ponto de vista ideológico, na formação histórica do Brasil, principalmente pós-década de
1930, que teve como marco o antropólogo Gilberto Freire e seu livro Casa e Grande e Senzala, a tentativa de
imputar um discurso da “democracia racial” no Brasil, que na verdade foi a forma como as classes dominantes
brasileiras encontraram para tornar o racismo e a exploração do trabalhador negro naturalizados, a-históricos.
199
Mas um cargo que tenha um valor que eu consiga manter um determinado padrão de
vida. Porque do jeito como está agora não dá para dizer que está compensando não.
(Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
O professor nos relata que, desde o início como professor da rede estadual e categoria
V, eventual, trabalhou intensamente, chegando a lecionar 15 aulas por dia. As demandas
produzidas para os professores eventuais são as mais destrutivas, aquelas em que o professor
fica disponível na escola e só recebe se der aula. Um professor que trabalha 15 aulas por dia
evidencia que o princípio de realidade é não somente destrutivo, mas traumático.
O adoecimento do professor é notório e reconhecido por ele. Contudo, o que nos chama a
atenção para a intensidade traumática do trabalho é o esquecimento do nome. O significado pode
estar relacionado a uma perda da identidade não apenas docente, mas do próprio ser, do Eu do
professor. “Eu tive um lapso de tempo, eu tinha esquecido meu nome”, pois numa jornada de
trabalho e sob estas condições de trabalho, o tempo da experiência se perde e precariza qualquer
possibilidade de um mal-estar que possa ser criativo, sustentado. O nome nos dá um lugar psíquico,
uma rede de significados, de existência. Neste contexto, não se trata de um lapso qualquer.
E o que você avalia desta questão de esquecer seu nome, de estar trabalhando uma
semana inteira muito e esquecer o próprio nome. É muito simbólico isso, não?
E sabe uma coisa que aconteceu este ano também, eu fui fazer um cadastro. E acho que
eu estava tão ansioso que foi a primeira vez que eu esqueci a minha idade. A idade é uma
coisa que eu nunca esqueci, eu posso esquecer... até quando minha ansiedade aperta às
vezes quando eu estou saindo de casa às pressas, eu esqueço onde, pequenos objetos, onde
eu coloquei a chave ou remédio que eu tenho que colocar na bolsa ou coisa do tipo. Eu
esqueci minha idade. A moça perguntou quantos anos o senhor tem? Eu falei, não eu tenho
40 anos, mas eu aí falei não peraí, eu tenho 42, desculpa. Sim, você esquecer seu próprio
nome ainda mais no seu ambiente de trabalho e ainda mais pensando no nosso curso. No
curso de História, um processo de alienação do trabalho. Você está trabalhando, eu estava
até lendo Chasin em pouco tempo atrás... Se esta lógica do capital e desgoverno do
trabalho, do trabalhador especificamente. Você trabalha, trabalha e trabalha para tentar
manter um padrão de vida que você não está mantendo plenamente, porque sua saúde está
acusando isso. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
fazer este sacrifício de você manter dois cargos, você trabalhar dois, três turnos,
porque muitas vezes não consegue fechar sua jornada de trabalho na mesma escola.
Então você é obrigado a escolher outras escolas para compor sua jornada. Então está
inchado dependendo da área que você se encontra, mas tá mais precarizado também.
Isso que estou querendo dizer. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
Utilizamos o professor Luiz até aqui para trazer as questões da relação das jornadas de
trabalho e condições de trabalho com os aspectos subjetivos do mal-estar, entretanto são
condições apontadas por todos os professores entrevistados. Agudizam-se tais condições pelo
desenvolvimento e ampliação de Escolas em Período Integral (PEI), que intensificam o controle
e a exploração. O professor Luiz fala sobre um colega de trabalho em uma PEI:
Ele trabalhou numa PEI durante algum tempo, falou que é propaganda enganosa. O que
você ganha de adicional no seu trabalho, aquele 75% em cima do salário base o imposto
de renda come uma parte disso que você ganha mais. Fora que a maneira como as PEI
estão colocadas isso favorece muito assédio moral, tem muitas reclamações sobre isso,
assédio moral. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
A professora Vera, que trabalhou em uma PEI, relata sua experiência com a gestão da
escola, que tem poder para decidir se ela ganha ou não o bônus de final de ano.
Olha Marcelo, eu conversei com minha gestão sim. Com minha diretora semana
passada. Eu acho engraçado que o gestor principal que é o diretor de escola sempre acha
que ele tá certo em tudo. A diretora, como eu quis sair da PEI ela me “funicou” no direito
de eu receber pelo menos um pouquinho do abono, uma merrequinha. Foi ela que
interferiu sim. Ela podia ter me ajudado ela não ajudou. E ela foi bem sincera. “Você
me deu trabalho, então você não tem direito”. Então você pensa como eu fiquei do outro
lado do telefone. Eu estava no telefone. E ela grava tá. Ela grava. “Estou gravando o que
você está falando.” Foi semana passada. Quando os professores receberam eu liguei
para ela sim. O que está acontecendo? Está dando que eu tenho direito e eu não recebi.
“Você me deu trabalho, quantos atestados você pegou. Eu fechei você não vai receber.”
Porque eles mexem sim, mexem na sede. Eles têm direito. Eles têm este poder, eu pensei
que não. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
A afirmação “você me deu trabalho, quantos atestados você pegou” parece trazer uma
combinação do modo infantilizado do funcionamento do ambiente escolar, da “criança que deu
trabalho ao adulto” e, ao mesmo tempo, do poder que tem os gestores, em determinada estrutura
administrativa, de intensificar o adoecimento do professor, na medida em que os atestados
médicos podem servir para punir o professor por seu adoecimento.
As bonificações são mais um ingrediente que favorece as cisões do Eu no espaço
escolar, visto que o professor pode sustentar, mesmo adoecido, a intensidade do mal-estar
escolar para poder ter acesso a uma remuneração maior. O fato de a diretora estar gravando a
conversa com a professora Vera só demonstra que as relações de sociabilidade numa escola
estadual implicam em níveis regressivos e destrutivos importantes que, em última instância, a
prova material da verdade do que é dito é deslocado para uma esfera fora da escola, jurídica –
perversa ao próprio processo educacional, portanto.
201
A professora Vera é categoria O e o professor Luiz tem estabilidade contratual por ser
categoria F. Os contratos relacionados às categorias O e V são, como observamos na pesquisa,
os mais precarizados e, evidentemente, também produzem efeitos psíquicos intensos no
professor. É patente notar como cada tipo de contrato, pela sua precarização, produz
intensidades de mal-estares variadas.
A professora Luana, categoria O, teve que ficar em duas escolas, uma delas, segundo ela,
bem arbitrária, cheia de burocracias e excesso de trabalho, que lhe produziu efeitos psíquicos e
corporais intensos, além de uma enorme desmotivação, visto que parte importante desse trabalho
precisava ser feito em casa, já que as horas de trabalho na escola eram insuficientes.
Esse ano que eu fiquei em duas escolas, uma escola era bem arbitrária. Burocracia, muito
excesso de trabalho, e eu fiquei... só que eu estava, o começo foi em casa no remoto. Eu
fiquei mal, bem ansiosa, bem nervosa, muita dor de cabeça. No dia que eu fui na escola
que me passaram toda a demanda de trabalho eu tive muita dor de cabeça. Fiquei dois dias
com dor de cabeça, passei bastante nervoso. Muito desmotivada. Não cheguei a passar no
psicólogo e pegar licença, mas eu fiquei bem impactada na minha vida, fiquei bem
estressada, bem desmotivada. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
Não. Só algumas vezes é “a professora substituta”. Às vezes este termo a gente não gosta
de ouvir muito, ser tachada como substituta e pensar que a nossa aula é uma “oba-oba”
para eles. Isso eu não gosto muito, mas também não dou trela, fico quietinha. Já escutei
algumas vezes, já faz um tempo, hoje em dia já está mais difícil de escutar este termo,
mais tranquilo. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).
Gostei muito da entrevista. Espero ter ajudado, fiquei muito contente pelo convite.
Porque uma pessoa às vezes da categoria V ela não tem convites, ela não é chamada
assim nem para as reuniões da escola às vezes a gente participa muito. Então eu fiquei
agradecida pelo convite. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).
Não é foco da sua pesquisa, mas na rede municipal as condições de salário elas não
são ótimas, mas elas são razoáveis. Na rede estadual que é seu foco as condições são
lamentáveis. A palavra que eu tenho é essa: elas são lamentáveis. O professor que
chegou agora ou há poucos anos e ele tem lá a sua jornada de 40 horas por semana,
ele vai tirar um salário líquido de 2.500, 2.600 reais. Se a escola tiver aquele benefício
de vulnerabilidade social talvez chegue a uns 2.800 de salário líquido. É uma situação
que se você for mais pragmático não dá para esperar que seja um bom resultado o
trabalho desse professor. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
Os efeitos psíquicos e corporais que o professor João nos relata são a sensação de
cansaço. Uma de nossas hipóteses é a constância desse cansaço produzir, ao longo do tempo,
no psiquismo e no corpo, um efeito traumático, pelo processo de acumulação que desencadeará
toda ordem de sintomas.
O que eu sinto vez por outra é cansaço. É uma atividade que deixa você muito
cansado, muito desgastado. É mais assim precisar procurar um especialista, tomar
alguma medicação ainda não tive estes momentos. As vezes uma dor muscular aqui,
outra ali. Você toma um dorflex, mas eu tenho quase certeza de que são dores causadas
por este estresse, este cansaço. Agora tem colegas que precisam de ajuda. (Professor
João, categoria A, 13 anos de magistério).
O professor João nos coloca uma experiência que aconteceu no retorno das aulas
presenciais, no último período da pandemia. As restrições a tal retorno limitaram o número de
estudantes que, segundo o professor, permitiu um trabalho com mais qualidade. A situação de
exceção admitiu uma forma de trabalho em que há possibilidades de tornar o mal-estar docente
uma experiência de fato criativa pelas condições de trabalho.
Essa experiência da pandemia tem sido até curiosa, depois que eu voltei pro trabalho
presencial de junho para cá as minhas salas de aula não tem mais que 15 alunos. Eu acho
que deve ser a primeira vez nestes meus 10 a 15 anos de magistério que no dia a dia eu
consigo dar aula para 5, 10, 15 alunos e eu consigo com calma ouvir uma dúvida deles.
Eu consigo com calma escutar eles, ler. Apesar dos protocolos, mas você vai lá com
cuidado, pega o caderno deles, dá uma lida. Então tem esta questão da jornada, tem a
estrutura. Você coloca muitos alunos numa sala. O nosso público, eu falo da escola
pública, mas eu nunca dei aula em escola particular, mas eu suponho que uma criança que
vem de uma família de classe média ela tem um pouco mais de condição de acompanhar
a escola. Eu sei que tem problemas, mas há um pouco mais de condições quanto a isso, os
nossos não dá para ter sala com 30, 35 alunos porque você precisa de uma atenção
individual maior. Os governos colocam de 30 a 35 no dia a dia. Além disso tem problemas
do tipo tecnológicos. Agora eles começaram a instalar projetores em sala de aula. Isso na
escola municipal. Na escola estadual o projeto não são projetores, são televisores. Na
escola municipal a situação da estrutura tecnológica é da seguinte maneira: eles instalaram
projetores no teto, das 18 salas de aula que nós temos, instalaram as caixas de som, mas
não colocaram os computadores de mesa, os desktops. Então cada professor tem que vir
com o notebook. A verdade que eles emprestaram o notebook da secretária de educação.
Toda aula você tem que ficar conectando. E dá problema isso, cabo quebra, enfim... é todo
um trabalho a mais se o professor quer dar uma aula diferenciada, ele tem um desgaste a
203
mais... não seria necessário se o governo melhorasse um pouco isso. A tecnologia resolve
tudo, não ela não resolve, ela não é tábua de salvação, é um elemento dessa conjuntura.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
A professora Ana aponta que, a depender das localizações e regiões de São Paulo e do
interior de São Paulo, pode se ter 40 estudantes numa sala de aula.
Eu acho que aqui tem uma quantidade muito grande de aluno. Eu antes de dar aula na
escola que estou eu dei aula em uma outra em São Paulo e era a mesma coisa. Acho
que até mais alunos, e aí eu perguntei para outros colegas que dão aula aqui na região
da B, e eles falaram que é a mesma coisa, 38, 39, 40 alunos por sala. Lá em I. era 30,
28, 26. Lá em I. era tão... também a desorganização do Estado, as salas não tinham
um padrão, foram feitas de qualquer jeito. Então tem sala que cabia 40, tinha sala que
cabia 25. Então era bom para gente porque tem menos alunos, aqui tem mais. É um
impacto maior. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
(...) a questão financeira, estabilidade, é muito ruim. Porque por exemplo, eu comecei a
trabalhar em março de 2014 eu só fui receber meu primeiro salário em maio. Porque o
eventual é dois meses na frente, e a gente não tem direito ao vale alimentação que é
pouquíssimo, uma vergonha, 12 reais por dia. Mas pelo menos é um a mais. O eventual
não tem direito. As férias, como você não dá aula, você não recebe, aí eu fico 2 meses
sem receber. Em dezembro os professores não faltam então você acaba não dando aula
em dezembro. São 3 meses que você não tem salário, são os meses referentes a julho e
janeiro. E em dezembro teoricamente você também não recebe porque você dá
pouquíssimas aulas. Então eventual é muito ruim, porque você não tem estabilidade,
tem menos ainda, categoria O já é ruim, o eventual é pior ainda por conta que você fica
muitos meses sem receber. Eu fui gestante eventual, eu tive como licença maternidade
um salário-mínimo, porque eu não tinha aulas atribuídas então eles não faziam menção
das aulas que eu tinha. Então eu recebi um salário-mínimo por mês na minha licença
maternidade. (Professora Luana, categoria O, oito de anos de magistério).
Sim, é ruim eu fazia parceria com alguns professores para ser um pouco melhor para
mim, então por exemplo eu fazia parceria com o professor de Ciências, com o professor
de Biologia, e eles falavam que o que eu desse em sala de aula iria valer um ponto para
mim. Então eu ia fazendo estes combinados, mas é porque eu estou te falando porque
eu eventuei em escolas que tinham esta abertura pro eventual. Mas tem colegas meus
que contam que não tinham respeito nenhum. Inclusive eu tive ensino médio, minha
disciplina Química é ensino médio, mas eu fui pegar Química agora, este ano, foi a
primeira vez que eu peguei química. Então quando eu eventuava no ensino médio era
muito ruim, eu eventuava em duas escolas. Eu eventuava em duas escolas de manhã, eu
eventuava no ensino médio e a tarde, eu eventuava no fundamental. O período da manhã
era horrível para mim, porque eu me sentia péssima na sala do ensino médio, muito
204
O professor Luiz nos relata a respeito de professores que vão buscar outras formas de
trabalho ao comentar sobre o valor social de ser professor. Trabalhar como Uber parece que
tem sido os caminhos de alguns professores. Diante da precarização do trabalho, de fato, se
diminuem as distinções de um professor categoria V, eventual, categoria O ou mesmo F do
processo de Uberização132 do trabalho.
(...) se você conversar com motoristas de aplicativo, Uber, inclusive eu já rodei com
professores também. O cara estava fazendo Uber para complementar a renda dele. Era
professor categoria O inclusive. Tem um discurso recorrente de que o professor, a
profissão do professor é a mais importante de todas. Só que quando você olha a nossa
estrutura de trabalho não é a profissão mais importante de todas. Tanto em termo de
remuneração, até também da própria estrutura material de muitas escolas. Até o ano
passado, 2020 para 2021, você tinha 800 escolas que não terão condição de começar
o ano em São Paulo, operacionais, é fiação, é esgoto a céu aberto. (Professor Luiz,
categoria F, 15 anos de magistério).
132
Um artigo (VENCO, 2019) que joga luz sobre esse processo de “Uberização do trabalho” e investiga se os elementos
novos de contratação, flexibilização e precarização do trabalho pode ser comparado ao trabalho e contratação dos
professores da rede estadual de ensino de São Paulo. A conclusão de Venco é que a rede estadual de ensino de São Paulo
estabelece formas de contração e precariedade do trabalho anteriores aos processos de uberização do trabalho. Ao fazer
um comparativo entre a uberização e a contratação na rede estadual de ensino, Venco nos traz que: “Nesse sentido,
pondera-se ser relevante considerar as permanências acerca da precariedade nas relações de trabalho, bem como ressaltar
os aspectos efetivamente novos nesse fenômeno. O cotejamento desses profissionais aos professores não efetivos na
rede estadual paulista revela aproximações entre ambos, a despeito de exercerem atividades profissionais distintas.
Segundo a definição de Abílio, as justaposições de tal lógica transposta à realidade dos professores não efetivos,
sintetizadas no Quadro 2, resultam: (a) no cadastramento de estudantes em formação ou profissionais formados na
condição de temporários ou eventuais, nas diretorias de ensino e escolas, respectivamente, sem que haja um aplicativo
para isso; (b) na propagação de uma ideia de liberdade no trabalho, calcada pela autodefinição da própria jornada e do
ganho salarial obtido pelo trabalho por conta própria. Tal dimensão, compreende-se, consiste em uma falsa noção de
autonomia e independência, implica importante intensificação e carga do trabalho, com vistas a obter rendimentos
suficientes à sobrevivência. Cabe indagar em quais condições trabalhadoras e trabalhadores, configurados como a
‘classe-que-vive-do-trabalho’, logram vender sua força de trabalho com perspectivas de libertação. No caso dos
professores não efetivos, há, segundo depoimentos coletados, a busca incessante de alternativas nas escolas que
ofereçam maior tempo de permanência, ou seja: aquelas em que haja profissionais em licença-maternidade, licença-
prêmio ou afastados por doença, pois somente assim terão algum salário fixo para suprimento das despesas mensais para
sobrevivência. Essas justaposições resultam ainda (c) na criação de estratégias para contornar a concorrência entre os
motoristas: o carro limpo, a oferta de balas ou guloseimas, a simpatia. Entre professores, são aqueles que atendem às
demandas do trabalho prescrito, que contornam os problemas de insubordinação nas turmas e aceitam ministrar qualquer
disciplina, mesmo que distinta de sua área de formação. Segundo um dos entrevistados, professor não efetivo, ‘é bom
ser visto pela direção como um professor que não cria caso, que aceita qualquer desafio... eles sempre chamam a gente
novamente’ (professor-estudante). Por fim, resultam (d) na avaliação permanente dos motoristas, uma vez que o
aplicativo demanda do cliente o julgamento sobre a oferta: limpeza, polidez, trajeto etc. No caso dos professores, tem-
se a avaliação homogênea do aprendizado dos estudantes, mensurada por testes padronizados e atrelada às formas de
controle, que se sofisticam e se redesenham. A tentativa de prescrição do trabalho intelectual, por meio de cadernos cujo
texto é invariavelmente elaborado em tempo verbal imperativo, mais do que sugerir atividades, induz a condutas
didáticas e de conteúdo aos docentes. Ressalte-se que, apesar de ilógico, os professores não efetivos são igualmente
alvos das pressões sofridas pelos demais, no alcance de resultados nas avaliações, uma vez que a lógica da política
educacional se sustenta pelo adestramento dos estudantes na realização dos testes. As formas de resistência frente a esses
padrões existem, mas, entre os intervalos de realização das pesquisas, apreende-se uma adesão à norma, mesmo que
entre alguns haja pesar. Há, portanto, elementos congruentes entre ambos que permitem afirmar que a uberização não
traz em seu bojo uma face totalmente inovadora.” (VENCO, 2019, p. 8).
205
A professora Denise fala de seu trabalho como um “extra”, “um plano B”, visto que ela
acumula sua jornada com o trabalho em um escritório de contabilidade. Se dependesse do
salário como professora para se manter, teria muitas dificuldades de viver.
Mas dá para ter um extrinha. No meu caso é um plano B, é um extra. Mas no caso se
você depende deste salário para pagar as suas contas, para ter seu sustento. Se fosse eu
só trabalhando como eventual eu teria uma preocupação na minha vida. Será que o mês
que vem vai dar para pagar todas as minhas contas? Será que mês que vem eu vou ter
um dinheirinho para comprar uma roupa mais, algo que eu esteja precisando na minha
casa, um eletrodoméstico que quebre ou numa enfermidade que precise? O dinheiro é
bem justo. O cargo de eventual ele é um cargo em que você nem tem um salário fixo.
Porque tem mês que você ganha mais, tem mês que você ganha menos. Pela quantidade
de aulas que você pega. Então é um cargo para você aceitar ter ele você tem que gostar
muito da área da educação. Você tem que passar por ele primeiro para depois ir ingressar
nas outras categorias no caso do estado. Se possível se for o meu caso ele ser um plano
B ou você se sujeitar a viver nessa. Um salário que é incerto, um mês é mais outro mês
é menos. E batalhar se fosse o meu caso só ser professora, se não tivesse o escritório
com certeza eu batalharia de fazer um meio a meio. Um pouco eventual e batalhar por
um pouquinho de aula categoria O, pegar umas aulas online, ter um pouco mais de aula.
(Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).
Não podemos desconsiderar a dimensão do horror no espaço escolar. Sob a alta intensidade
do mal-estar que se produzem a indiferença, a desafetação, o cinismo, as cisões do Eu como
mecanismo de defesa. O professor Luiz relata sobre o horror de uma experiência que viveu:
Tem uma escola que trabalhei este ano que não vou citar o nome, mas se você quiser
você pode digitar no google a matéria, tinha um corpo de cadáver estendido do lado da
quadra. As aulas continuaram normalmente, as crianças do prédio elas conseguiam ver
o cadáver. Até a polícia cientifica chegar ali, isolarem, fazerem a perícia, recolherem o
corpo foram horas. Aí ficou naquelas, será que as aulas tinham quer ter continuado ou
será que era para ter interrompido? Mas como você dá aula normalmente com um
cadáver alguns metros da sua sala, estendido ali no mato. Sabe então não, a nossa
profissão não dá para dizer que ela é materialmente valorizada, talvez no imaginário das
pessoas seja. Mas o tratamento que a gente recebe não. Nós somos chamados de
vagabundos o tempo todo, de parasitas, que a gente está no bem bom. Olha quantas
férias vocês têm por ano. Que este ano que de 2021 para 2022 tomamos umas picotadas.
Depois eu preciso ver como ficou dos dias letivos e recesso. Então não, nossa profissão
não é valorizada. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
É difícil descrever essa cena, um corpo morto ali próximo à quadra na escola. O olhar
de espanto, de horror, de indiferença, da vida que segue.133 O professor Luiz se pergunta se
deveria haver aula naquele dia. Uma pergunta que, no mínimo, nos faz pensar se ela deveria
existir, e só existe porque parece que os professores estão se acostumando às várias violências
diárias de todas as ordens. Essa seria só mais uma para matar no peito e seguir em frente?
133
Esta cena nos lembra de duas músicas, “De frente pro crime” de João Bosco e Aldir Blanc e “Construção” de
Chico Buarque, na qual um corpo encontrado morto de um trabalhador pobre, ora atrapalha o tráfego de sábado ora
é apenas um detalhe no cotidiano dos bairros periféricos e da cidade, evidenciando que a naturalização da violência
e da morte na dinâmica social não é tão recente e nem tão “desviante” da nossa sociabilidade histórica brasileira.
206
O professor Fernando nos relata sobre suas impressões em relação às condições de trabalho
e das experiências de mal-estar destrutivo vividos na escola. Demarca essas condições como
“insalubres” e a escola como a expressão de uma “cadeia”. O professor vai sendo marcado no seu
psiquismo e no seu corpo como um dos “prisioneiros”, sob esses códigos de sobrevivência. Associa
sua experiência na educação da rede estadual com o tempo em que trabalhou na Fundação Casa.
Precárias.... não só precárias, insalubres. Este ano eu dei aula numa escola que era um
canteiro de obra. Era pedreiro, junto com estudante, pintando com tinta tóxica a
escola, quebrando com britadeira com corredor e você dentro de sala de aula. E não
pode fechar a porta por causa da covid. Eu falo mano vocês estão malucos? Não era
nem para a gente estar aqui, a escola está em reforma. Reforma essa inclusive que é
muito mais para gringo ver. (...) Escola ficou insalubre, é insalubre. E assim quando
não tem este caso, que é o caso da reforma e tal, é insalubre. Você trabalhar dentro de
uma cadeia é insalubre. Todo mundo que trabalhava na Fundação Casa trabalhava
com ONG. A ONG pagava 6 meses para você ficar em casa, fica em casa não faz
nada. Não faz nada, este aqui é o psicólogo doutor tal. Você vai lá fala com ele, fala
das suas coisas, o que está passando, como está o seu trampo. Porque não tem como
você trabalhar 5 anos, 2, 3 anos direto dentro de uma cadeia. Se fica ruim da cabeça.
Onde a gente trabalhava eu pensava nisso. Tinha arte-educador que estava 11 anos
que estava trabalhando com moleque dentro da cadeia. O cara já se sentia um dos
internos. Era foda. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
Na estadual que é o foco da sua pesquisa pelo eu entendi a situação é ainda mais precária.
Eu retornei ao trabalho presencial na prática no dia 1, 2 de agosto e eu retornei sem
energia elétrica na escola. A escola estadual fica numa área um pouco deserta aqui no
bairro. Ela fica dentro de um terreno que era uma antiga pedreira no M. E estava sem
caseiro e o governo estadual não paga vigilante para cuidar da escola. Resumindo a
escola sofreu uma meia dúzia de ataques durante a noite. A polícia acabou prendendo o
rapaz, coitado. Tinha saído da cadeia há pouco tempo, usuário de drogas, e ele entrava
na escola para arrancar tudo que é metal, tudo que era ferro da escola para revender em
ferro velho. Para ter uma graninha, nisso ele foi arrancando a fiação, arrancou os
disjuntores, arrancou as tomadas, arrancou o conduíte e bom se alguém um dia escutar
esta gravação no futuro vai achar estranho. Mas a verdade é que nós passamos o mês
inteiro de agosto sem energia elétrica na escola e dando aula. Nós dávamos 1h30 de aula
de manhã, ali entre 8h30 e 10h da manhã, aproveitando a luz do dia. Os alunos que iam
tinham essa 1h30 de aula, tomavam um lanche e voltavam para casa. Ainda hoje não
arrumaram 100% a escola. E devido este receio de assalto os televisores que chegaram,
que eram para serem instalados nas paredes da lousa para pode usar, pra projetar uma
imagem, outros são televisores bem grandes, mais de 40 polegadas, estão guardadas nos
depósitos da escola, numa sala cofre. E enfim, falta energia, você continua tendo
basicamente uma lousa, um giz. Eu não sou religioso, mas costumo brincar que graças
a Deus pelo menos o livro didático nós recebemos, porque eu também não posso
imprimir coisas porque não tenho condições estruturais para isso. Então quando eu me
refiro as condições de trabalho é um pouco isso. As jornadas são muito intensas para o
professor ter um salário próximo da classe média, ele tem que ter duas jornadas de
trabalho pelo menos. O que atrapalha o trabalho dele, porque ele vai ter que dar aula
207
correndo. Não tem tempo suficiente para corrigir coisas, para dar atenção adequada para
os alunos. E quando ele quer fazer algo diferente, no geral ele tem que se virar. Ou ele
compra projetor ou ele compra caixa de som, ou ele vai atrás de doações. É um pouco
nesta perspectiva. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
Como ter energia nessas condições? Energia libidinal, psíquica, mas também energia
elétrica na escola para ela poder realmente funcionar com o mínimo civilizatório exigido.
Esperamos, como o professor João, que as pessoas que escutem esta gravação ou leiam sua
transcrição achem no mínimo “estranho” uma escola funcionar sem luz por um mês. Se isso
não produz um mal-estar completamente destrutivo, regressivo, daquilo que minimamente
podemos pensar numa escola em 2023, é porque, certamente, a barbárie se instalou de tal modo
na sociedade, sua indiferença se estabeleceu de tal maneira, que situações assim se tornaram
completamente banalizadas. Não nos parece acaso o professor João convocar uma “ordem
divina” mescladas as resistências próprias ao humor, que mobilizado pelo desamparo de
situações bastante precárias, “costuma brincar que ‘graças a Deus’ pelo menos receberam o
livro didático”.
O professor Pedro e a professora Ana relatam a desconexão entre a responsabilidade do
trabalho e o salário, assim como a não perspectiva de futuro, de melhora, visto que os planos
de carreiras na rede estadual são burocráticos, baseados em prova meritocráticas e restritos, e
que em nada valorizam o professor.
Eu avalio minhas condições de salário e trabalho pensando no que eu tenho que fazer,
na minha responsabilidade, eu acho minhas condições de trabalho eu não diria
precárias, mas são bem complicadas e a remuneração é um fator bastante desanimador
(Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
Eu acho que as condições de salário são péssimas no Estado. A gente não tem um
aumento significativo desde 2014 se eu não me engano. E nem tem, eu acho que a gente
pode ser que tenha uma coisa por causa do... pelo que entendi 2019 teve, 2020 teve por
causa do piso nacional, o piso nacional ultrapassou o salário da rede estadual.
Principalmente dos professores que tem mais aulas, tem 32 aulas, jornada completa
então o governador aumentou, mas ele aumentou como abono, mas eu não recebo
porque eu não tenho 32 aulas. Mas eu conversando com os colegas eles disseram que
aumentou só por causa disso. Então pode ser que aumente alguma coisa se o piso
nacional for reajustado. Mas o salário é péssimo e as condições de trabalho, o plano de
carreira do Estado é ridículo. Se faz uma pós-graduação e você ganha 70 reais de
aumento. Eu sou 2C no estado já e eu tenho dois quinquênios, eu tenho duas evoluções
por via não acadêmica e uma prova de mérito. E meu salário é basicamente dois salários-
mínimos. Para dar 20 aulas por semana, mais de 200 alunos. Então é uma situação, a
gente não tem perspectiva que o plano de carreira melhore, porque ninguém nunca fala
disso, e porque aquela prova de mérito que faz para ganhar 10% de aumento, tem ano
que tem, tem ano que não tem. Eu fiz em 2012 passei e eu consegui este aumento. Aí
eu podia fazer de novo em 2016, mas em 2016 não teve porque o governo não quis fazer
do nada. Não vamos fazer, aí depois teve em 2018, só que eu não quis fazer porque você
vai perdendo a vontade também. Para ganhar 10% de aumento fazer uma prova, que é
uma prova difícil. É tipo um concurso público, uma prova da Vunesp, com 50 questões,
208
mais duas questões dissertativas, tem que tirar no mínimo 6, agora tenho que tirar no
mínimo 7 na prova. Cada prova que você passa você tem que tirar nota mais alta. Como
você não tem estímulo, e nem tem tempo para estudar, não preciso. Pode passar a prova,
não quero. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Salário é péssimo porque se você paga aluguel, hoje o aluguel num lugar bom 1.500
reais. Isso quarto, cozinha, não é bom, eu quero morar num lugar adequado onde tem
infraestrutura tal, 1.500 reais. E o que você vai fazer se você ganha 2.800, o que você
vai fazer com o resto? Comer! Você não vai pagar um benefício para você. Não tem
condições. Na minha idade uma assistência médica é mais de mil reais. Passou de 50
anos é mais de mil reais. Qualquer coisinha de assistência médica, qualquer um que
eu já fui atrás, uma Unimed da vida me cobrou 1.200. Uma Sulamérica me cobrou
dois mil. Meu eu só tenho 52, é mas é assim. Então você não faz nada com seu salário.
Professor ainda tem que tirar dinheiro do bolso para ajudar aluno. Que já aconteceu
comigo, então não tem valor nem financeiro nem moral. Não, não existe. (Professora
Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
Na minha escola por exemplo a gente tem 40 alunos por sala de aula. Então é muito
cansativo, além de ser a tarde, certo de que posso mudar de período, mas pela minha
classificação sempre ficaria a tarde. A tarde é mais cansativa ainda, então eu não pretendo
ficar muitos anos nisso. Na verdade, eu queria ter exonerado há muito tempo, mas o
Iamspe me segura, principalmente o Iamspe pro meu pai que é o convenio médico.
Porque vontade de dar aula no Estado não tenho muita não. É uma questão financeira, é
uma questão pessoal. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
134
A nota técnica (2023) produzida pela GEPUD/REPU sobre os planos de carreira do magistério demonstram
que nenhum professor consegue chegar ao último nível da carreira: “Observe-se que o tempo de serviço deixou de
ser considerado na carreira, embora tenha sido mantido na forma de gratificação. Em 2009, esse plano passou por
uma mudança significativa ao prever como forma de progressão na carreira a avaliação de desempenho realizada
por meio de uma prova de verificação de mérito, o que incluiu 5 novas faixas além dos 5 níveis já existentes. Por
fim, em 2011, outra modificação ampliou a estrutura da carreira, que passou a ter 8 níveis e 8 faixas. Considerando
que o tempo mínimo exigido para avançar de um nível/faixa para outro variava de 4 a 6 anos, a carreira tem uma
amplitude muito grande, de forma que é impossível a(o) docente chegar ao final da carreira antes de sua
aposentadoria, o que é comprovado pelo número de professora(e)s por faixa/nível da carreira em maio de 2022
(último mês antes do início dos novos planos de carreira aprovados em 2022),” [Nota Técnica]. São Paulo:
GEPUD/REPU, 12 jun. 2023. Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e
www.repu.com.br/notas-tecnicas. Acesso: 12 de jun. de 2023.
209
Ah teve uma vez uma coisa simples assim, foi na prefeitura, eu estava num sexto ano.
Foi 2019. É uma coisa simples assim, mas eu estava no sexto ano e tinha um menino
que demorava para entrar na sala, e eu entrei na sala ele não estava, eu comecei dar
aula, fechei a porta tranquei deixei ele para fora. Ai depois veio a diretora e falou
assim: “Cadê o fulano?” Eu falei não sei. Eu entrei na sala, ele viu que eu estava aqui
e ele não quis entrar e eu deixei ele para fora. Ela falou assim: isso mesmo professora,
é para deixar para fora mesmo. Aluno folgado a gente resolve lá embaixo. Eu achei
isso maravilhoso porque trabalhei em muitas escolas que você tem que resolver o
problema. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
A professora se vê tão sozinha diante de 35, 40 estudantes que o amparo que pode ter é
a exclusão do estudante, do “aluno folgado”, por ela ou por outro. Essas situações de
indisciplina, de conflitos entre estudantes e professores são comuns nas escolas. São parte do
mal-estar docente, das relações transferenciais. Mas, diante de todo o contexto, resta à
professora produzir estratégias de defesa a todo tipo de mal-estar, porque ela não está isolada
de sua situação social como trabalhadora da educação.
Todos os fatos narrados pelos professores tratam do núcleo traumático do ambiente
escolar, que produz efeitos psíquicos e não podem ser tratados de modo contingencial. Estão
relacionados a dinâmicas econômicas e políticas do Estado de São Paulo e do Brasil, por
extensão, em sua relação com a educação pública.
O professor Fernando aponta que as políticas da atual gestão vão “moer” ainda mais os
professores. As entrevistas aconteceram no momento (outubro a dezembro de 2021) que o
governo Dória (PSDB) propôs a “Nova Carreira do Magistério”, na qual os professores
poderiam ganhar um aumento em forma de subsídio desde que perdessem direitos históricos
como sexta-parte, quinquênios etc. A nova carreira foi aprovada em março de 2022 na
Assembleia Legislativa de São Paulo.
210
(...) O que o Dória agora propôs é abdicar de todos os seus direitos como funcionário
público para começar ganhando 5 mil reais. Eu tenho certeza que muita gente vai fazer
isso. Que para muita gente direito não é nada. E quer dinheiro e precisa de dinheiro. Tudo
bem eu entendo, mas tem professor que está para aposentar lá que nunca vai ver a cor deste
dinheiro. Tem um professor que ele ganha 3.200 reais porque ele fez a provinha de mérito,
porque ele fez prova de não sei o que e ele ganha 3.200 reais. Falta 5 anos para ele se
aposentar. Isso é plano de carreira? Se é louco, isso é uma comédia, é uma tiração. Os
caras batem pesado no Estado. Aquilo lá é uma máquina de moer gente. Máquina de moer
gente, mói as crianças, mói os professores, deixa a gente só os farrapos. E de vez em
quando jogam uns negocinhos que quem pega se sente muito importante. Um carguinho
de direção, este o cara se sente muito importante porque está todo mundo tão moído, todo
mundo tão destruído. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
Não tem evolução, é horrível. Por isto que eu te comentei, pensei em tentar a
prefeitura. Eu não sei falar da prefeitura porque eu ainda não me aprofundei, mas meu
colega que trabalha falou que lá tem. Inclusive ele exonerou os dois cargos que ele
tinha do Estado, para levar o tempo para lá, porque ele falou que lá tem carreira. A
gente no Estado não tem carreira. Por exemplo, o quinquênio, não sei te falar
exatamente como que é, mas acho que você conhece. Eu não faço parte do quinquênio,
é o nono ano que eu vou lecionar, daqui a pouco eu teria dois quinquênios, mas eu
não faço jus porque eu sou categoria O. A gente não tem aumento de salário. A gente
não tem plano de carreira... (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
O professor Fernando, que teve seu contrato encerrado durante dois anos porque teria
ultrapassado cinco faltas durante um ano letivo, relata sobre a precarização do contrato categoria O:
135
Como indica a nota técnica (2023) da GEPUD/REPU: “Ao fazer a opção pela nova carreira a(o)s profissionais
do magistério deixarão de receber adicional por tempo de serviço. Se analisarmos o número de professora(e)s na
rede com quinquênios e com sexta-parte e se considerarmos que o valor obtido por esses adicionais pode ser parte
importante da remuneração final, como mostram as simulações anteriormente citadas, podemos inferir o tamanho
da economia que a nova carreira poderá representar para o Estado de São Paulo a médio prazo e, também, o
tamanho das perdas para a(o)s professora(e)s. Vale destacar: a nova carreira vem para economizar recursos e não
para valorizar a(o)s trabalhadores dedicados à educação escolar. [Nota Técnica]. São Paulo: GEPUD/REPU, 12
jun. 2023. Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e www.repu.com.br/notas-tecnicas.
Acesso: 12 de jun. de 2023.
211
A professora Vera corrobora com o professor Fernando e vai além, relatando que, na
atribuição de aula, devido ao desespero do desemprego, professores chegaram a falar que
poderiam tirar a própria vida – estavam pensando em suicídio.136
É isso que faz com que os professores busquem melhores condições de vida, às vezes
de salário somente para poder sobreviver. A falta de professores na rede estadual já é uma
questão estrutural. A saída de professores da rede é constante, inclusive para profissões que não
exigem ensino superior, mas que remuneram melhor. É o que a professora Vera pensa em fazer,
o que também gera sofrimento e um processo de luto pessoal a respeito de algo a que se dedicou
anos para se formar.
(...) eu não falei muita coisa positiva pra você porque eu estou cansada. Eu tenho
medo, medo bobo de que eu tenho que tratar, isso é tratamento. Medo de voltar para
o regular e não ser como eu queira que seja. Eu tenho medo de não desenvolver, mas
eu vou tentar. E se eu perceber logo no início que a coisa não vai virar, eu sou bem
capaz de abandonar sim e fazer outra coisa. Eu já estou pensando. Eu já estou
pensando numa segunda profissão. E já me deram um monte de ideias, mas aí vai sair
totalmente do acadêmico e a gente estudou tanto, tanto para não ser acadêmico e isso
é um sofrimento também para mim. E para um monte de professor. Eu vou te dar um
exemplo. Uma professora amiga minha cansou como eu, hoje ela trabalha vendendo
136
Em um modo de capitalismo em que o desemprego é cada vez mais estrutural, e produz um referencial às
condições de trabalho precarizadas e salários daqueles que estão empregados, analisar o destino e o sofrimento
daqueles que estão sem emprego somente de uma perspectiva isolada e individual é certamente produzir uma teoria
que corrobora com as ideologias dominantes liberais e produz desmentido social da dor dos trabalhadores. “Assim,
o desemprego é fundamental para o sistema capitalista, é estrutural, é parte do sistema, é necessário para a própria
existência e o bom funcionamento da máquina capitalista, evidentemente com índices flutuantes dependendo do
cenário produtivo a cada momento. E isso faz parte da elaboração necessária que cada trabalhador e sua família
precisam fazer diante do desemprego. De outra forma, a culpabilização do trabalhador e da trabalhadora pela sua
condição de desempregado torna-se mais uma das formas pelas quais ele é violentado e, quando a família culpabiliza,
ela no mais das vezes reproduz em seu interior a violência social.” (MANDELBAUM; RIBEIRO, 2017, p. 43).
212
produtos no mercado livre. Tá ganhando dinheiro? Mais que eu. Ela está feliz. Só que
é trabalhoso, ela se levanta de manhã fica em frente do computador. Como a empresa
dela cresceu, cresceu que ela também não tem muita paz mais. Ela só sai do
computador 20h da noite. Porque ela tem que atingir aquele objetivo porque é uma
meta do mercado livre porque senão ela sai fora, ela é cortada. Eu fui lá pessoalmente
ver, mas é uma opção. Trabalha ela, o computador e os produtos que ela vende. Mas
ela falou que prefere assim por mais que ela seja perturbada por aquele gestor que é o
mercado livre que também tem gestores. Mas pelo menos ali é cara a cara, não tem
alunos, não tem gestão escolar. É outros quinhentos. Então eu como professora eu tô
falando que estou observando e analisando outro contexto para eu mudar minha vida
de educadora. Porque agora professor virou educador. Isso é um erro também tá.
Professor ensina, o educador educa. E normalmente quem é o educador são os pais.
Não são os professores. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
137
Lenin aponta que o imperialismo representa o estágio avançado do capitalismo pelos seguintes fatores: “1.
Concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios,
os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2. A fusão do capital bancário com o capital
industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro da oligarquia financeira; 3. A exportação de capitais,
diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4. A formação de
associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5. O termo da partilha
territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase de
desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada
importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha
de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes.” (LENIN, 2005, p. 90).
138
Freud (2014h), em Introdução a psicanálise das neuroses de guerra, de 1919, comenta sobre o Congresso de
Budapeste (1918), e que há um receio de que os “adversários da psicanálise” aos quais teriam “aversão à
sexualidade” como categoria de análise dos sintomas, questionassem a partir das neuroses de guerra a própria
psicanálise – no que pese Freud discutir neste texto as formas de divisões do Eu que o indivíduo produz para dar
conta do fator externo atual relacionado a guerra. “Nas neuroses traumáticas e de guerra, o Eu do indivíduo se
defende de um perigo que o ameaça desde fora, ou que é corporificado numa postura do próprio Eu; nas neuroses
de transferência, o Eu toma sua própria libido como um inimigo, cujas reivindicações lhe parecem ameaçadoras.
Em ambos os casos o Eu teme ser ferido: neste último pela libido; naquele, pelos poderes externos.” (FREUD,
2014h, p. 387-8). Pensamos o quanto este “fantasma” do que é ou não psicanálise, constituiu uma forma de ser
dos psicanalistas e, em certo sentido, empobreceu a produção do saber psicanalítico. Ao longo da história do
movimento psicanalítico, percebemos como o ódio a quem está fora, a própria diferença, ligaram os grupos de
psicanalistas, naquilo que Freud denominou como “o narcisismo das pequenas diferenças”.
139
Interessante observar que Handlbauer aponta que, no que pese alguns equívocos de Adler nas divergências com
Freud, Adler antecipou, por outro lado, muitas questões que Freud iria tratar posteriormente. Adler conseguiu este
feito porque atendia pacientes distintos, de origem pobre, ao contrário de Freud neste momento de sua Clínica. “A
investigação de Wassermann acerca das histórias médicas e da classe social dos pacientes de Freud e Adler
(discutido na página 167) descobriu que 74% dos pacientes de Freud pertenciam à classe alta e 23% à classe média.
Por outro lado, para Adler mostrou que 25% eram da classe alta, 39% da classe média e 35% da classe pobre. Este
quadro corresponde com a minha própria pesquisa (vejam página 168). Durante esses anos, Adler ainda trabalhava
como clínico geral; ele tratava de uma clientela de classe média com predominantes sintomas físicos. Seus
pacientes também apresentavam desordens neuróticas, mas ele ainda não tinha competência para estes males. Isso
só ocorreu depois do rompimento com Freud. Conforme sugeri no capítulo 6, o perfil de seus pacientes levou
Adler a ficar mais próximo dos efeitos da miséria social do que Freud. Se ocasionalmente Freud tratasse de alguém
como a filha de um hoteleiro de uma pequena hospedaria de montanha nas campinas alpinas (Katharina), ele
também tinha entre os seus pacientes duas das mulheres mais ricas da Europa (Emmy von N. e Cacilia M.). Freud
era o responsável por neuroses e tratava de uma selecionada clientela da classe alta, em condições nas quais suas
214
Congresso e buscou as raízes dialéticas do sofrimento humano, aos quais a virada epistemológica
de Freud e seus textos denominados “sociais” deram algum prosseguimento.
Nosso objetivo aqui não é aprofundar sobre os textos do Congresso de Budapeste, mas
apenas fazer alusão a algumas questões colocadas por esses psicanalistas, que são muito
significativas para refletir sobre o estágio avançado do capitalismo atual ou como ele convoca
e quais os efeitos, inclusive nos “cenários de paz”, das dimensões mais destrutivas humanas.
Ferenczi, no Congresso de Budapeste, discute sobre o peso da relação da sexualidade
infantil e dos traumas externos na dinâmica psíquica dos indivíduos.
A psicanálise assume uma posição intermediária nesta questão, que, com frequência,
Freud precisou expressamente. Ele fala de uma “série etiológica” na qual
predisposição e causa traumática figuram como valores recíprocos. Uma baixa
predisposição e um forte abalo podem ter os mesmos efeitos que um trauma menor
com uma predisposição maior. (FERENCZI, 2023, p. 55)
O histórico dessas pessoas e sobretudo, obviamente, uma análise mais profunda nos
permitiriam entender por que uma pessoa permanece substancialmente saudável ainda
que sob os efeitos físicos e psíquicos mais severos da guerra, enquanto outra reage com
uma grave neurose a estímulos relativamente menores. Com frequência, os neuróticos
de guerra já eram, antes do trauma, pessoas lábeis – para usar um termo genérico –
especialmente no que concerne à sua sexualidade. (ABRAHAM, 2023, p. 69).
Refletimos, a partir do texto de Abraham, sobre se não há, mesmo nos indivíduos que
se apresentam “saudáveis” na guerra ou fora dela, aquilo que muitos autores apontaram
teorias da neurose podiam ser desenvolvidas sem consideração dos problemas sociais. (...) O que Freud não podia
enxergar era que Adler confrontou-se com pacientes com graves desordens em estágio inicial de desenvolvimento
e síndromes psicossomáticas para as quais sua situação profissional não era privilegiada e onde instintivamente
Adler agiu corretamente: nenhuma análise extensa que favorecia a regressão no divã. Em vez de trazer à tona
material inconsciente e interpretar sonhos e lapsos, ele se concentrou sobre medidas para fortalecer o ego, em
efetiva psicoterapia de suporte. Com seus conceitos de ‘sentimento de inferioridade’ e do ‘esforço por admiração’,
Adler descreveu muitos anos antes de Melanie Klein, Heinz Kohut ou Otto Kernberg, os conflitos narcisistas, ou
seja, as desordens pré-edipianas, e, desta forma, estudou um campo que Freud havia negligenciado. É notável a
forma como Adler intuiu mudanças de técnica e de cenário, necessários para o tratamento de pacientes com
desordens em estágios iniciais e que anteciparam algo do que é encontrado nas teorias psicanalíticas modernas a
respeito de conflitos narcisistas e desordens limítrofes (Borderline).” (HANDLBAUER, 2005, p. 193-4).
215
posteriormente e que não estava de forma clara caracterizado naquele momento, que são as
cisões e clivagens do Eu. O próprio Freud (2010h) observa sobre isso, em Introdução a
psicanálise das neuroses de guerra, texto de 1919. Isso é claramente um legado conceitual
deste período. Observamos, na construção da dissertação até aqui, que, mesmo indivíduos que
não apresentam formas de adoecimento drásticas ou paralisadoras, estão sob alguma forma de
adoecimento e respondem à realidade social cindidos, adaptados e funcionais.
Ernst Simmel, em sua comunicação no Congresso, assevera sobre o elemento da
autopreservação contido no adoecimento como um mecanismo psíquico de defesa de uma
realidade social intensa, traumática:
Acrescentaria ainda uma palavra sobre a doença mental da neurose de pensão genuína.
Também aqui a interpretação dos sonhos especialmente na hipnose, nos permite
conhecer se temos diante de nós uma psiconeurose de guerra real ou “representações de
cobiça” conscientes, muitas vezes falsamente acusadas. Descobri que a verdadeira
neurose de indenização ou pensão representa uma espécie de neurose de inferioridade.
O doente valoriza-se mais do que se sente valorizado por aqueles ao seu redor.
Geralmente, ele acredita ter conquistado algum feito militar especial. Ele acredita que
receberia, em algum momento, uma distinção ou, pelo menos, uma promoção. Mas
permanece privado delas. Uma doença ou ferida acaba por distingui-lo da massa geral
216
140
O artigo de Fabris (2018), A pedagogia do herói sob as performaces das políticas contemporâneas, discute como
o Ocidente constrói a imagem do herói na cultura, mas também como o neoliberalismo se apropriou desta imagem e
transformou o “herói” no “empresário de si”. “A pedagogia do herói não circula apenas em filmes, como expressa a
epígrafe escolhida para iniciar este texto. Faz-se cada vez mais intensa, no momento atual na sociedade brasileira,
essa forma de exercer a docência e de se constituir professor ou professora a partir de diferentes, variadas e altas
performances. Em uma pesquisa publicada anteriormente por Fabris (1999), em que foram analisados filmes
hollywoodianos, identificou-se que a pedagogia do herói era a mais recorrente nessas películas. Hoje vejo que essa
pedagogia extrapola os filmes e que foi identificada e descrita também em outras pesquisas, como a de Oechsler e
Silva (2012), que analisaram a Revista Nova Escola, a de Vicentini e Alves (2012), na revista Veja, ou o estudo de
Fischman (2009), que considera os limites e as possibilidades das narrativas redentoras em educação. Esses estudos
são unânimes em mostrar o professor descrito como um herói. É notório que práticas docentes com essas marcas de
heroísmo e salvacionismo estão circulando na constituição do ser professor ou professora no Brasil, bem como em
outros países/regiões, e estão presentes nos diferentes artefatos da cultura contemporânea.” (FABRIS, 2018, p. 205).
217
sacrifica seu tempo e vida por uma causa.141 É um efeito colateral e sintomático da precarização
do trabalho e do declínio simbólico da profissão como experiência, como práxis.
Por fim, a comunicação de Ernest Jones, no Congresso de Budapeste, visa construir uma
relação mais dialética das causas internas e externas nos processos de adoecimento:
141
Enquanto escrevo esta dissertação tivemos a tragédia na Escola Estadual Thomazia Montoro, no dia 27 de
março de 2023, na qual um estudante da escola, armado com uma faca, invadiu a sala da professora Elizabeth
Tenreiro, 71 anos, e a esfaqueou, ocasionando sua morte. A professora, que já era aposentada em outro trabalho,
optou por fazer uma prova na rede estadual e lecionar. As câmeras da sala de aula registraram todo o ocorrido que
teve repercussão em mídias de muitos países. Uma senhora de 71 anos já aposentada continua trabalhando em um
ofício que exige demasiadamente psíquica e corporalmente, em uma escola com câmeras na sala de aula. Os
veículos de comunicação divulgaram que a professora continuava trabalhando porque tinha uma “missão”, lutava
por uma causa da educação. Segundo sua filha: “Ela era uma pessoa dedicada a lecionar, como propósito de vida.
Ela achava que ela tinha essa missão, em um país com tanta falta de educação, se ela pudesse mudar a trajetória
de um aluno, ela já ganhava com isso. Ela era muito querida por onde ela passou.” G1. “Professora que morreu
em ataque tinha 71 anos e lecionava ‘como propósito de vida’, diz filha”, 27 mar. 2023. Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/27/professora-morre-vitima-de-ataque-em-escola-na-vila-
sonia.ghtml. Acesso em: 27 mar. 2023. Para além das inclinações pessoais e políticas da professora, a forma como
a mídia constrói sua imagem nos revela o grau de abstração de sua relação com o trabalho docente e a escola.
Resta a imagem da mártir que lutava por uma causa, uma missão.
218
Ficamos com Freud nesta pergunta, visto que é um tema presente nas discussões sobre
a atualidade do mal-estar. É o que equivale a dizer que o Id determina todas as variáveis
subjetivas do indivíduo, em que o contexto não só do Eu, mas das dinâmicas sociais e de
repressão seriam apenas secundárias. E a isso se faz uma “visão de mundo”!
Os estudos sobre o racismo têm nos revelado quantas formas de retraumatizações foram
feitas por terapias ou mesmo atitudes sociais que produziam desmentidos da dor dos indivíduos,
que tratavam suas questões do trauma real ou da realidade social como “fantasias
persecutórias”, “delírios” no “modo benefício secundário do sintoma”.142
Continuaremos a seguir, pontuando sobre as dinâmicas sociais e repressivas que
intensificam o mal-estar de caráter destrutivo nos professores. A temática sobre as
possibilidades de autonomia do trabalho docente e o modo administrado de funcionamento
escolar comporão nosso próximo tópico.
142
A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, que recentemente lançou o livro A cor do inconsciente: significações
do corpo negro, relatou, em um evento do qual participei no Centro de Estudos Psicanalíticos, que, em umas de
suas primeiras terapias, quando trouxe episódios de racismo, foi-lhe sugerido que procurasse um psiquiatra por
estar com ideias, delírios persecutórios. Um desmentido da sua dor, que pode ser inclusive mais traumático do que
a própria experiência do racismo, caracterização que nos traz Ferenczi em sua teoria do trauma.
219
Professor Pedro.
143
Em seu livro Marx e a Técnica, um estudo dos manuscritos de 1861-1863, Daniel Romero (2005) discute as
categorias subsunção formal e real: “A partir da análise da subsunção, Marx desenvolve os conceitos de subsunção
formal e subsunção real. O conceito de subsunção formal designa a relação de dominação e subordinação do trabalho
frente ao capital do período pré-industrial, particularmente a produção de base artesanal e/ou manufatureira. O
trabalhador está subsumido ao capital na medida em que não possui meios de produção e é obrigado a se tornar um
trabalhador assalariado. No entanto, esta subsunção é ‘apenas’ formal, pois, nesse momento, a produção ainda é feita
sem a introdução de máquinas. Nesse sentido, o trabalhador ainda tem um grande controle sobre o ritmo e sobre o
modo de se produzir, pois detém o monopólio do conhecimento (saber-fazer) do processo de trabalho. Com isso, o
aumento da exploração do trabalho, em geral, se dá pelo aumento da jornada de trabalho. O conceito de subsunção
real designa a relação de dominação e subordinação do trabalho frente ao capital do período industrial. Nesse
momento, o trabalhador passa por um processo de expropriação do seu saber-fazer e cristalização desse conhecimento
em um processo mecânico e objetivo (as máquinas-ferramentas). O trabalhador passa a não mais ter domínio
completo sobre o ritmo da produção e, principalmente, sobre o modo de se produzir – e isso passa a ser ditado pela
maquinaria, a qual subsume realmente o trabalhador. Com isso, o aumento da exploração do trabalho pode se dar
igualmente pela intensificação do trabalho.” (ROMERO, 2005, p. 19, nota 2).
220
Sabemos que Freud atribui ao educar uma das “profissões impossíveis” sobre as quais
não pode haver um controle total, pois algo da ordem inconsciente, da pulsão, sempre escapa.
São exatamente tais possibilidades que abrem para a experiência singular e coletiva, tornando
o processo do educar criativo e único. A depender do modo de organização escolar, a riqueza
desse processo pode ser obstaculizada, pois o professor passa a ter seus modos de fazer e de
trabalho subsumidos pela racionalidade administrada.
Adorno (2020) não nega o papel que possa ter a administração no desenvolvimento
cultural. Reconhece, inclusive, que em determinados ramos da ciência ela é fundamental.
Pensamos que na educação, organizada por diretrizes nacionais, estaduais e municipais, um modo
de administração é necessário para atender e organizar minimamente as redes de ensino. Contudo,
notamos, pelos relatos dos professores, que o estado de abandono de algumas escolas em suas
demandas básicas, ou mesmo alguns processos que deveriam ser estabelecidos com normalidade,
como as atribuições de aula, por exemplo, refletem o precário modo de organização administrativa
do Estado na educação. Ou seja, a dimensão da administração que poderia existir para efetivar a
educação não é exercida; no entanto, a vida escolar é cada vez mais sufocantemente
administrada144. “Caberia desenvolver esse paradoxo da seguinte maneira: quando planejada e
144
Se depender do atual governo Tarcísio de Freitas essa prática tende a se aprofundar. Como noticiado na
imprensa (UOL, 09/08/2023: “SP repete Paraná e instala app sem autorização no celular de professores”) houve a
instalação de aplicativos nos celulares de professores e alunos sem autorização deles. “O governo Tarcísio de
Freitas (Republicanos) instalou um aplicativo em celulares de professores e alunos da rede estadual de São Paulo
sem autorização dos donos dos aparelhos. Educadores e estudantes da rede relataram que o aplicativo "Minha
Escola" foi instalado sem autorização em seus celulares pessoais desde terça-feira (8). O programa é usado para
alunos verificarem notas e faltas. A Seduc (Secretaria da Educação de São Paulo) disse, em nota enviada ao UOL,
que abriu um processo administrativo para apurar o caso. "A falha ocorreu durante um teste promovido pela área
técnica da pasta em dispositivos específicos da Seduc", afirmou. Professores ouvidos pela reportagem na condição
221
administrada, a cultura é danificada; quando relegada à sua sorte, entretanto, ela corre risco de
perder não apenas sua efetividade, mas também sua própria existência.” (ADORNO, 2020, p. 242).
O que Adorno traz nesta relação complexa entre administração e cultura, se analisarmos
de uma forma mais detida, é a expressão da condição do princípio de realidade, em que se
coloca a possibilidade do prazer relacionado às condições da realidade social. Esta relação é
muitas vezes de difícil equilíbrio e está sob determinantes históricos.
O professor João nos relata um pouco sobre essa relação conflituosa da autonomia do
professor diante das normas mais gerais, e sobre a própria estrutura material da escola. Relata
que a autonomia não pode ser apenas “o professor fazer o que ele quiser”. Há alguns processos
necessários quando se faz um trabalho educacional em uma escola, as quais passam pelo
esclarecimento do estudante sobre o que se está fazendo.
Eu consigo ter autonomia. Eu por exemplo nunca tive atritos ou problemas com meus
coordenadores. Passei por vários coordenadores pedagógicos efetivos, mas também
designados. Por algumas direções também, mas também por vários diretores. Tem
algumas escolas que a gente sabe que a gestão ela se posiciona de uma forma um pouco
complicada, mas no geral eu acredito que o professor tem autonomia sim. Ainda tem
pelo menos. Acho que há um projeto que visa tirar um pouco essa autonomia. É um
projeto que eu considero até sofisticado. Não acho que ele é simplesmente que o
professor vai ter que trabalhar com apostila ponto e acabou. Mas como eu falei eu nunca
trabalhei em escola particular, eu sei que a dinâmica nas particulares é diferente. Só que
também tem muito equívoco eu acho do que é a autonomia do professor. No geral eu
acho que os professores usam bem esta autonomia. Às vezes acontece um certo exagero
dessa autonomia. (...) Eu não entendo autonomia com o eu posso fazer o que eu quero
na sala de aula. Alguns colegas entendem que é possível fazer o que quiser no sentido
de que o cargo é meu, eu não devo satisfação para a sociedade. Eu acho que tem uma
relação de mão dupla aí, eu acho que autonomia tem que ser entendida com uma certa
liberdade do professor trabalhar sim só que de alguma maneira tem que ter
responsabilidade em relação ao que você vai entregar, tentar entregar para a sociedade
enquanto a isso. Mas enfim, sua pergunta de forma mais objetiva eu acho que tem
autonomia sim. Claro que nossa autonomia... por exemplo eu vou dar aula na escola
estadual, na prática o que eu tenho de apoio pedagógico de materiais para trabalhar? Na
prática eu tenho o livro didático do PNLD, não chegaram livros suficientes para os meus
três sextos anos, então nós montamos um kit que fica na sala de aula. E fora isso eu não
tenho acesso fácil a um projetor. Eu não tenho acesso fácil a imprimir atividades. Então
qualquer coisa que eu tente sair do livro didático ou da apostila, na prática não é somente
uma apostila como nós conhecemos na escola particular, mas um caderno de atividades
que é cheio de sugestões de QRs codes, links que às vezes o aluno não tem nem celular
(...). (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
de anonimato dizem se sentir intimidados e assustados com a instalação sem autorização. Também afirmam que a
situação fere a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). A instalação de qualquer aplicativo sem o
consentimento do usuário pode ser considerada uma invasão de privacidade e uma violação de direitos, diz Ana
Paula Siqueira, advogada especialista em direito digital e LGPD.” Disponível em:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/08/09/sp-instala-app-sem-autorizacao-celular professores.htm. Acesso
em 09/08/2023.
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responsabilidade social para com ela, pensamos que a autonomia está conectada a dimensões
mais profundas de si, inconscientes, relacionadas aos processos de identificações 145 . Além
disso, igualmente consideramos o que Adorno, citando Kant, designava por “menoridade”, na
qual “para se evitar um resultado irracional é preciso pressupor a aptidão e a coragem de cada
um em servir de seu próprio entendimento.” (ADORNO, 2006e p. 169). Assim, diz o pensador:
Talvez se possa ver o problema da menoridade hoje ainda por um outro aspecto, talvez
pouco conhecido. De uma maneira geral afirma-se que a sociedade, segundo a
expressão de Riesman, é “dirigida de fora”, que ela é heterônoma, supondo nesses
termos simplesmente que, como também Kant o faz de um modo bem parecido no
texto referido, as pessoas aceitam com maior ou menor resistência aquilo que a
existência dominante apresenta à sua vista e ainda por cima lhes inculca à força, como
se aquilo que existe precisasse existir dessa forma. (ADORNO, 2006e, p. 178).
Os determinantes históricos que fazem do modo administrado uma forma de controle total
em todas as áreas da economia e da sociedade interferem também no processo educacional, de
modo a tornar a experiência no espaço escolar padronizada, abstrata.
145
Segundo Adorno (2006e, p. 176-7), “o modo pelo qual – falando psicologicamente – nos convertemos em um ser
autônomo, e, portanto, emancipado, não reside simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade. (...) É o
processo – que Freud denominou como o desenvolvimento normal – pelo qual as crianças em geral se identificam
com uma figura de pai, portanto, com uma autoridade, interiorizando-a, apropriando-a, para então ficar sabendo, por
um processo sempre muito doloroso e marcante, que o pai, a figura paterna, não corresponde ao eu ideal que
aprenderam dele, libertando-se assim do mesmo e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas.”
223
É o que nos coloca o professor Fernando sobre as instalações de câmeras na sala de aula,
e sobre o processo de informatização nas escolas, que ganhou mais intensidade após o término
do isolamento social decorrente da pandemia, e produz um ritual próprio de cobranças e
trabalho externo à experiência do professor. A relação desses aparatos administrativos só pode
produzir uma sensação de persecutoriedade e desconfiança, de estar sendo vigiado 24 horas.
(...) Agora com essa informatização inteira, por exemplo, a gente tem que trabalhar o
dobro. E agora a gente trabalha sob vigilância. Esse ano colocaram câmera dentro da sala
de aula. Juro por Deus no Estado tem uma câmera dentro da sala de aula. Eu falei não,
onde eu estou? Esse ano eu passei mal. Passei mal! Vigiado, punido 24 horas dentro de
casa tendo que fazer live. Minha casa sendo filmada. Minha sala de aula sendo filmada.
Minhas aulas sendo assistidas por pais. Isso eu achei legal, porque todo mundo queria, “ah
vamos ver o maloqueiro vai dar aulas para os pais e vai se fuder e tal”. E os pais adoraram
as aulas, óbvio. Mas ainda assim é muito constrangedor. Porque o pai não está sentado ali
olhando para você. Ele está atrás da câmera. Sei lá Deus fazendo o que, se anotando, se
gravando, entende. É uma exposição sem fim. Além disso diário online. “Oh professor o
senhor não preencheu o dia tal, to vendo aqui”. Tudo virou “gameficação”, o burocrata
fica atrás do computador só jogando Playstation nas bolinhas vermelhas, amarelas. Ah
faltou um vermelhinho, pega um vermelhinho ali, fode o professor. Uma “gameficação”
para fuder a educação. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
O cenário descrito pelo professor parece, igualmente, dar o tom da sensação que os
professores têm em reuniões de formação ou pedagógicas, nas quais os profissionais que ali estão
para coordenar ou administrar só cobram burocracias, resultados ou metas quantitativas. A
impressão aparente é a de que esses profissionais não estão capacitados para uma discussão das
questões mais fundamentais da aprendizagem. A engrenagem do mundo administrado, que
certamente não começa na escola, mas numa série de cobranças e diretrizes nas várias camadas
da organização do Estado, torna os profissionais das gestões e coordenações pedagógicas como
executores das extensas atribuições burocráticas, meras peças dessa engrenagem, onde o centro
do seu trabalho é dar conta dessas tarefas como fim. “Os especialistas precisam exercer autoridade
sobre campos para os quais não poderiam ser profissionalmente qualificados, ao passo que sua
224
O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter autonomia
no seu trabalho como professora?
Eu acho que autonomia seria pelo tipo de aula que você vai lecionar. Então os recursos
que você vai utilizar, trazer o aluno como protagonista. Esse tipo de coisa. Não muito mais,
porque o Estado está bem em cima agora com este negócio do desenvolvimento do aluno.
Por exemplo, se um aluno não atinge o suficiente você tem que justificar demais o que
utilizou para ele não ter atingido. Então eu penso que autonomia é assim, os recursos que
você vai utilizar. Se vai usar tecnologia, se vai fazer uma roda. Se você avaliar... sair um
pouco da prova, do papel, avaliar o aluno ali no dia a dia. Esse tipo de coisa.
Você acha que você consegue desenvolver autonomia?
Neste tipo que estou te falando de preparar minha aula. Não ser aquela aula quadrada,
livros, lousa e caderno. Eu penso que eu tenho esta autonomia.
Mas você está dizendo que também tem as normatizações do Estado, também
tem um controle?
Isso também tem o controle. Agora com este diário digital a gente está bem
supervisionado. Agora é tudo na secretaria escolar digital. Diário, nota, falta, não tem
mais o diário de papel. Então está tudo ali, você tem que seguir as habilidades e
competências. Então estou falando, dentro do que é exigido, é estabelecido. Eu não
posso chegar lá e falar, olha hoje a gente vai fazer aula sobre ligação biônica, mas não
é daquela competência, não é daquela habilidade eu não posso. Eu tenho que seguir
dentro das habilidades e competências que está no cronograma.
Eu fico pensando que a realidade da sala de aula é muito diversa, as necessidades,
e aí já vir com alguma coisa determinada deve atrapalhar um pouco...
É você tem que seguir conforme a sala, fazer a sondagem, e ver como eles funcionam
melhor. Às vezes o que você preparou para um 1 A não funciona para o 1B, depende
dos alunos que você tem então é um pouco complicado você chegar, demora um pouco
para você ajeitar o seu jeito de trabalho.
E no fim você vai ser cobrada independente dessas particularidades...
Vou ser cobrada, o que você fez por aquele aluno, então é bem trabalhoso. Você tem
que ter diversas formas, porque às vezes funciona com um aluno e com outro não
acontece. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).
verdade, para tornar esse trabalho mais cansativo ao demandar uma forma de fazer na qual a
administração torna-se externa ao administrado.
A professora Vera, que trabalhou em um PEI, relata que o controle se dá pela observação
das aulas, pela construção de uma dinâmica perversa de controle entre a própria comunidade
escolar. E isso se intensificou na conjuntura política aos professores de “ciências humanas”.
Os diretores eles começaram observar mais o professor. Eles começaram a andar mais
ali nos corredores. Então quando ele ouvia alguma coisa ele entrava. Dá licença, batia
na porta lógico toda educação. Posso assistir sua aula? Que você vai pensar na hora?
Caramba, o que ela quer, o que ele quer? O que ele ouviu. E você sabe que era uma
perseguição. Porque depois eles vinham para conversar com você com muita
autoridade. E isso aconteceu não só comigo. Mas eu acho assim... principalmente os
professores de humanas. Nós fomos muito perseguidos. E somos até hoje. (Professora
Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
146
O que parecia uma política na qual as escolas PEI tem feito uma prática, com a publicação da portaria (DOE –
Seção I – 28/07/2023 – Pág.36), pelo atual governo do Estado de São Paulo, de Tarcísio de Freitas (2023-2026),
passa a ser uma política deliberada do Estado de controle das aulas dos professores. Segundo divulgado pela
imprensa: “Uma portaria estabelecendo a nova atribuição aos diretores foi publicada no Diário Oficial na última
sexta-feira (28). Segundo o documento, eles terão que produzir um relatório, com o que observarem das práticas
pedagógicas dos professores e encaminhar para a diretoria de ensino da região. A portaria não explica o que as
diretorias de ensino farão com os relatórios —se elas vão analisar as observações feitas a cada professor ou se
haverá algum tipo de penalização para quem não receber bons comentários da direção. Os diretores receberam
uma ficha em que devem preencher os "pontos positivos", "pontos de melhoria" e "combinados e próximos passos"
de cada aula assistida. Eles devem observar a interação dos estudantes com a atividade proposta, gestão do tempo,
metodologia e recursos usados, forma de comunicação e o clima da sala de aula. (...) A diretora de uma escola
estadual na zona leste da capital contou ter 130 professores em sua unidade. Para conseguir observar todos os
docentes, ela terá que gastar mais de 30 horas da semana acompanhando as aulas, sem contar o tempo gasto para
elaborar o relatório. Para ela, a nova determinação desconsidera a realidade e o tipo de trabalho desenvolvido pelos
diretores. Ela conta que dá suporte pedagógico e assiste às aulas de professores que estão com dificuldade ou
pedem ajuda, mas diz ser desnecessário observar a aula de todo o quadro. Márcia Jacomini, professora do
Departamento de Educação da Unifesp, diz que a medida impõe uma lógica de "administração de empresas" dentro
da escola e retira a autonomia tanto dos diretores como dos professores. "Não há nenhum problema do diretor
acompanhar as aulas dos professores, inclusive, isso é incentivado e já feito em muitas escolas. O problema é
tornar isso uma regra, com uma periodicidade que desconsidera as atividades do diretor, e ainda exigir um relatório
sem explicar o que vai ser feito com ele." "O que poderia ser um apoio pedagógico acaba virando mais uma
226
Uma das formas desta racionalidade se realizar de maneira mais efetiva é associá-la à
remuneração que, por sua vez, está atrelada às avaliações que o professor recebe. A professora
Vera disse que foi prejudicada em uma dessas avaliações e acabou não recebendo a bonificação
por resultados. Ela comenta que teve faltas relacionadas a problemas de saúde, atestados por
médicos, o que torna a relação de bonificações e adoecimento ainda mais prejudicial ao
professor.
obrigação para o diretor e mais um motivo de apreensão para o professor. A regra passa a impressão de vigilância
em sala de aula, o que não é bom para ninguém", diz Márcia.”
Fonte: Folha de SP, 02/08/2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/08/gestao-
tarcisio-determina-que-diretores-observem-aulas-dos-professores.shtml. Acesso em 04/08/2023.
227
Porque diretor, olha eu tive bons diretores, diretor ele sabe conversar. Então a gestão
que eu tive só sabe gritar e fala que é para professor não gritar na sala. Só que eles
gritam com a gente. Então assim chega na sala, você está com a porta aberta. Porque
agora tem que deixar a porta aberta. Não pode mais fechar a porta. “Professora você
não está vendo que o fulano está de boné ali atrás, você está deixando!? Não pode
ficar com boné!” Mas isso é jeito de falar comigo? De repente foi um minuto que eu
virei as costas o cara pôs o boné, não deu nem tempo de eu falar, mas ela viu. Em vez
de me chamar em particular ela grita na frente dos alunos. Aí minha aula acabou.
“Professora você deixa a fulana falar assim com você?” Ela é diretora. “E daí você
não vai fazer nada?” Gente, vamos continuar, “o aluno tira o boné vai.” Mas aí você
já acabou, acabou para você. Você não vê a hora que passa para você ir para outra
sala ou acabar o período. Então isso aconteceu várias vezes e é como eu te falei me
senti perseguida. Eu acho que quem elas gostavam mais talvez não teriam passado
por isso. Mas eu passei. Eu acabei saindo da PEI. Por isso que aquele dia eu não podia
te atender. Eu tinha que conseguir aula novamente no regular para meu contrato
continuar ativo. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).
A professora Ana diz que um fator importante para que se tenha autonomia é um grupo
de professores forte e organizado que consiga impor um modo mais autônomo de trabalhar,
visto que há direções que ora gritam com o professor para se impor, ora advertem formalmente,
ou mesmo fazem da “vida funcional do professor um inferno”.
O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter autonomia
no seu trabalho como professora?
Eu acho que sim, eu consigo, mas não são todas as escolas que a gente pode ter
autonomia. Essa escola que trabalhei perto de casa não tinha, outra que trabalhei na
prefeitura perto da minha casa também não tinha. Eu acho que autonomia quando o
professor tem liberdade, consegue desenvolver os projetos ou a sua aula sem
interferência, e com liberdade. Nessas escolas eu consigo, porque tem um grupo de
professores que é forte assim, nas duas escolas, que se impõe, e a direção também
respeita. Não tenho direções que são autoritárias, mas eu acho que em escolas em que
a direção é autoritária é bem complicado.
As interferências que você está falando são basicamente da direção?
Sim, têm que ter um padrão muito rígido. Ou seguir certas coisas, que eu acho que
atrapalha o andamento do trabalho do professor. Ou quando eles interferem diretamente.
Diretamente?
No meu caso nunca aconteceu, mas eu trabalho numa escola da prefeitura, não sei se
cabe na pesquisa, mas eu trabalhei em escola em que a direção dava advertência para
professor, porque sei lá o professor não conseguiu deixar a sala do que jeito que a
direção queria, que era organizada. O professor teve dificuldade com a indisciplina e
a professora foi advertida. Então quando você vê o colega sendo advertido por causa
disso, você fica receoso, fica tenso.
Você acha que no Estado isso também acontece?
Sim, eu acho que acontece, mas acho que as represálias eram outras, não eram
necessariamente uma advertência. Essa escola do Estado que trabalhei por exemplo,
eu sabia que a diretora ficava gritando com o professor. Fazer da vida funcional do
professor um inferno, então eles acabavam indo embora. (Professora Ana, categoria
A, 15 anos de magistério).
perturbações, como areia nas engrenagens da maquinaria; ele aparece como armchair
thinking, algo antiquado, irresponsável e sem necessidade. (ADORNO, 2020, p. 263).
O professor Pedro, categoria A, com 21 anos de rede de ensino estadual, fala sobre a perda
da espontaneidade em sala de aula, das possibilidades mais abertas de relações com os estudantes.
Para o professor, a lógica das relações com os estudantes é a do prestador de serviço, do
funcionário público que segue um determinado padrão e será cobrado de alguma forma por isso.
Com os alunos especificamente teria uma dificuldade maior assim, ou está dentro
deste contexto também?
Não, na sala de aula não. Na sala de aula eu sinto ainda principalmente nesta volta de
pandemia, eu sinto ainda uma espécie de um carinho deles. Mas é diferente há 10 anos
atrás eu tinha mais segurança de entrar numa sala de aula. Você lembra meu jeito eu era
mais irreverente com os alunos. Me aproximava mais dos alunos. Conversava assuntos
aleatórios, eles entendiam ironia, eles entendiam brincadeira. Era uma espécie de um
carinho diferente. Era um carinho baseado na admiração. Hoje os alunos eles são
carinhosos, mas eu sinto que você não dá para você confiar muito, essa relação fraternal
se é que eu posso dizer assim, ela hoje em dia ela existe, mas como o aluno vê o
professor, primeiramente como um prestador de serviços e depois como alguém que ele
pode confiar, alguém que ele pode conversar, trocar ideia. Eu sinto isso na sala de aula
em menor escala do que socialmente falando. Como eu falei a 10, 12 anos atrás era o
contrário. O aluno via a gente como o professor, depois o funcionário público. Agora
não, primeiro é o funcionário público, então você tem que ter esta postura, você não
pode fazer isso, você não pode fazer aquilo porque você é um funcionário público, então
isso acaba criando uma espécie de uma relação afetuosa, mas até a página 2. É o que eu
tenho sentido nesses anos para cá. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
O que o professor Pedro relata nos parece ser a base em um processo educacional, que
são as possibilidades das relações, de experiências entre professores e estudantes que não estejam
marcadas por demandas externas ao processo em si. O espírito mais espontâneo vai se perdendo
no professor e, com isso, seria interessante observar o quanto afeta sua individualidade, na medida
em que o outro não mais lhe diz sobre uma experiência pessoal, singular de retorno, em frustração
ou gratificação psíquica, mas sobre uma espécie de relação de “consumo” daquilo que o professor
possa entregar como prestador público desse serviço.
Segundo Adorno (2006f), isso produz um rancor com a cultura, já que a promessa de
autonomia tem cada vez mais dificuldade de se realizar. Aquilo que não se consegue realizar
passa então a ser o verdadeiro problema, e formações reativas tornam-se maneiras dessas
relações se estabelecerem.
O professor Luiz diz que acredita que ainda há alguma autonomia do professor, mesmo
sobre o peso de normas e resoluções que são empurradas de cima para baixo. É interessante
pensar se, para o professor, a sala de aula não seria a “última trincheira”, com o “cerco se
fechando” de possibilidades de alguma autonomia diante de adversidades de todas as ordens.
Quando se “fecha a porta da sala de aula” o professor pode ser um pouco mais ele na
capacidade de resistir em sua atividade de trabalho, de ser mais criativo e espontâneo. A
informatização, as câmeras em sala de aula, as resoluções e normas, “o deixar a porta aberta”
invadem o espaço escolar e da sala de aula, minando qualquer possibilidade mais autônoma do
professor.
Se eu disser que sim, ainda mais com as várias resoluções empurradas de cima para
baixo - você falar de autonomia docente está ficando mais difícil. Eu ainda tenho
autonomia para preparar minhas aulas por exemplo, para escolher os materiais. Pegar
um livro paradidático, coisa do tipo, mas como eu falei o cerco está se fechando. Por
exemplo, o cerco está se fechando, tem muita fala sobre empreendedorismo, se você
pegar os materiais de alguns itinerários formativos, eu estava até dando uma lida.
Então sim nós temos autonomia, nós temos liberdade de cátedra, só que se tem que
ponderar também. Inclusive qual a gestão você está enfrentando. Qual é o projeto
político pedagógico da escola. Como que essa gestão ela trata a própria comunidade
escolar e dentro dessa comunidade escolar, como se dá a autonomia do professor. Para
você produzir conhecimento, para você estudar mais. E assim por diante. (Professor
Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
É certo que qualquer gestão, numa escola, está sob o efeito da racionalidade administrada
que surge de esferas superiores e mais poderosas que o próprio funcionamento da escola. É
importante lembrar, também, que um gestor, geralmente, é ou foi professor, e que tem as marcas
dessas experiências de mal-estar em seus psiquismo e corpo. Como diz Adorno (2020, p. 257):
Professor João
Aquilo a que chamamos “felicidade”, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina
de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como
fenômeno episódico. Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem
prosseguimento, isto resulta apenas em um morno bem-estar; somos feitos de modo a
poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas possibilidades
de felicidade são restringidas por nossa constituição. (FREUD, 2010a, p. 31).
Sabemos como o princípio do prazer norteia a finalidade da vida, para Freud. Contudo,
não pode ser realizado de modo absoluto. Do instante do primeiro objeto sexual na época do
aleitamento, na qual a criança, ao mamar no seio da mãe, tornou este o modelo de toda relação
amorosa, a partir dele, assim, a “descoberta do objeto é, na verdade, uma redescoberta”
(FREUD, 2016, p. 143).
De alguma forma, buscamos ao menos algum resto desse prazer perdido, e esse resto
constitui uma individualidade, uma experiência singular com o mundo. Esta experiência
fundante nos movimenta não só através do desamparo e da frustração, antes, na busca do prazer,
nem que seja “episódico”, apenas “o contraste”.
Mas mesmo depois que a atividade sexual se desprende da ingestão de alimento, resta
um elemento importante desse primeiro e mais relevante de todos os vínculos sexuais,
que ajuda a preparar a escolha de objeto, ou seja, a restabelecer a felicidade perdida. Ao
longo de todo o período de latência, a criança aprende a amar outras pessoas – que a
ajudam em seu desamparo e satisfazem suas necessidades. (FREUD, 2016, p. 143).
da dureza das condições da realidade social vem na mesma medida e são extenuantes. É como
nos revela o professor Luiz ao caminharmos para o fim de nossa entrevista:
Eu acho que foi assim, num primeiro momento eu fiquei meio preocupado, ainda mais
que toquei em questões de saúde mental, porque como eu me vejo neste processo... me
vejo não, eu estou neste processo. Pensei só falta eu começar meio que instável aqui.
Mas foi bom até porque tem pontos que você abordou nas perguntas que precisava
pensar também, repensar. Inclusive a minha abordagem dessa questão da criticidade
com relação a carreira, inclusive eu tenho percebido que ficar batendo boca com alguns
colegas de trabalho, o cara vai repousar, vai dormir tranquilo. E você parece que está
dormindo numa cama tipo de pregos às vezes. Você passa raiva, passa nervoso. Outros
tópicos que costuraram também como a questão do racismo. Eu tenho evitado abrir
certos tipos de conteúdo ainda mais quando mostram cenas de violência policial, por
exemplo. Ou de pessoas sendo perseguidas em certos lugares. Eu já passei por isso,
então não é uma coisa bacana também. Eu quero evitar tais conteúdos nesse sentido. E
o que eu tenho dito para mim mesmo, aprendido, reaprendido na verdade é fazer o que
dá para fazer. Faz o que é possível, sem ficar martirizando. Nossa eu tinha que ter feito
isso eu tinha que ter feito aquilo outro. A gente está num contexto bastante complicado,
pandemia, todo mundo com a cabeça a mil por hora. Faz o que dá para fazer, e faça
bem-feito. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
Gostei da experiência. É algo interessante de fazer. Tendo tempo eu acho que coisas assim
deveriam ser mais feitas com os professores, sabe. Mas quando eu falo tendo tempo,
conhecendo a classe à qual eu pertenço é o tipo de atividade que a galera só aceita fazer
quando está dentro da jornada de trabalho. Para não tomar ainda mais tempo. Que eu acho
uma dificuldade dos pesquisadores de educação, achar a galera disposta a participar das
pesquisas. Ter tempo disponível. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).
147
Acompanhando o Vocabulário da Psicanálise, o processo de elaboração é entendido nesta dissertação como:
“Expressão utilizada por Freud para designar, em diversos contextos, o trabalho realizado pelo aparelho psíquico com o
fim de dominar as excitações que chegam até ele e cuja acumulação corre o risco de ser patogênica. Este trabalho consiste
em integrar as excitações no psiquismo e em estabelecer entre elas as conexões associativas.” (LAPLACHE;
PONTALIS, 2001, p. 143).
234
A qualidade das entrevistas, o rico conteúdo que elas revelam, mostra a capacidade reflexiva
dos professores, fundamental na busca por saúde psíquica, na medida em que se percebem em um
determinado contexto social que é atravessado por inúmeras variáveis e determinações.
O trabalho de elaboração necessita de tempo. É um processo muito profundo e pessoal,
que também se dá a partir da relação com os outros, sejam professores ou outros profissionais
de educação, assim como a rede de pessoas próximas e familiares e, evidentemente, com os
estudantes. É da ordem dessa elaboração que se constitui o ser do professor, em sua função, seu
estilo e seu modo de fazer, que não se encontram prontos e acabados a partir de alguma
certificação ou diploma; antes, incompletos, em movimento.
O professor se constitui por essa elaboração a partir das fundamentais experiências de
prazer, de gratificação psíquica e reconhecimento narcísico. Mesmo cada vez mais restritas
pelas dinâmicas sociais, o encontro com o estudante, mediado pelo trabalho do professor,
produz um espelho das possibilidades desse professor se enxergar em sua experiência de ofício
e constituir uma identidade docente.
Sem essas formas de prazer, acreditamos que fique cada vez mais difícil o professor dar
conta da intensidade do sofrimento – que nomeamos como sendo um mal-estar destrutivo
presente nos profissionais da educação. Alguma ordem de prazer equilibra o psiquismo e
permite que ele sustente com mais confiança seu mundo interno e sua imagem enquanto
professor, autoridade que se constitui psiquicamente e sob determinado contexto social.
É a possibilidade de obter experiências de prazer148 que quebram as repetições comuns
ou compulsivas do espaço escolar. São dessas experiências de prazer que se formam memórias
148
Utilizaremos uma passagem do trabalho de Manfré (2014) para diferenciar as categorias “vivência” e
“experiência” em Benjamin. Na categoria de “experiência”, Benjamin aproxima-se mais das concepções de Freud,
ao passo que a categoria “vivência” torna-se uma expressão das marcas da modernidade e do modo de organização
social do capitalismo baseados em choques e com um núcleo traumático. Importante destacar que o espaço de disputa
social em torno da autonomia docente se dá também pela capacidade de poder fazer “experiências” e o quanto isso
tem sido obstruído pelos diversos atravessamentos econômicos, sociais, psíquicos e culturais que temos trazido na
pesquisa até aqui. “A passagem da oposição entre memória e consciência para a oposição entre experiência e vivência
é feita por Benjamin utilizando a concepção de memória involuntária de Proust. A memória de Freud, aquele
reservatório que guarda vestígios mnemônicos dos estímulos externos, é equiparada por Benjamin à memória
involuntária de Proust. Por esse prisma, os estímulos, quando aparados pelo consciente, não são armazenados no
inconsciente e, consequentemente, não podem ser posteriormente recuperados pela memória involuntária e integrados
à experiência.(...) Disso resultam, para Proust, as lembranças conscientes que nada guardam do verdadeiro passado e
são, portanto, estéreis para a constituição da experiência em sentido estrito. O que sucede ao indivíduo nesse contexto
é apenas a vivência. Dito de outro modo, são fatos e lembranças isolados que a proteção contra os choques assimila
imediatamente, impedindo que sejam depositados no reservatório de sua memória e, posteriormente, recuperados
para construção do que Benjamin (1989, p. 106) chama de ‘uma imagem de si’, ou seja, para a estruturação da
experiência a partir do contato com o passado propiciado pela memória.(...) É necessário esclarecermos que o ensaio
benjaminiano não se mostra, porém, na demonstração de que a memória e, consequentemente, a experiência, mantém
uma estreita relação com a proteção contra os choques do mundo exterior. É importante compreender que isso não
representaria em si uma ameaça à constituição da experiência. O que provoca o seu empobrecimento é a frequência
235
individuais ou coletivas que fazem o ofício docente valer a pena e, por isso, evitam que o
professor atue149 no espaço escolar por dimensões mal elaboradas e traumáticas de seu trabalho.
O prazer no trabalho estabelece a diferença consigo e com o outro, fundamental para demarcar
as particularidades da experiência como não repetitiva, porém únicas no encontro com o outro,
e na relação de transformação de si no autorizar-se a ser professor.
O professor João nos revela que tem prazer em preparar aulas. Acreditamos que isso já
faça parte da elaboração psíquica mediada pelo trabalho. Preparar suas aulas e com ela construir
o seu estilo pessoal, o seu saber, a sua forma naquilo que será proposto e discutido com os
estudantes, mas, acima de tudo, preparar aula sem aquele “compromisso” da imposição
administrada do trabalho. Poder ter “tempo”, “associar livremente” sobre os materiais que
podem servir de apoio nessa preparação.
crescente, na vida diária, de situações em que a percepção é exposta ao choque. É esse o alcance do texto de Benjamin,
afirma Gagnebin (1994). Ele compreende um momento em que a memória e a experiência se enfraquecem em face
da transformação da percepção cotidiana, isto é, no momento em que o choque passa a ser a forma dominante pela
qual os eventos externos atingem a percepção dos indivíduos. A investigação benjaminiana se ocupa, no treinamento
do consciente à percepção descontínua do choque, com a emergência de uma temporalidade empobrecida, própria à
vida urbana e à busca incessante do novo, que, por estar inteiramente permeada pela instantaneidade do choque,
representa uma ameaça à experiência.” (MANFRÉ, 2014, p. 156-7).
149
Freud, no texto Repetir, recordar e elaborar, trata da atuação dos seus pacientes quando não recordam o que
foi esquecido. “Se nos detemos nesse último tipo para caracterizar a diferença, é lícito afirmar que o analisando
não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança,
mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz.” (FREUD, 2010p, p. 199).
236
Ao preparar aula, o professor parece estabelecer uma diferença com os demais colegas
na sala dos professores, a diferença da particularidade do seu trabalho, da elaboração do
trabalho, da sua própria individualidade. Talvez por isso o ambiente ali reaja avaliando esquisito
não se adequar, não se adaptar a uma forma de repetição no modo de ser docente, afinal “você
já está com cabelos brancos” e precisa preparar aula?
Ao mesmo tempo, relata os momentos raros, os “fenômenos episódicos” de felicidade, que
diz ser “algo mágico”. A dureza do mal-estar docente o faz associar à figura da “Poliana”, como se
o professor não tivesse o direito a momentos de prazer, de felicidade e agradáveis, e poder
compartilhar tais experiências. O sofrimento destrutivo associado a dinâmica capitalista mais ampla
marca a sociabilidade docente, de tal forma que revelar algo que lhe produz satisfação e prazer no
trabalho com os estudantes só pode ocupar o lugar de “Poliana”, de um ser ingênuo. O professor
Joao prossegue:
A capacidade de fazer experiências por si parece tornar-se esquisita nos tempos em que
vivemos. O professor organizou uma proposta de aula que mobilizou a reflexão dos estudantes.
Se viu na condição criativa que, em sua proposta de trabalho, seu modo de fazer docente lhe
retornou positivamente pelo efeito nos estudantes. Assim, uma aposta nas possibilidades de
gratificações e frustrações no trabalho. O retorno produz reconhecimento narcísico a partir
desse encontro com o outro e consigo e, sobretudo, memória afetiva dessa experiência singular.
237
Entretanto, é importante observar tanto a reação dos colegas professores quanto as dúvidas
que vão aparecendo no professor João a respeito da experiência: “a Poliana”, “o sarro dos colegas
professores e da esposa”, “os cabelos brancos”, “o prazer associado somente a dinheiro” que
revelam um modo de organização social no qual o tempo da experiência não só perde sua força e
sentido, mas é, sob variadas formas, mesmo que através do humor, recusado, desmentido. Não está
sob o cálculo de uma determinada racionalidade. É como nos revela Adorno (2006d, p. 33):
O que Adorno (2006d) e as falas do professor João nos revelam é que essa forma de
organização social marcada pela sociedade burguesa não só elimina a capacidade de
experiência, de relação mais profunda que um professor ou um trabalhador possa fazer com
aquilo que faz ou produz, mas, também, constitui o indivíduo em modo de ser e olhar o mundo,
olhar inclusive o outro, recusar ou mesmo desmentir quando essas possibilidades se colocam,
de caráter mínimo que seja.
A “lei universal da troca” se dá entre pessoas que também ocupam o valor de troca como
posição subjetiva. Se não há diferença, não há experiência singular, temporal, que deixe um
resto de memória. Parece que o professor João, ao apontar uma particularidade, um “valor de
uso” de sua experiência como professor, produz um certo incômodo, uma recusa, um
desmentido dos demais em dar valor à sua experiência, porque, parece-nos, que a diferença se
estabelecerá como um espelho. Talvez seja doloroso aos professores, nesse contexto de
desumanização, se ver pela diferença. Retomamos os processos relacionados “à identificação
ao agressor” (ADORNO, 2006f) que atravessa, neste caso, o que Adorno aponta dos processos
de adaptação que já se realizam de modo bem inicial, desde a infância na vida de todos. É
importante destacar os efeitos persecutórios reais ou imaginários como formas sintomáticas de
sociabilidade que este tipo de organização social pode produzir nos indivíduos quando estes
marcam alguma forma de diferença.
O professor Pedro nos revela que sabe que está na profissão certa porque os domingos à
noite não lhe deprimem mais, “a música do fantástico” indica que a segunda-feira está chegando.
238
Interessante observar esta marca da Indústria Cultural também numa certa rotina repetitiva de
programação televisiva a qual norteia um modo de se relacionar com o mundo do trabalho.
E está contribuindo para alguma coisa na vida deles essa aprendizagem. (Professora
Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
Os estudantes retornam de uma forma “não forçada”, “mais livre”, podemos dizer
espontânea, através do vínculo que a professora mobilizou a partir do seu trabalho e seu modo
de fazer docente. O professor Luiz também sente falta da possibilidade de trocar com os
estudantes “sem uma rigidez”, “daquelas fileiras” da racionalidade administrada. Pensar outras
formas mais livres de relação são a possibilidade de o professor demarcar seu modo de ser
docente, através do conteúdo ao qual se sente, como diz Freud (2014d), na “plenitude da
realização do Eu”, ao agir de modo consciente sobre a realidade exterior.
Ou, de outra maneira ainda: a neurose não nega a realidade, apenas não quer saber
dela; a psicose a nega e busca substituí-la. Chamamos de normal ou “sadio” o
comportamento que une certos traços de ambas as reações, que nega a realidade tão
pouco como a neurose, mas se empenha em alterá-la como a psicose. Essa conduta
adequada aos fins, normal, leva naturalmente a um trabalho efetuado no mundo
exterior, e não se limita, como na psicose, a mudanças internas; já não é autoplástica,
mas aloplástica. (FREUD, 2011f, p. 218).
O que podemos perceber é que, para Freud, saúde psíquica é atuar sobre a realidade
exterior (aloplástica) com a capacidade imaginativa que movimenta os traços neuróticos e
psicóticos. Essa construção do pensamento freudiano revela um olhar sobre a condição humana
e os sintomas que ainda estão em aberto para serem pensados na contemporaneidade.
O professor Fernando, que carrega a marca psíquica do espaço social das periferias de
São Paulo, em que nasceu e viveu, traz esse engajamento, seu modo de ser e fazer docente está
conectado com o agir sobre essa determinada realidade social que lhe produz “a realização da
plenitude do seu Eu.” (FREUD, 2014d).
É poder ver que todos aqueles que foram largados para serem tratados como lixo
florescem. E conseguir mostrar para os pais, para comunidade, conseguir mostrar para fora
do seu bairro o potencial artístico, intelectual, a força consciente de trabalho... Isso daí é o
que faz eu dormir a noite e acordar de manhã cedo com vontade de viver. É ver os
moleques ir além do que o pai deles foram, onde eles imaginaram que poderiam ir. Mesmo
estando dentro da favela, indo além e sem sair do bairro. Fazendo melhorias para eles
próprios, para todos nós. Conseguir se entender, conseguindo entender de onde vem as
coisas que causam mal a eles. A melhor coisa do mundo, eu dava aula para o EJA a noite
então eu trabalhava com os filhos deles de manhã e com eles a noite. Eu achava aquilo o
ideal porque não tinha um choque educacional de cultura. Todo mundo estava trabalhando
a mesma ideia. O velho, o novo, isso era legal para caramba. Mas isso também não é
valorizado, não é valorizado. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).
A professora Luana também demarca esse resgate dos estudantes, a possibilidade de dar
oportunidade para que eles se desenvolvam psíquica e socialmente.
Tanto o professor Luiz como a professora Luana, assim como praticamente todos os
professores entrevistados, são de origem pobre, popular, de famílias dos interiores do Brasil,
zona rural, das periferias de São Paulo, da classe trabalhadora, e conseguiram, de algum modo,
ascender socialmente como professores, o que implica uma série de relações simbólicas e
concretas, contraditórias com os espaços sociais e seus ideais próprios.
Diante de tantas adversidades em sua profissão, de um mal-estar destrutivo, “resgatar”
esses estudantes pode representar o resgate de sua própria condição como professores, do
infantil criativo, onipotente, que carregam dentro de si e que não querem ceder psiquicamente
ao adoecimento, à introjeção do ambiente agressor ou à impotência.
É claro, também, que essa posição pode produzir uma tensão no próprio lugar
imaginário que o professor pode ocupar com relação a ser um “salvador”. Assim, em uma
onipotência que, ao invés de movimentar, possa ser destrutiva, tanto no impossível de ocupar
tal lugar, quanto na relação com o outro como aquele que precisa ser “resgatado”. Essas,
certamente, são questões que combinam tensões de toda ordem, psíquicas mais profundas, das
dinâmicas sociais, econômicas, culturais e mesmo históricas.
241
CONSIDERAÇÕES FINAIS
espaço escolar, os quais afetam inclusive lógicas de poder que tem o lugar de sentar-se na mesa
da sala dos professores como símbolo de distinções. Percebemos como os efeitos
psicossomáticos são uma expressão destes deslocamentos através de gastrite (professor
Fernando), hérnia de disco (professor Pedro), paralisação das pernas (professora Vera) etc., ou
mesmo processos de adoecimento como modo de autopreservação que podem culminar muitas
vezes em readaptação para outras funções na escola que não a docência.
Observamos como as dinâmicas sociais precarizadas de trabalho interferem na própria
constituição do Superego e na transmissão geracional como nos aponta a professora Luana que
diz que “apesar de gostar de ser professora, não gostaria que seu filho fosse” pela desvalorização
da profissão. O que marca na transmissão geracional e na cultura uma intensa ambivalência no
contexto das “aversões ao magistério”.
No que toca a formação, analisamos que a inserção do professor no ambiente escolar se
dá muitas vezes por um “choque de realidade” e é por vezes traumática, ocasionada pela
precarização do trabalho. Além disso, analisamos aquilo que o professor pode oferecer de
singular na criação de um modo de ser docente, seja em sua relação transferencial com os alunos
e com os colegas de trabalho, ou na própria constituição de uma perspectiva pessoal de
autoridade, em um cenário de formação com determinações externas e que não favorece a
simbolização coletiva do mal-estar, mas justamente a padronização dos modos de ser docente
aos quais elevam a intensidade deste mal-estar.
Todas essas são questões relacionadas à particularidade desse ofício, mediadas pelas
relações de trabalho na maior rede de ensino do Brasil. Neste sentido a intensidade pela qual as
formações sociais destrutivas se realizam na atualidade não só constitui os indivíduos como
também convoca neles aspectos autodestrutivos, estabelecendo cisões e ressentimentos,
fenômenos psicossociais relacionados ao cinismo e sintomas das chamadas neuroses atuais,
além de sociabilidades na qual há formas de desfusão da pulsão de vida e da pulsão de morte
hegemonizadas pela última.
Em que pesem as particularidades, inclinações e disposições que os professores possam
ter, as quais inclusive foi um dos nossos objetivos não apagar, mas justamente valorizar através
da escuta destas singularidades, analisamos que há um sofrimento comum e intenso decorrente
do processo de “evolução cultural”, que não ajuda – como nos lembra Freud – a dirimir as
perturbações psíquicas profundas dos indivíduos, ao contrário, justamente as tensionam mais,
criando formas de adaptação e cisões do Eu, assim como desmentidos sociais que elevam a dor
docente, isolando e traumatizando-o.
243
Vimos que o professor vive situações muitas vezes humilhantes, seja nas atribuições de
aula, seja no modo que estabelece o seu contrato de trabalho extremamente precarizado, como nas
categorias O e V, que marcam inclusive um modo regressivo de identidade docente, seja pela
dinâmica de grupo que se estabelece, a partir das sociabilidades contratuais, pelas relações sádicas
e hierárquicas no local de trabalho com gestores ou mesmo na divisão social de seu trabalho
intelectual e manual pelas diretrizes externas, heterônomas da formação, das condições de trabalho
e salário. E, não menos importante, a difícil tarefa de sustentar o próprio mal-estar inerente à
profissão em um país com toda a precariedade social que a população e os estudantes atravessam.
A educação no Brasil é tratada essencialmente como custo e a prática dos governos tem sido a de
abandono e negligência de demandas básicas para o funcionamento escolar.
São tantas formas que se expressam o mal-estar social que o professor sustenta com seu
psiquismo e corpo, que avaliamos e caracterizamos processos de adoecimento de ordens
variadas, muitas vezes com o objetivo de se autopreservar psiquicamente para não entrar em
um adoecimento mais drástico e paralisador. É evidente que isso produz um custo psíquico e
social, visto que o ofício e o trabalho são necessidades internas narcísicas, necessidades
externas de sobrevivência; portanto, são diárias e constantes. Some-se a isso que o trabalho
específico do professor de educação básica responde a uma necessidade da sociedade e não
apenas do próprio professor.
Avaliamos que este professor também luta por prazer e consegue, na medida dos seus
recursos psíquicos e em um determinado contexto social, elaborar situações bastantes intensas.
Tais formas são capazes de reafirmar sua individualidade numa dinâmica social cada vez mais
perturbadora, instável e precária. Como nos lembra o professor Pedro, resistir, como atividade,
é “deixar sua intelectualidade aflorar”, marcando a dimensão da sexualidade no sentido amplo
que Freud nos elabora.
Entre os aspectos estritamente clínicos ou estritamente econômicos, nossa dissertação
buscou as mediações da individualidade e dos aspectos sociais, e como elas se influenciam
produzindo um modo muito particular de mal-estar do professor. Essa forma de análise torna a
escuta mais complexa porque está na ordem do irreconciliável da relação entre o indivíduo e a
sociedade, do princípio do prazer e do princípio de realidade. Mesmo assim, visamos
compreender essa tensão dialética para evitar processos de dissociações ao analisar as questões
ora por determinismos econômicos, ora por determinismos psíquicos isolados. Nossa reflexão
quis evitar o que aponta Adorno (1992, p.43) sobre a falência da cultura através da própria
falência da capacidade de reflexão e crítica. “O que quer que ocorra a alguém, é bom o
244
suficiente para permitir que especialistas decidam se quem produziu tal pensamento é um
caráter compulsivo, um tipo oral ou um histérico.”
Concluímos, através da análise dos dados de pesquisa, que a precarização do trabalho
na rede de ensino estadual de São Paulo não produz um mal-estar qualquer, contingente ou
apenas individual. Vimos, inclusive, diferenças de mal-estar docente entre as redes de ensino
de São Paulo, municipal e estadual. Os professores da rede municipal com mais condições de
organização sindical, por serem uma categoria menos dividida pelas políticas dos governos,
fizeram uma “greve pela vida” por mais de 100 dias em momento agudo da pandemia, ao qual
os professores da rede estadual na prática não acompanharam plenamente. É possível dizer,
portanto, que os professores da rede estadual correram mais riscos de vida, sem nenhum uso
retórico da expressão, resultados dos efeitos de sua precarização do trabalho.
Este mal-estar produz implicações também nas dinâmicas narcísicas e no
empobrecimento da concepção de autonomia docente, naquilo que marca a própria identidade
do professor, o seu nome, rede de significados daquilo que o sujeito é ou mesmo dos efeitos
psíquicos na própria capacidade de sonhar do professor, dimensão fundamental de descanso,
reparação, criação e elaboração do psiquismo. O perturbador esquecimento do próprio nome
como nos relatou o professor Luiz, assim como as dificuldades de sonhar do professor João,
são a inquietante evidência de um sofrimento destrutivo dos professores da rede de ensino
estadual de São Paulo, os quais avaliamos penetram profundamente no corpo e no psiquismo.
Através do conjunto dos textos de Freud, avaliamos suas preocupações em não analisar
“as satisfações secundárias do sintoma” de modo absoluto, assim como perceber os aspectos
relacionados à cultura e à determinada dinâmica social destrutiva, hegemonizadas por
Thanatos, no agravamento das perturbações psíquicas individuais.
Os limites de uma dissertação de mestrado nos impedem de ampliar as questões que
surgiram no decorrer do trabalho de pesquisa. Contudo, consideramos que há uma
particularidade da intensidade do mal-estar destrutivo docente com a categoria trabalho que
abre para a ampliação da investigação, no sentido de compreender, do ponto de vista do capital,
como essa apropriação do trabalho do professor em sua especificidade se dá, assim como afeta
as próprias dimensões e possibilidades criativas do mal-estar. Além disso, a particularidade
histórica do capitalismo brasileiro e sua relação com o mal-estar do professor nos abrem
possibilidades de reflexões e questões para futuras pesquisas.
Para finalizar, faço alusão a um pequeno texto de Freud, de 1910, intitulado Introdução
e conclusão de um debate sobre o suicídio, no qual ele comenta o papel fundamental da escola
em produzir no estudante “a vontade de viver”, assim como “o apoio e esteio numa fase da vida
245
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ANEXO 1
ANEXO 2
sofrimento do professor da rede estadual de São Paulo”, que ficaram claros quais são os
propósitos, os procedimentos a serem realizados, as garantias de confidencialidade e de
esclarecimentos permanentes. Ficou claro, também, que a sua participação é isenta de despesas
e que você concorda voluntariamente com a participação deste estudo e que pode retirar o
consentimento a qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem penalidades ou prejuízo.
Nome: ________________________________________________________-
Local: _________________________________________________________
Data: ______/______/______.
( ) Concordo
Assinatura: _______________________________________________________
Eu, Marian Ávila de Lima e Dias, declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o
consentimento deste participante – ou representante legal – para a participação neste estudo.
Declaro ainda que me comprometo a cumprir com todos os termos aqui descritos.