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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO

MARCELO GOES TOMASSINI

O MAL-ESTAR DOS PROFESSORES DA REDE DE


ENSINO ESTADUAL DE SÃO PAULO

GUARULHOS
2023
MARCELO GOES TOMASSINI

O MAL-ESTAR DOS PROFESSORES DA REDE DE ENSINO ESTADUAL DE SÃO


PAULO

Dissertação de Mestrado apresentado para o Programa de


Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de São
Paulo como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Educação da Universidade Federal de São Paulo.
Área de concentração: Educação.
Orientação: Profa. Dra. Marian Ávila Lima e Dias

GUARULHOS
2023
______________________________________________________
Tomassini, Marcelo Goes

O mal-estar dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo / Marcelo Goes Tomassini.
Guarulhos, 2023. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de São Paulo, Escola de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, 2023.
Orientação: Marian Ávila de Lima e Dias.

Título em Inglês: The malaise of teachers in the state education network of São Paulo

1 Mal-estar. 2. Professores. 3. Trabalho. I. Marian Ávila de Lima e Dias. II. O mal-estar dos
professores da rede de ensino estadual de São Paulo.

Marcelo Goes Tomassini


O mal-estar dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de


Pós-graduação em Educação da Universidade
Federal de São Paulo como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Educação
Universidade Federal de São Paulo
Área de concentração: Educação.

Aprovação: ____/_____/_____

_______________________________________________________________________
Profª. Drª. Marian Ávila de Lima e Dias (Orientadora)
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP

_______________________________________________________________________
Prof. Dr. Roger Fernandes Campato
Universidade Presbiteriana Mackenzie

___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Tales Afonso Muxfeldt Ab’Saber
Universidade Federal de São Paulo - UNIFESP
AGRADECIMENTOS

É uma alegria poder concluir esta dissertação que envolve tantas questões e experiências
pessoais de trabalho e estudo. Saio de todo este processo, sem dúvida, enriquecido culturalmente
com as leituras e o aprofundamento que tive nesses dois anos e meio de trabalho científico.
Gostaria de dedicar esta dissertação primeiramente ao meus pais, Maria Helena e Alceu,
que me deram um nome, um lugar no mundo e a possibilidade de amar e ser amado. Sem eles,
não seria possível. Meu pai, infelizmente, faleceu em abril de 2022 enquanto produzia esta
dissertação. Dedico esta pesquisa a ele, em especial. Obrigado Pai! Seguimos nas lutas da vida.
Agradeço à minha esposa Renata, nosso amor e companheirismo tornam a vida mais
leve e significativa. Como professora de formação também, foi uma interlocutora das questões
as quais a pesquisa suscitou.
Agradeço à professora Marian Ávila de Lima e Dias, minha orientadora, por ter me
acolhido em seu grupo de estudos e de pesquisa, pela aposta no projeto, pela leitura crítica dos
textos e a liberdade que me deu para criar neste período. Este trabalho de pesquisa não seria
possível sem sua orientação.
Agradeço aos professores da Unifesp, Márcia Aparecida Jacomini, Maria Angélica
Pedra Minhoto, Marcos Cezar de Freitas e Marian Ávila de Lima e Dias que contribuíram em
suas disciplinas para o meu desenvolvimento intelectual e para o aprofundamento da pesquisa.
Ao coordenador da Pós-Graduação em Educação da Unifesp, Luiz Carlos Novaes, e ao
Secretário Erick Dantas, pela disponibilidade a qual sempre se colocaram aos estudantes.
Agradeço aos colegas mestrandos e doutorandos do Grupo de Estudos e Pesquisas em
Cultura, Diversidade e Educação, entre eles, Ingrid, Francis, João, Herik, Marcos, Patrícia,
Jociene, Téo, Paula, Larissa, Gabriel e Lucas, que foram interlocutores generosos neste período.
Agradeço à professora Maria Angélica Pedra Minhoto e à professora Celia Giglio pelo
convite para acompanhar algumas reuniões do Grupo de Pesquisa “Avaliação e Política
Educacional” (GPAPE), assim como seus doutorandos e mestrandos pela generosidade nos
debates e apresentação dos seus trabalhos de pesquisa: Claudia, Saulo, Deise, Marcos,
Alessandra, Ana Márcia, Daniel, Edmilson, Karen, Tiago, Veríssimo, Rosyane, Lilian,
Vanessa, Larissa, Josete, Fernanda, Eduardo, Edson, Cida, Marineide, Edilson e, também, ao
Wálber que, apesar de não ser deste grupo de pesquisa, foi um colega de disciplinas em comum
que sempre trouxe questões importantes para pensar a educação e a escola pública.
Agradeço aos professores Daniel Revah e Roger Campato pela leitura crítica e
considerações na banca de qualificação. Elas foram fundamentais para o desenvolvimento posterior
do trabalho. Agradeço também à banca da defesa, os professores Roger Campato e Tales Ab’Sáber.
Agradeço aos professores e aos amigos que fiz na História da PUC-SP que, com mais
de 20 anos de amizade, tornaram-se parte importante da minha vida. São interlocutores sempre
fundamentais. Meus amigos Tiago e Jociene, César e Tânia, Adilson, Tonhão, Toninho, Eder e
Rafaela, Jomo, Michel, Daniel, Marta, Larissa, Ricardo B., Audrey, Shisleni, Sybille, Xênia,
Micheline, Belmiro e Raquel, Wellington e Maria Helena, Waldomiro, Sandro, Gustavo e
Gabriela, Ana Barbara e Mario, Monique, Carol, Juliana, Maurício, Paulão, Rodrigo, Aldo,
Alex, Arilton, Lúcia, Sandra, Ana Luisa e Junior, Ariana, Guilherme, Douglas e tantos outros.
Agradeço aos professores da Filosofia do Mackenzie e aos amigos e interlocutores: Igor,
Fabiano, Vinicius, Leandro, Tadeu, Gyorgy, Riva, Renata, Carine, Cintia, Haroldo, Mili,
Geraldo, Vivian, Lâmia, Oséias, Isabella, Márcio, Sara, Michele, Samir, Keila, Moira,
Georgina, André e tantos outros.
Gostaria de dedicar este trabalho à professora Graciela Deri de Codina, que foi minha
professora tanto na PUC quanto no Mackenzie, e que, infelizmente, faleceu, mas nos deixou
um legado de seu espírito crítico e dedicação ao ensino da Filosofia. Ao Francisco Jesus da Paz,
carinhosamente chamado por nós “Doutor Francisco”, nosso colega de Filosofia, que faleceu,
infelizmente, neste contexto político regressivo que vivemos na pandemia. Sua história de luta
pela democracia no Brasil é uma referência para todos nós.
Faço um agradecimento em particular ao Vinicius Xavier, que fez a revisão final desta
pesquisa, um intelectual crítico e um amigo querido, desde os tempos da Filosofia do
Mackenzie, onde nos formamos.
Aos professores Sergio Braghini e Fabio Keinert, da Fundação Escola de Sociologia e
Política, pelas trocas e ensinamentos. Aos amigos Silvia, Marcelo, Jean, Luiza, Monica, Juliane,
Elizabeth, Carla, Priscila, Mônica, Eliton e tantos outros pela interlocução.
Aos amigos que tive a possibilidade de conhecer através da minha esposa: Fabiane e
Carlos, Gisele e Daniel, Clarice e Miguel, Débora, Raquel, David e outros aos quais tantas
conversas e confraternizações tivemos.
Agradeço às psicanalistas e sociólogas Carina Martins e Heloiza Abdalla, à psicanalista
e psicóloga Nara Akemi, amigas fundamentais neste processo de interlocução das questões
psíquicas e sociais desde os tempos iniciais da formação no Centro de Estudos Psicanalíticos.
Agradeço à minha Supervisora Clínica, Cleide Monteiro, do Instituto Sedes Sapientiae,
pelas trocas em torno dos casos clínicos e das questões relacionados ao mal-estar
contemporâneo e ao trabalho.
Aos psicanalistas Luiz Gallina, Rita Hentz e Cida Vella, colegas de formação do Sedes
pelas interlocuções em nosso grupo de intervisão.
Agradeço ao professor Alexandre de Freitas Barbosa que coordena o grupo do
Laboratório Interdisciplinar do Instituto de Estudos Brasileiros da USP (LABIEB-USP) com a
temática “Repensando o desenvolvimento” e sua comissão executiva Vinicius, Ricardo,
Larissa, Patrícia, Flóres, além de todos os membros, por terem acolhido minha entrada no grupo
de forma tão generosa neste ano para aprender e contribuir com suas discussões.
Aos meus pacientes que me ensinam a todo momento sobre o quão profundo é o mal-
estar humano, mas, igualmente, sobre as enormes possibilidades que a vida pode nos oferecer.
Agradeço aos professores com quem trabalhei nesses 16 anos de educação básica. São
dezenas de colegas que tornaram possível e necessária esta pesquisa e reflexão. São
interlocutores diretos deste trabalho. Gostaria de dedicar esta dissertação a dois professores em
especial, professor Erlani, com quem trabalhei na rede estadual de São Paulo em 2010, e o
professor Valdemar, colega da rede municipal de São Paulo, ambos faleceram devido à
pandemia de covid.
Agradeço aos meus alunos das redes estadual e municipal de São Paulo que tanto me
ensinaram nesse período da educação básica.
Agradeço aos meus familiares de modo geral, tios, tias, primos e primas, em especial minha
Avó Bela que já é falecida, a qual, também, dedico este trabalho, minha Tia Belinha, Alfredinho,
Carlos, Marcos, Fátima, Sônia, minhas primas e primos Luciana, Isabela, Fernanda, Patrícia, Fábio,
Gustavo, Daniela, Mariana, Duda, Paulo e tantos outros que constituem minha rede familiar.
Agradeço a Arnaldo Domingues Oliveira, Sergio de Gouvea Franco e Jorge Broide que, em
momentos diferentes da minha vida, com suas escutas, me ensinaram a radicalidade da psicanálise.
Um agradecimento especial aos professores Luiz, Vera, Ana, João, Pedro, Fernando,
Denise e Luana (nomes fictícios), pelos depoimentos que deram à pesquisa e a confiança que
depositaram em mim. Esta dissertação só foi possível devido ao relato de vocês sobre a
condição de ser docente.
Gostaria de fazer uma última menção de agradecimento ao meu cachorrinho, Thomy,
nome que meu pai deu a ele, sua presença alegra sempre nossos dias.

Muito obrigado!
RESUMO

A educação e as instituições escolares nas sociedades contemporâneas apresentam uma série


de situações que indicam um mal-estar do professor das perspectivas econômica, social e
psíquica. A presente pesquisa busca investigar este mal-estar associado à profissão dos
professores da educação básica da rede de ensino estadual de São Paulo e o modo como ele se
manifesta mediado por suas dinâmicas sociais e de precarização do trabalho. Investigamos o
modo particular do mal-estar docente se estabelecer como sofrimento e como realiza, a partir
disso, uma marca no modo de ser docente. Por meio de entrevistas com os professores da rede
de ensino estadual de São Paulo, sob variados regimes de contratação e tempos de magistério,
analisamos o mal-estar como um fenômeno que é simultaneamente parte do processo
civilizatório e resultado de uma dinâmica social determinada historicamente. A partir do livro
O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud e da escuta de quatro professores e quatro
professoras entrevistados, compreendemos as bases e os fundamentos da intensidade deste mal-
estar, que se manifesta em um sofrimento hegemonicamente de caráter destrutivo e não criativo.
Analisamos, a partir das entrevistas semiestruturadas, que o mal-estar docente na rede de ensino
estadual de São Paulo produz uma dinâmica social no interior das escolas que favorece
sociabilidades regressivas, adoecimentos e modos e estratégias de defesa individuais ou em
grupo. A análise dos dados da pesquisa nos fez ampliar a leitura do conjunto dos textos
freudianos, assim como sua relação com os escritos de Theodor W. Adorno sobre educação e
formação. Na medida em que este mal-estar se espraia para variadas perspectivas sociais e
culturais, Adorno nos ajuda a compreender as formas regressivas pelas quais a modernidade e
o mal-estar se estabeleceram na atualidade. Também foram utilizados referenciais relacionados
ao psicanalista Sándor Ferenczi, que ampliou as possibilidades de compreender os fenômenos
traumáticos e sua relação com a realidade social, através do desmentido e das manifestações de
cisões do Eu, assim como um conjunto de outros autores que pensam as dimensões psíquicas e
sociais do mal-estar contemporâneo. Nossas investigações apontaram que o mal-estar docente
reflete uma variável complexa de fenômenos econômicos, culturais, sociais e psíquicos que não
podem ser analisados isoladamente, sob o risco de construir uma leitura mutilada deste mal-
estar, ora culpabilizando o professor individualmente, ora refletindo determinismos sociais sem
apreender as particularidades do modo de sofrer destas professoras e professores.

Palavras-chave: Mal-estar Docente; Dinâmica social; Precarização do Trabalho dos


Professores; Psicanálise; Teoria Crítica da Sociedade.
ABSTRACT

Education and school institutions in contemporary societies present a series of situations that
indicate a teacher's malaise from an economic, social and psychic perspective. The present
research seeks to investigate this malaise associated with the profession of basic education
teachers in the state education network of São Paulo, and the way in which it manifests itself
mediated by its social dynamics and the precariousness of work. We investigated the particular
way in which teachers' malaise establishes itself as suffering and how, from this, it makes a mark
on the ways of being a teacher. Through interviews with teachers from the state education network
of São Paulo, under different hiring regimes and teaching periods, we analyze malaise as a
phenomenon that is simultaneously part of the civilizing process and the result of a historically
determined social dynamic. Based on Sigmund Freud's book The Discontents in Civilization and
listening to four professors interviewed, we understand the bases and foundations of the intensity
of this malaise, which manifests itself in a hegemonically destructive and destructive suffering
and not creative. Based on semi-structured interviews, we analyzed that teachers' malaise in the
state education network of São Paulo produces a social dynamic within schools that favors
regressive sociability, illness and particular modes of individual or group defense mechanisms.
The analysis of the research data allows us to broaden the reading of the set of Freudian texts, as
well as their relationship with the writings of Theodor W. Adorno on education and building. As
this malaise spreads to various social and cultural perspectives, Adorno helps us understand the
regressive ways in which modernity and malaise have established themselves today. Works by
the psychoanalyst Sándor Ferenczi were also used, who expanded the possibilities of
understanding traumatic phenomena and their relationship with social reality, through denial and
manifestations of splits of the Self. Our investigations pointed out that teacher malaise reflects a
complex variable of economic, cultural, social and psychic phenomena that cannot be analyzed
without proper mediations, as they can construct a mutilated reading of this malaise, sometimes
blaming the teacher individually and sometimes reflecting determinisms. without apprehending
the individual particularities of the teaching way of suffering.

Keywords: Teachers’ Malaise; Social dynamics; Precariousness of Teachers’ Work;


Psychoanalysis; Critical Theory of Society.
LISTA DE QUADROS

Quadro 1 – Participantes: idade, tempo de rede, contrato de trabalho, acúmulo e formação 27


Quadro 2 – Objetivos e questões analisadas no roteiro ....................................................... 28
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10
1. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA .......................................................... 17
1.1. Participantes da pesquisa .......................................................................................... 25
1.2. Roteiro da entrevista ................................................................................................. 28
2. O MAL-ESTAR NA CULTURA ............................................................................................. 31
2.1. Mal-estar e desamparo .............................................................................................. 33
2.2. Mal-estar, adoecimento e vida danificada ................................................................. 40
2.3. Mal-estar, agressividade e barbárie ........................................................................... 52
2.4. Mal-estar e superego ................................................................................................. 61
3. O MAL-ESTAR DOCENTE .................................................................................................. 75
3.1. Mal-estar e herança arcaica ....................................................................................... 81
3.2. Mal-estar e transferência........................................................................................... 85
3.3. Mal-estar e autoridade .............................................................................................. 90
3.4. Mal-estar e formação ................................................................................................ 98
4. O MAL-ESTAR E A DESTRUTIVIDADE.............................................................................. 109
4.1. Mal-estar, cisões, desfusão e sonhos ....................................................................... 118
4.2. Mal-estar, pandemia e “greve pela vida” ................................................................. 131
4.3. Mal-estar, monopolização do capital e fascismo ...................................................... 135
5. MAL-ESTAR E SOFRIMENTO ........................................................................................... 140
5.1Um diálogo crítico com uma leitura psicanalítica do mal-estar e sofrimento docente150
5.2. Análise dos dados sobre o sofrimento e a adaptação dos professores ..................... 159
6. MAL-ESTAR, NARCISISMO E TRABALHO ........................................................................ 173
6.1. Do trabalho ideal ao ideal de trabalho ..................................................................... 183
6.2. Análise dos dados da pesquisa referentes ao trabalho e às relações de trabalho ..... 186
6.3. Os efeitos psíquicos e corporais da precarização do trabalho .................................. 194
7. MAL-ESTAR, ADMINISTRAÇÃO E AUTONOMIA ............................................................. 219
8. MAL-ESTAR, PRAZER E ELABORAÇÃO ............................................................................ 232
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................................... 241
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 246
ANEXO 1 ............................................................................................................................ 257
ANEXO 2 ............................................................................................................................ 258
10

INTRODUÇÃO

A escola é, desde a modernidade, uma das instituições consideradas fundamentais na


formação de crianças e adolescentes; e o professor é um dos responsáveis pelo seu
funcionamento. Ao trabalhar com crianças em processo de constituição física e psíquica, o
professor contribui com uma perspectiva de formação de indivíduos para a sociedade que se
desdobra para além do mero desenvolvimento biopsicossocial, uma vez que seu ofício trata da
formação do espírito crítico naqueles que estão ingressando na vida em sociedade. O professor
e a escola são aqueles elos culturalmente reconhecidos de transição entre a casa e o mundo
(FREUD, 2010b). Não é pequena a tarefa da escola e do professor de transmitir aos estudantes
em processo de desenvolvimento aquilo que a humanidade produziu culturalmente e de
conhecimento científico.
Os textos de Freud sobre educação (2010b) – apesar dele mesmo dizer que não se
dedicou com profundidade ao tema e que este seria um caminho em aberto para pesquisas em
psicanálise e educação – apontam para a complexidade do trabalho do professor.
Reconhecido por Freud (2018) como uma das três profissões impossíveis: analisar,
educar e governar, o trabalho do professor de escola básica envolve uma série de situações que
o afetam em suas dimensões inconscientes, nos vínculos que produz com os estudantes, na
constituição de sua autoridade e no modo como transmitem o conhecimento.
Trata-se de um ofício em que os professores se constituem pelo “não-saber”, aos quais
nenhum manual produzirá um resultado estritamente correto, sem percalços, contradições ou
mal-estar. É deste saber do professor com sua prática que se forma um modo de ser docente.
Sabemos que para Freud (2010a) o psiquismo se constitui em camadas, marcas
mnemônicas que nunca são totalmente apagadas. E que se expressam num modo de ser do
indivíduo, em seu presente. Neste sentido, Freud trabalhou na dimensão da cultura uma
perspectiva de sua leitura do psiquismo, na medida em que para o psicanalista a psicologia
individual também é social (FREUD, 2011a), e que na cultura se repete uma esfera daquilo que
é individual. Ou como nos lembra Adorno: “A própria relação entre indivíduo e sociedade está
subordinada à dinâmica social. Varia historicamente e, com frequência, verifica-se que coexistem
numa mesma época estruturas que não são ‘contemporâneas’.” (ADORNO, 1973, p. 72).
A cultura também se expressa em camadas, igualmente inconscientes, que constituem
um tempo presente do qual todos temos que nos haver. Estamos diante de uma tensão entre
indivíduo e sociedade em que não há possibilidade de reconciliação.
11

A grandeza de Freud (...) consiste em que ele deixa tais contradições irresolvidas e recusa
a pretensão da harmonia sistemática onde a própria coisa encontra-se cindida em si
mesma. Ele torna evidente o caráter antagônico da realidade social, até onde é possível à
sua teoria e à sua práxis no interior de uma divisão do trabalho predeterminada. A
incerteza da própria finalidade da adaptação, a desrazão da ação racional, que a
psicanálise revela, refletem algo da desrazão objetiva. (ADORNO, 2015a, p. 68).

Adorno (2006a) levou em consideração estes pressupostos de Freud na análise da


educação, apontando as dificuldades do trabalho do professor de escola básica, diante de questões
que se tornaram tabus. As próprias imagem e construção do professor ao longo da história foram
marcadas por concepções que indicam uma “aversão ao magistério”. Há, portanto, marcas
inconscientes ao longo da história do lugar cultural do magistério e que sobrevivem mesmo que
as condições econômicas e sociais tenham mudado.
É diante da complexidade deste ofício que analisamos o mal-estar dos professores da
rede de ensino estadual de São Paulo. Partimos de um percurso do que significa este mal-estar
do ponto de vista da própria condição humana naquilo que Freud estabeleceu em O mal-estar
na civilização (2010a), em que ele indica a necessidade de uma renúncia instintual1 para se
viver em sociedade. Apoiada nesta renúncia também se dá uma perspectiva do mal-estar
docente pelas marcas da cultura e da história. Buscamos compreender como os determinantes
históricos e culturais interferem no modo deste mal-estar se realizar.
Sabemos que Freud (2010a) deixou em aberto no final do livro O mal-estar na
civilização se a sociedade ocidental conseguiria produzir um progresso que não a aniquilasse.
É nesta questão que Marcuse, em Eros e civilização (2010), apresentou sua tese central em
torno da desfusão da pulsão de morte e da pulsão de vida. Ele avalia que o estágio de progresso
ao qual entramos é essencialmente autodestrutivo e está sob a hegemonia da pulsão de morte.
A intensidade do mal-estar e o sofrimento com o qual os professores da rede estadual
de São Paulo têm que lidar podem ser compreendidos como uma evidência desse sofrimento
destrutivo, uma vez que o progresso econômico do Estado mais rico do Brasil não propicia
melhores condições de vida e trabalho para milhares de professores desta rede de ensino. Ao
contrário, vivenciamos situações de muita precariedade2 para estes trabalhadores da educação,

1
Utilizaremos a conceituação de instinto no mesmo sentido que o de pulsão, visto que estamos usando a tradução da
Companhia das Letras, cuja tradução de Paulo César de Souza explicitada na nota do texto Três ensaios sobre a teoria
da sexualidade humana, indica que: “No original, Geschlechtstrieb, formado de Geschelecht, ‘sexo’ e Trieb; note-se
que este último termo, tão discutido na psicanálise, é aqui usado tanto para o ser humano como para os animais. Há
quem recorra sistematicamente a ‘impulso’ e ‘pulsão’; mas nesta coleção ele já é usado para Regung, Drang, Impuls
e, às vezes, Strenbung; apenas excepcionalmente o empregamos para Trieb.” (FREUD, 2016, nota 1, p. 20).
2
No artigo Professores, modernização e precarização, de Aparecida Neri de Souza, um estudo sobre a
precarização do trabalho dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo, aponta-se que: “A noção de
precarização é compreendida aqui como um processo de institucionalização da instabilidade no emprego e no
trabalho (Appay e Thébaud-Moy, 1997, 2000). Caracteriza-se, no plano do emprego e no trabalho, sobretudo pelo
12

que se manifestam em adoecimento físico e psíquico, o que ocasiona milhares de afastamentos


médicos destes professores (ZAFALÃO, 2021), mas também expressam uma dinâmica de
sofrimento e mal-estar para aqueles que resistem a estas condições.
As condições de precarização do trabalho na maior rede de ensino do Brasil, indicam
aquilo que Marcuse (2010) já denunciava. Estamos analisando condições objetivas que
interferem diretamente na capacidade do professor refletir sobre o mal-estar inerente à própria
condição do seu trabalho. Sob determinado contexto social precarizado, a particularidade do
ofício docente é vivida em um modo de sofrimento destrutivo.
Nossa escolha pelos professores como campo de pesquisa a partir da sua escuta parte da
hipótese de que há um intenso mal-estar (destrutivo), e que este produz um sofrimento que
carrega uma denúncia de sua situação social e econômica. Com isso, o ressentimento ocupa um
lugar, uma imagem e um ideal constituídos do ponto de vista pessoal e da cultura, do papel
significativo que este professor deveria exercer. Sob determinadas condições históricas, este
lugar se apresenta obstaculizado, imposto como necessidade externa de sobrevivência.
No ideal do Eu3 constituído pela história pessoal – ontogenética – do professor, e pela
cultura de modo geracional – filogenética –, estão combinadas a particularidade do seu trabalho,
naquilo que se caracteriza no seu processo formativo, e suas condições de trabalho. O que
observamos é que o professor se vê isolado em seu mal-estar, impotente diante de situações
bastante adversas, muitas vezes de intensidade ou constância traumáticas, que favorecem o
desenvolvimento de processos de adaptação e estratégias de defesa4 individuais ou em grupos.

desemprego e pelo trabalho temporário e, no plano do trabalho, pelo questionamento da formação e da qualificação
profissional e pela ausência de reconhecimento e perspectiva de trabalho dos professores (Paugam, 2000; D.
Linhart, 2009). Essa noção se revela contraditória com a concepção de que o trabalho no setor público se
caracteriza pela estabilidade no emprego. (...) As pesquisas na sociologia do trabalho evidenciam uma
desregulamentação de direitos vinculados ao trabalho, o que permite o uso do trabalho precário. Situações de
trabalho precárias são legalizadas, por exemplo, o trabalho eventual e temporário, assim como a subcontratação
de funcionários de apoio pedagógico e administrativo. Situações de emprego consideradas atípicas passam a ser
típicas. Esse processo tem por consequência o questionamento dos direitos trabalhistas e das formas de
representação político-sindical.” (SOUZA, 2013, p. 219).
3
No Vocabulário de Psicanálise, de Laplanche e Pontalis, temos que o “ideal do Eu” é uma “expressão utilizada
por Freud no quadro da segunda teoria do aparelho psíquico. Instância da personalidade resultante da convergência
do narcisismo (idealização do ego) e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com os ideais
coletivos. Enquanto instância diferenciada, o ideal do Eu constitui um modelo a que o sujeito procura conformar-
se.” (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 222).
4
Segundo Christophe Dejours (2022): “A investigação clínica dessas estratégias de defesa implementadas caso a
caso para conter o sofrimento psíquico no trabalho leva a um discussão metapsicológica embaraçosa em muitos
aspectos, uma que sugere: tendencialmente, essas defesas prejudicam os poderes do pensamento; essas defesas
desempenham um papel importante como propulsores subjetivos da servidão e da dominação; essas defesas podem
contribuir de maneira significativa à formação da violência coletiva e até da violência de massa. (...) Na medida
em que trabalhar, não é apenas produzir, mas também de proteger-se contra os riscos do trabalho, as estratégias de
defesa que se deve construir podem avariar em profundidade a mobilização da inteligência individual e mesmo
entrar em concorrência com a inteligência coletiva.” (DEJOURS, 2022a, p.60-1).
13

Um sintoma mais evidente deste fenômeno se dá pelo adoecimento dos professores da


rede de ensino estadual de São Paulo. Zafalão, ao investigar do que adoecem os professores,
verifica que “em 2018 foram concedidas 120.544 licenças médicas a professores, sendo 50.864
por transtornos mentais e comportamentais.” (ZAFALÃO, 2021, p. 54).
O conjunto destes dados, que representam apenas uma parte da categoria listada pelo
pesquisador na rede de ensino estadual de São Paulo, constitui-se em um dos motivos que
justificam esta pesquisa, que visa compreender como se dá essa dinâmica de trabalho que parece
produzir tanto sofrimento psíquico e físico.
Apesar de partimos destes dados de licenças médicas, nosso objetivo foi entrevistar
professores que não estejam afastados da escola e da sala de aula por problemas de saúde ou
por quaisquer outros motivos. Queremos compreender a dinâmica do trabalho do professor da
rede de ensino estadual de São Paulo; ou seja, se podemos perceber na própria dinâmica social
deste trabalho processos que favoreçam o adoecimento.
Esta dissertação investigou as dinâmicas sociais relacionadas ao ofício docente e sua
relação com o mal-estar a partir das falas dos professores. Investigou, portanto, os
determinantes repressivos5 e regressivos6 na maneira como a sociabilidade se desenvolve no
interior da escola.
Ao pesquisar dissertações de mestrado, doutorado, livros e artigos publicados sobre o
mal-estar dos professores, vimos que há temáticas variadas relacionadas a um mal-estar geral
do ofício docente, assim como pesquisas que tratam com recortes mais específicos de uma
região do Brasil e das redes de ensino.
Durante a dissertação dialogamos e discutimos com alguns destes trabalhos tanto do
ponto de vista das possibilidades de interpretações ao longo do percurso de análise dos dados,
quanto verificar e estabelecer diferenças que possam aparecer na análise do mal-estar docente
por parte de outros pesquisadores.
Pesquisamos no site do “Portal Brasileiro de Publicações e Dados Científicos e Acesso
Aberto” (https://oasisbr.ibict.br). As palavras-chave foram “mal-estar docente”, “mal-estar dos

5
Freud, como veremos no percurso desta dissertação, evidenciou uma grande preocupação com a intensidade da
repressão na Cultura, a qual afetaria diretamente o desenvolvimento individual e social dos instintos. Esta
intensidade produz efeitos mortíferos nos modos de sofrimento e tornam necessários que sejam revistos (FREUD,
2011c). Marcuse (2010) irá cunhar o termo “mais-repressão” para caracterizar o modo de organização social
determinado pela monopolização do capital.
6
Esta regressão pode se estabelecer tanto do ponto de vista psíquico em processos de adoecimento ou de defesas
psíquicas, agressivas, autorrecriminativas ou persecutórias; como regressivas na própria sociabilidade no interior
da escola entre gestores, professores e estudantes, carregados por relações de destrutividade, de desligamento,
hegemonizadas pelas pulsões de morte.
14

professores e condições de trabalho”, “mal-estar docente e empobrecimento da experiência”. Além


de acompanhar pelas editoras as publicações de livros sobre a temática do mal-estar docente.
Diante da quantidade e do tipo de dados de pesquisa coletados, organizamos esta
dissertação em oito capítulos, sendo o primeiro de procedimentos e metodologia de trabalho, e
os demais visando articular a base teórica com a análise dos dados.
O intuito foi o de que a cada tópico dos capítulos seja possível aprofundar em mais uma
camada as dinâmicas sociais relacionadas ao mal-estar docente, de modo que ao final da
dissertação uma visão complexa, dinâmica e integral deste fenômeno socialmente determinado
– e que incide sobre cada indivíduo – seja construída. Neste sentido, temos em algumas
circunstâncias um mesmo dado analisado sob variados olhares e perspectivas, a depender da
temática em que se desdobram nos capítulos.
No primeiro capítulo da dissertação discutimos a metodologia de trabalho, visto que
optamos pelas entrevistas de professores da rede de ensino estadual de São Paulo, as quais
iluminam as construções teóricas dos capítulos, buscando abranger a variedade de temas
relacionados ao mal-estar docente. Como escolhemos desde o início utilizar as entrevistas como
material de análise de modo articulado e orgânico juntamente com o referencial teórico,
acreditamos que apresentar a metodologia logo no início deste trabalho pode melhor expressar
o desenho desta dissertação.
No segundo capítulo discutimos sobre o mal-estar civilizatório que atravessa a todos em
conexão com os textos Educação pós-Auschwitz (2006c) e Educação contra a barbárie
(2006b), de Adorno. Constata-se que a experiência dos campos de concentração revelou não
um desvio civilizatório, mas justamente uma marca do seu processo, em que progresso e marcha
civilizatória também se exprimem, atentando para o fato de que permanecem as condições
objetivas que os geraram.
Adorno se fundamenta na psicanálise para compreender na psicologia profunda sua
dimensão social. Em diálogo com Freud, identifica que as marcas da cultura produzem uma
forma de ser do sujeito. “Quanto mais profundamente a psicologia sonda as zonas críticas no
interior do indivíduo, tanto mais pode perceber de forma adequada os mecanismos sociais que
produziram a individualidade.” (ADORNO, 2015a, p. 52).
Neste mesmo capítulo trouxemos para a análise alguns fundamentos decisivos da teoria
freudiana como “desamparo”, “agressividade”, “trauma”, “destrutividade”, “superego”, “ideal
do Eu” e suas relações com o que os professores narram por meio das entrevistas sobre a
experiência do seu mal-estar.
15

No terceiro capítulo tratamos da especificidade do mal-estar do professor da escola


básica diante da particularidade do trabalho que o professor realiza, naquilo que se constitui em
torno dos seus ideais psíquicos e culturais. Nos servimos, neste capítulo, dos diálogos de Freud,
Adorno e Ferenczi e discutimos a partir de categorias como “herança arcaica”, “transferência”,
“autoridade” e “formação”, temas significativos no modo de ser docente.
Todos os tópicos do capítulo são mediados pela escuta da fala dos professores, como a
“herança arcaica”, experiência a partir da transmissão cultural, da filogênese que marca também
o ofício do professor ou a “relação transferencial”, tema decisivo na leitura freudiana a respeito
do mal-estar docente, assim como a constituição de sua autoridade que atravessa uma
perspectiva psíquica em um contexto social, além da própria formação para dar conta de
processos tão intensos.
No quarto capítulo tratamos dos fundamentos da dimensão mais contemporânea do mal-
estar, sua perspectiva destrutiva propriamente dita. Fizemos um panorama na obra de Freud de
como esta destrutividade se desenvolveu e como ela produz uma maneira das dinâmicas sociais
se desenvolverem historicamente. Em diálogo com Freud, indicamos algumas possibilidades
de leituras sobre o mal-estar destrutivo e contemporâneo, para pensar em que contexto se
encontra a educação básica da rede de ensino estadual de São Paulo.
No interior do capítulo discutimos também os efeitos propiciados pelas cisões externas
e internas, resultado de dinâmicas sociais regressivas. Avaliamos que o modo de se realizar o
trabalho do professor afeta inclusive sua capacidade de sonhar. Estabelecemos também os
efeitos que tiveram a pandemia na rede estadual de ensino de São Paulo, a qual sua precária
organização sindical, resultado de anos de políticas de divisão da categoria pelos governos do
estado de São Paulo, aumentaram significativamente os riscos de mortes dos professores. Por
último apontamos que estas políticas estão conectadas de modo mais amplo a própria
organização social do capital de modo global aos quais produz formas de mal-estar destrutivos
nas diferentes regiões do mundo.
No capítulo cinco demarcamos a relação entre o mal-estar e o sofrimento em Freud. Os
textos freudianos abriram possibilidades de pensar o social, que já estavam presentes desde o
início dos seus trabalhos. Em diálogo com outros autores da psicanálise, como Sándor Ferenczi,
observamos a importância de considerar a “realidade exterior” em conexão com a “realidade
psíquica”, mediados pela dinâmica social do mal-estar do professor. Caracterizamos, assim, um
sofrimento destrutivo e não criativo no ofício docente, o que muda sobremaneira a forma como
ele vivencia o seu mal-estar.
16

No capítulo seis sobre “o mal-estar, narcisismo e trabalho”, também tratamos da


especificidade do trabalho como objeto libidinal. O trabalho como necessidade externa não é
um objeto libidinal qualquer; está relacionado à ampliação da comunidade e de um conjunto de
relações sociais que tem efeitos psíquicos significativos, tanto do ponto de vista individual
como social. Neste capítulo, a escuta dos depoimentos dos professores demonstra a
impossibilidade de avaliar apenas individualmente o mal-estar docente, e retoma a tradição que
permeia a Psicologia das massas e análise do Eu (FREUD, 2011a) ao caracterizar a dinâmica
social do sofrimento do professor em seu trabalho, assim como os efeitos psíquicos e corporais
da precarização do trabalho.
No capítulo sete trazemos um aspecto fundamental do mal-estar docente que é a
racionalidade administrada, elemento que interfere diretamente na capacidade criativa e
autônoma do trabalho do professor. Adorno (2020) será nosso referencial na análise pela sua
leitura dialética entre cultura e administração, aos quais nos permitem iluminar os aspectos
educacionais da cultura sob esse contexto heterônomo.
Por último, avaliamos no capítulo oito a relação e a delimitação do “prazer” e da
“elaboração” no mal-estar docente. Categorias fundamentais no desenvolvimento da
psicanálise, são formas pelas quais os professores buscam dar conta do seu mal-estar e que,
também, estão limitadas pelas condições precarizadas de trabalho.
O intuito do conjunto dos capítulos e tópicos é o de permitir uma visão mais complexa e
aprofundada das dinâmicas que produzem o mal-estar docente. Compreendemos que somente
pelo trânsito entre os aspectos individuais e sociais podemos ter uma compreensão maior deste
mal-estar e é por meio de suas diversas variáveis que vamos adentrar. A pesquisa deixa questões
em aberto e outras para serem desdobradas em futuras investigações, uma vez que há uma
particular complexidade do seu objeto de estudo, qual seja: os professores e seu mal-estar. No
conjunto da pesquisa trabalhamos também as notas de rodapé não apenas como um espaço de
aprofundamento e esclarecimentos, sobretudo, como possibilidade de ampliar futuras leituras e
desdobramentos.
17

1. METODOLOGIA E PROCEDIMENTOS DE PESQUISA

Iniciamos o primeiro capítulo com a metodologia e os procedimentos de pesquisa


porque compreendemos que nosso objeto de estudo demanda um modo de análise que se
beneficia mais ao ser articulado ao desenvolvimento de todos os capítulos. O mal-estar docente
é uma temática bastante ampla que implica variáveis econômicas, sociais e psíquicas. Neste
sentido entendemos que “o método é em grande medida mediado pelo objeto e é decisivo que
a sociologia se torne ciente desta mediação.” (ADORNO, 2008, p. 179). Ainda conforme
Adorno (2008, p. 188):

Ao contrário, eu diria que o mandamento fundamental de qualquer investigação


sociológica sensata reside em tentar tanto quanto possível desenvolver os métodos a
partir dos assuntos e do interesse objetivo que tenha. Ou ao menos aplicar os métodos
de modo tal que adquiram suas ênfases a partir da relevância e da importância do
assunto e que não se imponham como independentes diante do objeto.

Demarcar o mal-estar docente como objeto de estudo não é uma tarefa simples. Primeiro
porque é expressão de dinâmicas externas e internas ao professor. Sendo externas, estamos
conectados à perspectiva da totalidade social e, neste sentido, consideramos que esta totalidade
não tem a possibilidade de se apresentar de forma fechada e categórica, visto que é da leitura
da realidade social uma fragmentação relacionada ao próprio processo de alienação. Desse
modo, nesta pesquisa consideramos que

A separação entre sociedade e psique é falsa consciência; ela eterniza categorialmente


a clivagem entre sujeito vivo e a objetividade que impera sobre os sujeitos, mas que
provém deles. Não se pode, entretanto, retirar a base dessa falsa consciência através de
um decreto metodológico. Os seres humanos não conseguem reconhecer-se na
sociedade, e esta não se reconhece em si mesma, porque eles são alienados entre si e
em relação ao todo. Suas relações sociais objetificadas se lhes apresentam
necessariamente como um ser em si. O que a ciência separada pela divisão do trabalho
projeta no mundo apenas reflete o que nele ocorre. A falsa consciência é ao mesmo
tempo correta: vida interna e vida externa estão cindidas uma da outra. Somente através
da determinação da diferença, e não através de conceitos ampliados, sua relação será
expressa de forma adequada. (...) A unificação de psicologia social e teoria social
através do emprego de conceitos iguais em diferentes níveis de abstração leva
necessariamente, no âmbito do conteúdo, à harmonização. (ADORNO, 2015b, p. 75).

Não é possível reduzir a dimensão interna e externa dos indivíduos pela metodologia.
Corremos o risco na pesquisa de, ao harmonizar metodologicamente a relação entre indivíduo
e sociedade, mutilar a própria dimensão cindida do indivíduo através do seu inconsciente,
produzindo um determinismo social absoluto na análise da singularidade ou, por outro lado, um
psicologismo que considera este indivíduo sem dimensão social e historicidade.
18

O que motivou Freud a conceder especial peso aos processos individuais na infância
é, embora de forma não explícita, o conceito de ferida [Beschadigung]. Uma
totalidade do caráter, tal como pressuposta pelos revisionistas como dada, é um ideal
que somente seria realizável em uma sociedade não traumática. Quem, tal como a
maioria dos revisionistas, critica a sociedade atual, não pode se furtar ao fato de que
ela é experienciável em choques, em golpes repentinos e abruptos, condicionados
precisamente pela alienação do indivíduo em relação à sociedade, que com razão é
ressaltada por alguns revisionistas quando falam de um ponto de vista sociológico. O
caráter que eles hipostasiam é bem mais o efeito de tais choques do que de uma
experiência contínua. Sua totalidade é fictícia: poderíamos denominá-lo um sistema
de cicatrizes, que somente poderiam ser integradas sob sofrimento, e nunca
completamente. Perpetrar essas feridas é propriamente a forma pela qual a sociedade
se impõe ao indivíduo, não aquela continuidade ilusória a favor da qual os
revisionistas prescindem da estrutura formada por choques da experiência individual.
Mais do que olhar de soslaio efêmero às circunstâncias sociais destes revisionistas,
Freud salvaguardou a essência da socialização ao se deter firmemente na existência
atomizada do indivíduo. (ADORNO, 2015a, p. 48).

Pensamos que o trabalho analítico e social é compreender a mediação entre a


singularidade e o social. Mediação que considera a diferença de uma sociedade formada por
indivíduos e que estes se constituem psiquicamente numa dimensão social particular, marcada
pelo inconsciente. Esta mediação deixa em aberto as questões porque é também da ordem das
contradições que, em uma dimensão, se apresentam entre indivíduo e sociedade, no indivíduo
mesmo e na própria sociedade.
Freud (2010a) estabeleceu que o princípio de realidade e o princípio de prazer não se
fecham e não se reconciliam. As próprias sociedades de animais em que isto aconteceu deixaram
de criar possibilidades de desenvolvimento. Esse não fechamento é o que produz a marca do
psiquismo e do próprio desenvolvimento cultural, histórico. “Em outras espécies animais pode-se
ter chegado a um equilíbrio momentâneo entre as influências do meio e os instintos que nela lutam
entre si, e desse modo a uma parada no desenvolvimento.” (FREUD, 2010a, p. 91). Além disso,

A separação entre sociologia e psicologia é incorreta e correta ao mesmo tempo. Incorreta,


ao endossar a renúncia ao conhecimento da totalidade, que também impõe a separação;
correta, na medida em que registra de forma não reconciliada a ruptura realmente
consumada, em vez da unificação apressada no conceito. (ADORNO, 2015b, p. 91).

Freud (2018) trabalhou os efeitos desta questão em um de seus últimos textos, em 1937,
Análise terminável e interminável. O que se denominava “cura”, “normalidade psíquica”, está na
ordem do impossível para o processo analítico, tanto no que tange ao tratamento analítico quanto à
possibilidade dos instintos se amansarem completamente na produção do mal-estar da cultura.
Isso tem efeitos na posição do indivíduo na sociedade. Em especial em uma sociedade
marcada por condições objetivas que empobrecem a individualidade e produzem mecanismos
de capturas profundas, com novas configurações psíquicas, numa forma cada vez mais
19

irracional de sociabilidade. Pensamos uma metodologia, portanto, que não se restrinja a uma
análise voltada ao circuito fechado da individualidade, do psiquismo.

Quanto mais estritamente o âmbito psicológico é pensado como um campo de forças


fechado em si e autárquico, tanto mais completamente a subjetividade é dessubjetivada.
(...) A psique estudada rigorosamente segundo suas próprias leis torna-se inanimada:
psique seria apenas o tatear por aquilo que não é ela mesma. Isso não é uma mera questão
teórico-cognitiva, pois prolonga-se no resultado da terapia, a saber, aqueles seres
humanos desesperadamente ajustados à realidade, que se moldaram literalmente aos
aparelhos a fim de poder se impor, de forma mais bem-sucedida, em sua limitada esfera
de interesse, seu “subjetivismo. (ADORNO, 2015b, p. 98).

O fato de não existir reconciliação possível entre indivíduo e sociedade, entre princípio
do prazer e princípio de realidade, não impediu que tanto Freud quanto Adorno indicassem os
aspectos repressivos e destrutivos, ou mesmos de barbárie do desenvolvimento social. Os
efeitos que estas manifestações mais evidentes da pulsão de morte, sem a mediação da cultura
ou de Eros, podem produzir nas formas regressivas de sociabilidade humana.

Não menos importante foi a visão de Freud, ao estabelecer que, como as renúncias
cada vez maiores impostas não encontram uma saída equivalente nas compensações
pelas quais o ego as aceita, os instintos assim reprimidos não têm outro caminho senão
o da rebelião. A socialização gera o potencial da sua própria destruição, não só na
esfera objetiva mas também subjetiva. (ADORNO, 1973, p. 41).

No percurso desta investigação construímos questões para o roteiro de entrevistas


buscando com isso examinar aspectos que considerassem o professor na sua relação com o
outro. Além disso, nosso recorte é a vida social e de trabalho do professor, que não se restringe
à esfera da sala de aula, mesmo considerando que ali se apresenta uma dimensão fundamental
das contradições do indivíduo e do social.
Pensamos que um trabalho centrado somente no recorte da sala de aula corre o risco de
não apenas não compreender a complexidade dos processos de mal-estar docente, como mutilar
uma leitura do mal-estar produzindo um desmentido acerca deste7. Abrimos mão, portanto, da
exclusividade do enquadre interno do professor na sala de aula. Mesmo porque nossa hipótese é
de que os professores que estão enredados na matéria prima do mal-estar oriunda de seu trabalho
também estão sob forte processo de adoecimento. Ou seja, temos professores que executam suas
atividades de alguma forma a contento, da perspectiva de sustentação do mal-estar docente, num
circuito fechado de adaptação, com formas particulares de defesa e sociabilidades regressivas.

7
O desmentido é uma categoria criada por Sándor Ferenczi para explicitar o caráter traumático da negação da dor
e do sofrimento do outro. Para Ferenczi: “Na análise dos pacientes traumatizados, é o ato de o analista acreditar
nas experiências reais relatadas pelo paciente – independente das experiências fantasísticas correlatas – o que
facultará a integração dos registros traumáticos clivados que ficaram apartados em decorrência do desmentido.”
(KAHTUNI, SANCHES, 2009, p. 121).
20

Os dados de afastamento de professores obtidos por Zafalão (2021) capturam uma


manifestação do mal-estar do professor que são da ordem de um registro médico das doenças.
Nossa pesquisa se justifica por investigar o mal-estar do professor para ter em conta a dinâmica
social deste.
Trata-se de uma investigação que busca verificar como o professor pensa e vê o seu
mal-estar, a partir de suas construções e ideais a respeito do seu trabalho. O que tem uma
importância na compreensão da dinâmica do trabalho, como pensa e percebe seu cotidiano,
ampliando o entendimento das dimensões do mal-estar do professor da educação básica.
Utilizamos como fontes primárias as entrevistas com os professores, de modo a captar
e analisar o mal-estar que é atravessado por dimensões pessoais, geracionais e culturais. As
entrevistas representam a possibilidade de investigar como o indivíduo se percebe nas
diferentes interações humanas e sociais, além das próprias contradições pessoais e psíquicas
nestas interações.

(...) nós muito cedo procuramos inserir as chamadas ponderações psicológicas no que
se denomina teoria objetiva da sociedade. Ou seja, antes de mais nada devido à
simples e concreta razão de que sem o conhecimento preciso da extensão da sociedade
ao âmbito dos indivíduos seria incompreensível que permanentemente incontáveis
indivíduos – e pode-se mesmo dizer: a maioria avassaladora dos homens – agem
seriamente de modo contrário a seus interesses racionais. (ADORNO, 2008, p. 274).

O referencial que embasou a metodologia de pesquisa e seus procedimentos, assim


como a análise e coleta dos dados, são a Teoria Crítica da Sociedade, em especial os escritos
de Adorno, e a contribuição dos trabalhos de Freud e de outros autores da psicanálise como
Sándor Ferenczi. Consideramos também o legado marxiano da dialética materialista e histórica
através da lente da Teoria Crítica da Sociedade.

é importante enfatizar que a dialética, para ser materialista e histórica, não pode constituir-
se numa “doutrina”, ou numa espécie de suma teológica. Não se pode constituir em uma
camisa de força fundada sob categorias gerais não historicizadas. Para ser materialista e
histórica tem de dar conta da totalidade, do específico, do singular e do particular. Isto
implica dizer que as categorias totalidade, contradição, mediação, alienação não são
apriorísticas, mas construídas historicamente. (FRIGOTTO, 2018, p. 79).

Partimos de um problema inicial: verificar se há um modo de mal-estar específico da


categoria dos professores da educação básica da rede de ensino estadual de São Paulo. As
entrevistas contribuem para nos aproximarmos da narrativa singular produzida, de modo a
perceber como cada entrevistado se relaciona com a ideia de um mal-estar na profissão. A
psicanálise também nos ajuda a pensar que o próprio método de entrevista semiestruturada tem
flexibilidade de poder ser alterado com o que for produzido mediante a escuta. Para “constituir
21

o suporte de um ponto de ignorância para reintroduzir o que não se sabe como eficácia
operatória (...) exige considerar a hipótese do inconsciente.” (VORCARO, 2018, p. 43).
Foram realizadas entrevistas com oito professores entre outubro e dezembro de 2021. O
ano de 2021 foi um dos mais duros da pandemia, atingindo seu pico de casos de Covid e mortes
no primeiro semestre e que se arrefeceu no segundo semestre devido ao aumento da vacinação.
A partir de agosto de 2021 temos o fim do rodízio das aulas presenciais e a volta da totalidade
dos estudantes para a escola, o que produziu algumas importantes reflexões por parte dos
professores. O segundo semestre foi marcado também pela votação, em outubro de 2021, de um
projeto de lei, PL268 (transformado na lei complementar (LC) 1.361/21, publicada no Diário
Oficial do Estado em 22 de outubro de 2021), na Assembleia Legislativa de São Paulo, que retirou
direitos, como as faltas abonadas dos professores, assim como reorganizou as licenças prêmios;
marcado também por uma tumultuada atribuição de aulas dos professores categoria O e por uma
proposta de lei complementar que ficou conhecida como a “Nova Carreira do Magistério” que
começou a ser discutida no final do ano de 2021 e foi aprovada na câmara no dia 29 de março de
2022 (transformado em lei complementar (LC) 1.374, publicada no Diário Oficial do Estado em
30 de março de 2022) com grande oposição sindical, pois aumenta o salário dos professores
através de subsídios (não incorporados na aposentadoria) desde que os professores aceitem a
mudança de seu contrato de trabalho, com perdas de direitos (quinquênios, sexta parte e
bonificações) em especial os professores efetivos e estáveis. Os professores categoria O e os
novos ingressantes em futuros concursos da rede já estarão automaticamente sob este novo
contrato aprovado pela câmara.9

8
Assim a Associação dos Funcionários Públicos (Afpesp) noticiou a aprovação do PL: “O Projeto de Lei
Complementar (PLC) 26/2021, que altera regimes legais da carreira do servidor público no estado de São Paulo,
foi aprovado na Assembleia Legislativa (Alesp) na noite desta terça-feira (19). O texto base teve 50 votos
favoráveis (...) Enviado pelo Governo do Estado de São Paulo à Alesp, em regime de urgência, a chamada reforma
administrativa altera pontos da bonificação por resultado, vinculando a desempenho institucional (não mais a
avaliação individual); extingue a possibilidade de faltas abonadas — hoje, servidores podem acumular até seis
faltas por ano sem necessidade de justificativa; permite a contratação de servidores temporários em caso de greve
que "perdure por prazo não razoável" ou considerada ilegal pelo Poder Judiciário, já que altera a Lei
1.093/2009.(...) O texto também acaba com o reajuste de adicional por insalubridade com base no IPC (Índice de
Preços ao Consumidor) da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas) e reduz, ainda, de 30 para 25 dias
o número de faltas, no prazo de cinco anos, que garante o direito à licença-prêmio aos servidores.” In:
https://www.afpesp.org.br/noticias/politica/plc-26-2021-e-aprovado-na-alesp-com-50-votos-favoraveis
9
Reportagem do FolhaPress, de 29/03/2022, “Sob protestos, novo plano de carreira para professores de SP é aprovado”.
A matéria traz que: “Com clima tenso do lado de fora e no plenário da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp),
deputados aprovaram, nesta terça-feira (29), o projeto de lei que institui plano de carreira para professores do ensino médio
e fundamental, diretores de escola e supervisores educacionais da rede estadual pública. (...) Um dos pontos criticados por
opositores é o de que, com a mudança, educadores passam a integrar o regime de remuneração por subsídio, o que exclui
a incorporação de gratificações, bônus ou prêmios atualmente existentes.(...) Outro dispositivo, contestado pela oposição,
é o que disciplina o magistério no PEI. De acordo com trecho do artigo 51, é permitida, no interesse da administração
escolar, o imediato encerramento da atuação do docente nas escolas. O deputado Carlos Giannazi (PSOL) classificou essa
22

Nas entrevistas buscamos compreender a formação dos professores, como construíram seu
caminho profissional, como se percebem como professores, como entendem e compreendem a ideia
de um mal-estar e sofrimento no cotidiano escolar. As entrevistas semiestruturadas foram realizadas
por uma amostra por conveniência a partir da indicação de contatos do pesquisador.
As entrevistas duraram em média uma hora, de modo remoto pelo Google Meet, com
gravação de áudio e parecem ter produzido um efeito positivo nos entrevistados no sentido de
se sentirem valorizados. Alguns mencionaram que este tipo de conversa deveria se repetir na
própria escola como possibilidade de reflexão sobre o mal-estar e as condições de trabalho.
Como já apontado, as entrevistas foram resultado da rede de contatos do pesquisador
produzida ao longo destes anos como professor das redes estadual e municipal e cursos em comum
na área da educação. A amostra por conveniência favoreceu a confiança dos entrevistados de modo
que se sentissem à vontade para abordar temas complexos e profundos da condição docente.
No geral, o pesquisador não teve grandes dificuldades para buscar professores para as
entrevistas. Isso ocorreu apenas quando as indicações não foram da rede direta do pesquisador.
Uma entrevistada comentou que “é difícil falar das dores do trabalho”, mas as resistências que
porventura existiram foram diluídas ao final das entrevistas. Avaliamos que o professor também
se sente muito cobrado por sua prática em condições muito adversas de trabalho, e uma
entrevista como essa, mesmo que respeitando o sigilo dos entrevistados e a assinatura do Termo
Livre de Consentimento (ANEXO 1), no qual detalha a pesquisa, pode representar a sensação
desta cobrança, o que é um risco.
Utilizamos um roteiro de entrevistas semiestruturado com o objetivo de abordar várias
dimensões do ofício docente – tanto pessoais como sociais –, o mal-estar, as condições de trabalho
e os prazeres do trabalho como professor. O roteiro abarcou questões sobre os ideais que constituem
o professor no seu próprio trabalho, sobre sua formação, seu percurso profissional, assim como
familiar e geracional; perguntamos, também, sobre sua autonomia no trabalho e autoridade docente,
suas relações com estudantes, professores e gestão (ANEXO 2).
Além das entrevistas, alguns autores que estudam o sofrimento do professor na rede de
ensino estadual de São Paulo servem de base para reflexão. São recursos que, combinados ao
arcabouço teórico, nortearam a pesquisa e nos ajudaram a ter uma visão mais profunda de nosso
objeto de estudo.

avaliação como uma armadilha para o educador. ‘A única classe que faz greve contra o governo é a do magistério, e quem
garante que eles não serão punidos por diretores de ensino e governantes? Criam uma avaliação que só vai intensificar o
assédio’, diz Gianazzi”. In: https://esportes.yahoo.com/noticias/sob-protestos-novo-plano-carreira-004900317.html.
23

A partir da leitura mais sistemática das obras de Freud e Adorno refletimos sobre o
material coletado em busca de identificar se haveria e qual seria a particularidade do mal-estar
existente no ofício do professor, na sua experiência do cotidiano escolar, na própria relação
com outros professores, com estudantes e com a gestão escolar, bem como a partir das políticas
públicas em educação adotadas no Estado de São Paulo. Avaliamos que tanto Freud quanto
Adorno nos permitem compreender os fundamentos, as tendências sociais e psíquicas do
desenvolvimento da modernidade.
Compreendemos que, apesar das singularidades, é provável que ocorra um discurso
comum do sofrimento entre professores da rede de ensino estadual de São Paulo. A partir das
suas respostas é possível aprofundar conceitualmente os aspectos econômicos, culturais e
sociais no sentido que Adorno traz ao mencionar as entrevistas como recurso de pesquisa:

Penso que um dos aspectos do que chamaria de sensatez racional metodológica é


precisamente aprender a ponderar tais questões com muito rigor. Na medida que uma
reflexão dessas tem a pretensão de ser científica num sentido superior do termo, ela
deve incluir entre seus momentos a constatação de que os resultados qualitativos, que
parecem puramente individuais, encontrados com os questionamentos sociológicos,
como, por exemplo, atitudes, comportamentos e opiniões arraigadas, ideologias a
serem examinadas, na verdade não correspondem apenas aos indivíduos – não
pertencem ao “domínio singular”, como dizia a senhora Noelle-Neumann – mas são
socialmente mediadas, de modo que em consequência esses momentos qualitativos
sempre incluem momentos quantitativos. (ADORNO, 2008, p. 192).

Optamos por trazer a análise das entrevistas no conjunto dos capítulos, visto que são
nosso referencial principal nas possibilidades de reflexões com a teoria. As perguntas tratam de
temáticas amplas do mal-estar, estão em diálogo com o conteúdo teórico e o enriquecem, ao
mesmo tempo em que permitem uma conexão diante da fala viva dos professores.
Nosso cuidado foi considerar o trabalho de análise sem transformar o método em mera
técnica que produz um produto que universaliza o objeto e apaga sua manifestação singular.
Consideramos o mal-estar docente a partir da escuta das singularidades de modo a captar sua
objetividade social. Se, como nos lembra Freud (2014f), o sintoma traz uma verdade do sujeito,
pensar no modo como sofre o professor pode revelar um modo de ser docente na perspectiva
de um contexto social.
A partir do nosso referencial teórico acreditamos que as entrevistas podem contribuir
para captar as nuances, mediações e contradições na investigação, sendo que nosso trabalho
analítico é dar destaque às falas como uma experiência singular, as quais reflitam também os
aspectos mais gerais que a teoria nos traz.

A análise dos dados representa o esforço do investigador de estabelecer as conexões,


mediações e contradições dos fatos que constituem a problemática pesquisada.
24

Mediante este trabalho, vão se identificando as determinações fundamentais e


secundárias do problema. É no trabalho de análise que se busca superar a percepção
imediata, as impressões primeiras, a análise mecânica e empiricista, passando-se
assim do plano pseudoconcreto ao concreto que se expressa o conhecimento
apreendido da realidade. É na análise que se estabelecem as relações entre a parte e a
totalidade. (FRIGOTTO, 2010, p. 98).

Estabelecemos este recorte da rede estadual de ensino para perceber os aspectos


concretos das políticas públicas em educação nas condições subjetivas do trabalho docente. As
entrevistas demonstram que este profissional traz uma série de experiências do modo de ser
docente oriundas de variadas instituições como escolas das redes municipais, escolas particulares,
colégios militares e, também, da sua localização geográfica, de sua condição de classe social, de
gênero e raça, as quais produzem experiências muito particulares de ser professor. “Aqui o que
importa efetivamente é aprofundar-se mediante uma espécie de análise no material individual
específico, para apreender seu conteúdo social e, ao concretizá-lo tanto quanto possível, confrontar
o mesmo com seu possível efeito sobre os outros.” (ADORNO, 2008, p. 221).
Combinado a isso, temos o percurso não profissional de cada professor, seus ideais
familiares, suas marcas produzidas pela cultura, suas crenças, seu modo de conceber as
resistências e seus valores que são das ordens consciente e inconsciente. Quando escutamos o
professor estamos falando de várias dimensões. Nesse sentido, pensamos no teor e na sequência
das questões propostas no roteiro semiestruturado como uma possibilidade também de uma fala
livre, que possibilitem o surgimento de novas questões e, dessa maneira, produzir um certo tipo
de vínculo com o pesquisador assemelhado àquele encontrado na transferência10.
Obviamente este pequeno recorte de entrevistados não representa os cerca de 215 mil
professores 11 da rede de ensino estadual de São Paulo. Contudo, busca demonstrar, através
destas singularidades, a complexidade do ofício do professor da educação básica e que cada um
dos professores carrega a dimensão do fenômeno social que atravessa a educação.

O que realmente importa é que haja uma apreensão das mediações – ou melhor – que,
no específico campo temático em que nos aprofundamos, haja a apreensão das
interações objetivas que nele ocorrem de maneira imanente, no sentido em que
propriamente em cada campo temático de que a Sociologia se ocupa haja
necessariamente também outros campos temáticos. (ADORNO, 2008, p. 262).

10
No tópico Mal-estar e transferência do capítulo três discutimos e caracterizamos o significado desta categoria
na psicanálise freudiana, em especial a relação entre professores e alunos. Por ora, segundo o Vocabulário da
Psicanálise: “Designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre
determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro
da relação analítica”. (LAPLANCHE; PONTALIS, 2001, p. 514).
11
Número registrado pelos pesquisadores da REPU em maio de 2022. (GEPUD/REPU,12 jun.2023, p. 5).
Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e www.repu.com.br/notas-tecnicas
25

Desse modo, os dados decorrentes das entrevistas estão presentes nos capítulos, por uma
opção epistemológica e de estilo pessoal do pesquisador. As citações muitas vezes podem
parecer extensas, contudo, o que nos guiou foi a relação entre o depoimento e os temas
associados ao mal-estar docente privilegiados naquele capítulo. Praticamente todas as temáticas
abordadas e perguntadas aos professores, de alguma forma, foram utilizadas para análise.
Consideramos que esta é uma dentre outras análises possíveis deste material e, evidentemente,
a riqueza de dados ali presentes não se esgota no trabalho aqui apresentado.

1.1. Participantes da pesquisa

Entrevistamos oito professores da rede de ensino estadual de São Paulo que estavam
ativos, trabalhando, sem nenhum tipo de afastamento ou desvio de função, com diferentes
contratos de trabalho, tempos de magistério distintos, de várias áreas de formação, sendo quatro
mulheres e quatro homens. Consideramos este número de entrevistados pela diferença de
contratos de trabalho. Em especial focamos em quatro destes contratos:
- Professor efetivo, categoria A;
- Professor estável, categoria F;
- Professor contratado, categoria O; e
- Professor eventual, categoria V.
Dos oito professores entrevistados, três são professores efetivos, categoria A (dois
homens e uma mulher), contrato que representa cerca de 70% da rede de ensino; 1 professor
categoria F, contrato que representa cerca de 15% da rede de ensino; três professores categoria
O, contrato que representa cerca de 15% da rede de ensino (duas mulheres e um homem); e
uma professora categoria V, eventual. Escolhemos entrevistar mais mulheres na categoria O e
V por verificar um aumento delas nos contratos mais precarizados (ZAFALÃO, 2021).
Optamos por um número maior de entrevistados na categoria O12 por representar um contrato
no qual o até então governo João Dória (2019-2022) escolheu como paradigma de suas políticas
para Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), com projetos de lei que aproximam os

12
Utilizamos os dados da pesquisa de Zafalão (2021) os quais eram baseados nos registros de 2018 da Seduc. Os
últimos dados de maio de 2022 registrados pela REPU (GEPUD/REPU, 12 ju, 2023) demonstram que os
professores categoria O já representam cerca de 40% dos professores da rede de ensino estadual de São Paulo.
Após mais de 10 anos sem concursos para efetivação dos professores, a Secretaria Estadual de Educação lançou
um edital neste primeiro semestre de 2023 na qual registrou 289 mil inscritos para concorrer a 15 mil vagas
docentes. Número abaixo das necessidades da rede. Fonte: https://g1.globo.com/sp/campinas-
regiao/educacao/noticia/2023/05/11/concurso-publico-para-professores-da-rede-estadual-de-sp-tem-11-vagas-na-
regiao-de-campinas-veja-cidades-cargos-e-regras-do-edital.ghtml .
26

contratos dos efetivos e estáveis aos do categoria O, em especial o que aumenta o salário dos
professores (a chamada “Nova Carreira do Magistério”) desde que aceitem um contrato de
trabalho sem direitos adquiridos como quinquênio e sexta parte 13 , algo característico do
contrato dos professores da categoria O.
É importante lembrar que muitos dos entrevistados tiveram experiências com outros
contratos de trabalho. Apenas um professor, Pedro 14 , entrou na rede de ensino estadual
diretamente como efetivo; todos os outros tiveram experiências com mais de um contrato ao
longo do seu percurso docente, o que enriquece os dados da pesquisa.
O pesquisador convidou, diretamente, seis participantes através de sua rede de contatos
(professores João, Pedro, Ana, Vera, Luiz, Fernando) e dois professores que sem contato direto,
foram indicados por sua rede de contatos (professoras Denise e Luana), totalizando oito
entrevistados. Todos foram apresentados à pesquisa e consentiram em participar através da
assinatura do Termo de Consentimento Livre (TCL). Receberam cópia das entrevistas
transcritas para leitura antes que fosse realizada a análise dos dados. Combinamos também que
após as entrevistas, no momento de análise dos dados, se fosse necessário retomar alguma
questão, poderíamos contatá-los novamente. Isso ocorreu apenas uma vez com o professor João
ao qual foi perguntado sobre seus sonhos relacionados ao trabalho docente.
Dos oito professores, dois deles acumulam suas atividades de trabalho tendo dois cargos
como professores na rede de ensino estadual (Professores Luiz e Pedro), dois deles têm um cargo
como professor na rede estadual e um na rede municipal de ensino (professores João e Ana), dois
deles acumulam o trabalho como professores da rede estadual com outros trabalhos fora da
educação (Professores Fernando e Denise), e dois deles trabalham apenas na rede estadual – no
que pese serem as duas professoras que relataram, na entrevista, ter filhos (Professora Vera e
Luana). A professora Luana tem um filho pequeno que demandou cuidados inclusive enquanto
participava da entrevista. A professora Vera, já com filhos adultos, contou, em vários momentos
da entrevista, que acumulou seu trabalho como professora também em outras escolas. Temos,
portanto, que a maioria dos professores entrevistados trabalham com uma jornada acima das 40
horas semanais, definidas pela legislação trabalhista como adequadas.

13
Segundo comunicado da APEOESP, sindicato dos professores da rede estadual de São Paulo em 18/12/2021:
“Novamente, uma proposta que causa impactos na vida de milhares professores na rede estadual de ensino é
formulada em gabinetes, sem diálogo com as entidades e com a comunidade escolar. Importante salientar também
que a proposta ocorre em sequência de outras alterações profundas para o conjunto dos servidores públicos
paulistas, como o confisco das aposentadorias e pensões e a reforma administrativa (PLC26).”
14
As identidades de todos os entrevistados foram preservadas com o uso de nomes fictícios.
27

Igualmente, há uma marca histórica e cultural nestes professores: todos são filhos de
trabalhadores, por vezes com avós e pais da zona rural e analfabetos, com pais e avós migrantes
de outros estados brasileiros para São Paulo, sendo que alguns dos entrevistados se tornaram
os primeiros da família a ter ensino superior. O que se apresenta como uma questão para pensar
em torno das mudanças e contradições de ideais familiares a partir de uma perspectiva de
ascensão social ou mesmo regressão social dentro de uma sociedade de classes. Além, é claro,
da própria relação que eles estabelecem com os estudantes, em sua maioria oriundos das
periferias da região metropolitana de São Paulo. Os professores colocam, muitas vezes, sua
vida pessoal como modelos para estes estudantes pensarem em sua própria condição, em que
pese ser o lugar social do professor também contraditório para os próprios entrevistados.
Nos trechos das entrevistas utilizados para análise de dados nos capítulos, os professores
foram apresentados pelo nome, o tipo de contrato de trabalho e o tempo de magistério
exclusivamente na rede estadual.
No quadro abaixo aprestam-se algumas referências de cada professor(a) como idade,
tempo de atuação como docente exclusivamente na rede de ensino estadual, o tipo de contrato
de trabalho e os possíveis acúmulos que podem ter na rede de ensino estadual, em outras redes
de ensino ou mesmo trabalhos distintos da educação, assim como a formação específica
educacional de cada um deles.
Entendemos que organizar estes referenciais são importantes visto que determinam o
tempo de experiência de cada professor, ou seja, a própria condição pela qual foi exposto a maior
ou menor experiência docente de seu mal-estar, assim como estabelece sob quais condições
contratuais ou de acúmulo de trabalho o docente está apontando a particularidade deste mal-estar.
A idade dos professores, tal como suas formações específicas, contribui nesta investigação.

Quadro 1 – Participantes: idade, tempo de rede, contrato de trabalho, acúmulo e formação


Professores/as e Tempo de Tipo de contrato de trabalho na rede de Formação
idade (nome atuação na rede ensino estadual e se tem acúmulo de
fictício) estadual trabalhos

Pedro, 50 anos 21 anos Categoria A (é efetivo em dois cargos desde o Letras, professor de
início de sua entrada na rede de ensino Língua Inglesa e
estadual) Português
João, 38 anos 13 anos Categoria A (os primeiros dois anos na rede História, professor de
foi como temporário. Acumula como História
professor da rede de ensino municipal)
Ana, 34 anos 15 anos Categoria A (ficou afastada durante 2 anos -
07-2019 a 07-2021, pelo artigo 202). Geografia, professora
Acumula como professora na rede de ensino de Geografia
municipal
28

Luiz, 42 anos 15 anos Categoria F (efetivou em segundo cargo em História,


2017 e acumula o cargo de F e de efetivo Professor de História
desde então)
Luana, 33 anos 8 anos Categoria O (trabalhou alguns anos como Química,
categoria V antes de pegar aulas como Professora de
categoria O) Química
Denise, 35 anos 3 anos Categoria V (acumula com outros trabalhos Geografia,
fora da educação) Professora de
Geografia

Fernando, 41 anos 12 anos Categoria O (iniciou como professor eventual


antes de pegar aulas como categoria O). História,
Acumula com outros trabalhos fora da Professor de História
educação
Vera, 52 anos 13 anos Categoria O Filosofia,
Professora de
Filosofia
FONTE: Dados da pesquisa

1.2. Roteiro da entrevista

O roteiro da entrevista visou abarcar as várias dimensões do mal-estar docente na


perspectiva pessoal, geracional, cultural, econômica e histórica. Foram produzidas 25 questões
que, no momento da entrevista, puderam ser desdobradas em outras mediante as respostas dos
entrevistados.
As questões 1, 2, 4, 5 e 6 visaram conhecer o percurso formativo do professor diretamente
relacionado a uma perspectiva pessoal, familiar e de constituição dos ideais do professor. As
questões 7, 9, 10, 14 e 21 estiveram relacionadas a perspectivas dos ideais culturais, sociais e
políticos do professor e da profissão. As questões 2,8,11,12,13,15,16 relacionaram-se à
precarização, às condições e relações de trabalho. As questões 17, 18, 19 e 22 disseram respeito
ao adoecimento, à violência, ao sofrimento e à adaptação do professor. As questões 23, 24 e 25
tangem ao prazer e ao sofrimento, assim como as possibilidades de reflexão de sua condição.

Quadro 2 – Objetivos e questões analisadas no roteiro


Objetivo das questões Roteiro de questões

Questões relacionadas ao 1-Qual a sua formação?


percurso formativo e 2-Quanto tempo você trabalha como professor da rede estadual de ensino?
profissional, o mal-estar Acumula com outras redes de ensino ou trabalhos? Pretende se aposentar na
pessoal, familiar e dos ideais educação?
do professor. 4-Por que você escolheu a educação como caminho profissional?
29

5-Qual a história profissional e educacional dos seus pais e avós? Você teve
incentivos familiares para ser professor?

6-Com sua experiência no trabalho como professor hoje, você escolheria


novamente ser professor se estivesse iniciando os estudos? Por quê?

Questões relacionadas ao mal- 7 – O que você considera que seja o seu papel social como professor?
estar e aos ideais culturais, 9- O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter
sociais e políticos da profissão. autonomia no seu trabalho como professor?
10-Como você avalia a afirmação: “o professor não tem mais autoridade em
sala de aula”
14 -Você avalia que é valorizado socialmente como professor? Por quê?
21 -O que você acha da afirmação: “houve um tempo em que o professor era
mais respeitado pelo seu trabalho”

Questões relacionadas ao mal- 2-Na rede estadual qual é seu contrato de trabalho? Como avalia este
estar da perspectiva da contrato?
precarização do trabalho, das 8-Quais são as maiores dificuldades no seu trabalho?
condições de trabalho e das 11-Como você avalia sua formação para o trabalho docente? Há espaços de
relações de trabalho. formação significativos na escola?
12-Você vivenciou algum atrito referente ao trabalho seja com alunos,
professores ou gestão ou de algum outro tipo? Como se deu? Como foi
solucionado? Qual foi o papel da gestão nesse episódio?
13-Na sua avaliação há divisões de grupos na escola entre professores, seja
na perspectiva geracional, por contrato de trabalho, por modos de trabalhar
ou por outra questão? Como se manifesta isso?
15-Como você avalia suas condições de trabalho e salário?
16- Como você avalia o processo de evolução na carreira do professor do
estado?
20 -Você viveu situações em seu trabalho em que sentiu não ter amparo da
gestão? E viveu situações em que se sentiu amparado pela gestão? Poderia
contar?
30

Questões relacionadas ao mal- 17-Você acha que há sofrimento decorrente do trabalho de professor? Como
estar relacionadas ao ele se manifesta?
adoecimento, sofrimento e 18-Você já teve algum problema de saúde que avalia ser resultado do seu
adaptação do professor. trabalho como professor?
19-Você já sofreu algum tipo de violência física, verbal, psicológica
decorrente de sua profissão? Qual foi o encaminhamento dessa situação?
Quem te ajudou?
22-Você acha que há um processo de adaptação do professor. Que com o
tempo ele vai perdendo sua capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço
do seu trabalho?

Questões relacionadas ao mal- 23-O que te dá prazer no trabalho como professor?


estar, prazer, sofrimento e 24-Você avalia que o sofrimento do professor pode ser uma possibilidade de
possibilidades de reflexão. pensar novas formas de lidar com o trabalho? E mesmo de ser professor?
Você avalia que há alguma possibilidade criativa no sofrimento do
professor? Como se daria para você?
25-Gostaria de comentar mais alguma coisa?

FONTE: Dados da pesquisa


31

2. O MAL-ESTAR NA CULTURA

Vivemos numa época singular.


Percebemos, com espanto, que o progresso
fez um pacto com a barbárie.

Sigmund Freud

Em Educação após Auschwitz, Theodor Adorno discute que um dos objetivos da


educação é que Auschwitz não se repita; mais detidamente aquilo que causou esta barbárie não
se repita. A preocupação de Adorno é que as causas que geraram este nível de regressão ainda
persistem. (ADORNO, 2006c).
Adorno utilizará a psicanálise e os textos de Freud como um referencial teórico decisivo
para compreender a relação entre a formação do indivíduo, a cultura e a sociedade. Caminhará
com Freud e para além dele nesta compreensão. Como diz Adorno, “dentre os conhecimentos
proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos
mais perspicazes pareceu-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece
progressivamente o que é anti-civilizatório.” (ADORNO, 2006c, p. 119).
O autor se preocupa em compreender o que se produziu na civilização para que milhões
de pessoas morressem de forma planejada, com o auxílio do que de mais avançado existia naquele
momento do ponto de vista técnico e tecnológico na sociedade alemã. O que percebemos ao ler
os textos do livro Educação e Emancipação, de Theodor Adorno, é que esta não é uma questão
de um desvio civilizatório ou de um passado remoto. O que está colocado ali são os fundamentos
do próprio desenvolvimento civilizatório. Trata-se do produto das condições objetivas que
tornaram aquele processo uma expressão da regressão a uma barbárie coletiva.
No percurso de construção desta pesquisa constatamos que a educação que se desenvolve
na rede estadual de São Paulo, não por acaso o Estado mais rico do Brasil, onde as bases do
progresso, do ponto de vista do capital, estariam mais avançadas, passa por várias características
de um processo que podemos avaliar como regressivo, no qual o sintoma de adoecimento físico
e psíquico dos professores é um dos fenômenos mais evidentes. (ZAFALÃO, 2021).
Há algo que se passou a partir das condições objetivas desta civilização para que o
século XX fosse marcado por uma dimensão tão destrutiva. Adorno parte desta compreensão,
32

em especial dos textos de Freud, O mal-estar na civilização15 e Psicologia das massas e análise
do eu, no qual diz “que mereceriam ampla divulgação.” (ADORNO, 2006c, p. 120).
Se a sociedade contemporânea perdeu a capacidade reflexiva, é preciso compreender
como retomá-la, pois esta é a base para constituição de uma autonomia. Esta autonomia é
pensada, a partir dos textos de Freud, nas marcas mais iniciais da constituição de cada indivíduo
e como elas produzem conexões de tensão entre a sociedade e a cultura.
Adorno se preocupará com a educação infantil e a produção de um clima intelectual,
cultural e social que não permita que processos regressivos se desenvolvam. Neste sentido, para
o autor, seria necessário construir formas autônomas, que não fossem dependentes de
autoridades externas. (ADORNO, 2006c).
O livro O mal-estar na civilização16, de Sigmund Freud, é uma das obras clássicas do
autor, presente como referencial teórico para debater o mal-estar na atualidade. Muitos
pensadores, inclusive de perspectivas teóricas distintas (ADORNO, 2006; MARCUSE, 2010;
BAUMAN, 1998; HAN, 2020; BIRMAN, 2011), partem de Freud e desta obra, em específico,
assumindo suas balizas ou mesmo as criticando para compreender o mal-estar contemporâneo.
Neste capítulo, em especial, faremos uma leitura de O mal-estar na civilização
associada a outras obras de Freud e à entrevista de Adorno para Becker, Educação contra
barbárie (ADORNO, 2006b), juntamente com o texto Educação após Auschwitz (ADORNO,
2006c). Acreditamos, como Adorno, que Freud é um referencial para a compreensão dos

15
Optamos, nesta dissertação, pela tradução utilizada em O mal-estar na civilização, no que pese Freud não
distinguir as palavras “civilização” e “cultura”. No texto O futuro de uma ilusão, 1927, o psicanalista diz que “a
cultura humana – refiro-me a tudo aquilo em que a vida humana se ergueu acima de suas condições animais e em
que diferencia a vida animal – e eu me recuso a distinguir cultura de civilização – apresenta, notoriamente, dois
aspectos àquele que a observa. Por um lado, abrange todos os conhecimentos e habilidades que os homens
adquiriram para controlar as forças da natureza e dela extrair os bens para a satisfação das necessidades humanas;
e, por outro lado, todas as instituições necessárias para regulamentar as relações entre os indivíduos e, em especial,
a distribuição dos bens obteníveis.” (FREUD, 2014b, p. 233).
16
O psicanalista Christian Dunker, no dia 11/04/2014, numa palestra intitulada “A voz nO mal-estar na
civilização”, discute sobre a tradução de “O mal-estar na civilização”. Ele diz que “no alemão ‘Unbehagen in der
Kultur’, a palavra mal-estar, Unbehagen, só aparece duas vezes na obra. Ambas no segundo parágrafo na parte
VIII, logo no seu encerramento. O prefixo Un (prefixo de negação em alemão), e behagen (agradável) formam o
sentido da palavra mal-estar. Quando Freud começou a escrever este livro ele dá um título inicial a obra: ele
chama de Ungluck, que é infelicidade em alemão. Ele manda a primeira versão para Ernest Jones e eles começam
a ter um problema de como traduzir o Kultur, que em alemão tem um sentido mais amplo que pode ser relacionado
a Bildung, que é a formação propriamente dita, uma formação integral, ou Kultur e Zivilisation, relacionada a
patrimônio e costumes no geral. Joan Rivière, que estava encarregada da tradução para o inglês, traduz para
“Infelicidade”, Discomfort, desconforto na cultura. E Freud diz que não poderia ser essa a palavra. Quando ele vê
a dificuldade de tradução da palavra, busca uma palavra de baixa incidência no texto que é Unbehagen. Esta
palavra em alemão reúne três séries de conotações: uma série corporal que tem a ver com prazer, desprazer, com
estar confortável no espaço; uma série moral, que tem uma coisa errada do ponto de vista moral, se criou um mal-
estar daquilo que foi dito, e, por último, além disso, Unbehagen remete a algo teológico transcendental que teria a
ver com uma epifania, uma revelação, um encontro transformador do ponto de vista do espírito. O mal-estar, em
português, se a gente lê sob estas três perspectivas, tem uma caracterização correta da tradução em alemão.” In:
https://www.youtube.com/watch?v=e4Tmrh-L9oI&t=1061s.
33

fundamentos da contemporaneidade. Estes referenciais serão apresentados de forma articulada


a trechos das entrevistas feitas com os professores para refletir, com eles, sobre o mal-estar na
cultura em diálogo com Freud e Adorno.

2.1. Mal-estar e desamparo

Mas eu tomo um cuidado também, porque este saudosismo, muitas


vezes, acaba vindo de uma visão romanceada do passado.

Professor Luiz

O mal-estar na civilização é dividido em oito pequenos capítulos ou tópicos; no texto,


podemos ver que Freud estabelece várias dimensões ou camadas de compreensão internas e
externas dos indivíduos relacionadas ao mal-estar na cultura. Umas das marcas da cultura
relaciona-se à renúncia instintual como expressão do processo civilizatório. Assim, o humano
como produto do campo da cultura teria que lidar sempre com uma perspectiva de incompletude
como parte da perda de sua dimensão estritamente biológica, filogenética. (FREUD, 2010a).
Nos vários tópicos do texto, Freud discute as implicações desse processo civilizatório
no indivíduo do ponto de vista de sua ontogênese (que ele relaciona às experiências infantis do
indivíduo) e da filogênese (associada à evolução cultural da espécie, tida como uma herança
arcaica e presente de modo inconsciente no indivíduo).
Já no primeiro tópico aborda uma expressão da ontogênese humana relacionada à
constituição do Eu-primitivo. Em diálogo com um escritor contemporâneo, Freud é indagado
sobre que, apesar de concordar com a ilusão da religiosidade, ele não parte da fonte da
religiosidade como “um sentimento que ele gostaria de denominar de sensação de ‘eternidade’”,
um sentimento de algo ilimitado, sem barreiras, como que ‘oceânico’.” (FREUD, 2010a, p. 14).
A partir desta indagação temos um primeiro dado importante da obra de Freud, que é a
constituição do Eu, produzida inicialmente pela relação do bebê com a mãe, e sobre o quanto
isso faz marcas permanentes na constituição do sujeito. Ao considerar e criticar um sentimento
denominado de “oceânico” relacionado a uma expressão totalizante e indissolúvel, Freud
investiga a origem deste sentimento. Assim discorre (FREUD, 2010a, p. 16):

Normalmente nada nos é mais seguro do que o sentimento de nós mesmos, de nosso
Eu. Este Eu nos aparece como autônomo, unitário, bem demarcado de tudo o mais.
Que esta aparência é enganosa, que o Eu na verdade se prolonga para dentro, sem
fronteira nítida, numa entidade psíquica inconsciente a que denominados Id, à qual
ele serve como uma espécie de fachada – isto aprendemos somente com a pesquisa
psicanalítica, que ainda nos deve informar muita coisa sobre a relação entre o Eu e o
Id. Mas ao menos para fora o Eu parece manter limites claros e precisos.
34

Freud, então, discute a própria constituição do Eu e o que nele permanece no adulto como
camadas relacionadas aos traços mnemônicos do psiquismo. Este Eu não é unitário, unificado,
completamente racional. Ele é cindido e tem fronteiras não muito claras na qual o próprio
indivíduo não tem total consciência. Aquilo que muitas vezes parece ser do mundo exterior, são
dimensões internas, e aquilo que aparenta ser somente interno podem ser estímulos externos.
Além disso, reconstrói o surgimento do Eu, mostrando que o bebê primeiramente não
separa seu Eu do mundo exterior. As primeiras relações objetais com o seio materno são
fundamentais para distinguir o dentro e o fora, mesmo que num primeiro momento o bebê seja
Um com a mãe. É desta relação inicial que o bebê vai percebendo sensações de dor e desprazer
que o princípio do prazer busca eliminar e evitar. Há uma tendência a isolar do Eu tudo que
pode se tornar fonte de desprazer, formando um Eu-prazer ao qual se opõe um ameaçador fora:

Chega-se ao procedimento que permite, pela orientação intencional da atividade dos


sentidos e ação muscular apropriada, distinguir entre o que é interior – pertencente ao
Eu – e o que é exterior – oriundo de um mundo externo – e, com isto se dá o primeiro
passo para a instauração do princípio da realidade, que deve dominar a evolução
posterior. (FREUD, 2010a, p. 19).

Nesta construção, Freud vai delimitando a relação deste Eu inicial com o mundo externo.
O Eu-primitivo seria uma expressão do todo. Com o desenvolvimento, o Eu separa de si o mundo
externo, o princípio de realidade. Só que no Eu-maduro se apresenta um vestígio deste sentimento
que em algum momento foi total, indissolúvel, que fica “como uma espécie de contraparte dele,
e os seus conteúdos ideativos seriam justamente os da ausência de limites e da ligação com o
todo, os mesmos com que meu amigo ilustra o sentimento oceânico.” (FREUD, 2010a, p. 19).
Assim, já no início do texto percebemos o modelo de psiquismo proposto por Freud, em
que há uma conservação junto com o próprio desenvolvimento do indivíduo. Uma parte do
impulso instintual permaneceu inalterada e outra parte continua a se desenvolver. Logo, o
inconsciente é atemporal. Este Eu-desenvolvido traz consigo um Eu-primitivo como marca
constitucional. Ou como diria Freud: “na vida psíquica nada que uma vez se formou pode acabar,
de que tudo é preservado de alguma maneira e pode ser trazido novamente à luz em circunstâncias
adequadas, mediante uma regressão de largo alcance, por exemplo.” (FREUD, 2010a, p. 20).
Uma das expressões das experiências iniciais das fases primitivas da vida que marcam
o sujeito adulto é a relação com o desamparo infantil, relacionado à condição de dependência
do outro pela fragilidade corporal e existencial do bebê. Nos adultos isso se manteria pelo medo
das circunstâncias imprevisíveis da vida.
35

A religião, ao produzir uma metáfora paterna, da nostalgia de um Deus-pai poderoso


que tudo controla e prevê, aplacaria este desamparo. “Este ser-Um com o universo, que é o seu
conteúdo ideativo, apresenta-se-nos como uma tentativa inicial de consolação religiosa, como
um outro caminho para negar o perigo que o Eu percebe a ameaçá-lo do mundo exterior.”
(FREUD, 2010a, p. 25).
Freud (2014b) trabalhará esta questão religiosa de modo mais detido em seu texto de
1927, O futuro de uma ilusão, em que afirma que a religião tem o papel central de dar conta do
desamparo infantil. Discutirá sobre como a religião coloca o sujeito num papel de menoridade,
de infantilização, deslocando para a figura onipotente representada por Deus a metáfora de um
pai de sua infância, que lhe produzia o amparo necessário.

Com o passar do tempo, foram feitas as primeiras observações sobre a regularidade


dos fenômenos naturais e sua conformidade a leis, e as forças da natureza perderam
seus traços humanos. Mas permanece o desamparo do ser humano, e, com isso, o
anseio pelo pai, e os deuses. Esses conservam sua tripla tarefa: afastar os terrores da
natureza, conciliar os homens com a crueldade do destino, tal como ela se evidencia
na morte, sobretudo, e compensá-los pelos sofrimentos e privações que lhes são
impostos pela vida civilizada que partilham. (FREUD, 2014b, p. 249-50).

Diante da indeterminação do controle sobre a natureza e o mundo, a precariedade do


trabalho, das condições cada vez mais adversas da vida civilizada, pode se acentuar esta dimensão
do desamparo e essas formas de deslocamento podem ser variadas, como nos mostra Freud
(2011a) em Psicologia das massas e análise do eu. Temos processos de identificação com figuras
autoritárias ou mesmo dos indivíduos se influenciando mutuamente, de modo que eles se
apresentam como salvadores de um desamparo, caracterizado por processos regressivos infantis.

Temos assim a impressão de um estado em que o impulso afetivo e o ato intelectual


pessoal do indivíduo são muito fracos para impor-se por si, tendo que esperar
fortalecimento através da repetição uniforme por parte dos outros. Somos lembrados
de como esses fenômenos de dependência fazem parte da constituição normal da
sociedade humana, de quão pouca originalidade e coragem pessoal nela se encontram,
do quanto cada indivíduo é governado pelas atitudes de uma alma da massa, que se
manifestam como particularidades raciais, preconceitos de classe, opinião pública etc.
A influência da sugestão torna-se um enigma ainda maior quando concedemos que é
exercida não só pelo líder, mas também por cada indivíduo, um sobre o outro, e nos
recriminamos por haver destacado de maneira unilateral a relação com o líder,
menosprezando indevidamente o fator da sugestão mútua. (FREUD, 2011a, p. 78).

Neste contexto, que marca a constituição do sujeito a partir do desamparo infantil que
atravessa a todos, e de um cenário cada vez mais incerto relacionado às condições civilizatórias,
pensamos que o professor é um trabalhador cujo ofício tem certas especificidades em que a
todo momento o desamparo pode ser intensamente vivenciado.
36

Consideramos que no trabalho do professor o desamparo é uma realidade inerente ao ofício,


relacionada ao não-saber em que muitas vezes o professor é colocado, seja diante do seu objeto de
conhecimento – a matemática, a língua, as ciências –, seja ao trabalhar com crianças e adolescentes,
sujeitos em formação. Combinado a isso, as próprias condições de trabalho intensificam o
desamparo, tornando-o muitas vezes intolerável, e produzem efeitos psíquicos de ordem regressiva.
Nas entrevistas, uma das perguntas para os professores, para refletir e pensar este
desamparo, foi analisar a afirmação: “houve um tempo em que os professores eram mais
respeitados”. Esta é uma questão comum não somente entre professores, mas que aparece em
determinadas circunstâncias sociais e históricas adversas ou de mudanças, ou seja, a tentativa
de expressar a saudade de um tempo em que as coisas davam certo, uma “Idade de Ouro” da
civilização, ou no cristianismo o próprio tempo do “Éden, do paraíso”.

Isso daí era, igual eu estou te falando, antigamente o professor tinha esta importância.
Hoje não tem, a sociedade não vê mais a gente como a gente é. Não sei o que
aconteceu, eu ia falar agora. Não sei, é da geração, foi mudando a geração e o
professor foi ficando dessa maneira. Não tem mais o valor, para minha família a minha
profissão é importante. Mas as pessoas mais novas que não têm professor na família
não veem o professor... Se você vir e parar para pensar eu mesmo desvalorizo minha
classe, eu não quero que meu filho seja professor. Pela desvalorização, não sei se é o
próprio Estado que dá isso também, essas más condições que a gente tem de trabalho.
(Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

Um modo deste desamparo se estabelecer é um saudosismo de um tempo que se desconecta


da realidade que o produziu e passa a ser o referencial de imagem do professor. O desamparo é
acentuado pela indeterminação do não-saber, de não ter controle sobre as situações, em especial as
adversas. Além disso, como acaba trazendo a professora Luana, é o próprio processo de
desvalorização do trabalho, como expressão das privações civilizatórias que atuam na intensidade
deste desamparo, as quais se transformam em energia psíquica para construção de uma imagem de
um tempo em que o professor era respeitado. Podemos pensar, como Freud, que se trata de um
retorno a um lugar seguro do Eu-primitivo que é preservado no Eu-maduro da professora.
No caso da professora Denise temos a construção de um desamparo que se transforma
também em saudosismo da imagem do professor de antigamente, porém, ao mesmo tempo, vemos
a força do desamparo na produção de outras possibilidades de trabalho e relação com os estudantes,
e da reflexão em torno da própria diferença com seus colegas professores. Quando Freud fala sobre
a unidade mãe-bebê, trata-se de uma memória de completude. O desamparo é resultado também
de um processo de entrada do bebê no mundo da cultura, no princípio de realidade, portanto, que
estabelece a diferença com a mãe. O desamparo como expressão dessa diferença abre
possibilidades para que o indivíduo entre no campo da cultura, da autonomia.
37

O desamparo não se apresenta como algo da ordem somente negativa, do ponto de vista
social. Sobretudo, como expressão do mal-estar civilizatório inerente à condição humana, que
pode, entretanto, igualmente abrir espaços de reflexão, de autorreflexão e leitura da realidade
social, movimentando o professor. A professora Denise encontrou formas de pensar e trabalhar
com os estudantes relacionadas à realidade do seu trabalho.

Sim, antigamente até se cantava o hino nacional antes de entrar em sala de aula. O
professor entrava em sala de aula e eles eram mais quietos. Chegava o “Dia do
Professor”, na minha época, dava lembrancinha para os professores, páscoa e tudo e
mais. Hoje em dia não. Mas sabendo lidar com eles a gente também não pode ver só
esse lado onde nós hoje em dia somos mais desrespeitados e às vezes menosprezados.
Não, porque os alunos às vezes eles se manifestam com uma falta de comportamento,
com agitações. Com alguns costumes ali bem diferenciados do que era na nossa época.
Mas paralelo a isso os alunos têm muita carência também. Os alunos dependendo da
região que a gente trabalha se você chega na sala de aula e você consegue conversar um
pouco com eles, trabalhar um pouco mais, como eu já falei, não só aquela matéria do
livro e a lição na lousa e cópia e vamos pro visto, vamos pra pergunta, aquela coisa
metódica que isso cansa demais eles. Isso que faz com que também fiquem cansados de
tudo da vida. Então se você tem um plano de aula um pouco diferenciado, você acaba
percebendo um outro aluno. Um aluno que é carente. Um aluno que quer sim aprender
e que depende da gente. Então isso é o que eu gosto de ver na sala de aula e é o que eu
tenho visto em algumas salas. Onde eu deixei de lado aquela de olhar só “nossa eles não
param”. E fui trabalhar com eles outras questões, outras coisas e ali eu descobri uma
nova sala. E aí que você percebe que você não é tão assim menosprezado, porque às
vezes o professor não está sabendo trabalhar com o aluno também hoje em dia. Parte do
educador também transformar a sua aula para que você também seja reconhecido. Se o
professor também não trabalhar isso em sala de aula, cada vez mais nós vamos ser
menosprezados. Então aluno tem uma parte muito importante da gente trabalhar com
ele e a gente depende deste trabalho para ter o inverso da gente ser reconhecido. A gente
precisa deles, mas a gente precisa fazer a nossa parte para que isso aconteça. (Professora
Denise, categoria V, três anos de magistério).

A professora Denise tem três anos de rede de ensino estadual. Interessante observar que
este é um dado importante na construção de sua argumentação e que reflete o conjunto de
experiências de intensidade de seu mal-estar vivenciadas em um tempo menor como professora
da rede estadual comparada a outros professores com mais tempo.
Já o professor Luiz discute que é comum referências a um passado, em especial sob o
regime militar, em que se tem uma imagem do professor como um profissional mais respeitado.
Diante de um cenário adverso de trabalho, que mobiliza o desamparo, alguns professores podem
rememorar um momento histórico em que se sentiriam mais amparados.

Isso me lembra um pouco do saudosismo que inclusive vejo de professores mais velhos,
de gerações passadas. Mas eu tomo um cuidado também, porque este saudosismo muitas
vezes ele acaba vindo de uma visão romanceada também do passado. Por exemplo, o
que eu já ouvi muito este ano: “na ditadura militar a educação era melhor”. Para em
seguida enaltecer a ditadura militar, que tinha mais segurança, os professores eram mais
respeitados, aquela coisa toda. Então não, eu não concordo plenamente com esta
afirmação de que no passado os professores eram mais respeitados. Não
necessariamente. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).
38

O professor Fernando amplia a reflexão, o que nos faz pensar que a maneira como o
professor lidava com o próprio desamparo em outros tempos estava relacionada à produção do
medo no outro, no estudante, através da violência simbólica ou mesmo da exclusão como um
fenômeno que não se dava somente na sala de aula simplesmente, mas um fenômeno social em
que a escola amplia a exclusão da própria sociedade.

Eu considero isso aí como viúvas da ditadura. Professores que sentem muita falta, na
minha época era bom que tinha ditadura. Toda 10 horas da noite todo mundo estava
em casa preso. Dentro de casa em cárcere privado. Ai não tem bandido a noite. Lógico
está todo mundo preso, você está maluco! Então era mais ou menos isso. Na minha
época todo mundo era mais respeitado. Na época dele todo mundo era analfabeto.
Todo mundo que estava na favela era analfabeto. Só estava na escola quem gostava
de estudar. E aí fica fácil de dar aula. Você dá aula para 10 alunos, os 10 gostam de
estudar. Os 10 gostam de ser tratados com autoridade. Os 10 contemplam esta
subserviência. E aí o professor obviamente funciona. Nessa época funcionava mesmo.
Professor era um autoritário respeitado pelas pessoas que queriam ser controladas por
autoridades. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A professora Vera, que tem 52 anos, discute se houve uma época em que os professores
eram mais respeitados, e complementa o professor Fernando, dizendo que na época dela de
criança os professores batiam nos estudantes para marcarem sua autoridade em sala de aula,
evidenciando um tempo em que isso era aceito socialmente.

Então não sei se teve esta época. Eu acho que esta época foi dos nossos pais, dos
nossos avós, ou até da minha época que eu era aluna de ensino médio, de fund. 2, que
era o primário, o ginásio e o colegial. Pela minha idade foi o que eu fiz. E ali a gente
dava respeito para o professor e o professor respeitava o aluno também. E a gente
tinha medo do professor. Eu me lembro que eu levava puxão de orelha da minha
professora quando eu fazia bagunça ou quando eu gritava ou era espoleta na sala de
aula. E eu não falava nada, nenhum aluno, o pessoal tinha medo do professor. Você
fala assim, o professor não pode bater em aluno. Tá, mas naquela época a gente
apanhava. O professor não precisa fazer isso, mas ele tem que ter autonomia de falar
cala a boca, vamos ficar quietos e vamos aprender e o aluno tem que respeitar. Não
existe isso. Então você tem que ter uma, duas, três cartas na manga pra você poder dar
uma aula. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

A professora Ana aponta as questões materiais em que essa escola de um passado


idealizado estaria fundamentada, com poucos estudantes em sala de aula. Para ela, o maior
acesso das crianças à escola de educação básica evidentemente aumenta as contradições de um
espaço escolar, que pouco mudou para receber este aumento na quantidade de estudantes.

Eu acho que isso é uma fala que remete ao passado do tempo que a escola segregava.
Que escola que só entrava os filhos das pessoas que tinham condições de colocar os
filhos na escola. Meu pai por exemplo não estudou. Só estudou até a quarta série porque
ele tinha que trabalhar. Minha mãe estudou só até a oitava, depois é no nono agora.
Depois ela fez a faculdade e o magistério, então ela tinha que trabalhar, então o filho do
pobre ele tinha que trabalhar, principalmente nos anos 70, 80 e aí nessa época a escola
era boa, porque você tinha pessoas que queriam e podiam estudar. Quando a escola se
torna maior porque ela pega todo mundo ela tem uma quantidade, mas ela perde a
qualidade. Mas essa qualidade também é relativa porque tem um problema aí, eu acho
39

que a situação é bem difícil você analisar por esta perspectiva, era boa porque tinha
poucos alunos. Hoje em dia que acho que é o principal desafio, você tem todos os alunos
ali. E o professor é respeitado, pode ser que era respeitado sim, mas ele estava dentro de
um nicho, hoje em dia é diferente. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Os professores entrevistados trazem uma série de reflexões que retomam suas próprias
experiências pessoais e geracionais que ajudam a visualizar a dimensão histórica onde a imagem
de um professor respeitado foi construída, apontando as contradições desse saudosismo, fazendo a
crítica à ideia de que o professor era mais respeitado em sala de aula por si mesmo, isoladamente.

Mas mesmo esta época que eu acho que foi a época de ouro da escola pública, final
dos anos 40, 50 até meados dos anos 60, era uma escola pública que se baseava na
exclusão. Então este professor era valorizado, havia um discurso oficial que
valorizava este professor, havia uma política de salário que mais ou menos o colocava
dentro de uma classe média. Só que também era uma escola que não dava acesso a
toda a população como dá hoje. Então eu acho que hoje quando alguém afirma, “ah o
professor tinha autoridade, não tem mais”, eu acho que é uma meia verdade.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

O professor João aponta que na escola do passado havia melhores condições de trabalho,
contudo, era uma escola excludente. O que indica que nos últimos anos houve uma piora das
condições de trabalho e salário do professor. Tendo que ficar sob condições objetivas mais adversas,
o professor pode construir a imagem, que ele sequer viveu, de um tempo em que era mais
respeitado, excluindo desta imagem as bases sociais e econômicas que ajudaram a produzir isso.
As experiências culturais e históricas da sociedade podem ser mobilizadas no presente em
camadas do psiquismo que não desaparecem, que permanecem no sujeito preservadas como
experiências geracionais e podem ser reavivadas novamente diante de processos de regressão.
Alguns professores entrevistados, quando pensam sobre a questão de um tempo em que
o professor teria sido respeitado, mobilizam figuras familiares, “na época dos meus pais e avós”,
o que nos faz pensar que camadas do psiquismo, profundas e preservadas, estão sendo
mobilizadas na reflexão. Tal como nos lembra Freud, da inseparabilidade da relação indivíduo
e sociedade, mas também da tensão entre eles.

As relações do indivíduo com seus pais e irmãos, com o objeto de seu amor, com seu
professor e seu médico, isto é, todas as relações que até agora foram objeto
privilegiado da pesquisa psicanalítica, podem reivindicar ser apreciadas como
fenômenos sociais, colocando-se em oposição a outros processos, que denominamos
narcísicos, nos quais a satisfação dos instintos escapa à influência de outras pessoas
ou a elas renúncia. (FREUD, 2011a, p. 14).

É nesse sentido que percebemos que a tensão entre as disposições individuais,


pulsionais, sociais e históricas podem afetar a maneira como os professores vivem as
contradições de sua realidade, produzindo uma série de ideias saudosistas, idealizadas de um
passado ou mesmo adoecendo pelas incertezas que mobilizam seu desamparo e mal-estar.
40

2.2. Mal-estar, adoecimento e vida danificada

“A escola é uma máquina de moer gente”

Professor Fernando

NO mal-estar na civilização, Freud debate sobre um mal-estar que está relacionado às


próprias frustrações de nossa em vida comum. Conforme ele, o indivíduo criou paliativos para
poder viver estas dificuldades, entre esses estão “poderosas diversões que nos permitem fazer
pouco de nossa miséria, gratificações substitutivas que a diminuem, e substâncias inebriantes
que nos tornam insensíveis a ela.” (FREUD, 2010a, p. 28).
Segundo Freud, os homens querem a felicidade, ou seja, ausência de dor e desprazer;
no sentido oposto, visam vivência de fortes prazeres. O princípio do prazer estabelece a
finalidade da vida, no entanto, seu ideal não pode ser realizado completamente, porque está em
desacordo com a cultura na qual impôs ao sujeito restrições que marcaram de modo profundo,
inconsciente, o seu psiquismo, especialmente “a lei do incesto” e o imperativo “não matarás o
pai”, que Freud interpreta em um texto de 1912, Totem e Tabu (2012a). Imperativos, tais, que
realizam a própria entrada humana na cultura, na sociedade.
De tal modo, uma parcela significativa do princípio do prazer está altamente represada e
se apresenta apenas como fenômeno episódico. “Quando uma situação desejada pelo princípio
do prazer tem prosseguimento, isto resulta apenas em um morno bem-estar, como feitos de modo
a poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado.” (FREUD, 2010a, p. 31).
Para o psicanalista, o sofrimento humano se dá em três perspectivas: daquele do corpo,
sua finitude e envelhecimento, a dor e o medo a ele relacionados; do mundo externo que se
coloca como forças grandiosas e destruidoras; e das relações humanas e interpessoais, que
Freud avalia como aquela que se apresenta de modo mais doloroso.
É diante destas condições da civilização que o princípio do prazer se converteu em
princípio de realidade sob a influência do mundo externo. Daquele momento inicial da relação
do Um da mãe-bebê e sua separação, o princípio de realidade ampliou-se à dimensão cultural e
de funcionamento da sociedade. O homem renuncia à busca de um princípio de prazer irrestrito
para ter um tanto de segurança pelo princípio de realidade.
A civilização criou várias formas de tentar lidar com o desprazer, já que o prazer
absoluto se torna inviável. O isolamento, o uso de medicamentos, de drogas, de formas
maníacas de viver, todas elas trazem custos, não nos livram totalmente do desprazer, em alguma
medida também produzem efeitos justamente contrários, além de dispenderem muita energia.
41

A tentativa de controle dos instintos de modo religioso ou espiritual também sacrifica parcelas
significativas da vida. (FREUD, 2010a).
Para Freud, o prazer, na realização de um instinto selvagem, não domado pelo Eu, é
mais forte do que o de um instinto domesticado. Uma forma mais moderada de possibilidade
de destino dos instintos se dá em destiná-los para atividades reconhecidas na cultura. A
sublimação, o investimento da sexualidade para atividades culturais, produz uma satisfação a
partir dos instintos que não é sentida tão dolorosamente como nas situações de inibição total.
“A satisfação desse gênero, como a alegria do artista no criar, ao dar corpo as suas fantasias, a
alegria do pesquisador na solução de problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade
especial, que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente.” (FREUD, 2010a p. 35).
Tal forma sublimatória é mais fina e elevada. Todavia, sua intensidade é amortecida,
comparada à satisfação de impulsos grosseiros e primários. Poucos têm acesso a ela. Além disso,
o trabalho, para Freud, está relacionado ao desenvolvimento humano, criando possibilidades de
ampliação do mundo, da comunidade. Por isso seus efeitos adversos, obstaculizados, quando
impossibilitados de serem realizados podem produzir graves efeitos no sujeito.

Nenhuma outra técnica para a condução da vida prende a pessoa tão firmemente à
realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa
porção da realidade, na comunidade humana. A possibilidade que oferece de deslocar
para o trabalho e os relacionamentos humanos a ele ligados uma forte medida de
componentes libidinais – narcísicos, agressivos e mesmo eróticos – empresta-lhe um
valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a afirmação e justificação da
existência na sociedade. A atividade profissional traz particular satisfação quando é
escolhida livremente, isto é, quando permite tornar úteis, através da sublimação, pendores
existentes, impulsos instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados. E, no
entanto, o trabalho não é muito apreciado como via para a felicidade. As pessoas não se
lançam a ele como a outras possibilidades de gratificação. A imensa maioria dos homens
trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa
natural aversão humana ao trabalho. (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).

O trabalho é fonte decisiva de investimentos libidinais do indivíduo e está relacionado à


dimensão da sexualidade no sentido amplo que Freud dá à ela. É a possibilidade de fonte de prazer
e reconhecimento narcísico. Percebemos, então, o papel que pode cumprir o trabalho quando não
realizadas estas dimensões psíquicas17. Estamos falando da produção de um sofrimento que se
expressa nas condições que fazem o trabalho ser forçado, obrigatório e pouco prazeroso. Efeitos

17
O psicanalista Christophe Dejours salienta que a relação com o trabalho não só amplia a subjetividade como interfere
na própria constituição do corpo subjetivo: “A clínica do trabalho, por sua vez, atesta, como tentei mostrar no capítulo
dedicado à inteligência do corpo no trabalhar (capítulo primeiro), que o engajamento da subjetividade na confrontação
com a resistência do real (termo material externo que se opõe ao esforço) pode fazer advir novos registros de sensibilidade
que não estavam presentes no Eu antes da experiência do real e da perseverança no esforço em face da resistência do real
e do sofrimento decorrente (...) O desenvolvimento do corpo subjetivo pelo exercício do trabalho é efetivamente a fonte
de prazer que, então, não seria acessível não fosse a mediação do trabalho.” (DEJOURS, 2002, p. 94).
42

do modo em que o trabalho se organiza sob o capital e de uma sociabilidade com formações
históricas regressivas e destrutivas, aos quais discutiremos ao longo da dissertação.
O que podemos perceber pelas entrevistas com os professores são manifestações de
sofrimento por causa do trabalho. As disposições libidinais e individuais dos professores que,
pelas condições de trabalho, não podem ser deslocadas efetivamente para a docência e
sublimadas, tornam-se fonte das maiores angústias, ansiedades e desprazeres. O que analisamos
é uma intensidade, inclusive traumática, na fala de alguns professores, os quais só de pensar em
passar por determinada experiência novamente, o corpo começa a responder sintomaticamente.
É o que nos traz a professora Ana:

Eu tenho pressão baixa. Quando eu fico muito nervosa minha pressão cai. E eu comecei
a passar mal em 2013 do nada, assim. O ano passado eu nunca mais tive queda de
pressão. O ano passado eu trabalhei o ano inteiro em casa, basicamente. Este ano eu
também não tive, mas acho que foi por causa do tratamento que eu estou fazendo. E eu
acho que era isso. Era o estresse, a ansiedade de ter que lidar... eu sou uma pessoa que
fico trazendo muita coisa para casa. Não para fazer o trabalho em casa, mas eu fico
pensando nos problemas, e isso me faz mal assim. E eu fui percebendo que eu
começava a ter umas quedas de pressão, passando mal, falta de ar. Toda vez que eu
começava a ficar nervosa. No começo é quando eu estava muito nervosa. Mas depois
lá para 2018, 2019, só de pensar em algumas coisas que eu poderia passar na escola
isso já me fazia me sentir mal, muito mal assim. Minha pressão vivia baixa, 9 por 6 por
exemplo. Um exemplo: em 2019 uma escola que eu dava aula perto de casa, lá eu tinha
5 sétimos anos, e a direção, sei lá por que eles faziam isso, eles separavam os alunos
por nível de aprendizado. A turma A era maravilhosa porque todos os alunos tiravam
10. A turma B também porque era 9. A turma E era insuportável porque todo mundo
tirava 3 e 4 na sala. Todos os alunos indisciplinados do sétimo ano estavam numa turma
só. Então toda vez que eu tinha que dar aula no sétimo E era um sofrimento para mim.
Porque eu já ficava nervosa, ansiosa, angustiada. Sentia muito mal, vinha embora,
faltava aula, mas eu sabia que eu... eu acho que este sétimo me ajudou a pegar a 20218,
a pegar a licença, sabe... Essa situação e aí tinha um mal-estar ali na escola porque
quando você é um professor que não controla os alunos você não é um bom professor.
E aí o pessoal que era puxa-saco da diretora ficava falando mal de você. Era uma
situação muito complicada e aí eu achei melhor sair de lá e foi a melhor coisa que eu
fiz. Mas foi um exemplo quando a situação é caótica, porque a situação era caótica.
Esse negócio de ficar separando aluno por nível de aprendizagem, isso é ridículo, 2019
não foi esse ano, mas mesmo assim ela faz isso até hoje porque a gente sabe. Hoje ela
faz isso, toda turma E, D, F é insuportável nessa escola. Então piora a situação do
professor... (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

O que a professora Ana descreve como caótico, para Adorno (2006c), pode ser descrito
como barbárie. A organização da escola separa os estudantes como aqueles mais aptos e menos
aptos a estar numa sala. É um processo de violência e exclusão dentro da escola no qual os
estudantes responderão exatamente do lugar em que a direção os colocou, com agressividade e

18
Afastamento não remunerado de até 2 anos da rede estadual para tratar de assuntos particulares. Sua única
exigência é ter um professor para substituir aquele que se afastará e continuar pagando o IASMPE, que é o Instituto
de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual.
43

violência primitiva. Há um processo de desumanização, de pouca identificação com o lugar do


outro na escola que tem efeitos diretos na professora Ana.

A incapacidade para identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante
para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas
e inofensivas. (...) O silêncio sob o terror era apenas a consequência disto. A frieza da
mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino
do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem
disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. (ADORNO, 2006c, p. 134).

Outro aspecto a pensar sobre a fala da professora Ana diz respeito ao fato de que se o
professor não “controla” a sala de aula, “não é visto como um bom professor”. Este referencial
de controle socialmente mediado pela “punição”, de ser mal-vista pelos colegas, pode constituir
um modo de ser docente também excludente. Ou seja, da mesma maneira que a direção
construiu salas segregadas para excluir os estudantes considerados “não aptos” para integrar as
primeiras letras do alfabeto das salas, assim também faz com os professores “não aptos” que
não controlam a sala, a partir de um referencial externo, e são marcados pelos olhares de
reprovação dos colegas de trabalho. Restou à professora Ana sair da escola, se “autoexcluir”,
resultado das dinâmicas sociais regressivas que a escola produz.
É o que nos coloca o professor Fernando que diz que a “escola é uma máquina de moer
gente”. Ele consegue observar claramente os efeitos em sua saúde neste ambiente que classifica
como “insalubre”. O professor diz que acredita ter sintomas decorrentes do trabalho em sala de aula:

Sim, gastrite, úlcera. Esse ano recebi o laudo tudo. Inclusive tenho tratamento para
fazer, não posso ficar fumando. Mas aí que está só o dia 23 [de dezembro] para cá eu
estou tão mais tranquilo, já não estou mais sentindo... o ambiente do trabalho... e olha
já não tinha estudante na escola, não tinha aluno na escola. E eu passando mal, foi
terminar o ano, entregar o diário parece que jogou aqui (referência com as mãos ao
alívio do estômago) assim... É aquilo mesmo, de fato era aquilo. Era um trabalho de
direção, de coordenação, aquele ambiente escolar insalubre. (Professor Fernando
categoria O, 12 anos de magistério).

Aqui, abordamos professores que não estão afastados por problemas de saúde: estão na
escola, em sala de aula. Isto evidencia uma dinâmica de trabalho que produz, como diz Freud,
“aversão ao trabalho”. Impede que as disposições agressivas, libidinais, eróticas encontrem um
destino. Nossa hipótese é que estas disposições individuais obstaculizadas produzem efeitos
sintomáticos corporais e psíquicos como relatam os professores, assim como impede a própria
experiência na sua positividade do mal-estar civilizatório, tornando-a insuportável.
É nessa ordem social que é necessário pensar os limites subjetivos de felicidade, do qual
fala Freud em O mal-estar na civilização. Algo que cada indivíduo terá que dar conta. Não
haveria um manual para todos de como realizar o princípio do prazer e este não é absoluto na
cultura. “No sentido moderado em que é admitida como possível, a felicidade constitui um
44

problema da economia libidinal. Não há, aqui, um conselho válido para todos; cada um tem que
descobrir à sua maneira particular de ser feliz.” (FREUD, 2010a, p. 40-1).
No que pese Freud tratar da relação do princípio do prazer em dimensões do processo
de evolução, filogenético, podemos observar que as bases da cultura produzem intenso
sofrimento comum e, nesse âmbito, infelicidade não apenas individual, mas social.
Adorno, em sua leitura de O mal-estar na civilização, nos mostra que mesmo Freud não
percebeu a abrangência de sua tese. Estamos diante de um processo civilizatório que produz
uma intensidade no sofrimento sem precedentes:

Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é ainda mais


abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a pressão
civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por essa
via as tendências à explosão a que ele atentara atingiram uma violência que ele
dificilmente poderia imaginar. (ADORNO, 2006c, p. 122).

Adorno nos mostra como esta pressão civilizatória, esta intensa produção de mal-estar
na cultura, volta-se de modo insuportável para o indivíduo que responde, segundo as entrevistas
com os professores, pelo adoecimento. O professor Luiz, que já chegou a trabalhar em cinco
escolas para completar jornada, relata sintomas que tem tido com certa frequência, em especial
quando vai para a escola ou está nela:

Por exemplo, segunda-feira da semana passada eu dei aula de manhã numa escola, aí a
tarde fui para outra escola, quando deu... como já não tinha aluno, eles estavam fazendo
uma prova ou coisa do tipo; eu senti que eu não estava muito bem. Desde as quatro e
pouco da tarde eu estava sentindo um aperto, como se meu coração estivesse
encolhendo, aqueles sintomas que já conhecia de algum tempo. E aí começou a dar
aquelas fisgadas na perna, começou a sentir falta de ar, a minha mão não estava
tremendo na hora nem nada... aí eu falei, tenho que sair daqui. Parece que minha máscara
não era uma só, parecia que tinha 10 máscaras por cima. Eu saí, fui saindo de fininho,
peguei minha bolsa, me despedi de algumas pessoas ali, chamei o UBER, fui direto para
casa. Cheguei em casa tomei banho, tomei o remédio, mandei mensagem para a vice-
diretora falando que eu não ia. No outro dia mandei mensagem para a vice-diretora
dizendo porque eu não fui. Para não me mandarem uma falta injustificada a noite. Então
sim, já houve momentos que minha saúde prejudicou meu desempenho no trabalho.
Falta de concentração, letargia... (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

A cena que o professor Luiz nos revela do uso da máscara por causa da pandemia de
Covid, mesmo aqui já vacinado, é amplificada pela sensação de sufocamento psíquico que o
ambiente de trabalho parece produzir. Ao sentir estar usando 10 máscaras pensamos se esta não
é justamente a sensação psíquica que um professor na sua atividade como docente tem. Dar
conta do mal-estar exige uma série de estratégias de defesa, “armaduras psíquicas”, que
certamente também tem seu custo quando não encontram espaços de simbolização. O corpo
passa a determinar os limites, mas também a nortear as sensações de desprazer até o ponto em
que a única possibilidade de aliviar o mal-estar é a fuga deste espaço.
45

Mesmo os professores que não apresentam sintomas claros a respeito da relação do


trabalho com algum tipo de adoecimento, mostram-se reticentes se já não ficaram doentes pelas
condições de trabalho, o que seria uma forma de adoecimento das mais prejudiciais, visto que
o professor poderá ter perdido até mesmo os referenciais de si, o autocuidado.
Sob certa perspectiva, o adoecimento revela saúde psíquica, na medida que o corpo
reage a uma situação adversa e insalubre, portanto, de uma determinada forma a uma situação
social de adoecimento. Como diz Freud (2014f), o sintoma é expressão de um conflito e traz
uma verdade do sujeito, inclusive do modo como vive a vida.
O professor Pedro nos disse que tem hérnia de disco, resultado da má postura como
professor, segundo a avaliação médica que fez, mas que não sabe ao certo do ponto de vista psíquico
se já teve alguma questão. Contudo, percebe que muitos colegas que trabalham com ele se
readaptaram – que é quando o professor se afasta do trabalho em sala de aula por algum problema
de saúde e é realocado em alguma função na escola, na maior parte das vezes administrativa.

Há um sofrimento muito grande. Porque a gente tem colegas que adoecem. A gente
tem colegas que adoecem, que estão em licença, que estão readaptados. Esta rotina da
sala de aula ela adoece mesmo as pessoas. Não sei te dizer exatamente se eu realmente
não fiquei doente e não percebi, se eu já não tive depressão e não percebi, mas eu
penso que a questão da saúde do professor ela está realmente ligada a condição de
trabalho. Soma-se a isso não só a condição de trabalho em sala de aula, mas a condição
de trabalho da escola. Se você trabalha num ambiente tóxico, se você trabalha com
uma gestão tóxica, isso vai refletir, você pode ter os melhores alunos do mundo, mas
se você tem uma gestão que não te incentiva, que não te valoriza, uma gestão que
veste só a camisa de uma Secretaria da Educação, aí a doença é inevitável. Realmente
a pessoa tem uma chance muito grande de ficar doente. Nós temos lá na escola a gente
tá com a sala de leitura. Nós temos um, dois, três, quatro na sala de leitura, quatro
readaptados na secretaria, nós temos mais um, e vai ter mais uma professora de
educação física de readaptação, pelos mais diversos motivos, desde problemas
psiquiátricos, depressão, problemas físicos mesmo, problemas cardíacos, existe uma
questão que me parece que professor é uma das profissões que apresenta mais casos
de doença. Eu li isso em um compêndio que a Apeoesp19 fez uns anos atrás. E não
deve ter mudado muito não. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

No que pese nossa investigação entrevistar os professores que não estão afastados da sala
de aula por qualquer motivo, justamente para compreender a dinâmica social específica do mal-
estar escolar, parece-nos que a readaptação do professor pelo seu adoecimento não produz
necessariamente amparo para o mesmo, mas podem aumentar em muito os processos de
discriminação, constituindo outras formas de adoecimento docente e de sociabilidades regressivas
na escola, ao se caracterizar uma crise da identidade do professor, de sua imagem, assim como
todas as questões que envolvem sua nova função em um espaço por vezes precarizado. O professor

19
Associação dos professores do Estado de São Paulo, o principal sindicato da categoria e um dos maiores da
América Latina.
46

readaptado pode se tornar um profissional sem um lugar de pertencimento na dinâmica do espaço


escolar. Como nos colocou o professor Pedro o qual apontou que a sala de leitura e a secretaria tem
sido o destino destes professores em sua escola. Haveria, portanto, uma dupla perda narcísica, pelo
adoecimento e seu desamparo e pela identidade docente relacionada a sua formação específica.20
Já o professor João argumenta que esses adoecimentos estão relacionados às condições de
trabalho e às políticas públicas do governo para a área da educação. A retirada constante de direitos
intensifica uma sensação de desamparo no professor, de desânimo, de falta de perspectiva. Para
piorar, o professor não tem possibilidade de realizar um tratamento adequado de saúde justamente
por suas dificuldades salariais e materiais. O adoecimento não tratado vai afetando a própria
dinâmica de funcionamento da escola na medida que o professor produz estratégias de defesa,
muitas vezes silenciando, “sofrendo calado” na tentativa e ilusão de diminuir seu mal-estar.

Sim, existe sofrimento. Essa pergunta é no sentido psicológico, de saúde mental e por
aí vai, eu acho que sim, existe muito sofrimento. Eu posso até como diz o ditado pagar
com a língua, mas felizmente eu tenho conseguido de alguma forma driblar este
sofrimento pessoalmente. Mas pessoas bem próximas têm tido muita dificuldade. Eu
entendo que isso acontece por causa disso que a gente está conversando, pelas condições
de trabalho, pelo salário, agora nas últimas semanas a situação se intensificou porque na
rede estadual o governo tirou alguns direitos e benefícios. Então é perceptível na rede
estadual que as pessoas estão mais angustiadas, mais preocupadas. E você vai
percebendo que um certo desânimo vai tomando conta. Esse sofrimento se manifesta de
várias formas: tem aqueles casos mais agudos que as pessoas ficam realmente mal
psicologicamente. E aí ela vai buscar ajuda. Você tem a questão salarial que: como é
que o professor que ganha um salário líquido de 2.500, 3 mil reais que seja, como que
ele vai buscar uma ajuda especializada de um psicólogo, um psicanalista, uma
psiquiatria, se uma consulta vai custar dependendo da situação, 100, 200, 500 reais
dependendo da situação. Tem o convênio médico, ele tem ala de psiquiatria. Só que é
tanta demanda e são poucos profissionais que você só consegue agendar, como costumo
brincar com meus colegas professores, se você estiver babando. Se tiver naquela
situação que está babando aí você vai ter um atendimento. Não sei muito bem como se
chama isso na psicanálise, digamos que um atendimento preventivo você não tem
acesso. O professor tem que pagar pra isso, pra conseguir ter acesso. Tem pessoas
próximas que estão pagando. Se você paga um aluguel, tem filhos, não sei o que, tem
que ajudar um pai, uma mãe, não tem condições. Ou você sofre calado, eu vejo isso em
muitos professores, ficam sofrendo calados, volta e meia tira uma licença de 10, 15 dias.
E vão tocando o barco. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

20
Como nos mostra o artigo (Oliveira; Schmidt, 2023) que trata dos professores readaptados da rede estadual de
São Paulo: “Para Antunes (2014, p. 150), “[...] o processo que se inicia com o mal-estar, passando pelo
adoecimento e culminando na situação de readaptado, impactam a identidade profissional”. Com base na
Psicodinâmica do Trabalho, foi possível compreendermos que, para estes professores, é preciso a retribuição moral
e afetiva em sua identidade, em termos de reconhecimento e gratidão. Sobretudo, pelo fato de alguns não se
sentirem mais professores, de terem perdido essa identidade profissional, posto que o reconhecimento se expressa
na dinâmica subjetiva de contribuição/retribuição, sendo este fundamental para a construção da identidade do
sujeito no trabalho, e consequentemente para sua saúde mental (DEJOURS, 2004). A perda da identidade foi
revelada no decorrer das entrevistas, como exemplificam os relatos: “[...] uma coisa que me doeu muito foi perder
a identidade de professora, porque assim quem me conhecia antigamente sabia que eu era professora” (S9). “Em
relação a escola, eu esqueci que sou professora, lembro que sou profissional administrativo, doei e aboli tudo que
se diz de escola [...]” (S13). “Achei que a parte mais difícil era a aceitação de que eu não podia ser mais professora”
(S1).” (OLIVEIRA; SCHMIDT, 2023, p. 18,19).
47

Há, sem dúvida, muitos tipos de silêncio, alguns significativos, resultado de processos
de elaboração e reflexão, contemplativos. Todavia, quando o professor João caracteriza “o
sofrer calados”, estamos diante de um silêncio destrutivo, de desligamento consigo e com o
outro, que não encontra no outro uma possibilidade de vazão através da palavra. Há de se pensar
também os limites da palavra em um espaço escolar em que o adoecimento não encontra amparo
objetivo, na qual o professor só terá acesso a um cuidado médico e psiquiátrico “se estiver
babando”. Parece-nos a forma de comunicar com o corpo aquilo que na palavra se banalizou.
A baba como uma formação reativa21 das palavras mal digeridas, que não encontram no espaço
escolar ambiente acolhedor, subjetiva e objetivamente, de serem ditas.
Como o professor João colocou, o IAMSPE (Instituto Assistencial do Servidor Público
Estadual) tem muita demanda na ala da psiquiatria, o que faz com que o professor não tenha o
atendimento adequado. O professor João, que é categoria A, tem acesso ao IAMSPE como
benefício. Os professores categoria O e V não têm esse direito, o que dificulta ainda mais as
possibilidades de tratamento. A professora Vera, categoria O, relata que foi a um hospital
público buscar atendimento e nem o psiquiatra quis ouvi-la, tamanha a demanda de professores.

Sim, tomei remédios fortíssimos tanto para dormir quanto para relaxar. Eu procurei um
psiquiatra este ano. Tenho até a data que eu tenho todos os documentos. Foi dia 3 de
março deste ano. Fevereiro inteiro foi presencial, não sei se você lembra, você
acompanhou? Mais ou menos né... fevereiro deste ano foi presencial. Um mês eu estava
acabada. Tava no chão. Aí eu faltei, eu peguei a licença de 10 dias. Nossa a hora que eu
cheguei no psiquiatra: “você é o que Professora? Tá peraí toma é isso que você quer.”
Eu falei o que que isso? “Não é o atestado...” Falei eu quero, mas peraí você não vai
conversar comigo? “Não. Você vai procurar essa pessoa para conversar. Eu tô
recebendo muito professor e é sempre a mesma coisa.” Nem o psiquiatra quis me ouvir.
Te juro. Ele já me deu atestado de 10 dias pra eu ficar em casa. Depois se volta pega
mais 10. Aí ele me deu dois remédios fudidos que resolveu. Fiquei mais calma sim
tomei. Esse tratamento eu fiz. E procurei a pessoa que ele pediu. Tava esquematizado,
estava tudo na mesa dele pronto. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

Freud, em 1919, no livro Além do Princípio do Prazer (2010d), discute que as “neuroses
traumáticas”, apesar de ter dúvidas como surgem em tempos de paz, tem como uma de suas
caraterísticas o fato de serem ocasionadas pelo fator surpresa e por sua intensidade.
A constância de fatores surpresa, de intensidades variadas, com pouca possibilidade de
reflexão e elaboração, produz adoecimentos. Os relatos dos professores, no conjunto desta

21
Segundo o Vocabulário de Psicanálise: “Do ponto de vista clínico, as formações reativas assumem um valor
sintomático no que oferecem de rígido, de forçado, de compulsivo, pelos seus fracassos acidentais, pelo fato de
levarem, às vezes diretamente, a um resultado oposto ao que é conscientemente visado.” (LAPLANCHE;
PONTALIS, 2001, p. 200).
48

dissertação, dizem sobre as intensidades e constâncias das situações e experiências


desagradáveis que produziram efeitos psíquicos e corporais.22

Com efeito, a expressão “traumática” não tem outro sentido que não esse, econômico.
Chamamos assim uma vivência que, em curto espaço de tempo, traz para a vida psíquica
um tal incremento de estímulos que sua resolução ou elaboração não é possível da forma
costumeira, disso resultando inevitavelmente perturbações. (FREUD, 2014h, p. 367).

A professora Vera relata que suas pernas “travaram”, “paralisaram”. Sua associação, em
conjunto com o médico, é que elas ficaram assim pelo peso da escola em sua vida. Justamente para
não ir à escola se expressou corporalmente seu sintoma psicossomático23, a paralisia das pernas.

Então eu adoeci várias vezes. Só rapidinho, em 2013 quando eu estava no regular lá na


B., perto de um favelão tal. Eu adoeci das pernas. As minhas pernas travavam, eu não
conseguia andar direito. Eu tive que fazer fisioterapia. E o que eu percebi naquele
momento, o próprio fisioterapeuta, ele não é psicólogo, mas ele descobriu que eu tinha
medo de ir para escola então eu travei as pernas. Algum estudo ele tinha. Eu perguntei
para ele você é psicólogo? Ele falou: “não”. Mas também não falou o que ele era. “Eu
vou desenvolver suas pernas, você vai fazer um exercício comigo para você voltar a
caminhar como caminhava antes”. Nossa foi uma maravilha. Foi um mês de tratamento.
Foi rápido, todo dia também eu ia. Porque eu estava mancando, para andar mancando,
e doía muito minhas pernas. A canseira da escola. O peso da escola. O peso da escola
atingiu minhas pernas. E no final ele falou para mim, o seu problema era o peso da
escola por isso atingiu suas pernas. Ia chegar uma hora que você ia travar de vez, você
não ia conseguir levantar da cama. Então ele mexeu com este lado ou espiritual ou
também psicológico meu. E eu consegui andar de novo normal e agora eu ando bem.
Então nunca mais esqueci, foi em 2013. Eu não levantava. Eu tive que ser carregada até
o carro. Me levaram no pronto socorro, lá eu já tive que fazer tratamento num
fisioterapeuta. E foi muito bom. (Professora Vera, categoria O, 12 anos de magistério).

A professora Ana teve que se afastar da escola, mal podia pensar em ir para lá. O
professor Fernando teve gastrite, quando entrou em férias melhorou. O professor Luiz padeceu
de um conjunto de sintomas que o obrigou a ir para casa. Todos os professores citaram situações
de colegas que adoeceram ou que se “readaptaram”. Nestes relatos vemos situações de terror,

22
A psicanalista Myriam Uchitel, estudando a neurose traumática, define-a como, primeiramente, “um
acontecimento intenso que, vindo de fora, produz impacto emotivo e que, transformado em lembrança, gera pela
carga contida, o sintoma. Um segundo componente dessa definição destaca o sentimento que tem o sujeito de
sentir sua vida ameaçada. É a sobrevivência física ou psíquica que, ameaçada pelo impacto de uma sobrecarga,
imobiliza o processo de resposta. (...) O terceiro elemento da definição alude à reação fisiológica que o impacto
desencadeia, que impede organizar a resposta de luta ou fuga e, então paralisa.” (UCHITEL, 2011, p. 57-9).
23
Há todo um trabalho de pesquisadores e psicanalistas na atualidade, muito rico e interessante, sendo feito em torno
das “neuroses atuais” e a “psicossomática”. O psicanalista Flávio Ferraz, um dos expoentes nesta pesquisa, em seu
artigo Do ‘fator atual’ das neuroses atuais à pulsão de morte como dispositivo antirrepresentacional, diz que: “A
figura das neuroses atuais surge nos estudos iniciais de Freud, ainda no fim do século XIX, para depois sair de cena
sem muito alarde, apenas com um desvanecimento paulatino. Aqui e ali, em textos mais tardios, ainda deu sinal de
vida, mas perdeu a força conceitual que lhe parece destinada, uma vez que o interesse da investigação de Freud no
campo da psicopatologia foi se restringindo às psiconeuroses. No entanto, é interessante observar como, hoje em dia,
muitos dos aspectos que lhe eram peculiares podem se articular com o campo da psicossomática e de outras
manifestações do sofrimento psíquico, por exemplo, os transtornos de pânico.” (FERRAZ, 2022, p. 93).
49

medo e angústia que se relacionam tanto com as disposições individuais como também à
intensidade dos fenômenos sociais.

O quadro da neurose traumática avizinha-se ao da histeria por sua riqueza de sintomas


motores semelhantes, mas supera-o normalmente nos sinais bastante desenvolvidos de
sofrimento subjetivo, como numa hipocondria ou melancolia, e nas evidências de um
mais amplo enfraquecimento e transtorno das funções psíquicas. (...) “Terror”, “medo”
e “angústia” são empregados erradamente como sinônimos; mas podem se diferenciar.
“Angústia” designa um estado como de expectativa do perigo e preparação para ele,
ainda que seja desconhecido; “medo” requer um determinado objeto, ante o qual nos
amedrontamos; mas “terror” se denomina o estado em que ficamos ao correr um perigo
sem estarmos para ele preparados, enfatiza o fator surpresa. (FREUD, 2010d, p. 168-9).

Apesar de escutarmos os professores de modo individual, compreendemos este aspecto


do seu sofrimento como um fenômeno social. Há que se considerar que tal fenômeno se
relaciona ou pode intensificar as disposições individuais e pulsionais existentes. Ou, por outro
lado, estes quadros podem ser pensados no contexto das chamadas “neuroses atuais”.

A angústia, nesse caso, seria sempre a angústia automática da qual Freud veio a falar
em “Inibições, sintomas e angústia” (1926/1980), e que retoma, de certo modo, aquela
angústia definida como descarga em 1895 no caso das neuroses atuais. Trata-se de
uma modalidade de angústia que é, sobretudo, somática, numa contrapartida da
angústia sinal, essencialmente psíquica. A angústia automática é aquela que marca
uma falha do ego diante do perigo, quando este não tendo tido condições de examinar
os processos de realidade, deixa-se tomar de surpresa. É claro que estamos falando
aqui do trauma, ou seja, do irrepresentável que se articula exatamente à pulsão de
morte. Grosso modo, o sujeito da neurose atual funciona no registro da neurose
traumática. Responde de maneira automática, passando ao largo dos processos
psíquicos na sua montagem sintomática. (FERRAZ, 2022, p. 103).

O resgaste da “neurose atual” no pensamento freudiano joga luz sobre o papel do


contemporâneo no mal-estar, assim como os efeitos psíquicos que a libido e a agressividade
sem um destino, obstaculizadas, podem produzir no sujeito. Em um cenário marcado pela
intensidade cada vez maior da precarização do trabalho e sua impossibilidade de depuração
destes efeitos pelo psiquismo, estão dadas as condições para que elas se realizem.

O ato do somatizador, com o perdão da redundância, recai sobre o soma. Ao contrário


da conversão histérica, quando o corpo afetado é o corpo erógeno – portanto, corpo
simbólico -, na somatização o corpo é mesmo o corpo biológico. Daí a existência de
uma lesão orgânica, muitas vezes grave. Freud afirmava que o aparelho psíquico tem
por função receber e processar os estímulos externos, e as manifestações pulsionais,
fazendo, para tanto, uso de suas vias associativas. Quando isso não é completamente
possível, entram em cena outras defesas, que não o recalcamento, que passam ao largo
da mediação pelo símbolo. (FERRAZ, 2022, p. 106).

Em um texto de 1917, intitulado O estado neurótico comum, Freud pondera sobre a


constituição dos sintomas e das doenças, estabelecendo que o refúgio na doença às vezes é
necessário, vistos os processos de autoconservação pelas infelicidades e sofrimentos comuns,
não apenas psiconeuróticos.
50

Não se espantem, portanto, se os senhores ouvirem que o médico por vezes toma o
partido da enfermidade que combate. Não lhe cabe, no enfrentamento de todas as
situações da vida, restringir-se ao papel do fanático pela saúde; ele sabe que, no mundo,
não existe apenas a infelicidade provocada pela neurose, mas também sofrimento real,
irremovível, e que a necessidade de um ser humano pode requerer o sacrifício da própria
saúde; assim, o médico descobre também que, mediante tal sacrifício de um indivíduo,
pode-se frequentemente impedir que um infortúnio imensurável se abata sobre tantos
outros. Se pudemos dizer que, diante de um conflito, o neurótico sempre busca refúgio
na doença, temos que reconhecer que em muitos casos essa fuga é plenamente
justificada, e o médico que percebeu esse estado de coisas se retirará em silêncio, pleno
de consideração para com o enfermo. (FREUD, 2014g, p. 506).

Interessante como Freud é generoso, mesmo empenhado na compreensão do sofrimento


psíquico. No desvendar das psiconeuroses de defesa discute que há formas de “sofrimento real,
irremovível” que podem ser motivados pelas “necessidades de um ser humano”. Esta
construção freudiana fica mais evidente ao longo do seu percurso de trabalho e elaboração
teórica, sobre a intensidade social do mal-estar e o sofrimento comum.
Assim como há a possibilidade de pensarmos a categoria “neurose atual”24, temos, no
mesmo contexto, as chamadas “neuroses mistas”, categoria utilizada por Freud nos primeiros
momentos de suas reflexões clínicas. As neuroses mistas estariam relacionadas ao entrecruzar
das neuroses atuais com as psiconeuroses de defesa, numa espécie de “umbigo da neurose”25,
no qual não ficaria muito claro onde começa uma ou outra, além de elas assumirem, em
determinados contextos, um peso maior ou menor na formação de sintomas.

É assim que, explicando mais uma vez a ocorrência de neuroses mistas, ele afirma
que “as causas específicas da neurastenia, as perturbações contemporâneas da vida
sexual, atuam ao mesmo tempo como causas auxiliares da psiconeurose, cuja causa
específica, a lembrança da experiência sexual precoce, elas despertam e revivem.”
(...). O ponto fundamental a ser destacado é que, segundo essa visão, as causas das
neuroses podiam se entrecruzar entre si – muito comumente o faziam –, de forma que
a etiologia de determinado quadro costumava ter um pé no presente e outro no passado
– uma causa atual e outra antiga. Assim, tanto as características das práticas sexuais
da vida adulta como as experiências sexuais infantis podiam atuar na produção de um
único quadro neurótico, que seria então uma mescla de uma neurose atual com uma
psiconeurose de defesa. (RITTER, 2022, p. 78).

24
Em Estado neurótico comum (1917), há um trecho que Freud reflete: “Mas os sintomas das neuroses atuais –
pressão no interior da cabeça, sensação de dor, irritabilidade em um órgão, enfraquecimento ou impedimento de
uma função – não têm um “sentido”, um significado psíquico. Eles não apenas se manifestam sobretudo no corpo,
como sucede com os sintomas histéricos, por exemplo, como são também processos inteiramente físicos, em cujo
surgimento não atuam os complicados mecanismos psíquicos de que tomamos conhecimento. São, de fato, aquilo
que por tanto tempo se acreditou que eram os sintomas psiconeuróticos.” (FREUD, 2014g, p. 513).
25
Freud utiliza esta expressão para se referir “ao umbigo do sonho”, um local que representaria o impossível da
construção de um significado ou sentido em um sonho. No contexto das relações entre neuroses traumáticas e
psiconeuroses, Freud também relata em Inibição, sintoma e angústia que: “De fato, é muito de lamentar que não
exista uma única análise aproveitável de uma neurose traumática. Não porque iria contradizer a importância
etiológica da sexualidade – há muito essa contradição foi eliminada com a introdução do narcisismo, que situa o
investimento libidinal do Eu na mesma categoria dos investimentos objetais e sublinha a natureza libidinal do
instinto de conservação -, mas porque perdemos, com a falta dessas análises, a mais valiosa oportunidade para
conclusões decisivas sobre a relação entre angústia e formação de sintomas.” (FREUD,2014c, p. 69).
51

Esse debate se abre a muitas questões contemporâneas do mal-estar na atualidade e está


muito vivo em várias frentes do pensamento psicanalítico e social. Talvez a pandemia do
Coronavírus tenha alertado de forma mais contundente sobre as dinâmicas sociais traumáticas
e psíquicas no mal-estar contemporâneo. Passamos a ter a necessidade, de modo mais profundo,
de investigar as perspectivas sociais e históricas de sofrer na atualidade, que influenciam
diretamente a sintomatologia do presente. Este não é um debate qualquer, porque diz sobre uma
leitura de clínica e do social, o quanto as determinações culturais, sociais e econômicas
demarcam um modo de sofrer e uma determinada política, seja de saúde mental, seja de modos
de organização social em torno deste sofrer.26

Com a diminuição da incidência do mal-estar caracterizado pelo conflito psíquico –


marca distintiva da neurose -, outras formas de adoecimento acabariam por se impor,
nas quais as saídas extrarrepresentativas literalmente ganhariam corpo, como
“passagem ao ato, conduta perversa, toxicomania, baque depressivo, momento
delirante, crise psicossomática etc.” É como se diante da impossibilidade da
tramitação psíquica do excesso constitutivo das subjetividades, este acabasse sendo
descarregado na concretude do corpo ou na imediatez do ato. (RITTER, 2022, p. 85).

O que vimos nas entrevistas com os professores foi que a hipótese de Freud sobre “os
graves problemas sociais que derivam desta natural ‘aversão humana ao trabalho’”, é
intensificada pela dinâmica de acirramento das contradições da civilização, que expressam mais
claramente sua faceta de barbárie – que Adorno desdobra a partir da obra de Freud. Há
degradação da cultura, tanto daquilo que oferece do ponto sublimatório, de autonomia do
sujeito, como de possibilidade de reparar estas dinâmicas sociais de adoecimento. “Penso que,
além destes fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que designarei bem
simplesmente como a da falência da cultura.” (ADORNO, 2006b, p. 164).
É nesta falência da cultura, na promessa de autonomia que não pode se realizar, que se
estabelece uma “vida danificada”27, a qual tem, igualmente, um “núcleo traumático” como
balizador, inclusive dos momentos de “não-trabalho”, “o tempo livre”. “Sob as condições
vigentes, seria inoportuno e insensato esperar ou exigir das pessoas que realizem algo produtivo
em seu tempo livre, uma vez que se destruiu nelas justamente a produtividade, a capacidade
criativa.” (ADORNO, 1995, p. 77).

26
No livro Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico (2020) organizado por Vladimir Safatle, Nelson
da Silva Júnior e Christian Dunker, temos um panorama da atualidade do mal-estar relacionado ao modo como o
neoliberalismo produz uma gestão do sofrimento psíquico, afetando os pressupostos da maneira como o indivíduo
se relaciona com seu sofrimento sob determinada realidade social.
27
No conjunto de aforismos sob o título de Mínima Moralia: reflexões a partir da vida danificada (1992), escrito
entre os anos de 1944 e 1947, Adorno discute, através de uma série de temas cotidianos ou gerais, suas críticas à
violência em que se constituiu a modernidade.
52

Nesta crítica Adorno estabelece os efeitos desta “vida danificada” na própria


constituição dos indivíduos. O quanto as formas consideradas “normais” de existência humana
se realizam a serviço de sua própria mutilação. No fragmento A saúde para morte discorre,

Se fosse possível algo como uma psicanálise da cultura hoje prototípica; se o absoluto
predomínio da economia não escarnecesse de toda tentativa de explicar os estados de
suas vítimas a partir da vida psíquica delas e se os próprios psicanalistas não tivessem
feito há muito tempo um juramento de fidelidade àqueles estados – uma tal
investigação mostraria necessariamente que a doença própria de nossa época consiste
precisamente no que é normal. Os atos libidinosos que se exigem do indivíduo que
tem um comportamento físico e psíquico sadio são tais que somente podem ser
efetuados ao preço da mais profunda mutilação, de uma interiorização da castração
nos extroverts, em face da qual a velha tarefa da identificação com o pai é a
brincadeira infantil na qual aquela era ensaiada. O regular guy, a popular girl têm que
reprimir não só seus desejos e conhecimentos, mas também todos os sintomas que na
época burguesa decorrem da repressão. Assim como a velha injustiça não é alterada
pelo emprego maciço e generoso de luz, ar e higiene, mas, sim, precisamente
encoberta pela cintilante transparência da empresa racionalizada, do mesmo modo a
saúde interior de nossa época consiste em ter bloqueado a fuga para a doença sem
alterar em um mínimo sua etiologia. (...) Até hoje nenhuma investigação explorou o
inferno em que se forjam as deformações que, mais tarde, vêm à luz do dia sob a
forma de alegria alvoroçada, de fraqueza, de sociabilidade, de uma adaptação bem-
sucedida ao inevitável e de um desembaraçado sentido prático. Há razões para supor
que essas deformações ocorrem em fases do desenvolvimento da criança que são
anteriores até mesmo à origem das neuroses: se estas são o resultado de um conflito
no qual a pulsão foi derrotada, então a situação, que é tão normal quanto a sociedade
deteriorada à qual ela se assemelha, resulta como que de uma espécie de intervenção
pré-histórica que inibe as forças antes mesmo de surgir qualquer conflito, e a
subsequente ausência de conflitos reflete decisão prévia, o triunfo a priori da instância
coletiva, e não a cura pelo conhecimento. (ADORNO, 1992, p. 49,50).

Estamos diante de um cenário, que Freud já havia percebido, de intensificação do mal-


estar social, mas que, segundo Adorno (2006), ele não imaginou aonde esse mal-estar poderia
chegar. Nossa investigação, ao escutar os professores, traz à tona as camadas psíquicas desse
mal-estar, que se articulam com as variadas determinações da realidade social.

2.3. Mal-estar, agressividade e barbárie

“...um dia o diretor virou para mim – e eu tinha


acabado de me efetivar na prefeitura –, ele virou para mim
e falou assim: ‘professora como é que você passou na
perícia se você é doente, você passa mal na escola’.”

Professora Ana

Freud, ao apresentar as três fontes do sofrer do mal-estar – a impossibilidade do controle


da natureza, os limites do corpo e a precariedade das formas de regular as relações humanas, a
família e a sociedade –, estabelece as bases inerentes ao mal-estar civilizatório e,
53

consequentemente, as possibilidades de ser. “Tal conhecimento não produz um efeito


paralisante; pelo contrário, ele mostra à nossa atividade a direção que deve tomar. Se não
podemos abolir todo sofrer, podemos abolir parte dele, e mitigar outra parte – uma experiência
milenar nos convenceu disso.” (FREUD, 2010a, p. 43).
Numa perspectiva do sofrimento social se discute que os homens não podem admitir
que as instituições criadas por eles não trariam bem-estar e proteção. Estaria nesse fenômeno,
segundo Freud, uma natureza indomável referente à própria constituição psíquica dos
indivíduos.
A percepção dessa natureza indomável refere-se, também, ao momento histórico que
Freud viveu, em especial a experiência da primeira guerra mundial e das neuroses de guerra,
evento altamente destrutivo do ocidente. É neste contexto que surge uma de suas obras mais
importantes, Além do princípio do prazer, de 1920, que terá efeitos em sua clínica e na leitura
da dinâmica social. Ali, surge com mais força, a partir da prática clínica, a expressão
“compulsão à repetição” relacionada a uma natureza indomável no psiquismo dos indivíduos:

(...) a maior parte do que a compulsão de repetição faz reviver causa necessariamente
desprazer ao Eu, pois traz à luz atividades de impulsos instintuais reprimidos, mas é
um desprazer que já consideramos, que não contraria o princípio do prazer, é
desprazer para um sistema e, ao mesmo tempo, satisfação para o outro. Mas o fato
novo e digno de nota, que agora temos que descrever, é que a compulsão à repetição
também traz de volta experiências do passado que não possibilitam prazer, que
também naquele tempo não podem ter sido satisfações. (FREUD, 2010d, p. 179).

Para refletir sobre esta natureza indomável, o psicanalista busca suas bases filogenéticas
no processo de evolução cultural. Num determinado momento, o homem primitivo teve que se
voltar ao trabalho e foram sendo criadas relações a partir do trabalho. Junto a isso veio o hábito
de construir famílias. As famílias, por conseguinte, estariam relacionadas à ideia de
permanência da satisfação sexual, por parte dos machos. As fêmeas, por sua vez, teriam o
interesse de viver em família para assegurarem proteção aos seus filhos.
A perda do olfato e a hegemonia da visão são características da evolução cultural. O fato
de o homem ficar ereto escondeu os órgãos sexuais e a menstruação passou a perder a importância
como estímulo. Freud (2012a), então, retoma sua obra Totem e Tabu, de 1912. A cultura totêmica
estabelece as restrições para se viver em comunidade. Os preceitos do tabu constituíram o
primeiro “direito”, que reprimiram a natureza indomável, e os mais fortes desejos humanos.

O tabu é uma proibição antiquíssima, imposta do exterior (por uma autoridade) e


voltada contra os mais fortes desejos do ser humano. A vontade de transgredi-lo
continua a existir no inconsciente; aqueles que obedecem ao tabu têm uma postura
ambivalente quanto ao alvo do tabu. A força mágica a ele atribuída remonta à
capacidade de induzir em tentação; ela age como um contágio, porque o exemplo é
54

contagioso, e porque o desejo proibido desloca-se para outra coisa no inconsciente.


Expiar a violação do tabu com uma renúncia mostra que na base da obediência ao
tabu se acha uma renúncia. (FREUD, 2012a, p. 65).

A cultura e suas leis, nesse âmbito, obrigam homens e mulheres a muitas restrições à
sexualidade. Sua primeira fase, a do totemismo, implica na proibição incestuosa como
expressão dos fortes desejos humanos, de natureza indomável. Tais restrições da cultura são
também produtos do imperativo da necessidade econômica, pois têm de subtrair à sexualidade
um elevado montante da energia psíquica que desprendem.
A civilização tenta retirar da sexualidade a possibilidade de unir os indivíduos numa
comunidade cultural pelo trabalho e pelos interesses em comum. Mobiliza um grau máximo de
libido inibida com o objetivo de fortalecer os vínculos comunitários. Por este caminho
fundamenta a oposição à sexualidade. De tal modo, para se viver em sociedade, um grau dessa
natureza indomável e desses fortes desejos humanos relacionados à sexualidade e à
agressividade ficam reprimidos, mas podem escapar à repressão.

O quê de realidade por trás disso, que as pessoas gostam de negar, é que o ser humano
não é uma criatura branda, ávida de amor, que no máximo pode se defender, quando
atacado, mas sim que ele deve incluir, entre seus dotes instintuais, também um forte
quinhão de agressividade. Em consequência disso, para ele o próximo não constitui
apenas um possível colaborador e objeto sexual, mas também uma tentação para
satisfazer a tendência à agressão, para explorar seu trabalho sem recompensá-lo, para
dele se utilizar sexualmente contra sua vontade, para usurpar seu patrimônio, para
humilhá-lo, para infligir-lhe dor, para torturá-lo e matá-lo. (FREUD, 2010a, p. 77).

Para Freud, esse quinhão de agressividade está presente nas relações humanas e obriga
a civilização a grandes dispêndios, produzindo formas de dar conta da agressividade, seja do
ponto de vista da razão ou do amor, assim como inibir a sexualidade em sua meta. Não haveria,
portanto, forma de aplacar totalmente a agressividade porque ela é constitucional e porque tem
sua utilidade se for deslocada para a produção da cultura.
Foi esse o debate de Freud com os comunistas na década de 1930 que, segundo ele,
acreditavam que, abolindo a propriedade privada, estariam produzindo um ideal de sociedade
que pudesse suprimir tal traço da natureza humana.

Suprimindo a propriedade privada, subtraímos ao gosto humano pela agressão um dos


seus instrumentos, sem dúvida poderoso, mas certamente não o mais poderoso. Porém
nada mudamos no que toca às diferenças de poder e de influência que a agressividade
usa ou abusa para os seus propósitos, e tampouco na sua natureza. Ela não foi criada pela
propriedade, reinou quase sem limites no tempo pré-histórico, quando aquela ainda era
escassa, já se manifesta na infância, quando a propriedade mal abandonou sua primária
forma anal, constitui o sedimento de toda a relação terna e amorosa entre as pessoas,
talvez com a exceção única daquela entre a mãe e o filho homem. (...) Suprimindo
também este, mediante a completa liberação da vida sexual, ou seja, abolindo a família,
célula germinal da civilização, fica impossível prever que novos caminhos a evolução
55

cultural pode encetar, mas uma coisa é lícito esperar: que esse indestrutível traço da
natureza humana também a acompanhe por onde vá. (FREUD, 2010a, p. 80).

É difícil para o homem renunciar ao seu pendor à agressividade. O homem primitivo


estaria em melhor situação porque não tinha restrições sociais. Freud (2010a) enfatiza que não
é inimigo da cultura, que é lícito introduzir mudanças que satisfaçam nossas necessidades,
contudo, há dificuldades inerentes à cultura para se reformar.
Partindo da vida biológica e da relação com as restrições impostas à evolução cultural,
Freud nos apresenta um instinto que busca avançar em unidades cada vez maiores e um outro
contrário, que busca dissolver essas unidades e conduzi-las ao estado primordial, inorgânico.
Ou seja, ao lado de Eros, Thanatos, um instinto de morte. Os fenômenos da vida estão
relacionados à ação conjunta ou antagônica de ambos.

Mas não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. As manifestações
de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas; era de supor que o instinto de morte
trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo, para dissolução deste, mas isso não
constituía prova, é claro. Levava-nos mais longe a ideia de que uma parte do instinto se
volta contra o mundo externo e depois vem à luz como o instinto de agressão e
destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na medida em
que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si próprio.
Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar a
autodestruição, aliás sempre existente. Ao mesmo tempo, a partir desse exemplo
podemos suspeitar que as duas espécies de instintos raramente – talvez nunca – surgem
isoladas uma da outra, mas se fundem em proporções diferentes e muito variadas,
tornando-se irreconhecíveis para nosso julgamento. No sadismo, há muito conhecido
como instinto parcial da sexualidade, teríamos uma fusão assim, particularmente forte,
entre o impulso ao amor e o instinto de destruição, e na contraparte, o masoquismo, uma
ligação da destrutividade dirigida para dentro com a sexualidade, o que faz visível e
notável a tendência normalmente imperceptível. (FREUD, 2010a, p. 87).

O instinto de morte é expresso por agressividade e destrutividade não eróticas. A libido


pode, mais uma vez, ser aplicada às expressões de força de Eros, para diferençá-las da energia
do instinto de morte. O instinto de morte só é perceptível fusionado a Eros. Freud coloca o
sadismo como a forma mais evidente do instinto de morte, o qual não seria apenas
agressividade, estando, sobretudo, relacionado a antigos desejos de onipotência da estrita
natureza indomável dos homens.

É no sadismo, em que ele modifica a seu favor a meta erótica, mas não deixa de satisfazer
plenamente o ímpeto sexual, que atingimos a mais clara compreensão de sua natureza e
de sua relação com Eros. Mas também ali onde surge sem propósito sexual, ainda na mais
cega fúria destruidora, é impossível não reconhecer que sua satisfação está ligada a um
prazer narcísico extraordinariamente elevado, pois mostra ao Eu a realização de seus
antigos desejos de onipotência. Domado e moderado, como que inibido em sua meta, o
instinto de destruição deve, dirigido para os objetos, proporcionar ao EU a satisfação das
suas necessidades vitais e o domínio sobre a natureza. (FREUD, 2010a, p. 89-90).
56

Por sua vez, Adorno (2006b) dirá que Freud, melhor do que ninguém, estabeleceu as
bases subjetivas desta destrutividade, que nomeia como barbárie. Tal destrutividade atingiu a
cultura de modo que esta passa a estar a serviço da barbárie. A promessa da cultura de
emancipar o indivíduo falhou e produziu um efeito de agressividade e destrutividade contra a
própria ideia de cultura.

Penso que, além desses fatores subjetivos, existe uma razão objetiva da barbárie, que
designarei bem simplesmente como a da falência da cultura. A cultura, que conforme sua
própria natureza promete tantas coisas, não cumpriu a sua promessa. Ela dividiu os
homens. A divisão mais importante é aquela entre trabalho físico e intelectual. Deste modo
ela subtraiu aos homens a confiança em si e na própria cultura. E como costuma acontecer
nas coisas humanas, a consequência disto foi que a raiva dos homens não se dirigiu contra
o não-cumprimento da situação pacífica que se encontra propriamente no conceito de
cultura. Em vez disto, a raiva se voltou contra a própria promessa ela mesma, expressando-
se na forma fatal de que essa promessa não deveria existir. (ADORNO, 2006b, p. 164).

O que podemos perceber é que a barbárie atravessa as relações interpessoais na escola. O


que os professores trazem nas entrevistas são situações e experiências de violência muito
primitivas e que podem ser caracterizadas como assédio moral e, ainda mais do que isso, como
formas sádicas de relações baseadas na hierarquia. Como relatou a professora Vera sobre uma
ação de sua coordenadora que, ao gritar com ela, fez-lhe perder, durante alguns dias, a audição
de um dos ouvidos, em um ano marcado por alguns afastamentos médicos decorrentes das
condições e relações no trabalho.

(...) o que eu quero acrescentar o que foi pior foi a PCG, a coordenadora geral da
escola esse ano que eu tava mexendo no computador fazendo planejamento de aula,
toda a semana, isso é um absurdo, se você faz um plano de aula anual ou semestral
você não precisa fazer toda semana. Ela queria semanal. Por quê? Ela é a boa, ela que
manda. Ela chegou perto de mim, ela viu alguma tela particular minha. Eu tava com
4, 5 telas abertas ela gritou no meu ouvido. Surdou, eu tive que ir procurar um
remédio, alguma coisa para melhorar o meu ouvido. Inflamou. Ela gritou “você está
fazendo o quê?” “É para fazer o plano de aula!” Eu disse quem disse que eu não estou
fazendo. “Você está com outra janela aberta!” E daí? Eu estou fazendo o que você
pediu. Então ela gritou, Marcelo ela me surdou. Por isso que estou te falando, eu não
tive direito do bônus porque eu faltei muito. Eu peguei vários atestados. Eu peguei 10
dias com um psiquiatra, depois mais 10 dias com psiquiatra. E com a fono eu acho
que peguei mais 5. Porque o clínico geral falou assim: “é olha isso é otorrino. Eu
entendo eu vou te passar um medicamento você vai passar, mas procura uma fono
também porque surdou.” Demorou uns 10 dias para eu conseguir ouvir novamente,
de novo. Surdou, ficou surdo um ouvido, foi o direito. Só ouvia do esquerdo. Falei
olha que situação. E dói a cabeça quando atinge alguma coisa aqui na cabeça. Dói
muito a cabeça, então eu peguei também mais 5 dias. Então isso foi o pior, por isso
eu não quero PEI28 mais. Talvez outra PEI fosse dar certo para mim, como a N. falou
para mim, porque eu sou da N. Olha a gente pode atribuir aula em outra PEI para
você. Tem aula de Filosofia, Sociologia, História em outra PEI. Não quero, vou voltar
para o regular, vou trabalhar menos. Vou ganhar menos, mas eu vou cuidar da minha
vida. Eu vou cuidar de mim também. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de
magistério).

28
Programa de Ensino integral. Escolas da rede estadual de ensino que tem uma programação específica e horários
estendidos. Nas entrevistas, vemos professores criticando este modelo de escola pelo alto índice de assédio moral.
57

Interessante que a professora Vera usa a palavra “surdou”, que é corporal, relacionada
aos ouvidos e à audição, e psíquica na medida que o “surdou” é um corte em sua audição, como
se a lógica psíquica fosse a do “surtou”, produzindo um corte na forma de ser social e hostil do
princípio de realidade. Trata-se de um mecanismo de defesa29 psíquico com relação aos gritos
e hostilidade que recebeu.
O professor Fernando relata um diálogo que teve com o diretor que demonstra a forma
como se dão os conflitos na escola, mediados por uma agressividade destrutiva que produziu
efeitos psicológicos e sintomas corporais no professor. Podemos caracterizar também,
combinado ao assédio moral, uma manifestação de sadismo na relação da direção com o
professor que, concomitante às más condições de trabalho, salário e o próprio controle das
aulas, temos um panorama de destrutividade, daquilo que não tem condição de representação,
de simbolização, que marca a própria cultura de nosso tempo.30

Não foi somente isso não. Também foi a questão de falta, para você ter uma noção eu
cheguei atrasado 5 minutos e tolerância era 10 minutos. Eu tenho este problema com a
falta que o TDAH 31 me arrebenta com esta coisa do horário. E eu tenho até alguns
artifícios que eu uso aqui para lembrar das coisas. Você percebe que eu atraso e esqueço
(risos). E aí tipo é complicado, mas eu chegando no horário eu consigo fazer o controle,
cheguei lá 5 minutos atrasado. A tolerância era 10 minutos escrita no grupo. Aí me chega:
“oh lá na minha sala agora, por favor!” Na frente de todo mundo, já é constrangedor isso
aí. Aí você vai para a sala do patrão. Aí chega lá: “o que a gente já conversou este negócio
de atraso”. A gente conversou, eu entendi. E hoje eu não atrasei, eu tô no limite aí tal.
“Não, o limite não é, não está estipulado para segunda aula, é para a primeira aula.” Então,
mas isso não está escrito no grupo e eu não tenho a primeira aula. Só tenho a partir da
segunda, a primeira aula no caso é a segunda aula. “Não, não é assim, a regra não é essa”.
Então escreva a regra porque no grupo não está dizendo nada disso. “Ah não então vou
ter que mudar a regra! Então vou fazer o seguinte, eu vou mudar a regra e vou falar para
todos os professores que foi por sua causa que é para poder contemplar suas vontades,
tá!?” Eu falei pô mano faz isso. Faz isso, você vai entrar lá escrever a regra, vai mudar
ela. Coloca no grupo, fala que foi por minha causa e fala para todos os professores porque
aí mano vai dar para mim aquilo que eu precisava. Porque eu tenho um monte de pessoa

29
Segundo o Dicionário de Psicanálise de Roudinesco e Plon (1998), “Sigmund Freud designa por esse termo o
conjunto das manifestações de proteção do eu contra as agressões internas (de ordem pulsional) e externas,
suscetíveis de constituir fontes de excitação e, por conseguinte, de serem fatores de desprazer. As diversas formas
de defesa em condições de especificar afecções neuróticas costumam ser agrupadas na expressão “mecanismo de
defesa.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 141).
30
O filósofo Sérgio Paulo Rouanet, em seu livro, Teoria crítica e psicanálise, traz o pensamento de Erich Fromm,
um dos psicanalistas que trabalharam a relação dos aspectos sociais aos psíquicos, sob a tradição freudo-marxista
da década 1920. Rouanet cita um trecho interessante do trabalho de Fromm sobre as perspectivas subjetiva e
objetiva da violência da modernidade. Trata-se da relação sadomasoquista entre os indivíduos que se dá por
determinantes econômicos e históricos em que a posição masoquista expressaria a forma de adaptação e defesa
desta época: “quanto mais se agudizam as contradições dentro da sociedade..., quanto mais cegas e incontroláveis
as forças sociais, quanto mais catástrofes como a guerra e o desemprego se impõem à existência individual como
forças fatídicas, tanto mais violenta e mais generalizada é a estrutura pulsional sadomasoquista, e portanto a
estrutura caracteriológica autoritária, e tanto mais incondicional é a submissão do Destino, ao mesmo tempo
virtude suprema e fonte de prazer. É esse prazer que permite ao homem suportar tal existência, e nesses termos o
masoquismo revela-se como uma das condições psíquicas mais importantes para o funcionamento da sociedade,
como um elemento essencial do cimento que assegura sua coesão.” (FROMM apud ROUANET, 1983, p.58).
31
Transtorno de deficit de atenção e hiperatividade.
58

fazendo fila aqui pra ser testemunha se eu te processar por assédio moral, agora se você
faz isso, você já me dá um documento escrito por você falando que você está me
assediando moralmente. É só o que eu preciso, faz isso por favor. Aí ele entrou em
choque. “Oh não se faz de vítima não”. Eu falei olha eu vou explicar para você, vou te
dizer e vou provar para você que ser vítima não significa ser coitado. E eu estou sendo
vítima sim dos seus abusos o ano inteiro. Eu tenho testemunha, eu tenho áudio. Agora é
o seguinte, só falta uma prova documental, faz ela para mim por favor, por causa de 5
minutos. Falei tô com laudo médico, tô com gastrite por causa desse seu trabalho. Então
assim, você não está ligado, é eu passar um final de semana bem, descansado, falar pô
amanhã vou trampar o bagulho dos moleques, vai ser dá-hora. Eu pegar minha mochila
no domingo para arrumar o material começar a queimação aqui. O esôfago queimando.
Vomitando sangue. E só de pegar na mochila. Se fala porra na moral esta porra vai me
matar. A gente já está sendo vigiado, a mulher já está punindo. Sabe não tem paz. Salário
então nem se fala. Aquilo é ridículo. Aquilo é ilusão, 2 mil por mês, pelo amor de Deus
é 7 reais o litro da gasolina. Não vou nem comentar a atual circunstância do mantra da
escola sem partido. Os alunos não compram estas ideias imbecis, mas os pais adoram.
“Então, mas o senhor está trabalhando para a escola sem partido?” Aqui não é partidário
não, mas também ninguém é besta. Eu não tenho partido, não faço parte, não sou filiado
a nenhum partido, mas uma coisa que eu também não faço é passar pano histórico para
ninguém não. Ditadura é ditadura, ah revolução?! não tem essa! Então complicado,
complicado. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

Pelo diálogo que se estabelece na descrição do professor Fernando, estes 5 minutos de


atraso são apenas a ponta, o estopim de questões muitas mais complexas e intensas que não
encontram possibilidades de serem simbolizadas entre o professor e o diretor. A maneira como
o professor Fernando vai construindo sua narrativa evidencia um acúmulo de situações intensas
a serem digeridas. Começa com o conflito com o diretor e entra no controle social de suas aulas
por demandas como “escolas sem partido”, a inflação e os baixos salários. As demandas
escolares e sociais combinadas às demandas de sobrevivência parecem que encontraram na
acidez do estômago do professor um limite corporal para se apresentarem como limite social.
É para o corpo que se desloca a agressividade em sua (im)possibilidade de manifestação social.
É o que traz Adorno (2006b) quando diz que mesmo no mais alto desenvolvimento
tecnológico as pessoas encontram-se atrasadas, tomadas por um ódio primitivo, uma
agressividade primitiva. O que podemos pensar, com Freud, um instinto de destruição que visa
uma certa onipotência que, por outro lado, pode ser também interiorizada ao se combinar com
a destrutividade na dimensão cultural naquilo que ela intensifica nos indivíduos. Segundo
Adorno (2006b, p. 159): “A forma de que a ameaçadora barbárie se reveste atualmente é a de,
em nome da autoridade, em nome de poderes estabelecidos, praticarem-se precisamente atos
que anunciam, conforme sua própria configuração, a deformidade, o impulso destrutivo e a
essência mutilada da maioria das pessoas.”
É importante destacar que as funções da burocracia escolar, das gestões ou
coordenações, estão sob uma lógica de funcionamento social hierárquica, normalmente com
diretrizes ligadas diretamente à Secretária de Educação do Estado, na qual os processos de
59

padronização e mecanização convocam, nos indivíduos, dimensões (auto)destrutivas psíquicas


para sustentar, às vezes sozinhos, todo o processo de contradições da escola no âmbito do
capital e do trabalho e de seus funcionamentos. Como diz Adorno (1973, p. 181):

O processo de mecanização e burocratização exige de quem se encontra submetido a ele


um novo tipo de ajustamento. Para enfrentar quaisquer exigências que surgem em
qualquer setor da vida, é preciso que, em certa medida, os próprios indivíduos se
mecanizem e padronizem. Quanto mais enfraquece a relação entre o destino de uma
pessoa e o seu juízo autônomo, quanto mais se limita a possibilidade de optar pela
realização de outra coisa que não seja a inclusão em organismos e instituições
onipotentes, tanto melhores são as condições daqueles indivíduos que mais rapidamente
abdicaram de suas opiniões pessoais e de sua própria experiência, e que concebem o
mundo da forma que melhor convém à organização que decide o seu porvir.

É isso o que nos mostra o professor Pedro ao falar sobre as relações dentro da escola
que se dão no sentido de reafirmação da hierarquia a todo o momento. Não há mais uma forma,
um cuidado no espaço escolar para preservar um modo de trabalho mais dialógico no sentido
de construir uma autoridade e relações esclarecidas.

Primeira semana de agosto deveriam voltar alguns alunos já em rodízio. Aí a nossa escola
optou por não voltar, porque a gente tem que preparar Google Sala de Aula, preparar uma
série de coisas e eu faço meus ATPCs32 de quarta-feira, então fico o dia inteiro sem entrar
em sala de aula, só fazendo ATPCs, no cargo de Português, no cargo de Inglês, e era na
parte da tarde. Então eu saí um pouco para andar, as costas doendo, aquela coisa de idade
e aí eu fui ao banheiro e voltei. E aí eu parei para conversar um pouco com os dois
inspetores. Passaram-se alguns minutos a coordenadora veio e me questionou se eu não
tinha nada para fazer. Se meu Google Sala de Aula estava em dia, porque eu estava ali
batendo papo. Eu considero isso um atrito porque assim... essa coordenadora foi
professora lá. Ela está como coordenadora agora, ela já me conhece. Ela sabe do meu
trabalho, sabe do meu método de trabalho. Foi na frente de dois inspetores e foi a vice-
diretora da escola que viu e mandou ela lá chamar minha atenção. Eu imediatamente falei
com ela bem educadamente tudo que estava acontecendo. Mas eu me reportei a direção
da escola, e falei que não queria mais ser tratado daquela maneira porque eu tenho já
bastante tempo de casa, a coordenadora me conhece, vice-diretora me conhece e eu não
queria ser tratado daquela maneira. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

O professor Pedro descreve um dado interessante na cena que é o fato de a coordenadora


ter sido professora na escola, de que já haveria uma experiência de vínculo, um saber produzido
nas relações de trabalho na escola. No entanto, ao assumir um lugar de distinção pelo cargo, de
insígnia, parece-nos que o que deve ser marcado é justamente o lugar da distinção por si. Em
um espaço escolar precarizado, não é sua forma mais esclarecida que se apresenta como
possibilidade de construção de autoridade, mas justamente sua expressão mais burocrática,
enfraquecida de pulsão de vida, de Eros, marcada pelos aspectos mortíferos, bárbaros.
Se é papel da cultura garantir algumas bases civilizatórias como um simples direito ao
luto e que cada vez mais a precarização do trabalho retira direitos dos professores, tem-se, sem

32
Aula de trabalho pedagógico coletivo (ATPC).
60

dúvida, uma expressão de uma violência que diz sobre a perspectiva da barbárie. O direito de
velar os mortos da família como algo da tradição cultural, da própria “evolução cultural”. É o que
a professora Luana nos coloca sobre a licença-nojo, a qual não teve direito como professora da
rede estadual, categoria O, comparado com outras profissões de seus familiares que tiveram. E,
agora, sem direito às duas abonadas, retiradas pelo PL26 (Lei Complementar 1.361/2021).

A gente não tem mais as abonadas, para você conseguir a licença prêmio mudou
bastante. Então caiu muito para a gente. Por exemplo, para você ver a diferença, o
efetivo tinha 6 abonadas, nós categoria O só 2. Meu avô faleceu eu não tinha direito.
Eu tive que abonar o dia que meu vô faleceu. Porque eu fui categoria O eu não tenho
a chamada licença nojo que seriam 2 dias, o parentesco avô não me dava o dia. Eu
tive que usar uma abonada porque ainda tinha abonada quando meu avô faleceu, ele
faleceu em setembro. Eu abonei porque eu não tinha direito. (...) Que absurdo! As
minhas primas todas tiveram o atestado, valia o atestado de óbito para elas. Uma é
psicóloga, trabalhava em escritório, a outra trabalha em mercado, e minha irmã teve
o dia por ser enfermeira e eu tive que abonar. Senão eu ia ser descontado meu dia.
(Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

Como já apontado, a maioria desses professores acumulam cargos e jornadas de trabalho,


seja na rede estadual, com outras redes de ensino, como a municipal, ou mesmo com outros
trabalhos fora da área da educação. Nosso objeto de estudo são os professores na rede estadual de
São Paulo. Ainda assim, é importante, como possibilidade de reflexão e de investigação, pensar
que esse professor está sob efeito de situações de violência e adoecimento intensificados pelas
duplas ou tripla jornadas, e pelas lógicas particulares dos respectivos trabalhos, que certamente
afetam a saúde psíquica e física, na realização do trabalho como professor na rede estadual.
É o caso da professora Ana, que relata uma situação na rede municipal. Diz que, quando
passou no concurso da rede municipal, acessou seu cargo na prefeitura – ou seja, passou por
todas as perícias médicas para poder acessar este cargo –; todavia, teve de lidar com uma
situação constrangedora na escola a qual assumiu como professora: uma fala do diretor, que a
nomeou como “doente” a deixou bastante abalada. A professora Ana, com medo de alguma
punição por estar em estágio probatório, acabou não denunciando o diretor, e esperou até o
momento da abertura de inscrições para pedir remoção da escola.

E aí teve uma vez que eu passei mal por causa da minha pressão, porque ela caiu, eu
acho que foi consequência do trabalho porque a escola era ruim e aí um dia o diretor
virou para mim e eu tinha acabado de me efetivar na prefeitura, ele virou para mim e
falou assim: “professora como é que você passou na perícia se você é doente, você passa
mal na escola”. Ele falou isso. Na hora assim minha vontade era ter ido no sindicato.
Mas como eu tinha acabado de entrar na prefeitura, em período probatório, na escola
estava dando advertência para outros professores que estavam lá há anos por besteira
assim... Eu fiquei na minha e fiquei lá empurrando com a barriga até acabar o ano e pedi
remoção para cá. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).
61

Os determinantes de uma organização social e cultural com marcas desta barbárie vão
minando as possibilidades desse professor preservar alguns princípios civilizatórios, da tradição
e da experiência geracional como um saber pessoal e de seu mundo interno. Assim, o ideal da
cultura, que é uma das marcas que constitui o superego individual, igualmente se afeta pelas
condições social e cultural, o que traz implicações das mais diversas para o modo como o
professor vive e trabalha.

2.4. Mal-estar e superego

Eu gosto de ser professora. Mas é bem difícil,


é bem complicado para nós porque eu ia até tentar
a carreira na prefeitura para ver se melhora um pouco mais.
Mas eu não quero que meu filho seja professor.

Professora Luana

Em O Eu e o Id, de 1923, Freud detalha as bases do psiquismo e suas instâncias. Cada


indivíduo constitui uma dinâmica psíquica relacionada ao seu ideal do Eu. Todo o processo de
ontogênese do indivíduo, no desenvolvimento e relação de dependência com os pais e, também,
na cultura, produzirão marcas que constituirão o Id, o Ego e o Superego do indivíduo.
O ideal do Eu de cada um é a representação do desenvolvimento desta dinâmica psíquica
que carrega dimensões internas e externas; é a forma pela qual o indivíduo se coloca no mundo
a partir de sua realidade psíquica. É o campo de suas possibilidades, da busca, mediada pela
cultura, de formas de prazer e modos de viver.
Por ser expressão do mundo interno do sujeito, carrega as marcas do complexo de Édipo,
dos vínculos primários com aqueles que cuidaram do indivíduo e daquilo que se abriu mão no
momento de constituição de um Eu primitivo, princípio do prazer e unidade mãe-bebê, para o
desenvolvimento de um Eu maduro mediado pelo princípio de realidade, da separação da mãe
e da entrada do pai nesta dinâmica.

O ideal do Eu é, portanto, herdeiro do complexo de Édipo e, desse modo, expressão dos


mais poderosos impulsos e dos mais importantes destinos libidinais do Id.
Estabelecendo-o, o Eu assenhorou-se do complexo de Édipo e, ao mesmo tempo,
submeteu-se ao Id. Enquanto o Eu é essencialmente representante do mundo exterior,
da realidade, o Super-eu o confronta como advogado do mundo interior, do Id. Conflitos
entre Eu e ideal refletirão em última instância – agora estamos preparados para isso – a
oposição entre real e psíquico, mundo exterior e mundo interior. (FREUD, 2011b, p.
45).

Há, no desenvolvimento primário do indivíduo, um medo da perda do amor. (FREUD,


2010a). As relações de dependência e de desamparo se apresentam de um modo que se o
62

indivíduo perde o amor, perde também a proteção contra os perigos da vida. Renuncia ao mais
absoluto princípio do prazer, na perspectiva da ontogênese, a fusão com a mãe, pela entrada de
um terceiro, a autoridade do pai33, que é internalizada constituindo o Supereu.
Ao internalizar a figura dos pais, internalizam-se também, do ponto de vista cultural e
social, ideais destes pais. As figuras parentais expressam a cultura determinada historicamente.
“De modo que o Super-eu da criança é construído não segundo o modelo dos pais, mas do
Super-eu dos pais; preenche-se com o mesmo conteúdo; torna-se veículo da tradição, de todos
os constantes valores que assim se propagaram de geração a geração.” (FREUD, 2010n, p. 205).
É o que percebemos nas entrevistas com os professores que trazem um pouco os ideais
geracionais e culturais, e como eles se estabelecem no próprio ideal do professor naquilo que
permanece como experiência geracional, como fio da humanidade e naquilo que é superado ou
que marca um conflito do indivíduo com seus próprios ideais.
Perguntamos sobre a escolha profissional do professor e de como isso se deu a partir
dos ideais familiares. O professor João, em suas respostas, indicou um ideal familiar
relacionado à estabilidade, à importância de ter estudo e, a partir disso, um emprego com bons
salários. Alguns de seus familiares trabalharam em empregos públicos como bancos públicos,
o que foi um referencial para o professor João.

Na época eu ainda era muito jovem e pensava a partir um pouco da pressão que você
recebe em casa, familiares, a sociedade. Você tem que fazer um curso mais tradicional,
que te dê uma perspectiva de bons salários (...). Olha eu não vou dizer que eles me
desincentivaram, na verdade o incentivo familiar sempre foi um pouco genérico no
sentido de que você tem que estudar. Você não pode ficar sem estudar. Precisa fazer o
ensino médio, precisa fazer uma faculdade, acho que meus pais tinham lá aqueles
sonhos, tem que fazer de repente um Direito, uma Medicina. Não sei, eles não deixaram
isso muito claro, mas a cobrança no meio familiar até de parentes próximos que tinham
influência na minha criação, da minha e dos meus irmãos é que o que não dá é pra ficar
sem estudar. Eu venho de uma família que os meus pais... meu pai hoje tem quase 72
anos, minha mãe tem 60 anos. Eles têm ensino médio completo, eles fizeram a escola
no tempo regular. Que no Brasil de 40 anos atrás é algo diferente. Meus bisavós já
sabiam ler e escrever, sempre teve esta pressão na família que você tem que estudar.
Como um mecanismo de manutenção econômica, social, mais neste sentido mesmo.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

O professor João acrescenta que, em sua trajetória, passou do curso de Economia, que
não concluiu, para o curso de História. E que seus pais “ficaram com o pé atrás”, visto ser uma
profissão que não teria bons rendimentos, ao contrário de profissões como Direito e Medicina.

33
É importante frisar que há uma leitura destas relações edípicas nas quais não necessariamente as figuras biológicas da
mãe e pai vão determinar esse desenvolvimento. O que seria mais importante destacar são determinadas funções
maternas e paternas (que inclusive são feitas pela mãe no estabelecimento de limites nesta fusão mãe-bebê), e são
significativas nas formas de ligação afetiva, de cuidado, amparo, limites e investimento libidinal no bebê.
63

Havia aquela expectativa difusa de que várias famílias brasileiras têm. “Ah é bom fazer
Direito, é bom fazer Medicina”. Eu tenho primos que são médicos. Primos próximos,
tem parentes próximos que são da área. Mas eu quando decidi mudar da Economia para
a História eu acho que eles ficaram um pouco de pé atrás, mas ao mesmo tempo eu tenho
primas que são professoras. Tem primas lá em Salvador que são professoras. Uma delas
hoje já é inclusive professora na Federal da Bahia. Então eu acho que eles ficaram um
pouco apreensivos. Porque sempre se fala da dificuldade que é trabalhar em sala de aula,
os problemas, o salário baixo. Na verdade, não me desincentivaram, foi algo: “ah tá tudo
bem, você vai mudar de faculdade, mas tem que terminar esta outra, tem que estudar,
não pode parar por aí”. Era mais nesse sentido mesmo, quanto a isso eles foram bem
tolerantes, bem abertos. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

Observa-se como o ideal geracional em torno do magistério está carregado por uma
imagem negativa. No caso do professor João, parece que outro ideal familiar se sobrepôs, que
foram as estabilidades do estudo e do emprego que não fizeram o professor enfrentar intensa
oposição familiar à sua escolha pelo magistério. Quando perguntado se escolheria ser
novamente professor se estivesse iniciando seus estudos, reafirma o ideal de estabilidade,
inclusive com preocupações relacionadas às crises econômicas e que marcam sua trajetória
profissional com estabilidade, na medida que é professor efetivo da prefeitura e do estado.

Você vai achar engraçado, mas se fosse para escolher eu escolheria de novo fazer
faculdade para ser professor. Bom hoje as coisas estão mudando um pouco. Mas ainda
é uma área que eu gosto de trabalhar. Gosto da sala de aula, tem muita dificuldade,
claro não é fácil você lidar com pré-adolescentes e adolescentes. Eles trazem muitas
questões, seja de casa ou seja da faixa etária. Às vezes são de meios familiares
desestruturados ou às vezes não, são famílias até estruturadas. Mas por serem crianças
e adolescentes em formação eles trazem questões que dão trabalho, que você tem que
ficar mediando. Mas eu escolheria, acho que a questão da estabilidade é algo que me
prende bastante. A gente está voltando a viver uma crise econômica que parecia algo
do passado. Nós que temos 35, 40, 45 anos você vai se lembrar disso lá no começo da
infância... e no geral você ter um emprego público num país como o Brasil acaba
sendo um pouco uma tábua de salvação. Mas acho que no fundo no fundo eu gosto de
fazer isso que eu faço sabe. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

O professor João ironiza (“você vai achar engraçado”) a própria condição pela qual o
magistério é visto tanto do ponto de vista familiar (“o pé atrás”) quanto da possibilidade deste
trabalho lhe produzir gratificação material e psíquica (“no fundo no fundo” ele gosta do
trabalho). No entanto, é importante observar que o que o move pessoalmente e enquanto
transmissão geracional é um medo das necessidades produzidas pelas indeterminações da
economia do país. O que nos faz refletir sobre a perspectiva mais geral das crises econômicas
e políticas e do quanto elas influenciam a intensidade do mal-estar dos indivíduos em um país
com a particularidade histórica do Brasil.
O professor Pedro traz como experiência familiar e ideal geracional uma tia que era
professora, de quem teve a oportunidade de acompanhar a trajetória, influenciando-o a buscar
este caminho. Além disso, discute uma certa possibilidade de produzir relações na educação às
64

quais seu emprego anterior no mundo corporativo não possibilitava. Diz que teve um relativo
apoio em sua decisão no que diz respeito à sua escolha de caminho profissional.

Mas eu acho o que me influenciou muito foi a questão familiar. Eu tenho uma tia que é
professora, e eu acompanhava a rotina dela de perto. E minhas experiências
profissionais antes da educação eram todas voltadas na área financeira. Eu trabalhava
em banco, depois fui trabalhar na extinta FEPASA34, na área de orçamento, mas eu
sempre gostei muito de divulgar conhecimento, de passar informações, de trocar ideias,
e um ambiente corporativo isso é pelo menos na minha experiência inexistente. Então
eu vi na educação o ambiente propício para o meu perfil de pessoa. Acho que foi o meu
perfil mesmo que me levou para educação. (...) Então eu não tive um incentivo para ir
para educação. Mas eu também não tive críticas, quando eu decidi fazer faculdade de
Letras, nada do tipo “ah ganha pouco”, “é uma profissão desvalorizada”, nem nada do
tipo. Minha família me apoiou, falou que era uma profissão muito bonita. E todas essas
questões, então indiretamente eu posso dizer que tive o apoio deles sim quando eu tomei
minha decisão de ser professor. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Quando perguntado sobre se estivesse começando os estudos se iria pelo mesmo


caminho profissional, o professor é tomado por uma certa ambiguidade relacionada às
condições de trabalho e de como o magistério é visto atualmente. Apesar de gostar, salienta as
dificuldades. O professor acaba repetindo um certo ideal familiar em sua resposta, de como
seus próprios familiares se relacionaram com sua escolha profissional: “não teve grandes
incentivos, mas também não teve críticas”.

Se eu faria tudo de novo? É uma questão complicada, eu deveria pensar se fosse neste
contexto agora dessa sociedade que a gente vive, eu acho que não. Neste contexto agora
não. Talvez eu fosse para uma área um pouco mais teórica da educação. Mas por outro
lado eu fico pensando assim, conversei outro dia isso, chegaram os professores novos
na escola, 25, 26 anos, estão começando agora e me perguntaram a mesma coisa e eu
disse para eles assim: que se todo o professor que está muito tempo no meu caso
desincentivar quem está chegando agora, o que já está escasso vai piorar, já está caindo
muito o número de alunos que procuram a licenciatura. Então eu acho que é uma
responsabilidade muito grande eu falar para alguém que não faria de novo. Mesmo para
você eu acho que se eu falar para você que... eu não sei se sua pergunta implica uma
espécie de arrependimento ou uma constatação de realização profissional, eu acho que
profissionalmente me sinto mais realizado, se eu pegasse sua pergunta e fizesse assim,
voltasse no tempo, eu faria de novo, escolheria de novo esta profissão até pela minha
história de vida, pelo que você deixa para trás, mas hoje neste contexto para um jovem
eu falaria assim: pensa bem, eu não iria desestimular, mas diria pensa bem, falaria dos
prós e contras que existem na nossa profissão. Mas para resumir a pergunta que você
fez eu acho que sim. Eu faria novamente sim, eu acho que existe um crescimento
profissional que acaba refletindo no nosso crescimento pessoal. Então você saber que
você ajudou um pouco certas pessoas a se formarem, você plantou sementes, você
consegue ser um pouco terrorista pedagogicamente falando, porque você consegue
suplantar algumas ideologias que são impostas ali, eu acho que sim, eu acho que eu faria
de novo sim. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

A Professora Ana fala de um ideal familiar relacionado à sua mãe, que era professora e,
por isso, avaliava que facilitaria seu percurso de formação profissional e o próprio percurso

34
Empresa estatal paulista de transporte ferroviário de cargas e passageiros.
65

econômico. Haja vista, segundo a professora, a existência de poucos professores de Geografia


formados, tanto porque buscam outras áreas profissionais, quanto porque as faculdades de
Geografia têm formado menos profissionais em relação a outras disciplinas.

Na realidade eu queria fazer Geografia e minha mãe é professora, eu acho que foi
também que a gente acaba vendo e acha que vai conhecendo o caminho e às vezes é
mais fácil quando você tem um pouco mais de conhecimento. Porque nos anos 2000
era mais difícil ter informação do que hoje, então eu acho que fui porque eu queria
estudar Geografia e eu sabia mais ou menos como era começar na carreira porque
minha mãe é professora de Geografia também. Eu acho que foram essas duas coisas
principais e porque é uma... eu acho também, na época eu não pensei nisso, mas hoje
eu acho que tem uma demanda tão grande por professores que acabam sendo mais
fáceis que outras profissões. Tem muita escola, precisa muito, principalmente
professor de Geografia, porque não tem muito professor de Geografia. (Professora
Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Perguntada se escolheria novamente esta profissão, a professora Ana foi direta dizendo
que não escolheria e que também as condições de trabalho, principalmente a quantidade de
estudantes com os quais precisa trabalhar, são fatores de intensidade no desgaste do professor.

Acho que não, acho que não porque é bem complicado, toda a situação, e eu acho que não
sou... eu tenho um problema de lidar com a sala de aula. E quando foge a meu controle eu
fico bem irritada. Se eu soubesse como era, eu possivelmente não teria sido professora.
Então se eu fosse escolher hoje, então eu acho que procuraria outra coisa. Ou me tornaria
professora só se não tivesse outra possibilidade. (...) Sim, tudo é mais complicado, é um
trabalho desgastante eu acho... e é repetitivo, é muito repetitivo. Eu tenho 425 alunos e
você vai fazendo sempre a mesma coisa toda hora, toda hora, passando as mesmas coisas
todos os dias. É bem complicado. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

O que a professora Ana traz é uma característica dO mal-estar na civilização que é a


impossibilidade do controle das situações, como uma marca civilizatória. No entanto, aquilo
que é da ordem da profissão torna-se intolerável pela precariedade das condições de trabalho.
O tempo da formação do professor em sua prática é submetido a uma quantidade de estudantes
diante do qual a experiência mais profunda, interna, de sustentação do mal-estar, fica
extremamente empobrecida e obstaculizada.
O Professor Luiz fala que em sua família algumas pessoas foram professores, a mais
importante delas o seu pai. Mas seu pai se afasta num determinado momento da educação e vai
para a área jurídica. Isso acaba expressando um certo conflito dos ideais familiares e de seus
próprios ideais, visto que quando busca entrar no magistério seu pai fica “desgostoso”.

Então quando eu estava no cursinho e falei para meu pai que queria prestar história, ele
ficou um pouco desgostoso. Quando meu pai saiu do curso de história ele saiu num
momento que a educação já estava começando a declinar em diversos fatores. Ele queria
que prestasse concurso para eu me tornar um oficial de justiça ou um técnico do tribunal
de justiça ou coisa do tipo, e ele estava estudando para prestar concurso para auditor
fiscal. A gente teve até uma discussão feia por causa disso. Eu tentei Direito dois anos,
fiquei fazendo cursinho. E no último ano eu não passei em Direito na PUC por bem
pouco pelo que me explicaram. Mas para História que seria minha outra opção, para
66

outras áreas como Letras e assim por diante daria. Eu vou fazer aquilo que eu quero
fazer, aquilo que eu me identifico, eu sempre fui estimulado desde que eu era pequeno
a ler, por exemplo, eu lembro dos livros que ele tinha em casa, do Clóvis Moura,
“Dialética radical do Brasil negro”. Então ele era uma pessoa que lia bastante. Falava
muito do Milton Santos também. Diversos outros intelectuais, ativistas políticos. Ele
vivenciou isso, então por parte dele, por parte de um tio. Um irmão dele, eu tive este
incentivo, então para mim foi esquisito quando eu falei que ia prestar História ele fica
meio desgostoso com isso. Ele disse olha a maioria que acabam prestando História
acabam caindo na sala de aula. E você vai pegar uma fase muito provavelmente bastante
difícil. E em termos de formação da família dele, o tio-avô, o vô deles, e um tio mais
novo foram os primeiros a ingressar no ensino superior. Então ele fez USP, História, um
tio-avô. Meu tio G. ele fez Direito, e meu tio fez Filosofia. E faleceu já tem uns 20 anos.
Então foi este estímulo que eu tive não diretamente para eu ser professor, mas eu já tinha
as ferramentas ali. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

O professor Luiz reivindica uma experiência paterna primária com o “pai professor”, no
sentido de que foi através desta experiência que acessou autores que pensavam a sua identidade,
entre elas, a racial. Quando o pai abandona a educação e se opõe, frustra-se com seu caminho
profissional. O entrevistado Luiz reivindica justamente a identificação primária do pai com a
educação. Quando perguntado sobre se estivesse começando seus estudos se iria por este
caminho profissional novamente, responde que sim, mas que não “fecharia o cerco” somente
no ensino básico, que buscaria outras “ramificações” na educação, como o ensino superior.

Eu tava me perguntando isso a semana passada... eu ingressaria no magistério, mas


eu não deixaria especificamente a sala de aula como única alternativa. Como eu falei
eu me sinto pleno, eu me sinto realizado, porém dentro da educação existem outras
ramificações aos quais você pode pensar também. Ou então talvez a educação em
ensino superior quando eu tiver uma qualificação adequada para isso. Então tem essa
também, mestrado, doutorado a última vez que eu tentei foi em 2017 para UFABC,
até tô com projeto pronto e tudo. Ingressar no magistério, mas não fechar o cerco
especificamente. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

Pensamos se a expressão “fechar o cerco” não nos remete, aqui, pelas falas ambivalentes
dos professores em relação aos seus trabalhos, a própria forma histórica como a educação básica
está marcada. Ou, para ser mais preciso, mais do que “fechar o cerco” no sentido de não ficar
somente em uma opção profissional, pensamos se esta expressão não seria a própria forma de
realização do trabalho docente. Como se a marca desta profissão fechasse de alguma forma as
possibilidades de desenvolvimento psíquico e autônomo dos professores. Estar na escola ou na
educação básica, na perspectiva social em que ela se apresenta, é estar trancado, cercado, limitado.
A professora Luana formou-se em Química e trabalhou na indústria até que uma amiga
a indicou a possibilidade de ser professora. Apesar de gostar da profissão, ressente-se das
condições de trabalho e salário.

Foi uma coisa bem aleatória mesmo, eu não tive formação. Eu fiz química bacharel, fui
para trabalhar no laboratório e indústria. Não tinha intuito de ser professora, mas aí
minha amiga tinha acabado de se formar e ela falou olha faz a inscrição para 2014. E aí
fui e sabe assim eu gosto de ser professora. Sai da indústria, igual eu te falei eu pretendo
67

ficar na educação, mas a gente sofre com esta precariedade do Estado. Eu pensei até em
ir para prefeitura. Tenho uns colegas na prefeitura de São Paulo, lá faz carreira, a gente
no Estado não tem carreira. Por mais que eu passe no concurso, vai melhorar um pouco
para mim, mas esse negócio da atribuição vai ser melhor, mas a estabilidade mesma a
gente não tem muito... o salário é muito baixo por tudo que a gente faz, o salário do
Estado é muito ruim, mas por eu ter me identificado muito em ser professora eu gosto e
pensei até em fazer o concurso da prefeitura, pelo Estado não tem plano de carreira,
infelizmente. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

Os ideais familiares de Luana foram se constituindo com base em ter uma profissão,
visto que sua mãe, dona de casa, não teve. Seu pai trabalhou na roça e cursou o ensino
fundamental como exigência para se tornar metalúrgico. Ele era, segundo a professora Luana,
bastante “antigo” nos costumes, e não quis, por isso, que sua mãe trabalhasse – tal como sua
avó, que igualmente foi dona de casa.
Assim, para ela e a irmã, terem uma formação no ensino superior e uma profissão
representa a superação da condição material e dos ideais familiares, constituindo seus próprios
ideais ao superar uma certa repetição geracional do feminino. Para Luana e sua irmã, é um salto
na condição do ideal do feminino da família ter uma profissão, uma independência financeira, o
que produz um paradoxo a partir da sequência da argumentação, na qual Luana aborda que gosta
de ser professora, mas não gostaria que seu filho fosse, por causa da precariedade das condições
de trabalho e salário.
Há uma ambígua projeção narcísica deste ideal do magistério para o filho, o que nos faz
pensar que as condições objetivas do trabalho interferem diretamente na dimensão subjetiva da
professora Luana. Certamente é uma questão imaginar os efeitos que produzirá no filho ver a
mãe carregada de ambivalência com relação à profissão, a mesma profissão que a fez superar
uma repetição do ideal feminino geracional. Perguntada se teve incentivos familiares para ser
professora, ela diz:

Não, mas ele sente orgulho por eu ser professora. Minha avó de idade ela acha muito
bonito que eu sou professora. Minha mãe não tem profissão, então para ela é muito
importante que eu tenha. Que ela sempre quis, que ela se casou e logo engravidou de mim,
meu pai é antigo assim vamos dizer, não quis que ela trabalhasse mais, então minha mãe
não tem profissão. Então para eles é importante. Minha irmã também tem profissão, ela é
enfermeira. Por a gente ter estas duas profissões para minha família é importante. (...) Eu
gosto de ser professora. Mas é bem difícil, é bem complicado para nós porque eu ia até
tentar a carreira na prefeitura para ver se melhora um pouco mais. Mas eu não quero que
meu filho seja professor. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

Podemos pensar sobre os efeitos psíquicos nos professores em torno da ascensão ou da


regressão social do ponto de vista dos ideais familiares. Isso pode produzir satisfação narcísica,
mas, também, uma série de frustrações ou mesmo conflitos geracionais e culturais no seio
familiar. Em um texto importante de Freud, A moral sexual cultural e o nervosismo moderno,
68

de 1908, há uma combinação da reflexão em torno da tensão entre a perspectiva individual e a


social atravessada pela moral da sexualidade de um tempo. Num determinado momento diz:

Refiro-me ao incremento – que rapidamente se difunde na sociedade atual.


Ocasionalmente, um doente dos nervos chama ele próprio a atenção do médico para
o antagonismo entre constituição e exigência cultural a ser observado na causação do
seu mal, ao dizer: “Em nossa família nos tornamos todos nervosos, pois queremos ser
mais do que podemos ser pela nossa origem.” Com frequência, também, é motivo de
reflexão para o médico a observação de que sucumbem ao nervosismo justamente os
descendentes de pais que, vindos de condições camponesas simples e sadias, rebentos
de famílias grosseiras, mas robustas, chegam à grande cidade como conquistadores e,
em curto espaço de tempo, fazem seus filhos elevar-se a um alto nível cultural. Mas
os próprios médicos de nervos anunciaram enfaticamente o nexo entre “o nervosismo
crescente” e a moderna vida civilizada. (FREUD, 2015b, p. 361-2).

O professor Fernando fala do conflito do ideal familiar com o seu percurso de formação
profissional. Este conflito de determinados “mundos” representados pela periferia de São Paulo
e do ideal do Eu de seu pai, que não queria que ele estudasse, tornou sua formação universitária
cheia de intensas contradições e ambivalências. Perguntado se teve incentivos familiares para
ser professor, responde:

Não. Nunca na vida. A minha mãe é analfabeta, ela é costureira. A gente nasceu na
periferia de São Paulo, eu nasci na periferia de São Paulo. Minha mãe é baiana. Meu pai
nasceu também na periferia, minha mãe só assina o nome dela só. Não lê, não escreve,
em casa não tinha nem revista. É complicado isso porque a dificuldade que eu tive, isso
eu fui perceber depois bem mais velho, a grande dificuldade que eu tinha em entender,
me conectar com livros não vinha nem por conta do problema que eu descobri de TDHA
que eu tenho. Sou uma pessoa inquieta. Mas também pela falta disso, de livros, este tipo
de material em casa. Então meu pai ele lia, ele escrevia. Meu pai era o grande
incentivador, ele queria que eu fosse trabalhar com ele, fosse jogar bola. Meu pai era
boleiro de boteco, tiozinho de vida de malandro mesmo. Então assim eu ir para uma
universidade, uma faculdade, para minha mãe é legal, porra que bacana, ninguém na
família foi. Para o meu pai era uma grande vergonha. “Oh o que se tá fazendo, estudando
para ser o que?” “Ninguém na família que estudou virou alguma coisa”. Então nunca
tive este incentivo. Quando eu entrei na faculdade era um universo completamente
diferente e muito complicado, muito difícil. Era um mundo acadêmico, mundo das
ideias onde não contempla a história oral. Então assim alguma coisa que eu tivesse
aprendido tinha que ser em sala de aula. E depois que eu tinha que descer para pegar os
textos e ler eu me fodia. Eu precisava de uma série de outras informações que me
faltavam. Eu lembro de companheiros nossos que entraram na faculdade bem mais
novos do que eu com uma bagagem bem maior que a que eu tinha. Porque eram
bagagens que vieram desde a sua adolescência, da família. (Professor Fernando,
categoria O, 12 anos de magistério).

Perguntado se escolheria ser professor se estivesse iniciando os estudos, diz que sim,
entretanto, não voltaria à universidade para continuar outros estudos. O que marca uma superação
do ideal paterno35 e uma permanência ao mesmo ideal ao constituir um caminho de formação

35
A afirmação do pai do professor Fernando ao não querer que ele estude visto que “ninguém na família que
estudou virou alguma coisa” necessitaria de uma leitura crítica e social, pois acreditamos que não se trata aqui de
uma afirmação por alguma “ignorância”, mas nos parece de um realismo para com as marcas da experiência social
69

universitária, mas que está conectada à sua experiência primária, inconsciente, geográfica, social e
afetiva com o bairro em que mora, cresceu e se sente reconhecido para realizar suas atividades.

Escolheria ser professor porque acho que não é uma escolha. Depois que chegou um
determinado momento pareceu um chamado, não tem outra coisa que eu consiga pensar
em fazer que contemple tanto a minha existência e a minha existência aqui na favela. O
que eu seria, engenheiro? Pra contemplar melhor os caras? Eu por exemplo não voltei para
a universidade mais, justamente por conta disso. Acho que está completa minha
caminhada, o que eu tinha que aprender. O que os defuntos europeus tinham para ensinar
acho que já foi suficiente. Como também não tenho maiores vislumbres de estar dentro da
universidade que nem seu caso com o mestrado, acho importante para caralho, o T. acabou
de fazer o dele, também sobre educação. Eu acho muito louco, mas cada um trabalha na
sua... para mim eu perderia tempo. Não teria muito o que fazer. Então eu faria de novo
sim, só que não sei se de História, não sei se eu não faria na área da educação, na
Pedagogia. Não sei, eu faria na parte de Ciências Sociais, Sociologia. Mas História eu
acredito que eu não faria não. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A professora Vera fala de uma certa frustração que imagina ser de todos os professores.
Devido as circunstâncias de ser mãe muito cedo, acreditou que precisava ir pelo caminho que
avaliava ser mais fácil para ter um emprego.

Vai ser difícil... isso é uma mágoa que eu tenho tá... Eu desconfio ainda não tenho
certeza porque estou me analisando: por falta de opção, infelizmente. Porque eu fui
mãe muito jovem, eu estou com 52, mas eu fui mãe de um menino, de um moço, acho
que da tua idade. Não tem a sua idade, mas meu filho tem 36 anos. E como eu fui mãe
muito jovem eu deparei com um sistema de vivência humana... Eu falei eu preciso
fazer alguma coisa na minha vida, alguma coisa que me sustente. Na hora você não
pensa. Eu acho que todos os professores são frustrados. Eu acho que quem é professor
teve uma frustração na infância ou dentro da escola onde estudava. Ou por falta de
opção foi escolher porque foi o caminho mais fácil, se ganhava até bolsa de estudo.
(Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

Considerando a construção da imagem social docente pelas histórias familiares dos


professores, refletimos o quanto as dimensões sociais e históricas não intensificam processos
narcísicos mais profundos, aos quais a imagem do ser professor se confunde com o grau de
reconhecimento psíquico e de valor pessoal de cada um. Ao fazer uma associação de que ser

e geracional do estudo, em especial formal, nas periferias de São Paulo, tanto do ponto de vista da possibilidade
de ascensão econômica como da rede de significados do espaço acadêmico que podem estar dissociados de
determinadas realidades sociais, como a própria experiência da “história oral” como nos traz o professor Fernando
em seu tempo de formação universitária. Neste sentido um dos marcadores do ideal paterno é um ideal do Eu de
classe social estabelecido pela diferença de códigos sociais relacionados ao ensino superior e ao conhecimento
formal, que nos parece, marca profundamente a própria forma de trabalhar com a educação do professor Fernando.
Por outro lado, os próprios dados relacionados a 2 milhões e oitocentos mil pessoas com diploma superior que
estão cadastrados no Bolsa Família nos apontam que a fala do pai do professor Fernando também revela uma
crítica sobre a crise social que atinge estes segmentos e tornam questionável a tese liberal de que basta estudar e
se esforçar para mudar de vida. Em um artigo de Nildo Ouriques em 4 de junho de 2023 ele diz: “A informação é
oficial: segundo o ministro do Desenvolvimento e Assistência Social, Wellington Dias, no cadastro do Programa
Bolsa Família estão inscritos mais de 2 milhões e oitocentos mil brasileiros com diploma de ensino superior,
muitos deles com pós-graduação, a despeito da ideologia liberal, que afirmou a relação positiva entre o nível de
renda e a formação educacional.” Disponível em: https://disparada.com.br/o-diploma-no-bolsa-familia/ . Acesso
em 13 de julho de 2023.
70

professor, do ponto de vista mais geral, só pode estar relacionado a uma “frustração na infância
ou dentro da escola onde estudava”, a professora Vera remete a experiência presente do ser
professor há uma dimensão psíquica mais arcaica, da infância, traumática dos professores.
Mesmo que seja uma experiência estritamente pessoal ou não, esta fala trata de um modo de
explicação social do mal-estar docente que, pelos relatos comuns dos professores, carrega a
própria dimensão do discurso social de “aversão ao magistério” que encontra eco nas variáveis
econômicas, culturais, sociais e psíquicas como estamos apontando no conjunto da dissertação.
A professora Vera comenta que o pai era engenheiro da GM e queria que ela também
fosse. Ela chegou a fazer engenharia. Porém, pelas dificuldades do curso, nas disciplinas de
cálculo, acabou abandonando. Resolveu, influenciada pelo pai, a fazer Física e então descobriu
a Filosofia que era de fato o que gostava.

Aí comecei a fazer Física para agradar o pai. Para agradar meu pai, fiz porque tinha uma
grade de leitura muito grande. Foi ali que eu descobri a Filosofia porque quando você
vai estudar Física, tanto o bacharel quanto a licenciatura você vai ler Aristóteles. Você
vai ler os caras, os Filósofos. Mas é isso que eu gosto, eu tô fazendo tudo errado. Mas
foi bom, pai obrigado por você ter dado esta sugestão para eu fazer Física porque eu
descobri realmente o que eu gosto. Eu gosto de Filosofia. Só que eu não queria ser
professora. Não, eu fui para fazer o bacharel em Filosofia, mas você vai fazer o bacharel
em Filosofia, mas você não sabe o que você quer da vida.... Você não vai ser ninguém,
o que você vai fazer como Filósofa neste planeta? Não sei, nem se for para ir embora do
Brasil, mas eu faço alguma coisa. Mas depois eu conheci o professor no M. que fez a
minha cabeça para eu fazer licenciatura. Mas eu fui mesmo para estudar só o
bacharelado para depois saber o que eu ia resolver, o que ia fazer. Mas é isso, eu fiz
Física por causa do meu pai que era engenheiro físico. E depois eu já não consegui entrar
na GM para trabalhar. Porque eu não fiz engenharia, mas ele tentou... Hoje talvez se eu
tivesse feito engenharia propriamente dita hoje eu estaria na GM trabalhando ganhando
bem. Não sei se foi certo ou errado, a gente não sabe se foi certo ou errado, eu tenho um
pouco de angústia sobre isso também. Mas eu como bacharel em Física não consegui
me colocar dentro da GM. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

A professora Vera conclui dizendo que se estivesse iniciando os estudos só seria


professora se universitária. A frustração dela parece ter sido um desencontro com os ideais
familiares, em especial do pai. Não obstante, foi através do pai que conseguiu chegar ao próprio
ideal em torno do percurso de formação relacionado à Filosofia, o que é uma característica da
tradição do inconsciente familiar. Como diria Freud, citando uma famosa frase de Goethe em
Fausto: “O que herdaste de teus pais, conquista-o, para que o possuas.” (FREUD, 2012a, p. 241).
O fato de ser mãe jovem, e por isso ter que dar condições materiais aos filhos, dificultou
sua entrada no ensino superior, que era seu objetivo. A Professora Vera, por uma série de
condições pessoais (ser mãe jovem) e sociais (não poder sair do emprego como professora na
educação básica para fazer mestrado e doutorado), não conseguiu efetivar seu percurso
profissional como professora universitária.
71

O meu fato de não ser professora universitária é que eu não fiz mestrado nem
doutorado. Eu comecei, mas é como eu estou te falando, todo professor que começa
a fazer o mestrado e o doutorado ele tem que largar a escola. Porque não dá para unir
as duas coisas. Tem gente que une eu não consigo porque a minha dedicação é a
escola. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

O que vemos em todos esses depoimentos é um recorte da própria constituição do


Supereu desses professores, relacionado aos ideais familiares e às dificuldades que observamos
a partir da cultura e das condições objetivas da profissão que escolheram. Nessas condições, o
que se coloca é que os ideais do Eu como marca deste Supereu não conseguem se efetivar
plenamente, naquilo que Freud traz das possibilidades de deslocar investimentos libidinais,
eróticos e agressivos no trabalho, de modo que a agressividade, essa natureza indomável, possa,
pela cultura, encontrar alguma vazão. O efeito disso, por vezes, é que essa agressividade se
volta contra o próprio Eu, ocasionando uma série de perturbações psíquicas e sintomas.

(...) a agressividade é introjetada, internalizada, mas é propriamente mandada de volta


para o lugar de onde veio, ou seja, é dirigida contra o próprio Eu. Lá é acolhida por uma
parte do Eu que se contrapõe ao resto como Super-eu, e que, como “consciência”, dispõe
a exercer contra Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em
outros indivíduos. À tensão entre o rigoroso Super-eu e o Eu a ele submetido chamamos
consciência de culpa; ela se manifesta como necessidade de punição. A civilização
controla então o perigoso prazer em agredir que tem o indivíduo, ao enfraquecê-lo,
desarmá-lo e fazer com que seja vigiado por uma instância no seu interior, como uma
guarnição numa cidade conquistada. (FREUD, 2010a, p. 92).

A dinâmica cultural pode produzir efeitos no indivíduo, relacionados à frustração


excessiva, trazendo implicações de aumento de processos de autorrecriminações, produzidos
pelo Supereu para o Eu, que podem indicar formas de ressentimento. Em uma situação de
relativo prazer e reconhecimento, temos um certo “equilíbrio” entre o Supereu e o Eu.
Entretanto, diante de situações extremamente adversas, intensifica-se o conflito psíquico dessas
duas instâncias. Tal como assevera Freud (2010a, p. 97): “O destino é visto como substituto da
instância parental; quando uma pessoa tem infortúnio, significa que não é mais amada por esse
poder supremo, e, ameaçada por essa perda de amor, inclina-se novamente ante a representação
dos pais no Super-eu, que no momento da fortuna tendia a negligenciar.”
Então, em situações adversas, essa agressividade, que era destinada para fora e que foi
internalizada pelo processo de evolução cultural, volta-se contra o indivíduo, regulando o
sentimento de culpa. Há uma renúncia ao prazer absoluto para se viver em sociedade. Os
instintos ficam reprimidos e, quando não encontram alguma forma de realização mediada pela
cultura, retornam severamente como punição do Supereu contra o Eu, refletindo um intenso
sentimento de culpa.
72

Na teoria de Freud identificamos o aspecto filogenético do sentimento de culpa, da


entrada do indivíduo na cultura, tal como explicitado em Totem e Tabu. O sentimento de culpa
é expressão da entrada humana na cultura e se dá pela ambivalência em relação ao pai – afinal
os filhos o odiavam por ele representar o prazer absoluto, mas também o amavam, visto que ele
garantia a segurança do clã. Depois de sua morte, institui-se o Supereu por esta identificação
ambivalente com o pai. O sentimento de culpa é resultado do conflito desta ambivalência, Eros
e Thanatos. Freud (2010a, p. 105) amplia tal dinâmica psíquica para a cultura,

Como a cultura obedece a um impulso erótico interno que a faz unir os homens em
uma massa intimamente ligada, só pode alcançar esse fim mediante um fortalecimento
cada vez maior do sentimento de culpa. O que teve início com o pai se completa na
massa. Se a cultura é o curso de desenvolvimento necessário da família à humanidade,
então está inextricavelmente ligado a ela – como consequência do inato conflito
ambivalente, da eterna disputa entre o amor e busca da morte – o acréscimo do
sentimento de culpa, talvez a ponto que o indivíduo ache difícil tolerar.

O intolerável se dá pelo acréscimo do sentimento de culpa, que marcamos como uma


forma de ressentimento se analisarmos, por exemplo, a condição do professor mediante seu
trabalho e tudo que o envolve do ponto de vista da cultura. A falência da cultura intensifica o
sentimento de culpa ao não oferecer saídas sublimatórias para o indivíduo.

(...) toda satisfação instintual contrariada tem ou pode ter por consequência uma
elevação do sentimento de culpa. (...) Isso parece possível apenas por um rodeio: que
o impedimento da satisfação erótica desperte um quê de pendor agressivo contra a
pessoa que atrapalha a satisfação, e que essa agressividade mesma tem de ser
suprimida. Mas então é somente a agressividade que se transforma em sentimento de
culpa, ao ser suprimida e transmitida para o Super-eu. (FREUD, 2010a, p. 112).

Nesse domínio, percebemos o papel fundamental do tipo de desenvolvimento


civilizatório que temos. Se a renúncia instintual é uma marca inexorável do processo
civilizatório, a forma histórica como se apresenta esta marca vai determinar a intensidade do
sofrimento humano. A cultura também pode produzir uma ampliação do sofrimento até os
limites do intolerável, resultando em diversos efeitos negativos na dinâmica social. É aí que
Freud (2010a, p. 114) vai estabelecer a importância da mediação cultural: “No processo de
desenvolvimento do indivíduo, conserva-se a principal meta do programa do princípio do
prazer, achar a satisfação da felicidade, e a integração ou adaptação a uma comunidade aparece
como uma condição inevitável, que se deve cumprir para alcançar a meta da felicidade.”
A comunidade cultural também forma um Supereu. Este Supereu da cultura é parte do
ideal do Eu dos indivíduos. De tal maneira, “o Supereu da cultura, exatamente como o do
indivíduo, institui severas exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante
“angústia de consciência” (FREUD, 2010a, p. 117). Portanto, para Freud, se o processo
73

terapêutico tenta diminuir as recriminações individuais, coisa parecida deveria acontecer com
o Supereu da cultura – no que pese vermos pela análise dos dados das entrevistas com os
professores justamente o contrário.
Freud (2010a) entende que o fim da propriedade privada pode produzir uma real
mudança entre as pessoas, desde que não se pense que esta mudança vai suprimir dimensões da
“evolução cultural” inerentes ao mal-estar civilizatório. Então, podemos avaliar que Freud
confia que é necessário produzir uma cultura que reconheça este mal-estar, que igualmente
possa diminuir a intensidade do sofrimento dos indivíduos. Termina O mal-estar na civilização
com uma questão em aberto sobre se a evolução cultural irá controlar as perturbações trazidas
à vida comum pelos instintos ou favorecerá justamente aspectos regressivos de destruição.

A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a
sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida comum pelos
instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a época
de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos
atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a
elas para se exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí, em boa parte,
o seu atual desassossego, sua infelicidade, seu medo. Cabe agora esperar que a outra
das duas “potências celestiais”, o eterno Eros, empreenda um esforço para afirma-se
na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem pode prever o sucesso e o
desenlace? (FREUD, 2010a, p. 121-2).

Vemos, aqui, que Freud e Adorno se aproximam bastante, pois, para Adorno, há um
processo de falência da cultura na qual o sujeito fica dependente de autoridades externas a ele.
É preciso, para Adorno, reafirmar a autonomia do sujeito, que é um modo do esforço de Eros
em afirmar-se contra o instinto de morte, a barbárie, relacionada à sua capacidade de reflexão
em torno das contradições produzidas pela cultura e pelas condições objetivas. Com isso,
superar a consciência coisificada, expressão radical do instinto de morte, da barbárie, diante da
qual as questões que se apresentam como fenômenos sociais não sejam vistas como imutáveis,
mas justamente como possibilidades do vir-a-ser, de Eros.

Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em


que seu ser assim – que se é de um determinado modo e não de outro – é aprendido
equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de
uma formação. Mencionei o conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo
uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer
apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe
de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo
seria recompensador. (ADORNO, 2006c, p. 132).

Na sequência desta dissertação abordaremos sobre o mal-estar docente e sua


especificidade do ponto de vista do seu trabalho, tanto nas dimensões inconscientes que marcam
o magistério ao longo da cultura e da história, quanto nas relações transferenciais, de autoridade,
74

autonomia e formação daquilo que se refere à disputa de uma consciência coisificada e uma
aberta ao mal-estar e ao vir-a-ser.
75

3. O MAL-ESTAR DOCENTE

É como se analisar fosse a terceira daquelas


profissões “impossíveis”, em que de antemão
se sabe que o resultado será insatisfatório.
As outras duas, conhecidas há muito mais tempo, são educar e governar.

Sigmund Freud

Por sua vez, os juízes e funcionários administrativos


têm algum poder real delegado, enquanto a opinião
pública não leva a sério o poder dos professores, por
ser um poder sobre sujeitos civis não totalmente
plenos, as crianças. O poder do professor é execrado
porque só parodia o poder verdadeiro, que é admirado.

Theodor Adorno

Em um dos textos próximos ao final de sua vida, Análise terminável e interminável, de


1937, Freud aborda os efeitos no encurtamento da análise no tratamento de pacientes. O
tratamento analítico para uma série de sintomas é demorado, por isso a crítica a Otto Rank, que
tentou encurtar este trabalho. “De resto, seu experimento era filho de seu tempo, concebido sobre
a impressão do contraste entre a miséria da Europa no pós-guerra e a ‘prosperity’ americana, e
votado a adequar o ritmo da terapia analítica ao afã da vida americana.” (FREUD, 2018, p. 275).
Apesar de, em suas experiências, o próprio Freud ter pensado em encurtar o trabalho
analítico como técnica, qualquer tentativa de estabelecer um tempo fechado e controlado ao
processo parece fadado ao fracasso. O psicanalista passa, então, a discutir sobre o que seria o
fim de uma análise. Por mais benefícios que um processo analítico possa garantir, parece que
Freud é reticente em concluir que fosse possível “atingir um nível de absoluta normalidade
psíquica.” (FREUD, 2018, p. 280).
Através de várias experiências com seus próprios pacientes e de outros analistas, joga
luz na indeterminação do tratamento que, apesar de possibilitar grandes melhoras ao paciente,
é um caminho sempre em aberto diante das marcas constitucionais e instintuais do indivíduo,
relacionadas às suas próprias experiências de vida. Mesmo na possibilidade de concluir um
trabalho analítico, isso não garante que outras desorganizações psíquicas não aparecerão diante
de novas situações vividas pelo paciente.

Sendo muito grande a força instintual, o Eu amadurecido e sustentado pela análise


malogra em sua tarefa, assim como antes o Eu desamparado; o domínio sobre os
instintos se torna melhor, mas continua imperfeito, já que a transformação do
mecanismo de defesa é incompleta. Nisso não há do que se admirar, pois a análise não
trabalha meios de poder ilimitado, mas limitado, e o resultado final sempre depende
das forças relativas das instâncias que lutam entre si. (FREUD, 2018, p. 294).
76

As instâncias que lutam entre si, Eros e Thanatos, apresentam-se diante da singularidade
do analista e de seus impulsos inconscientes, o que torna o trabalho de análise uma tarefa da
ordem do impossível diante de tantas possibilidades, as quais, inclusive como traz Freud, estão
relacionados também a herança arcaica dos indivíduos (filogênese) e não somente em suas
próprias experiências infantis.

(...) a experiência analítica nos impôs a convicção de que até mesmo determinados
conteúdos psíquicos, como o simbolismo, não têm outras fontes senão a transmissão
hereditária, e várias investigações etnopsicológicas tornam plausível supor que há, na
herança arcaica, ainda outros precipitados igualmente específicos deixados pela antiga
evolução humana. (FREUD, 2018, p. 309).

A combinação da filogênese e da ontogênese, atravessada pela descoberta do instinto de


morte, torna-se energia que mobiliza o sofrimento e a compulsão à repetição, demonstrando a
impossibilidade da reconciliação da natureza e cultura, do indivíduo com a sociedade. Mesmo
antes da descoberta de Freud do instinto de morte e da compulsão à repetição, temos escritos
que trazem as dificuldades deste indivíduo “amansar” plenamente seus instintos através da
cultura. Em Sobre a mais comum depreciação da vida amorosa, de 1912, diz:

De modo que deveríamos talvez nos habituar à ideia de que uma conciliação das
exigências do instinto sexual com os reclamos da cultura não é possível, de que não
podem ser evitados a renúncia e o sofrimento, assim como, num futuro remoto, o
período de extinção da espécie humana, em consequência de sua evolução cultural. Este
sombrio prognóstico baseia-se, é verdade, apenas na conjectura de que a insatisfação
cultural é a consequência necessária de certas peculiaridades que o instinto sexual
adquiriu sob a pressão da cultura. Mas a própria incapacidade de o instinto sexual
produzir plena satisfação, tão logo se submete às primeiras exigências da cultura, torna-
se fonte das mais grandiosas realizações culturais, obtidas através da sublimação cada
vez maior de seus componentes instintuais. Pois que motivo teriam os homens para dar
outras aplicações às energias instintuais sexuais, se delas resultasse, por qualquer
distribuição, plena satisfação do prazer? Eles nunca abandonariam tal prazer e não
realizariam mais nenhum progresso. Parece, então, que a diferença inconciliável entre
as reivindicações dos dois instintos – o sexual e o egoísta – torna os homens capazes de
realizações cada vez mais altas, é certo que sob uma constante ameaça, à qual atualmente
sucumbem os mais fracos, na forma da neurose. (FREUD, 2013c, p. 363).

É interessante este trecho porque Freud já esboça que o progresso pode levar à extinção
humana, mesmo antes da experiência da primeira grande guerra (1914-1918), que trouxe um
nível de destrutividade nunca visto e, também, da consolidação, como categoria, do arcabouço
freudiano do instinto de morte, o qual só aparecerá de modo mais claro no texto Além do
Princípio do Prazer. Isso, aliás, a psicanalista Sabrina Spielrein já havia delineado de alguma
77

forma em 1912, mesmo ano do trecho supracitado, demonstrando que já pairava no horizonte
do circuito da psicanálise os elementos destrutivos no campo da sexualidade humana.36
Também pode-se ver, no trecho citado, como a determinação da evolução cultural,
quando o instinto renuncia ao modo absoluto de sua satisfação, traz grandiosas possibilidades
de obras produzidas através da sublimação, do deslocamento dos instintos sexuais para outros
fins, em especial a cultura. É na diferença irreconciliável, neste momento da obra de Freud,
entre “o sexual” e o “egoísta”, que estão justamente as possibilidades de destruição ou de
criação. É a marca da teoria dualista de Freud até o fim de sua vida.
É sobre essas bases que Freud está trabalhando no texto Análise Terminável e
Interminável: das (im)possibilidades de cura, de absoluta normalidade psíquica, de técnicas
fechadas como manuais ou de controles de situações que atravessam o imponderável do
inconsciente do analista e do paciente. É sobre esses fundamentos do impossível da atividade
que ele compara o trabalho do analista como profissão aos atos de educar e governar.

Detenhamo-nos por um momento, para assegurar ao analista a nossa franca


solidariedade pelas difíceis exigências que ele tem de cumprir ao exercer sua
atividade. É como se analisar fosse a terceira daquelas profissões “impossíveis”, em
que de antemão se sabe que o resultado será insatisfatório. As outras duas, conhecidas
há muito mais tempo, são educar e governar. (FREUD, 2018, p. 319).

Ao partir da dimensão do impossível como premissa, não é necessário que o analista ou


mesmo o professor sejam perfeitos, mas que se comprometam com a qualificação necessária,
dentro dos limites que caracterizam a dimensão de impossibilidade, de mal-estar inerente às
profissões. (FREUD, 2018).
É nesse sentido que a psicanálise se aproxima da educação, no impossível proposto por
Freud. O analista, assim como o professor – guardadas as devidas proporções e apesar de práticas
e objetivos distintos –, não visa “nivelar todas as particularidades humanas em prol de normalidade
esquemática, ou até mesmo exigir que o indivíduo ‘analisado a fundo’ não sinta paixões nem
desenvolva conflitos internos.” (FREUD, 2018, p. 321). Não porque não haja analistas e professores
que queiram tal nível de controle, mas porque isto está na ordem do impossível.
É o que nos mostra a professora Ana a respeito da dificuldade do trabalho em sala de
aula; e os efeitos que produz ao dizer que não seria professora novamente se estivesse iniciando
os estudos.

36
Na nota 31 da parte VI de Além do princípio do prazer, Freud diz: “Num trabalho substancial e pleno de ideias, embora
não inteiramente claro para mim, Sabrina Spielrein antecipou boa parte dessa especulação. Ela caracteriza o componente
sádico do instinto sexual como “destrutivo”. “A destruição como causa do vir-a-ser.” (FREUD, 2010d, p. 227, nota 31).
78

Acho que não, acho que não porque é bem complicado, toda a situação e eu acho que
não sou... eu tenho um problema de lidar com a sala de aula. E quando foge a meu
controle eu fico bem irritada. Se eu soubesse como era, eu possivelmente não teria
sido professora. Então se eu fosse escolher hoje eu acho que procuraria outra coisa.
Ou me tornaria professora só se não tivesse outra possibilidade. (Professora Ana,
categoria A, 15 anos de magistério).

O centro de seu mal-estar se dá quando algo “foge ao seu controle”. É, sem dúvida, uma
marca daquilo que Freud nos traz como as profissões impossíveis, a impossibilidade do controle
absoluto do trabalho docente. A professora Ana prossegue:

É muito estressante, toda hora você tem que falar, então isso vai te irritando, então eu não
consigo não ligar. Isso me faz mal. Nas duas redes, não é só no Estado, as duas me irritam.
Eu não seria professora se eu fosse escolher hoje em nenhuma das duas redes. É uma
relação complicada, tem que estar preparado para ser professor. Eu acho que o jeito que
comecei muito novinha não tinha preparo. Hoje até falo para o meu esposo a melhor parte
de dar aula é hora da saída. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Aqui ela marca que não se trata somente da rede estadual: na rede municipal, em que as
condições de salário e trabalho são melhores, relatadas pela professora em outro trecho da
entrevista, também lhe produz intenso mal-estar que, combinado às condições de trabalho, o
tornam intolerável e a adoecem.

Sim, tudo é mais complicado, é um trabalho desgastante eu acho... e é repetitivo, é


muito repetitivo. Eu tenho 425 alunos e você vai fazendo sempre a mesma coisa toda
hora, toda hora, passando as mesmas coisas todos os dias. É bem complicado.
(Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Essa foi uma das preocupações de Freud em seus breves textos sobre educação. Diante
de tarefas tão árduas, que envolvem tantas variáveis, o psicanalista chegou a propor que uma
parte da formação do professor fosse fazer análise, como medida profilática, para sustentar os
mal-estares produzidos na escola.

Se refletirmos sobre as difíceis tarefas colocadas ao educador – reconhecer a


peculiaridade constitucional da criança, através de pequenos indícios perceber o que
sucede na sua mente inacabada, conceder-lhe a justa medida de amor e também
conservar uma parcela eficaz de autoridade -, diremos que a única preparação
adequada para a profissão de educador é um sólido treino em psicanálise. O melhor
seria que ele mesmo fosse analisado, pois, afinal, não se pode assimilar a psicanálise
sem experimentá-la na própria pessoa. A análise dos professores e pedagogos parece
ser uma medida profilática mais eficaz do que a das crianças mesmas, e também há
dificuldades menores para a sua realização. (FREUD, 2010b, p. 312).

Por melhor que seja a formação do professor, no que pese ela ser fundamental, o conjunto
de experiências na sala de aula não estarão, pela impossibilidade que isso exista, de modo absoluto
em nenhum manual educacional. E é justamente através dessas experiências que se produz um saber
muito singular do professor, que nenhum curso universitário superior pode ensinar de fato.
79

(...) a faculdade você tem uma ideia de escola e quando você chega na escola é outra
coisa. Principalmente nessa questão pedagógica, da didática em si. Nenhuma
faculdade prepara bem. Você vai aprendendo ali no dia a dia. Porque é totalmente
diferente que... sei lá, estes teóricos falam muitas coisas que na prática é complicado:
você tem que lidar com 40 alunos, uma parte dos alunos não sabe ler, outra parte não...
você tem alunos de inclusão. Na faculdade não falaram isso. (...) Quando eu fico muito
nervosa minha pressão cai. E eu comecei a passar mal em 2013 do nada assim. O ano
passado eu nunca mais tive queda de pressão. O ano passado eu trabalhei o ano inteiro
em casa [devido a pandemia], basicamente. Este ano eu também não tive, mas acho
que foi por causa do tratamento que eu estou fazendo. E eu acho que era isso. Era o
estresse, a ansiedade de ter que lidar... eu sou uma pessoa que fico trazendo muita
coisa para casa. Não para fazer o trabalho em casa, mas eu fico pensando nos
problemas, e isso me faz mal assim. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de
magistério).

Consideramos a hipótese de que há disposições individuais na professora Ana no campo


da constituição da sexualidade infantil e do seu narcisismo, que possam ter produzido
identificações edípicas com a mãe (que também é professora de Geografia) e com o pai, separado
da mãe, com o qual ela morou até sair de casa e casar-se com o atual marido, como nos relata no
conjunto da entrevista. No campo teórico e da metapsicologia, que é o que podemos fazer aqui,
no intuito de ampliar nossa reflexão, avaliamos que esta configuração familiar pode ter lhe
produzido um ideal do Eu bastante identificado ao lugar da mãe37. Ou, como diz Freud:

Elas nos mostram o Eu dividido, decomposto em dois pedaços, um dos quais se enfurece
com o outro. Esse outro pedaço é aquele transformado pela introjeção, e que contém o
objeto perdido. Tampouco o pedaço que se conduz tão cruelmente nos é desconhecido.
Ele contém a consciência moral, uma instância crítica do Eu que também em épocas
normais se contrapôs criticamente a este, mas nunca de maneira tão inexorável e tão
injusta. Já em ocasiões anteriores (“Narcisismo”, “Luto” e “Melancolia”) fomos levados
à suposição de que em nosso Eu se desenvolve uma instância que pode se separar do
resto do Eu e entrar em conflito com ele. Nós a chamamos de “ideal do Eu” e lhe
atribuímos funções como auto-observação, consciência moral, censura do sonho e
principal influência na repressão. Dissemos que é a herdeira do narcisismo original, em
que o Eu infantil bastava em si mesmo. (FREUD, 2011a, p. 67-8).

Freud traz sua elaboração incipiente – Psicologia das massas e análise do Eu, de 1921
– sobre o “Supereu” que ficará mais explicitada em 1923, em Eu e o Id. O psicanalista leva em
consideração que pode se constituir um ideal do Eu bastante ligado ao narcisismo infantil ao
qual se “bastava a si mesmo”. Podemos supor, do ponto de vista metapsicológico, que a
necessidade de controle da professora estaria ligada a um ideal do Eu bastante indiferenciado a
um narcisismo infantil que se bastaria a si mesmo.

37
Na maneira e na importância que Freud estabelece os processos de identificações: “a identificação é a mais
primordial forma de ligação afetiva a um objeto; segundo, por via regressiva ela se torna o substituto para uma
ligação objetal libidinosa, como que através da introjeção do objeto no Eu; terceiro, ela pode surgir a qualquer
nova percepção de algo em comum com uma pessoa que não é objeto dos instintos sexuais. Quanto mais
significativo esse algo em comum, mais bem-sucedida deverá ser essa identificação parcial, correspondendo assim
ao início de uma nova ligação. (FREUD, 2011a. p.65).
80

No entanto, a professora Ana nos revela que, no processo de volta às aulas presenciais
durante a pandemia, teve a oportunidade de trabalhar com turmas com menor número de estudantes
e isso lhe permitiu lidar com o mal-estar do trabalho de forma diferente. Isto demonstra que, mesmo
supondo certas disposições individuais, narcísicas, uma certa realidade social precarizada e
obstaculizada é um elemento capaz de produzir a intensificação dessas disposições.

Eu acho que nessa pandemia, até dia 30 de outubro a gente estava com 50% dos
alunos. E a gente teve uma experiência diferente. Nunca tive esta experiência de ter
50% dos alunos. Eu percebi que é muito mais fácil. Eu acho que a quantidade de
alunos, como eu já disse, como é muito grande, é um problema. Que se diminuísse ia
ser bem melhor. Uma das principais dificuldades é a quantidade de alunos, porque eu
não consigo desenvolver o trabalho da forma que eu deveria. Por exemplo, quando eu
tinha 15 alunos eu conseguia corrigir o caderno de todo mundo, eu conseguia perceber
a dificuldade de cada um, eu conseguia reexplicar. Agora não consigo corrigir
caderno, eu corrijo na lousa, eles acompanham. Então eu não consigo perceber se o
aluno aprendeu ou não. Então para mim isso é uma dificuldade, essa quantidade
imensa de alunos. Outro problema eu acho que é a falta de infraestrutura da escola.
Essa escola que estou é até que uma escola razoável, grande, mas eu já trabalhei...
essa escola que trabalhei 10 anos em I., por exemplo, a escola era um puxadinho. Não
tinha espaço para nada. Não tinha nem pátio. O pátio da escola era a quadra. Então
quando tinha educação física não tinha quadra. Não tinha recreio. Então eu acho que
a infraestrutura, de materiais, eu acho que estes são os maiores problemas do meu
trabalho. E a falta de valorização dos profissionais em si, todos que trabalham na
educação, não só os professores. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Consideramos que essa dimensão interna, intrapsíquica, expressa pela maneira da


professora de buscar controlar o ambiente externo, em condições mais adequadas de trabalho
poderia favorecer uma reformulação profunda, com experiências e possibilidades de tempo e
reflexão, de gratificação e frustração – portanto menos duras de lidar, porque menos constantes.
Do contrário, as frustrações excessivas reforçaram o processo de seu adoecimento, o que a levou
justamente a fazer um tratamento psiquiátrico e terapêutico em que acredita ter obtido melhoras.
Um trabalho terapêutico pode ter produzido um “ideal do Eu”, um Superego menos rígido
na professora, mas também pode ter contribuído para adaptá-la à sua condição precarizada de
trabalho, o que tem, igualmente, muitos desdobramentos psíquicos na conformação pela adaptação.
Adorno, neste sentido, nos alerta para o risco de uma psicanálise e dos psicanalistas 38 que se
associam aos aspectos mais regressivos da sociedade ao bem adaptar os indivíduos.

Por outro lado, a civilização, que compele à frustração é aceita por ela, senão de forma
francamente acrítica, certamente de forma resignada. Em nome do princípio de
realidade, ela justifica o sacrifício psíquico do indivíduo, sem expor o próprio

38
Importante ressaltar que não sabemos que tipo de trabalho terapêutico a professora Ana está fazendo, além de
um tratamento psiquiátrico. Sabemos que o campo da psicologia é amplo em abordagens terapêuticas o que não
limita a crítica de Adorno, muito pelo contrário, ao focar nos psicanalistas com quem estava dialogando na época,
estava em tese discutindo com uma área do saber que se coloca muitas vezes como uma expressão da “anti-
psicologia”, pela demarcação do inconsciente em sua práxis, ao contrário de outras linhas que focam o trabalho na
dimensão diretamente racional, consciente e adaptativa do indivíduo.
81

princípio de realidade a uma prova racional. Esta ambivalência, que remete à


problemática da educação, produz necessariamente outra ambivalência na avaliação
da libido. Como método de tratamento médico no interior de relações sociais dadas,
ela tem que favorecer a adaptação social do paciente, animá-lo ao trabalho e à
felicidade dentro dessas relações. (ADORNO, 2015a, p. 67).

Avançamos em pensar este mal-estar docente na perspectiva geracional e cultural,


refletindo se a própria cultura não estaria marcada por uma experiência de magistério, que se
efetiva num lugar social de “aversão ao magistério”, repleta de uma herança arcaica que se
traduz nas dimensões inconscientes dos professores cotidianamente em seu ofício.

3.1. Mal-estar e herança arcaica

... mas eu acho que o empecilho maior é você entrar


numa sala de aula e não se sentir respeitado. Você sentir
que você está à margem da sociedade. Eu me sinto
às vezes marginalizado socialmente falando.

Professor Pedro

Retomando a ideia de uma herança arcaica como parte ativa da vida psíquica inconsciente
proposta por Freud (2018), Adorno (2006a) discute um tema que ultrapassa o tempo presente e
que seria, segundo ele, uma “aversão ao magistério” que estaria para além das bases econômicas.
Não se trataria somente de manifestações racionais contra o magistério, mas de elementos
inconscientes e pré-conscientes que se tornaram não-ditos, tabus que marcam a cultura.

Tabus significam, a meu ver, representações inconscientes ou pré-conscientes dos


eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das
próprias crianças, que vinculam esta profissão como que a uma interdição psíquica
que a submete a dificuldades raramente esclarecidas. Portanto utilizo o conceito de
tabu de um modo relativamente rigoroso, no sentido da sedimentação coletiva de
representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia, já
mencionadas, em grande parte perderam sua base real, mais duradouramente até do
que as econômicas, conservando-se porém com muita tenacidade como preconceitos
psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade convertendo-se
em forças reais. (ADORNO, 2006a, p. 98).

Estas representações inconscientes tornam-se força ativa nas relações escolares. O que
torna a experiência do magistério uma profissão que gera um mal-estar intenso e específico,
porque as determinações do impossível da profissão expressam imperativos ao longo de uma
tradição cultural com a qual todo professor tem que lidar.
Uma dessas imagens é a do professor como um profissional que castiga, que exerce uma
certa violência ou que regulamenta. Adorno (2006a) busca na palavra alemã Pauker (quem
ensina com palmatória), ou inglesa, Steisstrommler, termos que caracterizam o elemento de
violência (aquele que malha o traseiro), até mesmo militar do magistério. Assim, comparada a
82

outras profissões acadêmicas, como médico e advogado, a profissão de professor estaria numa
segunda ordem: “o professor, embora seja um acadêmico, não seria socialmente capaz; quase
poderíamos dizer: trata-se de alguém que não é considerado um “senhor” (...) relacionadas à
alegada igualdade de oportunidades educacionais.” (ADORNO, 2006a, p. 99).
Para Freud (2010a), o psiquismo reflete uma das metáforas do trabalho do arqueólogo,
com camadas mais profundas e outras mais superficiais que preservam restos mnemônicos.
Adorno (2006a) vai pelo mesmo caminho, traz os traços mnemônicos que se preservaram na
cultura relacionadas ao papel social do professor.
O filósofo encontra a aversão ao magistério na história e na herança filogenética, que
estaria presente já na Idade Média na figura do escriba, do escrivão, nas referências aos
professores como escravos ou mesmo guerreiros capturados ou inválidos e que não podem mais
exercer seu poder, visto que a violência passa a não ser mais bem vista, assim como a própria
aversão e rancor dos analfabetos frente às pessoas que têm alguma autoridade baseada no estudo.
“O professor é o herdeiro do monge; depois que este perde a maior parte de suas funções, o ódio
ou a ambiguidade que caracteriza o ofício do monge é transferido para o professor” (ADORNO,
2006a, p. 103). O docente é aquele que perde o poder e está relacionado a certas figuras, do ponto
de vista da herança arcaica, que podiam exercer alguma violência para determinar sua autoridade,
o que produz um ressentimento ancestral contra o professor.
Pela perspectiva da perda deste poder na tradição ocidental, o professor representa na
cultura um segmento menos ousado e livre do ponto de vista do capital – em especial aqui, dos
funcionários públicos que não podem exercer seu poder no mundo competitivo dos negócios.
Seu trabalho é mediado por sujeitos que não são plenamente autônomos, as crianças.

Por sua vez, os juízes e funcionários administrativos têm algum poder real delegado,
enquanto a opinião pública não leva a sério o poder dos professores, por ser um poder
sobre sujeitos civis não totalmente plenos, as crianças. O poder do professor é
execrado porque só parodia o poder verdadeiro, que é admirado. Expressões como
“tirano da escola” lembram que o tipo de professor que querem marcar é tão
irracionalmente despótico como só poderia sê-lo a caricatura do despotismo, na
medida que não consegue exercer mais poder do que reter por uma tarde as suas
vítimas, algumas pobres crianças, quaisquer. (ADORNO, 2006a, p. 104).

O professor João relata um pouco desta crise relacionada ao poder do professor que se
enfraquece pelas condições de trabalho e que acaba tendo uma função de “contenção social”.
O professor João expressa, através da linguagem, a “contenção social” pela brincadeira com
seus pares. Diz que “eu procuro brincar com colegas e amigos” antes de trazer esta expressão
“contenção social”. Tira, assim, a força, a violência da expressão, por ela ser contrária, pelo
83

menos na linguagem, à ideia moderna de escola, por isso o professor encontra uma saída
mediada pelo humor.39
Por outro lado, encarnar a figura daquele que contém é tornar-se aquele que sustenta a
agressividade do outro, destituindo-se, enfraquecendo, portanto, sua própria agressividade,
fator constitucional dos indivíduos e importante no sentido de dar um destino a esse impulso
mediado pela cultura.

Eu entendo que meu papel social é contribuir para melhoria da sociedade através da
formação destas crianças e adolescentes. Só que hoje em dia eu tenho um certo pé no
chão que assim: tem hora que não dá pra contribuir, a verdade é essa. Tem hora que
simplesmente você está lá fazendo... eu costumo brincar com colegas e amigos, que é
fazendo a contenção social. Muitas vezes você entra numa sala e basicamente você
vai acabar com conflitos, mediar situações. Tem hora que é por causa dos alunos, tem
horas que é por causa da precariedade da sala de aula. Então eu vejo meu papel como
professor hoje em dia de uma forma bem pragmática, apesar de gostar da profissão,
de que não querer mudar, não ter o menor interesse e não sair da área. Mas eu entendo
assim: é um papel social relevante, pode contribuir para uma sociedade mais justa,
com mais oportunidades. Às vezes até mudar o futuro dessas crianças e adolescentes,
mas ao mesmo tempo eu entendo que tem limites e que nós não somos salvadores da
pátria. Não dá para você sozinho querer fazer uma mudança radical. (Professor João,
categoria A, 13 anos de magistério).

O professor João acaba por se tornar uma pessoa “pragmática”, segundo suas palavras,
e aqui se esvazia um pouco a própria potência do mal-estar trazida por Freud, de que é
justamente o impossível do trabalho docente que também cria possibilidades. O professor fica
totalmente tomado pelas circunstâncias, “acabar com conflitos”, “mediar situações” – só resta
a sentença de sua própria impotência, diante de tantas cobranças do ideal da cultura e da
realidade concreta: “não somos salvadores da pátria”, “não dá para você sozinho querer fazer
uma mudança radical”.
Em Adorno (2006a) há essa imagem na tradição cultural do professor como “aquele que
castiga”, “do carrasco”, mesmo que essas práticas não sejam mais comuns na escola. Trata-se,
para o autor, de um tabu acerca do magistério:

(...) que este imaginário é exitoso em firmar a crença de que o professor não é um
senhor, mas um fraco que castiga ou um monge sem cargo, isto pode ser comprovado
de maneira drástica no plano erótico. Por um lado, ele não tem função erótica; por
outro, desempenha um grande papel erótico, para adolescentes deslumbrados, por
exemplo. (ADORNO, 2006a, p. 107).

39
Em um texto chamado O humor (1927), Freud diz que no humor “o traço grandioso está claramente no triunfo
do narcisismo, na vitoriosa afirmação da invulnerabilidade do Eu. Este se recusa a deixar-se afligir pelos ensejos
vindos da realidade, a ser obrigado a sofrer; insiste em que os traumas do mundo externo não podem tocá-lo,
mostra, inclusive, que lhe são apenas oportunidades para a obtenção de prazer.” (FREUD, 2014h, p. 325). Mais a
frente, discorre: “com sua rejeição da possibilidade de sofrer, ele assume um lugar na série de métodos que a
psique humana desenvolveu para fugir à coação do sofrimento, uma série que tem início com a neurose e culmina
na loucura, e na qual se incluem também a intoxicação, o ensimesmamento e o êxtase.” (FREUD, 2014h, p. 326).
84

O professor Pedro busca camadas bastantes profundas em sua reflexão em torno da


desvalorização do professor. Podemos pensar sobre uma certa perda do lugar erótico, inclusive
pelos próprios pais que, ao não reconhecerem um lugar investido ao professor do ponto de vista
da cultura, transmitem aos filhos a herança arcaica cultural de desvalorização dessa figura. O
professor sente justamente uma certa agressividade, uma raiva em torno de sua imagem de
docente e de funcionário público.

Mas eu acho que não ser reconhecido profissionalmente, não ter a importância
reconhecida no dia a dia, não só em datas específicas, em campanhas de televisão, não
é só em projetos “professor nota mil”, e outras ferramentas aí, mas eu acho que o
empecilho maior é você entrar numa sala de aula e não se sentir respeitado. Você sentir
que você está à margem da sociedade. Eu me sinto às vezes marginalizado socialmente
falando, nós fizemos uma reunião de pais recentemente, e este sentimento está muito
forte. Eu costumo dizer na sala dos professores que muitos pais parecem que tem raiva
da gente, não sei exatamente por que, mas eu sinto esta espécie de raiva, questão do
funcionalismo público, do serviço público que não funciona, então eu me sinto
marginalizado socialmente. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Adorno (2006a) aborda que este professor é castrado do ponto de vista imaginário. O
professor é colocado num certo processo de infantilização (concreta ou imaginária), por mover-
se num ambiente infantil. “Nesta medida acrescenta-se o desprezo pelo professor um aspecto
suplementar: por mover-se num ambiente infantil que é o seu ou ao qual se adapta, ele não é
considerado inteiramente um adulto que deriva suas exigências desta sua existência como tal.”
(ADORNO, 2006a, p. 109).
O professor Pedro, assim como o professor João, acaba revelando uma certa solidão
diante de questões tão maiores. O professor João sentencia “não ser salvador da pátria” e o
professor Pedro, no intuito de resgatar este plano erótico, no sentido do investimento libidinal
de si e objetal, relata que, apesar das ambiguidades com relação à carreira, escolheria
novamente ir por estes caminhos.

Mas para resumir a pergunta que você fez eu acho que sim. Eu faria novamente sim,
eu acho que existe um crescimento profissional que acaba refletindo no nosso
crescimento pessoal. Então você saber que você ajudou um pouco certas pessoas a se
formarem, você plantou sementes, você consegue ser um pouco terrorista
pedagogicamente falando, porque você consegue suplantar algumas ideologias que
são impostas ali, eu acho que sim, eu acho que eu faria de novo sim. (Professor Pedro,
categoria A, 21 anos de magistério).

A palavra “terrorismo”, usada pelo professor, é muito significativa nesse domínio


pedagógico, da ação solitária que um “terrorista” faz, isolada na perspectiva da crítica, mas,
também, do modo como é possível resistir diante de um cenário tão grandioso que traz tantas
dimensões da ordem consciente, das políticas de governo e das condições objetivas e
inconscientes, da cultura e da herança arcaica na educação. O professor Pedro complementa:
85

Sim porque a gente tem uma série de conceitos, ideias que são colocadas para gente e
são colocadas de uma maneira que se o professor optar por ficar numa zona de
conforto, ele vai ficar numa zona de conforto. Então quando eu falo do terrorismo,
olha a Secretaria de Educação tem um currículo pronto e este currículo a gente sabe
que na verdade é só para, muitas vezes, fazer Saresp ou Saeb ou só para formar uma
mão de obra barata no futuro. Então o terrorismo que eu falo é você voltar a ser um
intelectual, não só um professor de biologia, professor de educação física ou inglês,
você deixar a sua intelectualidade aflorar na sala de aula contra esta educação que é
uma educação já pensada só no mercado de trabalho. O terrorismo que eu refiro é
esse. (Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

O professor Pedro, com esta busca de uma “ação terrorista”, como nomeia, no sentido de
usar a castração remetida por Adorno (2006a) não como paralisante, mas como algo da ordem da
potência freudiana da castração, do ser que se reconhece falante e faltante, da saída do mundo
psíquico infantil para o mundo adulto. É assim que o professor destaca um plano bastante erótico
do ofício docente, a capacidade de voltar a ser um intelectual. Ficar na zona de conforto é manter-
se em um campo do infantil. Resistir como atividade é “deixar sua intelectualidade aflorar”, uma
expressão que nos remete a um plano sexual e erótico, do sublimatório.

3.2. Mal-estar e transferência

... eles [alunos] continuam respeitando, o que eles


não têm mais é medo. Não tem medo, se queria
que tivesse medo de você? Tá na profissão errada.

Professor Fernando

No texto Dinâmica de transferência, de 1912, Freud (2010e) estabelece a dinâmica da


transferência como um mecanismo fundamental no tratamento analítico. Fundamenta as bases do
sujeito relacionadas ao conjunto de disposições inatas e de experiências infantis que caracterizam
um modo de ser das disposições individuais. Assim, assevera que isso determina os laços afetivos
do indivíduo com o outro, inclusive nas possibilidades de tratamento de suas neuroses.
Nesse processo, o paciente transfere para o analista impulsos libidinais e fantasias
relacionadas às marcas inconscientes e infantis, de modo que reviva no processo analítico
determinadas fixações nesta fase, e que são fundamentais para seu tratamento, ou mesmo os
processos de resistência para com ele. Por isso,

(...) combina com os laços reais com o médico o fato de nessa inclusão ser decisiva a
“imago paterna” (para usar a feliz expressão de Jung). Mas a transferência não se acha
presa a esse modelo, pode também suceder conforme a imago da mãe, do irmão etc.
(...) não são só as expectativas conscientes, mas também as retidas ou inconscientes
produziram essa transferência. (FREUD, 2010e p. 136).
86

Freud observou que os processos transferenciais não ocorrem somente no tratamento


analítico; ocorrem, igualmente, em outras relações. As relações interpessoais podem ser
balizadas por esta dinâmica. Dentro destas possibilidades, Freud destaca uma, em especial,
através da sua própria experiência pessoal como aluno. A relação professor-aluno, para Freud,
é carregada de uma dimensão transferencial. Os alunos também irão transferir para os
professores as relações ambivalentes, de amor e ódio, que tiveram com suas figuras parentais.
A figura do professor e as relações mantidas com ele, foram fundamentais para o
aprendizado, no que Freud (2012b, p. 420) chega a dizer que “para muitos de nós o caminho do
saber passava inevitavelmente pelas pessoas dos professores. Vários se detiveram na metade desse
caminho, e para alguns – por que não admitir – ele ficou bloqueado permanentemente.”
Desta relação com os professores se produz um saber fundamental para o aprendizado.
Um saber que se apresenta como mal-estar, da ordem do impossível da profissão. Podemos dizer
que o professor trabalha com seu corpo, de modo que este corpo é atravessado pelo afeto
mobilizado na relação professor-aluno. É da sustentação deste mal-estar que o trabalho pode ser
de fato realizado. Como nos mostra Freud (2012b, p. 420) contando sua experiência como aluno:

Nós os cortejávamos ou nos distanciávamos deles, neles imaginávamos simpatias ou


antipatias provavelmente inexistentes, estudávamos seus caracteres e com base neles
formávamos ou deformávamos os nossos. Eles suscitavam nossas mais intensas revoltas
e nos compeliam à mais completa submissão. Nós espreitávamos suas pequenas fraquezas
e tínhamos orgulho de seus grandes méritos, de seu saber e senso de justiça. (...) Em
princípio nos inclinávamos tanto ao amor como ao ódio, tanto à crítica como à veneração
diante deles. A psicanálise chama de “ambivalente” essa predisposição para atitudes
contraditórias; e não tem dificuldade em apontar a fonte de tal ambivalência emocional.

Das marcas da formação bastante iniciais das imagos do pai, mãe, irmãos etc., a escola se
apresentará num momento seguinte. A escola representa um campo da ampliação do mundo para
a criança. E é a partir das outras relações propiciadas pela escola que as figuras parentais, em
especial a do pai, sofrerão profundo abalo. O pai, que era todo poderoso, passa a ser percebido e
a se perceber pelos limites, e se estabelece, a partir disso, um conflito que igualmente passa a ser
fundamental na constituição do próprio ideal do Eu da criança. (FREUD, 2012b).

É nessa fase de desenvolvimento do jovem que ele entra em contato com os mestres.
Agora entendemos nossa relação com os professores do colégio. (...) Nós transferimos
para eles o respeito e as expectativas ligadas ao pai onisciente da infância, e nos
púnhamos a tratá-los como nossos pais em casa. Manifestávamos diante deles a
ambivalência que havíamos adquirido na família, e nessa atitude lutávamos com eles
como estávamos habituados a lutar com nossos pais carnais. Sem levar em conta as
vivências infantis e a vida familiar, nossa conduta ante os professores seria
incompreensível, mas tampouco seria desculpável. (FREUD, 2012b, p. 423).

É o que nos mostra o professor Fernando através da sua experiência em sala de aula.
Como um professor que busca ter uma prática reflexiva, ele entende que os conflitos e o mal-
87

estar estão colocados e cabe ao professor sustentá-los de modo que o aprendizado se realize. É
neste contexto que o professor relata se sentir respeitado e que a imagem de uma autoridade do
professor do passado, autoritário, não é mais viável.

(...) eles continuam respeitando, o que eles não têm mais é medo. Não tem medo, se
queria que tivesse medo de você? Tá na profissão errada. Nunca eu tive um caso de
violência. “Mas o aluno bate-boca com você.” Eu falei que bom que a gente vai
resolver trocando ideia. Nunca um caso de violência pegar carteirada, saiu na mão e
pá. Eu tive um caso de aluno com fala racista em sala de aula, e que é de uma violência
e que é criminal. É uma violência criminosa isso. E a gente levar o moleque nas ideias.
Falar oh que ideia é essa que você taí, de onde você está tirando esses negócios. Falar
oh conversa, conversa franca e dura. Não sozinho eu professor. Eu e o grupo escolar,
eu e os estudantes que não estão entendendo aquilo. E o moleque voltar na fala e falar
“não eu achava que era isso o certo”. Mano isso não é o certo, isso daí faz os outros
acharem que o cara é menos. É nos erros que a gente vai trabalhando e chegar nos
acertos. Agora violência para. Todo mundo lá. Colocaram câmera que é pro bem do
professor. Então tira porque para mim só faz mal. Só faz mal. Nunca teve um caso
aqui na escola porque está botando câmera. Nunca teve um caso de agressão. O fato
do aluno levantar e mandar o professor tomar no cú, vai se fuder. Oh mano, eu me
formei, eu me preparei para trabalhar com adolescente. Eu com toda esta maturidade,
toda minha carga, todo o meu estudo eu não estou preparado para ouvir um vai tomar
no cú de um adolescente? Eu vou ficar em choque, vou chamar a polícia? Vou me
sentir desrespeitado, desautorizado? Quem é o imaturo dessa relação? Quem é? Eu
que não consigo ouvir um vai tomar no cú, vai ser fuder, não consigo lidar com o
moleque que fala gíria, entre aspas. Então professor não tem mais autoridade... a fala
deveria ser o professor jamais deveria ter autoridade em sala de aula. Deveria ser um
igual, não um autoritário. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

O professor Fernando acaba sustentando a relação transferencial se posicionando


subjetivamente na sala de modo que, ao mesmo tempo em que sustenta a ambivalência dos
estudantes, produz, a partir destas ambivalências, as condições que entendem serem necessárias
para o aprendizado. Pode-se dizer que retira a matéria prima do mal-estar para realizar seu
trabalho. O professor considera inclusive que não tem problemas com alunos, mas, pelo seu modo
de trabalho, justamente com os gestores, coordenadores e professores.

Eu não tenho problema com estudantes. Nunca me deram problema, em 12 anos de


trampo. O que eu tenho mais problema geralmente é com coordenação, direção e
professores. Porque eles enxergam o meu trabalho como não trabalho. E como é não
trabalho... eu falo para eles é exatamente porque trabalho é horroroso. Trabalhar é péssimo.
Eu venho aqui fazer uma atividade com meus iguais, e meus amigos de trampo são eles,
não são vocês. Eu me formei para trampar com eles, não com vocês. Quando tem uma
coordenação que entende a ideia do trampo aí é lindo. Não dá problema, deixa eu trabalhar.
Só me dá munição mesmo para eu ir além, “oh porque você já não trampa isso, pô dá
hora.” Quando soma é legal, agora quando bate de frente porque não está convencional o
suficiente aí é triste. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

O que nos faz pensar sobre as marcas constitucionais não somente dos estudantes, porém
também do professor. No que pese o ofício docente também envolver o trabalho com seus pares,
o professor Fernando reflete sobre uma crítica em um modo de ser docente. Naquilo que ele
pode ser na plenitude de sua prática em sala de aula e quais os efeitos em sua autonomia num
88

espaço escolar que tende à padronização, inclusive de professores. O entrevistado revela uma
perspectiva de autoridade quando diz que vai trabalhar “com seus iguais”, marcando a sua
individualidade no processo de aprendizagem.
É importante destacar que o que o professor nos traz não é uma relação de simetria com
os estudantes, na qual não haveria diferença deste com ele, como professor, o que certamente a
psicanálise, com uma leitura estrita da clínica diria: “neurótico!” O que ele destaca é justamente
a identificação de classe e raça como “ideal do Eu”, que o conhecimento formal ou seu modo
de se relacionar com as periferias acabam por excluir (na representação mais tradicional do
professor bacharel), grandes contingentes de estudantes pobres.
Essa forma de ver a educação tem a ver com a história do professor, branco de origem
pobre e família inter-racial (mãe negra e pai branco), nas suas próprias identificações com o
bairro onde mora na periferia de São Paulo, produzindo uma série de conflitos e diferenças,
como nos traz em outro trecho da entrevista, quando foi cursar História numa universidade da
elite paulistana, localizada em bairro de classe média alta e branca, Perdizes, a PUC-SP. 40
Um dado a se considerar é que o professor Fernando começou a trabalhar com educação
antes da formação universitária. Como nos relata na entrevista, trabalhava nas escolas do Estado
com Hip-Hop, “com dança, nos parceiros do futuro, escola da família”. Foi esta relação mais
próxima com os estudantes, como educador, que o motivou a buscar uma formação
universitária. “Puxa, ia ser louco se eu pudesse entrar na sala de aula também para poder
conversar com estes moleques. E foi mais ou menos por aí que começou”, diz o professor
Fernando no conjunto da entrevista.
O que concebe não é a negação da autoridade, a recusa de uma “lei paterna” fundamental
para estabelecer a diferença do ponto de vista psíquico, haja vista que inclusive seu pai não
queria que ele fizesse universidade e lhe dizia que “ninguém na família que estudou virou
alguma coisa”. O professor Fernando, além de se formar como professor de História na

40
O interessante estudo de Schucman (2018) sobre as famílias inter-raciais no Brasil demonstra as tensões
produzidas nos referenciais familiares e sociais, visto que o racismo atravessa a própria constituição dos indivíduos
nas diferenças no interior destas famílias. Neste sentido, a autora evidencia a complexidade da constituição dos
“ideais do Eu” em uma cultura marcada pela desigualdade social e o racismo. Ao analisar em sua pesquisa uma
família com estas formações inter-raciais, Schucman ressalta que: “As hipóteses de Mariana sobre as escolhas da
mãe nos levam ao sociólogo Du Bois quando ele apresenta uma dinâmica que entrelaça as categorias de raça,
classe e status para compreender o porquê dos trabalhadores brancos e pobres aceitarem a raça e o racismo como
divisor da classe trabalhadora norte-americana. Para ele, esta foi uma forma de se apropriar de benefícios. Du Bois
(2003) nomeia esses benefícios de salário público e psicológico da brancura, que resultavam em acesso a bens
materiais e simbólicos que os negros não podem compartilhar. Ou seja, os brancos pobres, ao aceitarem a raça
como um divisor dessa classe aproximam-se dos brancos de todas as outras classes sociais, dividindo com estes
os mesmos acessos a lugares públicos, simbólicos, e, portanto, o status dado à branquitude.” (SCHUCMAN, 2018,
p. 96).
89

universidade, estabelecendo a diferença na construção dos seus próprios ideais geracionais,


buscou a criação de outras formas de autoridade conectadas ao espaço social em que foi
formado socialmente, na qual a experiência autoritária, seja policial ou pelas distinções
econômicas de poder, lhe marcaram profundamente41. “Eu trabalhava com arte-educação, eu
trabalhei na Fundação Casa. Trabalhei em outros... sempre nas áreas carentes. Só que com outra
linguagem. Com outro viés que não a história”, diz.
Ao entrar num espaço escolar mais formalizado, com diretrizes externas, isso acaba por
colocar o professor Fernando diante de contradições que lhe retornam em intensidade de mal-
estar, as mesmas que viveu na Universidade como nos trouxe no conjunto da entrevista, visto
que sua visão de educação é marcada pela relação mais horizontal com os estudantes, de modo
consciente, como prática autônoma e reflexiva.

Porque é o seguinte a ideia de que a gente vai chegar lá e vai dar aula de história para
eles isso aí é ilusão, eu não dou aula de história praticamente. Eu não trabalho os
conteúdos de história, os conteúdos para mim não são nem importantes, mas o fato de
estar lá usando os conteúdos de história para trabalhar as inquietudes deles, as coisas
que eles têm de inquietações mesmo, porque as coisas são do jeito que são e porque
estão do jeito que estão. Então isso já... aí sim eu uso história. Caso contrário eles que
vão determinar o que é necessário ali naquele momento. Então a maioria das aulas são
dialógicas onde todo mundo conversa com todo mundo. Dialoga com todo mundo. De
um tempo para cá isto tem sido mais complicado. A pandemia deixou todo mundo num
papel de observador silencioso, onde todo mundo observa uma tela em silêncio.
Ninguém mais conversa, isso é uma coisa que vai me preocupando bastante inclusive
pro ano que vem. Porque quando voltamos presencialmente este ano ninguém mais
queria falar. Todo mundo só queria ouvir e que fosse rápido, o que eles querem é o
contato social. Eles não querem mais nada a não ser o contato social. E aí este ano foi
terrível para trabalhar, porque a escola e o Estado nunca cobraram tanto a questão
burocrática, nunca cobrou tanto diário. A matéria, o conteúdo, “ah projetos, faz um
projetinho”. Então assim antes eu ainda tinha o respaldo deles, não trabalho este
esquema porque eu trabalho com eles desse jeito e funciona. Agora não funciona porque
eles não querem mais estar na sala de aula. A sala de aula parece que se transformou
num grande inimigo deles. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

41
Há outros autores que colocam a constituição da dimensão psíquica do ponto de vista social ou do espaço social
em primeiro plano. Podemos pensar aqui, para futuros desdobramentos da pesquisa, tanto Pierre Bourdieu com sua
categoria de Habitus, que o sociólogo caracteriza sucintamente: “Trata-se de um debate extremamente complicado,
mas a noção de habitus tem várias propriedades. Ela é importante para lembrar que os agentes têm uma história, que
são produto de uma história individual, de uma educação associada a determinado meio, além de serem produto de
uma história coletiva, e que em particular as categorias de pensamento, as categorias do juízo, os esquemas de
percepção, os sistemas de valores, etc. são o produto da incorporação de estruturais sociais.” (BOURDIEU;
CHARTIER, 2011, p. 58). Além do psiquiatra Frantz Fanon, que elabora a categoria de sociogenese: “A análise que
empreendemos é psicológica. No entanto, permanece evidente que a verdadeira desalienação do negro implica uma
súbita tomada de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há complexo de inferioridade após um duplo
processo: – incialmente econômico – em seguida pela interiorização, ou melhor, pela epidermização dessa
inferioridade. (...) Reagindo contra a tendência constitucionalista em psicologia do fim do século XIX, Freud, através
da psicanálise, exigiu que fosse levado em consideração o fator individual. Ele substituiu a tese filogenética pela
perspectiva ontogenética. Veremos que a alienação do negro não é apenas uma questão individual. Ao lado da
filogenia e da ontogenia, há a sociogenia. De certo modo, para responder à exigência de Leconte e Damey, digamos
que o que pretendemos aqui é estabelecer um sócio-diagnóstico.” (FANON, 2008, p. 28).
90

Talvez o professor Fernando, justamente pelo seu modo de trabalhar, tenha percebido
um sintoma do pós-pandemia na escola, que outros professores mais tradicionais não devem ter
notado com tanta intensidade. Ao trabalhar de modo dialógico, notou a diferença da experiência
do pós-pandemia na subjetividade dos estudantes. É importante enfatizar que o que estamos
pensando sobre o modo de ser docente do professor Fernando está relacionado aos “ideais do
Eu” a partir das dimensões da cultura e da história, tal como está em Freud:

Cada indivíduo é um componente de muitos grupos, tem múltiplos laços por


identificação, e construiu seu ideal do Eu segundo os mais diversos modelos. Assim,
cada indivíduo participa da alma de muitos grupos, daquela de sua raça, classe,
comunidade de fé, nacionalidade etc., e pode também erguer-se além disso, atingindo
um quê de independência e originalidade. (FREUD, 2011a, p. 92).

Por último, vale apontar que quando tem apoio de uma coordenação que entende
sua forma de trabalhar, sua individualidade como professor, este apoio é visto como “munição”
o que pode demonstrar que o professor se sente realmente numa luta, numa guerra para sustentar
sua individualidade num cenário bastante adverso, precarizado e obstaculizado de trabalho.
Seguimos adiante justamente para pensar a autoridade docente e todas as complexas
questões que atravessam a sua constituição, seja da ordem psíquica, social, econômica e
cultural.

3.3. Mal-estar e autoridade

Você tem uma apostila, você tem que estudar aquilo e ministrar aquilo.
E não é mais apostila, agora é o Centro de Mídias.
Você tem que estudar aquelas aulinhas horríveis,
com pouco conteúdo que deixam o aluno, vamos se dizer assim, alienado.

Professora Vera

Alguns psicanalistas contemporâneos a Freud, pensavam sobre que tipo de educação era
possível fazer para que ela não produzisse tantas pessoas adoecidas e tantas neuroses. A tese
central era que de que na escola havia uma marca repressiva muito grande, inclusive da
sexualidade, e que isso favorecia o surgimento de diversas patologias.
Um deles foi Sándor Ferenczi (1873-1933). Em um pequeno texto intitulado Psicanálise
e pedagogia (1908), resultado de uma Conferência no Congresso dos Psicanalistas em
Salzburgo em 1908, Ferenczi diz que “a pedagogia atual constitui um verdadeiro caldo de
cultura das mais diversas neuroses.” (FERENCZI, 2020, p. 39).
Para ele, muitos sofrimentos podem ser atribuídos a princípios educativos impróprios,
em especial aqueles que produzem profundo recalcamento das emoções e representações, o que
91

ocasionariam organizações defensivas muito intensas que retirariam muita energia psíquica
para sua manutenção.

Vou citar um dos seus mais graves erros, a saber, o recalcamento das emoções e
representações. Poderíamos até dizer que a pedagogia cultiva a negação das emoções
e das ideias. (...) É difícil definir o princípio que a rege. É com a mentira que ela mais
se aparenta. Mas ao passo que os mentirosos e os hipócritas dissimulam as coisas para
os outros ou então apresentam-lhes emoções e ideias inexistentes, a pedagogia atual
obriga a criança a mentira para si mesma, a negar o que sabe e o que pensa.
(FERENCZI, 2020, p. 40).

Ferenczi, como o próprio Freud, em algum momento de seus breves textos sobre a
educação, afirmava que uma educação menos repressiva poderia produzir indivíduos menos
suscetíveis a adoecimentos – no que pese Freud compreender o papel civilizatório da cultura e
da educação na repressão dos instintos.

A senha para que a psicanálise seja aplicada à educação deve ser hoje buscada em outro
lugar. Vejamos claramente qual a primeira tarefa da educação. A criança tem de
aprender a dominar os instintos. É impossível lhe conceder liberdade irrestrita para
seguir todos os seus impulsos. Seria um experimento bastante instrutivo para os
psicólogos da infância, mas a vida dos pais ficaria intolerável, e as crianças mesmas
sofreriam graves danos, que se mostrariam imediatamente, em parte, e depois em sua
vida futura. De modo que a educação tem de inibir, proibir, suprimir, o que sempre fez
em todas as épocas. Mas aprendemos com a análise que justamente essa supressão dos
instintos acarreta o perigo do adoecimento neurótico. (FREUD, 2010b, p. 310-1).

A educação, para Freud, tem um projeto civilizatório que é o de garantir que as


dimensões constitucionais e instintuais humanas estejam a serviço da cultura e da ampliação da
comunidade. É preciso, portanto, na tese dO mal-estar na civilização, renunciar a parcela destes
instintos para se viver em sociedade. Há, também, uma preocupação de Freud sobre que tipo
de intervenção educacional42 será possível fazer de modo que não se trabalhe com a ideia da
absoluta supressão destes instintos.

A questão será decidir o quanto proibir, em que momentos e com que meios. E
também será preciso levar em conta que os objetos da influência educacional trazem
disposições constitucionais muito diversas, de modo que o mesmo procedimento do

42
Em um belo texto denominado O esclarecimento sexual das crianças (Carta aberta ao Dr. M. Fürst, 1907), Freud
escreve: “É uma tarefa da escola sobretudo, não evitar a menção da sexualidade, incluir os fatos principais da reprodução
e sua importância nas aulas sobre o mundo animal e, ao mesmo tempo, enfatizar que o ser humano partilha com os
animais superiores tudo o que é essencial em sua organização. Então, se o ambiente familiar não atua de maneira
intimidante sobre o pensamento, provavelmente sucederá com maior frequência aquilo que entreouvi certa vez num
quarto de crianças, quando um menino falou à sua irmãzinha: ‘Como você pode achar que a cegonha é que traz os bebês?
Você sabe que o homem é um mamífero; você pensa que a cegonha traz os filhotes dos outros mamíferos?’ A curiosidade
da criança jamais alcançará um nível elevado se encontrar satisfação correspondente em cada estágio do aprendizado.
O esclarecimento sobre as condições especificamente humanas da vida sexual e a significação social desta deveria ser
dado ao fim da escola fundamental (antes do ingresso na escola média), ou seja, antes dos dez anos de idade. Por fim, a
época da Confirmação seria a mais apropriada para explicar à criança, já esclarecida acerca de tudo relativo ao corpo, as
obrigações morais ligadas ao exercício do instinto. Esse esclarecimento sobre a vida sexual, gradual, progressivo, jamais
interrompido, no qual a escola toma a iniciativa, parece-me ser o único a levar em conta o desenvolvimento da criança,
evitando com êxito o perigo existente.” (FREUD, 2015c, p. 323-4).
92

educador não pode ser igualmente bom para todas as crianças. Uma breve reflexão
ensina que até agora a educação cumpriu muito mal sua tarefa que infligiu graves
danos às crianças. (FREUD, 2010b, p. 311).

É nesse contexto que entra o debate da autoridade do professor. Convidados por Freud
e Ferenczi, somos chamados à reflexão deste lugar que está na ordem do impossível porque
nunca será completo – dado que se trata de uma relação ambivalente – e não há controle do seu
resultado. A autoridade do professor mobiliza uma série de ambivalências que serão ao mesmo
tempo fundamentais para constituição de indivíduos em formação e para a reflexão da posição
subjetiva do professor no ato docente, visto que ele também projeta suas dimensões instintuais
nos estudantes.
De tal modo, coloca-se a ideia da possibilidade de um esclarecimento dessa autoridade que,
segundo Freud (2010b) e Adorno (2006a), se beneficiaria dos saberes da psicanálise. Adorno fala
sobre os efeitos de uma autoridade não esclarecida do professor, mas adequada, adaptada.

A isto acrescenta-se algo essencial, bem conhecido da psicanálise. Na elaboração do


complexo de Édipo, a separação do pai e a interiorização da figura paterna, as crianças
notam que os próprios pais não correspondem ao ego ideal que lhes transmitem. Na
relação com os professores este ego ideal se reapresenta pela segunda vez,
possivelmente com mais clareza, e eles têm a expectativa de poder se identificar com
os mesmos. Mas por muitas razões novamente isto se torna impossível para eles,
sobretudo porque particularmente os próprios mestres constituem produtos da
imposição da adequação, contra a qual se dirige o ego ideal da criança ainda não
preparada para vínculos de compromisso. (ADORNO, 2006a, p. 111).

Os processos de adequação do professor, destituindo-o de sua autonomia, produzem efeitos


nas possibilidades de saber entre professor e estudante. O professor transmite o conhecimento a
partir de um lugar de crítica, de reflexão, mediado por uma relação de afeto, inclusive de um corpo,
e é dele que os estudantes partem para se constituírem enquanto indivíduos autônomos e capazes
de incorporar a herança cultural do conhecimento. Tal adequação se estende à prática do professor
em formas de controle de seu trabalho e de sua intelectualidade.

Seria preciso atentar acerca do processo da formação profissional. Seria preciso


atentar especialmente até que ponto o conceito de “necessidade da escola” oprime a
liberdade intelectual e a formação do espírito. Isto se revela na hostilidade em relação
ao espírito desenvolvido por parte de muitas administrações escolares, que
sistematicamente impedem o trabalho científico dos professores, permanentemente
mantendo-os down to earth (com os pés no chão), desconfiados em relação àqueles
que, como afirmam, pretendem ir mais além ou a outra parte. Uma tal hostilidade,
dirigida aos próprios professores, facilmente prossegue na relação da escola com os
alunos. (ADORNO, 2006a, p. 116).

Em nossas entrevistas, a pergunta que mobilizou os professores a falarem de autoridade


foi posta no sentido de eles comentarem a afirmação: “o professor não tem mais autoridade em
93

sala de aula”. A expectativa era de que os professores pudessem refletir a partir da sua própria
visão de autoridade.
O professor João reflete sobre as várias perspectivas da autoridade, e de que ela é um
produto da individualidade do professor em sua experiência em sala de aula e de um contexto
escolar no qual a direção ocupa o papel de organizar a escola, reforçando a autoridade do professor.
Falou, também, sobre a construção da autoridade do ponto de vista econômico, para além da escola.

A sociedade no geral ela tenta transmitir uma autoridade para este professor. É claro que
tem elementos que dificultam esta autoridade. Voltamos ao salário, uma sociedade que
valoriza pessoas que são bem-sucedidas e que ser bem-sucedido é sinônimo de ganhar
bem, é claro que a autoridade em sala de aula vai ter um questionamento. Mas quando
você tem uma escola que a direção consegue organizar a escola apesar de todas as
carências e os problemas eu acho que esta autoridade do professor fica reforçada. Eu
acho que ela não fica tão frágil. Quando a escola, a direção não consegue fazer
minimamente o papel dele: ali de gerir professores e alunos, apesar de todos os
problemas que ele tem. E que a escola entra naquele redemoinho de caos e conflito. Daí
eu acho que fica difícil falar em autoridade sabe. A autoridade, eu sei que tem uma
discussão teórica com relação a isso, talvez contribua um pouco para a pesquisa. A
prática na sala de aula, essa autoridade na sala de aula depende um pouco da maneira
como o professor se posiciona. A faculdade não ensina isso. Eu não sei também se era
papel dela ensinar sabe. Os professores no geral vão aprendendo ali no dia a dia da
profissão como se posicionar, como você encara uma dobradinha no 6F como eu
costumo brincar. E a partir daí você vai aprendendo também construir um pouco estes
elementos de autoridade. Agora eu não sei muito o que as pessoas pensam como
autoridade. Essa autoridade de antigamente do professor que ele manda e a criança
simplesmente obedece tem um pouco de idealização nisso. Eu acho que elas nunca
obedeceram viu, eu acho que as que eram mais rebeldes não obedeciam, na época dos
nossos pais, nossos avós, elas simplesmente eram expulsas da escola. E você ia deixando
na escola quem obedecia. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

O professor Pedro questiona a própria ideia de que o professor deve ter autoridade.
Associa autoridade a um certo poder um tanto quanto opressivo, de que “o professor pode fazer
o que quiser”. A dubiedade da palavra autoridade lhe incomoda. Ao final, o professor relaciona
diretamente a palavra autoridade a autoritário. Prefere usar respeito e respeitar.

Eu acho que ainda bem porque todo tipo de autoridade é perigosa. Essa frase de
autoridade para mim ela pressupõe a pessoa que pensa que o professor poderia ter
autoridade, para mim uma autoridade de poder fazer o que quiser. Em termos de
indisciplina, em termos de punição. Eu acho que a palavra autoridade ela é uma palavra
que tem significados muito dúbios. Não sei se caberia esta palavra para você falar em
sala de aula. É uma afirmação perigosa porque para muitos professores a autoridade
estaria no poder de reprovar o aluno, para muitos professores a autoridade estaria no
poder de mandar o aluno calar a boca e ele ter que ficar quieto. Autoridade de você tirar
o aluno da sala, eu quero que suspenda este aluno. Nenhuma dessas situações que eu
coloquei acontecem mais, mas a palavra autoridade eu acho que ela é diferente que a
palavra respeito. São ideias que as pessoas às vezes confundem. Eu acredito que... na
verdade eu nunca achei que eu tivesse autoridade em sala de aula, eu sempre tentei ser
respeitado e respeitar. Quando você fala o professor é uma autoridade em sala de aula,
mas qual objetivo de ele ser uma autoridade, ele vai fazer o que com essa autoridade? O
que ele quer fazer? Ele vai melhorar o processo pedagógico sendo autoritário. Eu acho
difícil, eu acho muito difícil. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).
94

Um aspecto interessante a se pensar se dá quando o professor Pedro diz que “todo tipo de
autoridade é perigosa”. Pode-se refletir se não seria adequado pensar a autoridade do saber
docente, naquilo que o professor se aprofundou em seus estudos como a Língua Portuguesa ou
Língua Inglesa, que são suas áreas do saber. Ao estabelecer estritamente a marca da autoridade
associada a um poder necessariamente “sádico” do professor, consideramos que se revela na fala
do professor Pedro, um espaço escolar o qual ainda há uma série de experiências de autoridade
pouco esclarecidas.43
A professora Ana aponta o papel da escola e da gestão no suporte ao professor para
sustentar seu trabalho de autoridade. Nas escolas em que há este suporte é possível ocupar um
lugar de autoridade em sala de aula. Do contrário, o professor fica sozinho nesse papel diante
de situações e contextos maiores que ele. A professora procura trabalhar em escolas em que, na
visão dela, oferecem esse suporte aos professores, e diz que nem todas fazem isso.

Eu avalio que ela é real em partes. Eu acho que educação é uma coisa muita grande.
Eu acho que em alguns momentos sim o professor não tem autoridade. Quando você
fala e eu penso nisso eu acho que é uma autoridade relacionada principalmente com
o aluno. E aí o que eu tentei fazer, eu tentei ir para uma escola que eu sabia que eu ia
conseguir trabalhar minimamente, que eu ia ter algum suporte, mas eu sei que tem
lugares por aí que o professor não tem mais autoridade. Ele não consegue desenvolver
o método de trabalho. Porque os alunos não querem, a direção não ajuda. Eu acho que
já passei por isso em outras escolas, hoje eu acho que não. Eu consigo fazer o meu
trabalho, mesmo que seja estressante por causa do ambiente que eu trabalho. Eu acho
que não dá para colocar todas as escolas num balaio só, eu acho que dá para separar.
Mas são poucas, eu acho que tive sorte de estar em duas escolas que são relativamente
boas na minha concepção. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

O professor Luiz resgata as dimensões internas dessa autoridade, como identificar seus
próprios limites e produzir um autoconhecimento mais profundo sobre si, ao mesmo tempo em
que reflete a relação da autoridade com práticas de violência pelo professor em momentos da
história da educação. Diz que esta autoridade tem que ser construída com os estudantes de modo
dialógico e cita a experiência de estabelecer contratos pedagógicos com os estudantes, de modo
a estabelecer as regras coletivamente.

Eu acho que assim, eu pensei muito nisso depois de um incidente que eu tive esse ano
aqui. Eu acho que a autoridade que eu tenho que ter antes de qualquer outra coisa é sobre

43
Não podemos desconsiderar o quanto o aspecto histórico da relação liberdade, autoridade e autoritarismo no Brasil
(SCHWARCS, 2019) atravessam a sociedade brasileira como uma grande questão. Como a escola não está a parte
da sociedade, ela reflete para além de suas mediações particulares as dimensões sociais e históricas profundas. Paulo
Freire, um dos mais importantes e conhecidos educadores brasileiro, coloca que: “Noutro momento deste texto me
referi ao fato de não termos ainda resolvido o problema da tensão entre a autoridade e a liberdade. Inclinados a superar
a tradição autoritária, tão presente entre nós resvalamos para formas licenciosas de comportamento e descobrimos
autoritarismo onde só houve o exercício legítimo da autoridade (...) O grande problema que se coloca ao educador
ou à educadora de opção democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade do limite seja
assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais criticamente a liberdade assuma o limite necessário tanto mais
autoridade tem ela, eticamente falando, para continuar lutando em seu nome.” (FREIRE, 1996, p. 117-8).
95

mim mesmo, sobre minhas faculdades até onde foi possível. Para eu me conhecer, para
estar nesta busca para me conhecer, conhecer meus limites, que não é uma coisa tranquila.
Mas quando se diz que o professor não tem mais autoridade, muitas vezes eu vinculo isso
a um modelo mais arcaico de educação que inclusive eu fui formado. Eu estudei nos anos
80 e 90, onde parecia que a palavra do professor era lei ou às vezes o professor parecia
um “Monarca do Absolutismo”. E você está numa turma que às vezes as pessoas, os
estudantes, alguns deles pelo menos enxergam você dessa forma. Até pode parecer que
facilite seu trabalho, mas eu não acho isso hoje uma coisa legal. O que eu penso que é
legal é você tentar construir uma relação de empatia, de respeito e eu tive problemas em
relação a isso. Até por conta de uma outra formação minha também, ou processo de
formação das artes marciais; tem algumas coisas em sala de aula que eu não consigo
deixar passar ainda. Ele [estudante] não é uma folha em branco, ele tem uma bagagem
cultural, tem um capital social. Eu não sei como colocar isso de uma forma um pouco
mais objetiva. Tem alguns colegas que utilizam uns termos como contratos, firmar alguns
contratos com os alunos. Uns acordos, olha eu sou assim, meu estilo de aula é esse, meus
trabalhos são dessa forma, o que vocês acham, o que vocês pensam a respeito disso.
Basicamente isso. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

A professora Luana avalia que o professor de antigamente era mais respeitado pelos
estudantes, e que a própria lógica deste respeito se dava pela exclusão, visto que hoje “manda
para a diretoria, aí volta para a sala de aula”. A perda da autoridade, para a professora Luana,
está relacionada a você ter que “sempre incluir aquele aluno” que é indisciplinado, que não
participa da aula. A professora lamenta e expõe uma certa impotência de como lidar com estas
situações que sentem serem maiores do que ela. Num certo sentido, revela a importância da
escola, da gestão no trabalho de fortalecimento da autoridade do professor.

Eu penso que o professor era mais respeitado pelos alunos. Hoje não é muito mais. E
não tem muito o que se fazer, este negócio de se mandar para diretoria aí volta para a
sala de aula. Professor não é mais igual antigamente, esse negócio da autoridade. Aí
vai para fora, não vai assistir minha aula. Porque você tem que sempre incluir aquele
aluno, é tipo isso. Você tem que fazer acontecer para aquele aluno não fazer este tipo
de coisa, para aquele aluno participar da sua aula e fazer que aquilo aconteça. A gente
não tem muito o que fazer. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

A professora Denise, que é categoria V, eventual, diz que é preciso ter pulso firme, que
as dificuldades existem, mas que o professor tem que encontrar formas de trabalhar.
Normalmente, os professores eventuais, por não terem uma turma definida e entrarem em sala
de aula quando algum professor falta, enfrentam dificuldades maiores em seu trabalho.

... se a gente não tiver pulso firme eles não deixam o professor falar mesmo. Então a
nossa falta de autonomia é essa. Mas tem que saber lidar com eles. Tem que saber
colocar a sala para prestar atenção na nossa aula. E a gente tem que fazer o nosso
trabalho, embora haja dificuldade por causa do comportamento deles hoje em dia sim.
O ensino médio também, tem também algumas dificuldades de eles não pararem na
sala, mas a gente tem que lecionar. A gente precisa da nota deles depois. Eu no meu
caso sou eventual, mas o professor normal presente precisa da nota e dar o conteúdo
para eles aprenderem. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).

O professor Fernando é bastante crítico à ideia de uma autoridade, em especial de como


ela se apresenta nas regiões periféricas de São Paulo e em um país com o legado da escravidão.
96

Ele acredita que os próprios professores acabam sendo contaminados pela perspectiva cultural
e histórica da autoridade como distorção e que, na atualidade, o estudante não está mais
aceitando essa perspectiva de autoridade, que ele associa diretamente ao elemento autoritário.
Isso não significa que o professor não discuta dimensões do trato dos limites éticos, morais,
sociais que estão colocados no trabalho educacional e na relação com os estudantes.

A autoridade na verdade ela é legitimação e a nomeação do cargo para poder ser


autoritário. É só isso. A autoridade ela só tem o aval do Estado para poder ser
autoritário. São os micros ditadores que foram criados através dessas carteiradas.
“Você sabe com quem você está falando?” Você vê os classe média fazendo isso
direto nos videozinhos. “Eu sou engenheiro, você fala direito comigo!” “Eu sou muito
mais que você policial.” Então são várias autoridades com poder de ser mini
autoritários, mini-ditadores nos seus focos de controles sociais. Essas lógicas
funcionam de maneira muito sofisticada dentro do Estado. E o professor sente falta
disso, sente falta de dar uma carteirada no McDonalds. Ele sente falta... e desculpa,
isso vai contra a educação. Principalmente contra a forma de educação que eu vejo
que é de libertação, é contrário. Mas aí fala pô, a gente tem que trabalhar limites. Eu
falei sim e vai ser fácil eles entenderem que o ser humano não tem asa e não voa. Que
nossos limites físicos estão aí. Nossos limites físicos e nossos limites sociais, nossos
limites éticos, nossos limites morais, e que tudo isso não tem que ser tratado dentro
da questão de autoridade. Que a autoridade é a coisa mais imoral que existe numa
sociedade que teve escravidão até ontem. É imoral, deveria ser crime. Você trabalhar
autoridade dentro de um lugar que ainda não virou a página da escravidão. Então é a
forma que eu enxergo esse lance. Por isso quando eu falo de autoritarismo e de
autoridade às vezes eu acabo misturando estas duas falas por conta desse significado
que eu dou para autoridade. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A professora Vera relaciona a falta de autoridade diretamente à falta de autonomia,


resultado das políticas de controle do professor, apostilas, Centro de Mídias, bônus e abonos
atrelados ao salário, formas organizacionais de controle que fazem o professor inclusive
internalizar esses modos de repressão.

Essa avaliação, não tem é péssimo. Você é um fantoche na mão deles. Puro fantoche,
você é comandado. Dá a impressão que tem alguém dentro de você falando por você.
Não tem muito para dizer, eu acho que você tem que perceber que nós somos bonecos.
Você tem uma apostila, você tem que estudar aquilo e ministrar aquilo. E não é mais
apostila, agora é o Centro de Mídias. Você tem que estudar aquelas aulinhas horríveis,
com pouco conteúdo que deixam o aluno, vamos se dizer assim, alienado. E aquilo
que você tem que passar. E se você não passar aquele conteúdo você está errando. E
se alguém escutar alguma coisa que está fora daquele conteúdo você vai ser punido.
Eu fui dentro da escola pública do Estado. Eu não recebi o abono. Sabe aquele bônus?
Eu não recebi. Saiu agora o pessoal recebeu agora, o meu é zerado. Foi a punição que
eu recebi. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

Nesse tópico, em especial, relacionado ao mal-estar e à autoridade, realizamos a análise


de trechos dos oito professores entrevistados, visto ser uma temática bastante importante no meio
educacional, ao mesmo tempo em que, dadas as diferentes formas que esses professores encaram
o tema, diz respeito também às suas identidades, ou seja, suas concepções de autoridade dizem
diretamente sobre suas perspectivas políticas e educacionais, de formação tanto genérica quanto
97

de sua constituição psíquica. Os fatores levantados pelos professores são diversos e avaliamos
que estão conectados em camadas da realidade educacional, algumas mais diretas, outras mais
profundas, relacionais, dialéticas, ligadas à estrutura da sociedade e da educação.
Em primeiro lugar, há de se destacar que, na maioria dos professores, a reflexão sobre
a temática levou em conta vários elementos para caracterizar em sua posição o que é de fato o
papel intelectual do professor na construção de uma autoridade esclarecida, não violenta, tal
como Adorno (2006b) apresenta. Violência que foi tratada por vários deles no sentido de não
repetir uma educação com traços autoritários, inclusive de violência física.

(...) a dissolução de qualquer tipo de autoridade não esclarecida, principalmente na


primeira infância, constitui um dos pressupostos mais importantes para uma
desbarbarização. (...) Determinadas manifestações de autoridade, que assumem um
outro significado, na medida em que já não são cegas, não se originam do princípio
da violência, mas são conscientes, e, sobretudo, que tenham um momento de
transparência inclusive para a própria criança. (ADORNO, 2006b, p. 167).

É possível, portanto, através dos relatos dos professores e das considerações de Adorno,
pensar que a autoridade, para se realizar, deve efetivar um lugar autônomo do professor, sua
própria singularidade. Assim, políticas de controle, administrativas, tendem a enfraquecer essa
autoridade, como nos coloca a professora Vera.
Outro aspecto interessante é justamente pensar o papel da escola na sustentação dessa
autoridade. Uma escola que consegue constituir um corpo docente que trabalha e pensa em
conjunto, uma gestão que se oferece como suporte do trabalho pedagógico, e não somente do
burocrático, são questões igualmente levantadas pelos professores, mostrando que a autoridade
do professor é construída não somente individualmente, mas coletivamente, num contexto em
que se reforça.
Uma certa sensação de impotência do professor quando pensa sua autoridade, também
se apresenta em algumas entrevistas. Acreditamos que, relacionadas às condições objetivas e
tudo que envolve este professor em sala de aula em questões imediatas do próprio trabalho e da
vida social, acaba por acarretar grandes dificuldades para o professor. Diante deste contexto,
mobilizado de forma intensa em seu desamparo, o professor pode buscar saídas pedagógicas
excludentes e/ou autoritárias para dar conta de seu mal-estar.
Se, como nos lembra Freud, “um procedimento do educador não pode ser bom para
todas as crianças” (2010b), em um contexto de precarização do trabalho, de salas de aulas cheias
e extensas jornadas de trabalho, estamos diante de um difícil equilíbrio para a construção de
uma autoridade esclarecida. Conforme Adorno (2006d, p. 36):
98

(...) a ideologia dominante hoje em dia define que, quanto mais as pessoas estiverem
submetidas a contextos objetivos em relação aos quais são impotentes, ou acreditam
ser impotentes, tanto mais elas tornarão subjetiva esta impotência. Conforme o ditado
de que tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende
das condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem
intocadas. Na linguagem da filosofia poderíamos dizer que na estranheza do povo em
relação à democracia se reflete a alienação da sociedade em relação a si mesmo.

Como fica a formação desse professor diante de tantas questões subjetivas e objetivas
que lhe atravessam? Este será nosso desafio de reflexão e análise para concluir este capítulo.

3.4. Mal-estar e formação

Foi ruim mesmo, eu digo mesmo que foi


traumatizante, eu tinha os alunos da faixa etária do
ensino médio aí eu comentava com meu marido:
“ai meu Deus! É ensino médio, nossa!”

Professora Luana

Diante de tantos aspectos psíquicos, culturais e sociais que vimos até aqui, em especial
relacionados ao mal-estar do ofício do professor sob a herança arcaica, a transferência e a
autoridade, analisaremos neste tópico o tema da relação dos professores com sua formação.
Freud (2010b) indica como possibilidade no percurso da formação do professor a
passagem por um processo analítico.

O melhor seria que ele mesmo fosse analisado, pois, afinal, não se pode assimilar a
psicanálise sem experimentá-la na própria pessoa. A análise dos professores e
pedagogos parece ser uma medida profilática mais eficaz do que a das crianças mesmas,
e também há dificuldades menores para a sua realização. (FREUD, 2010b, p. 312).

O modo de pensar e de efetivar a formação é resultado da constatação de um sujeito que


se forma a partir de experiências muito iniciais de vida, de uma perspectiva da ontogênese, do
ser em sua relação com a sexualidade infantil, e da filogênese, a herança geracional e
civilizatória da formação deste indivíduo.
Freud, quando aborda a formação do professor, não define um conjunto de cursos
adequados socialmente – no que pesem os estudos teóricos serem importantes. Ele discute a
relação do indivíduo com sua formação pessoal e profunda. Aproxima a formação do professor
ao do psicanalista pela condição do impossível destas profissões.
Ao propor fazer um processo analítico, Freud confia que o professor produzirá um saber
sobre si que lhe será fundamental. Este é um passo da formação que diz respeito à singularidade
do professor, às marcas da formação do seu inconsciente. Ao propor a análise para o professor,
Freud (2018) considera que, mesmo com as particularidades de cada ofício, o magistério
99

demanda, como o analista, um percurso formativo singular e profundo. Quando trata do


psicanalista, diz que “essa técnica ainda não pode ser aprendida em livros, e certamente pode ser
obtida apenas com grandes sacrifícios de tempo, esforço e resultados.” (FREUD, 2013b, p. 332).
É com esta importância que Freud trata a formação do professor de escola básica. Esse
é um primeiro aspecto a se considerar: há uma formação que não está relacionada diretamente
a quantidades de cursos que se faz. Ao tratar o educar como profissão impossível, relacionamo-
lo à dimensão profunda do não-saber, das indeterminações do trabalho docente, da
incompletude. É o que Freud traz do mal-estar e do desamparo como matérias primas desse
trabalho. Nesse sentido, Adorno se aproxima de Freud na medida em que “a formação nada
mais é que a cultura tomada pelo lado de sua apropriação subjetiva.” (ADORNO, 2010, p. 09).
Até aqui, é possível compreender uma primeira camada das contradições a respeito da
formação dos professores. Daquele mal-estar como traço civilizatório que é produzido como
inerente ao ofício docente. O contexto da experiência do professor muitas vezes se dá por um
“choque de realidade” que parece ser uma marca comum quando se discute a relação de
formação e trabalho docente.
Quando perguntada sobre sua formação, a professora Denise diz que aprendeu mais por
meio da experiência em sala de aula do que na universidade. Ela evidencia que o trabalho do
professor mobiliza um saber de si muito além de qualquer curso universitário.

Não muito, já neste ponto aí foi mais no tête-à-tête do dia a dia. Foi a prática que me
trouxe mais ganho de experiência. Não foi tanto os estudos da faculdade. A faculdade
me deu mais a teoria. Geografia tem muitos historiadores, muitos geógrafos que eu
estudei. Isso foi muito importante para minha bagagem no ensinar no que é a Geografia.
Agora a bagagem de você lidar com uma sala de aula. De você ter o domínio ali da sala.
Isso foi mais a prática. Teve um pouco nos estudos da faculdade, lógico a disciplina de
didática, de metodologia ajuda, mas nada como a prática. Teoria é um pouco, prática é
outro. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).

Já a professora Ana diz que nunca a formação universitária será suficiente para se tornar
professora. Assim, ela se aproxima da questão do mal-estar do ofício docente, visto que, de
fato, sob a perspectiva freudiana, algo sempre faltará. Foi na experiência do dia a dia que a
professora foi se constituindo como professora. No entanto, ela aponta para além do
aprendizado a dimensão da intensidade do mal-estar, do “choque de realidade” que trata das
condições objetivas de trabalho.

Eu acho que nunca é, né... a faculdade você tem uma ideia de escola e quando você
chega na escola é outra coisa. Principalmente nessa questão pedagógica, da didática
em si. Nenhuma faculdade prepara bem. Você vai aprendendo ali no dia a dia. Porque
é totalmente diferente que... sei lá. estes teóricos falam muitas coisas que na prática é
complicado, você tem que lidar com 40 alunos, uma parte dos alunos não sabe ler,
100

outra parte não... você tem alunos de inclusão. Na faculdade não falaram isso.
(Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

O professor João amplia um pouco esta dimensão da experiência trabalhando o seu


próprio percurso como professor. Conforme ele, as experiências lhe produziram um saber,
inclusive de seus limites, da perspectiva que se abre pelo não-saber do ofício docente. Ele toca
na impossibilidade do controle das variadas situações que o professor tem que lidar.

Eu acho que depende viu. Agora no alto dos meus 10 para 15 anos do magistério às vezes
eu olho para minha prática lá no começo, primeiro, segundo ano e até não muito distante
e sabe o que eu vejo: às vezes nós professores queremos resolver uma situação de uma
maneira que a gente acaba intensificando o conflito. Não que nós sejamos responsáveis
pelo aluno xingar a gente. Não é exatamente isso que quero dizer. Só que às vezes a gente
naquela ânsia de controlar a sala de aula, de passar o conteúdo, de dar a sua aula você
tenta resolver rápido um conflito e às vezes o máximo que dá para você fazer em algumas
situações é simplesmente segurar a situação até tocar o sinal. Até acabar aquele ano
letivo, até aquele aluno ir para o ensino médio e você não vai mais vê-lo. Hoje em dia eu
sinto das gestões das escolas que estou das estaduais também, é que tem respaldo dentro
do que eles conseguem fazer é claro, alguns colegas meus reclamam que não tem muito
respaldo, mas às vezes eu tenho essa impressão, eu vou colocar essa opinião mais como
uma dúvida. Tem colegas professores com uma certa frequência se veem em situações
de conflito e você tenta observar um pouco a prática daqueles colegas e você percebe que
um pouco daqueles conflitos ele acaba gerando também, a maneira que ele se posiciona.
A maneira que ele tenta resolver alguma coisa. Hoje em dia o que percebo das minhas
aulas, os conflitos, claro que eles existem, é claro que tem situações que fogem a meu
controle, mas eu acho que consegui diminuir muito os conflitos em sala de aula, às vezes
que eu tenho um conflito ou outro nos últimos dois, três anos eu tenho sentido um certo
respaldo da direção. Mas eu entendo hoje que é um pouco da experiência, você vai
ficando mais maduro ou mais conservador sei lá, e você entende que a gestão também
tem limites. Qual respaldo que uma gestão vai dar? O aluno vai e xinga você, a gestão
vai lá dá aquela bronca no aluno, fica ali importunando a família para ver se a família dá
jeito nessa criança. Só que nós temos um conjunto de legislação que para que você
consiga fazer alguma coisa te dá um trabalho tão grande que essa burocracia vai te
sufocando. Eu não acho que a saída seja ficar punindo esses alunos, embora eu recorra a
isso com frequência. Eu acho que deveria ter espaços para poder conversar com esses
alunos, mas aí volta o começo da conversa, não tem. Às vezes a gestão dá respaldo, às
vezes não tem como dar respaldo. Às vezes a gestão é omissa. Eu acho que tenho dado
um pouco de sorte. Até um certo ponto a gestão da escola que estou, tenta trabalhar a
situação. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

Muitas vezes parece haver um “choque de realidade” do professor ao sair da


universidade e ingressar em seu ofício na escola. Este choque mobiliza, de forma combinada,
o vir-a-ser da experiência e, ao mesmo tempo, processos adaptativos para lidar com o mal-estar.
Um aspecto importante, caso consideremos as premissas de Freud, são as identidades do
professor de escola básica e do professor universitário. A formação do professor de escola básica
se dá, também, pela identificação com a autoridade do professor da universidade. Todavia, a
realidade da escola básica é distinta da universidade, o que acentua a sensação de que na “faculdade
não falaram isso”. Mais do que não falar, as aulas na universidade não vivenciam o conjunto de
experiências e contradições que há na escola básica. Se a identificação não se descola do professor
101

universitário, o licenciando vai partir do mesmo ideal do Eu para ingressar em sua experiência na
escola básica. Estamos diante de uma segunda camada da formação docente.
Talvez seja por isso comum os professores de educação básica gostarem de dar aula para
estudantes da EJA, Educação de Jovens e Adultos. Com estudantes adultos, mesmo na educação
básica, seu ideal do Eu se aproxima dos ideais dos professores na universidade e daquelas
experiências de formação. A professora Denise nos revela que dar aula na EJA é mais tranquilo.

Quais são na sua avaliação as maiores dificuldades no seu trabalho?


Um pouco o comportamento dos alunos. Às vezes eles estão agitados, as turmas do
noturno a gente pensa que é um pouquinho quieta, mas às vezes não é, principalmente
o regular. Onde eu trabalho tem bastante EJA. O EJA é mais tranquilo. Seria mais o
comportamento um pouco deles.
Se acha que o fato de ser professora eventual torna mais difícil o seu trabalho
com os alunos?
Na EJA não, mas no regular um pouco mais. Às vezes quando eles veem que é uma
professora eventual eles querem conversar mais, pensam que a aula é um pouco mais
leve. No regular eu percebo um pouco isso. Na EJA não, é mais tranquilo. (Professora
Denise, categoria V, três anos de magistério).

São características do professor de escola básica mediar o seu saber pedagogicamente


para indivíduos ainda em constituição e desenvolvimento. O que exige lidar com situações
disciplinares e que dizem de um modo de conceber o conhecimento. É o que nos traz Adorno
(2006a) sobre a experiência na Alemanha, que nos serve de referencial.

É digno de nota que os professores que gozam do maior prestígio na Alemanha, ou


seja, justamente os acadêmicos universitários, na prática muito raramente
desempenham funções disciplinares, e, ao menos de modo ideal e para a opinião
pública, são pesquisadores produtivos que não se fixam no plano pedagógico
aparentemente ilusório e secundário de acordo com a exposição anterior. O problema
da inverdade imanente da pedagogia estaria em que o objeto do trabalho é adequado
aos seus destinatários, não constituindo um trabalho objetivo motivado objetivamente.
Em vez disso, este seria pedagogizado. Só isto já bastaria para dar às crianças
inconscientemente a impressão de estarem sendo iludidas. Os professores não
reproduzem simplesmente de um modo receptivo algo já estabelecido, mas a sua
função de mediadores, um pouco socialmente suspeita como todas as atividades da
circulação, atrai para si uma parte da aversão geral. (ADORNO, 2006a, p. 104).

Para considerar a experiência é preciso uma relação de um “trabalho artesanal” e


singular que constitui uma memória, tal como evidencia o professor João sobre seu percurso
docente. No entanto, o efeito dessas experiências que se apresentam em “choques”, quando não
situações traumáticas, podem levar o professor a um processo de integração ao existente,
principalmente quando constantes.
A professora Luana conta sua experiência inicial como professora. Normalmente, os
professores na rede estadual de ensino começam como professores eventuais, categoria V. São
aqueles professores que ficam na escola disponíveis para lecionar quando outros professores
faltam. A professora relata que sua experiência inicial no magistério foi traumatizante.
102

Inclusive eu tive ensino médio, minha disciplina Química é ensino médio, mas eu fui pegar
Química agora, este ano, foi a primeira vez que eu peguei Química. Então quando eu
eventuava no ensino médio era muito ruim, eu eventuava em duas escolas. Eu eventuava
em duas escolas de manhã, eu eventuava no ensino médio e a tarde, eu eventuava no
fundamental. O período da manhã era horrível para mim, porque eu me sentia péssima na
sala do ensino médio, muito desvalorizada. Os alunos do ensino médio não querem saber
muito, de 35 alunos, 4 alunos faziam as lições. (...) Era muito ruim, eu saia de lá muito
mal. Foram 2 anos que eventuei nesta escola, porque era minha escola sede, então eles não
aceitavam que eu não lecionava lá. Porque lá tinha muita aula de eventual. Eu trabalhava
bastante, mas era muito ruim, muito, muito... A clientela do ensino médio lá era muita falta
de respeito comigo. Eu tive até uns traumas, eu odiava esta faixa etária. Ai agora que eu
peguei o ensino médio como meus alunos de Química aí é outra coisa. E até melhorou
assim para mim, porque eu tive este trauma do ensino médio, porque eram meus alunos,
porque eventual ensino médio é ruim, mesmo com a parceria que tinha com outros
professores que eu comentei, o ensino médio não funciona muito eventual. (...) Foi ruim
mesmo, eu digo mesmo que foi traumatizante, eu tinha os alunos da faixa etária do ensino
médio aí eu comentava com meu marido: “ai meu Deus é ensino médio, nossa!” Era ruim,
era muito ruim. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

Interessante observar que a posição do professor eventual precariza seu trabalho e sua
própria experiência de mal-estar. A professora Luana destaca que sua situação melhorou, no
relacionamento com os estudantes do ensino médio, quando assumiu aulas – não mais como
professora eventual. Entretanto, teve que lidar com seus recursos psíquicos e de tempo de
magistério com o “choque de realidade” relacionado ao seu trabalho.
Sabemos que um trabalho artesanal, para se realizar, precisa de uma certa relação com o
tempo, o qual, inclusive, permita ao professor enfrentar psiquicamente situações bastante adversas,
que lhe atravessam no mundo interno e externo, que possam ser digeridas, pensadas, refletidas. A
dinâmica social e escolar mediada pela produtividade e pelos resultados produz efeitos na formação,
nas possibilidades de experiências. Colocam em crise a própria possibilidade de experiência.
Adorno (2010) aprofunda a discussão em torno da formação na contemporaneidade. Em
um ensaio intitulado Teoria da semiformação, critica a noção de formação que habitualmente está
relacionada à produtividade. O autor critica também a premissa de que a formação cultural seria
um objeto restrito à pedagogia ou à sociologia bem aplicada aos problemas cotidianos. Adorno
dialoga com uma perspectiva de formação freudiana, profunda, que leve em conta a experiência e
as marcas constitutivas do sujeito. De tal modo, Adorno (2008, p. 152) assevera que:

Por causa de sua autopreservação, os homens encontram-se em larga medida presos em


situações dadas, ao que corresponde o que o psicanalista Nunberg denominou de
“fraqueza do eu”; em seu zelo extremo pela sua adaptação e pronta reação a situações
específicas, os homens são incapazes de efetivar a formação de um eu firme,
perseverante e que não mude de acordo com cada situação específica. De resto, por sua
vez essa “fraqueza do eu” é um fato relacionado com problemas de identificação na
infância, portanto dotado de uma raiz conforme a psicologia profunda, o que porém não
nos interessará por ora. De qualquer modo, é possível dizer que, na sociedade vigente,
para muitas pessoas o eu tornou-se um fardo de tal ordem, e pensar de modo consistente
e consequente pode trazer tantos incômodos, que, conforme o ditado popular, “não se
103

deve pensar bobagens” e que, em certo sentido, é bastante realista não formar o eu tanto
assim e seguir o surrado provérbio berlinense “sou bobo, mas sou feliz”.

Para o filósofo, há onipresença do espírito alienado, o que impregna a formação, que é


denominada pelo autor como “semiformação” ou “pseudoformação” que, dentre outras marcas,
renuncia ao potencial da autodeterminação para ficar preso ao aceito e padronizado culturalmente.
Diante desse contexto do empobrecimento da experiência, quando perguntados sobre a
possibilidade de uma formação em seu local de trabalho os professores são bastante reticentes,
críticos dos espaços formativos na escola. Tais espaços parecem se organizar para responder a
demandas externas ou de controle e burocracia, numa perspectiva de padronização dos
trabalhos. Estamos diante de uma terceira camada de formação docente.
A professora Vera, que trabalha em uma escola estadual de tempo integral (PEI), relata
que a formação não existe ou existe de forma muito precária através do Centro de Mídias –
constituído por programas (sobretudo, videoaulas) centralizados e feitos pela Secretaria da
Educação. Além disso, quando esses espaços têm alguma funcionalidade são para dar broncas
nos professores no sentido de padronizar sua atuação.

Dentro da PEI tem aquela reunião de ATPC e tem o ATPCG. É ATPC geral. Este ATPCG
seria a formação. Só que nós não temos formação. São todas as segundas-feiras a partir
das 14h da tarde. Isso para quem faz o horário das 7h às 16h30. Então às 14h da tarde vem
a direção e eles chamam um professor de fora, um professor que tem mestrado, doutorado
para dar formação. Isso não existe, isso é conversa. Isso é lábia... Rossieli, Dória, etc.,
mentira! Por quê? Porque é só bronca, você fez isso, você fez aquilo. E ela expõe, a
direção, expõe o que fez de errado na frente de todos os professores. Eu fiquei tão mal por
isso que eu tomei remédio. Eu fui ao psiquiatra mesmo. Eu fiquei tão mal porque era o
centro do problema dentro da escola porque eu sou professora de Filosofia. Agora você
pode falar assim não era você, você que está achando isso. Não, impossível. Impossível
porque eu fazia o melhor possível, eu conheço minhas aulas. Se eu passar para você meia
dúzia de alunos meus, eles só vão falar: poxa, aquela professora é demais. Meu ela fala
mesmo a real, o que está acontecendo no planeta, fala do filósofo, descasca o filósofo para
gente. É impressionante. Eu faço isso porque eu estudo. Eu deixei de estudar para mim,
mas eu estudo para o meu aluno, isso eu faço. Isso eu faço mesmo porque eu gosto. Só
que a gestão é horrorosa. Então no espaço que você tem para ir fazer um estudo, para você
melhorar você, ele destrói você. Então essas reuniões elas são para destruir você. E poucas
formações que nós tivemos eram coisas que não há necessidade de ter. Não há, é água com
o açúcar, coisa que você sabe na prática. Não precisa ninguém falar, não precisa. Então
assim eu me senti perseguida nessas reuniões de formação. Não teve formação. A
formação que a gente tinha para não dizer que não tinha nada é o Centro de Mídias. Ah se
quer fazer uma formação vai lá no dia tal e no dia tal que vai ter uma live de um professor
que você nem conhece. Pronto, a gente vai assistir aquela formação que era sempre a
mesma coisa. Eu tenho várias formações anotadas que conforme eles iam falando eu
anotando. Se você for comparar tudo igual. Todas as mesmas falas. Não adianta mudar o
verbo, muda o verbo, mas o contexto é o mesmo. Então não acho que aquilo foi formação
é o que eu penso. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

Nos parece que determinadas práticas de exposição pública dos professores,


combinadas a diretrizes externas centralizadas através do Centro de Mídias, produzem um
modo padronizado de formação e podem favorecer um ambiente persecutório não só da
104

perspectiva das gestões com relação aos professores, mas também de sociabilidades que
tornam-se persecutórias entre os próprios professores, nos quais as diferenças de identidade
docente que marcam cada professor sejam vistas como um problema, numa tentativa de
regulamentar de modo fechado a maneira como o conflito deve se estabelecer na escola44. Além
disso, convoca nos indivíduos dimensões muitas vezes (auto)destrutivas que não encontram
vazão e/ou mediação na própria realização do trabalho.
O professor João diz que, na rede estadual, em comparação à rede municipal, esses
espaços de formação são mais precários porque menores e divididos entre áreas para tornar a
discussão mais especializada. Com mais reuniões na semana, o coordenador pedagógico não
dá conta de fazer e planejar os encontros, que acabam determinados pelas necessidades
imediatas como preencher diários e planejar aulas. Ainda, muitas vezes os espaços de formação
servem para o professor descansar de uma jornada exaustiva. Esses espaços tornam-se, pelas
necessidades externas e a jornada de trabalho, lugares poucos reflexivos.

Eu vou falar do Estado que é o foco da sua pesquisa. O da prefeitura depois de você dar
10, 12 aulas a verdade é que ninguém tem paciência para pensar sobre questões
pedagógicas. O pessoal quer sentar um pouco e descansar duas aulinhas até poder ir
embora. No Estado a situação é mais precária porque os espaços de reuniões
pedagógicas são menores. O governo ele fez uma reforma recente. Esta reforma saiu em
dezembro de 2018 e nesta reforma ao mesmo tempo que ele diminuiu o tempo de aula
de 50 minutos para 45 minutos no ensino fundamental e no ensino médio durante o dia
ele aumentou as horas de ATPC, as reuniões pedagógicas. Eu por exemplo eu tinha duas
reuniões de 50 minutos. Agora eu tenho 3 reuniões de 45 minutos. E as aulas caíram de
50 para 45. Tem professores com jornada de 20 aulas, porque eu tenho só 12 aulas, é
proporcional a jornada que você tem. Eu não vou lembrar todas de cabeça, depois eu
posso até tentar achar a tabela e te mando. Tem uma tabela para isso. Quem tem 20
aulas, no caso de alguns colegas meus, eles têm que fazer 5 ATPCs por semana. E com
a nova regra, o que eu até entendo, você não pode fazer picado em cada dia. Separaram
por áreas, na terça feira são ATPCs de humanas, na quarta feira os ATPCs de
linguagens, e quinta feira são os de ciências da natureza e matemática. Eu não posso
fazer ATPC em outro dia que não seja na terça feira. A ideia do governo é concentrar
por áreas para tentar fazer uma discussão mais especializada, mais focada. As reuniões
têm sido melhores? Na prática não, o resultado é muito parecido com os ATPCs antigos.
Os professores correm pra usar este tempo para preencher diário, para preparar

44
Apesar de estarmos analisando a dinâmica de trabalho dos professores no setor público, aos quais o capital não
age de modo direto, produtivo, do ponto de vista de sua valorização, como no caso do setor privado, mas, do ponto
de vista indireto, “improdutivo” (MARX, 2004b), a lógica da racionalidade do capital atravessa de modo
específico todos os espaços sociais (LAVAL, 2019). Como aponta Ab´Saber (2016) em um paciente, pelo qual, a
simples diferença produzida pela mudança do filtro de ar no ar-condicionado para melhor respirar no trabalho, era
vista pelos colegas como forma de se distinguir, de querer aparecer. “O episódio do filtro de ar, para poder respirar
um ar um pouco melhor, que lhe desse a própria vida, que confronta os fantasmas persecutórios totalitários do
grupo onde se trabalha é altamente significativo da ordem radical da alienação contemporânea: a diferenciação
necessária, ligada à natureza do próprio self, corre o risco de ser punida por significar, imediatamente, um
excedente de valor, uma apropriação da riqueza do todo do grupo, que só faz se apropriar financeiramente da
riqueza socialmente construída. Constituir-se numa esfera de mínima identidade particular, uma qualidade, diria
meu paciente, é, de certo modo confrontar diretamente na natureza do todo, que reage em bloco com ansiedades
paranoides básicas. O sujeito precisa ter uma densidade egóica suficiente e reconhecer minimamente o valor vivo
do que não é valor de troca e fetiche para poder sair desta arapuca, pagando o preço e reconhecendo a angústia
produzida no campo do todo, na má mãe cultura, que é a nossa.” (AB´SABER, 2016, p. 21,22).
105

atividades. Os coordenadores como agora eles têm mais dias para fazer reuniões e as
demandas administrativas aumentaram por causa deste trabalho online, remoto etc., eles
não conseguem dar as reuniões. Então se tem um espaço que é pequeno que não daria
para fazer uma boa reunião pedagógica, mesmo assim ela não acontece na prática.
Voltando à sua pergunta: tem espaço? Tem! É suficiente? Não. As reuniões acontecem
como deveriam? Também não. O que explica um pouco os problemas. Você não tem
aespaço adequado para discussão. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

O professor Pedro diz que os espaços de formação na escola são para agradar à SEDUC
e não trazem as situações relacionadas à escola. Desconsideram, portanto, a realidade objetiva
do excesso de estudantes em sala de aula e as dificuldades do professor em seu dia a dia.

Eu me formei há quanto tempo... No meu tempo foi assim, eu acredito que hoje
também, os cursos de licenciatura não preparam professor para a sala de aula mesmo.
Nós temos formações oferecidas pelo governo do Estado, mas não acho eficaz, porque
são formações elaboradas por pessoas que primeiro estão fora da sala de aula. E
segundo esta formação tem que na verdade agradar a Seduc. Tem que agradar órgãos
distantes da sala de aula. Eu acho que a formação docente de um modo geral, e as
formações são ineficazes, na medida que elas desconsideram realmente a condição da
sala de aula: 30, 35, 37 alunos, alunos oriundos de lares problemáticos, alunos já com
problema de depressão. A gente deveria ter formações que explicassem realmente
uma maneira nova de se ensinar. E não ficar com um discurso somente teórico que
funcionaria com uma sala com 12, 15, 17 alunos. O distanciamento de quem elabora
estas formações para a sala de aula é muito grande, por isso que eu considero que elas
sejam ineficazes. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Um dado muito comum das entrevistas é o relato de uma certa cisão dos que produzem
ou coordenam a formação daqueles que estão na sala de aula. Isto reflete uma visão que os
professores têm da universidade e daqueles que se afastam do trabalho na sala de aula.
Consideramos que esta visão é resultado do efeito da padronização da formação combinada à
precarização do trabalho docente.
O tempo de formação é afetado pela jornada de trabalho e pelo recorte organizativo das
reuniões que servem a demandas externas, a preencher burocracia, broncas etc. Isso certamente
tem um efeito na maneira como o professor se vê, destituído de uma dimensão intelectual,
reflexiva e, também, apontando para aqueles formadores que, além de não darem repostas para
o intenso mal-estar com o qual o professor tem que conviver, aparecem como os que estão no
lugar do saber, como se expropriassem o próprio saber do professor de escola básica. Há, então,
um lugar do intelectual externo e daquele que está sob o trabalho manual. É nesta divisão de
trabalho que os professores se colocam nas entrevistas. Eles estão com “a mão na massa”, ao
contrário dos que estão fora, nas teorias.
Isto pode produzir um certo ressentimento do professor com relação à formação,
heterônoma, daqueles que se colocam neste lugar do saber. A Universidade, o Centro de Mídias,
os coordenadores acabam entrando todos, indiscriminadamente, nesse lugar. Das condições
objetivas de cisão do trabalho do professor em sua dimensão intelectual e manual se expressa
106

uma forma subjetiva de cisão daqueles que estão dentro e fora da sala de aula. É como nos
coloca o professor Fernando.

(...) Porque é raro o coordenador pedagógico que está preocupado com pedagogia, ele
está preocupado com burocracia. Entrega disso, entrega daquilo, um pouquinho mais de
salário, 300 paus. Um carguinho, não entro em sala, não lido mais com aluno
maloqueiro. É isso que eles estão preocupados. Para você ter uma noção a coordenadora
do ano passado que foi coordenadora pela primeira vez agora ela vai se tornar pela
primeira vez este ano vice-diretora. Então ela fez um ano de cargo de coordenação e
agora quer ser vice-diretora. Como foi os ATPCs este ano inteiro? Vagos, eu ficava o
dia inteiro na sala, na escola, andando pela escola. Não tinha nenhuma atividade para
ser feita. Ah então não tem atividade, então faz o seguinte, entra para lá no CMSP lá e
assiste online. É online até tinha umas atividades legais que o Estado está dando, está
oferecendo. Só que tinha umas que foi muito viajando, pô professor que foi lá ensinar o
que era RPG. Se fala mano, sério? A gente sabe né... o que a gente não consegue é fazê-
lo com 40 alunos. Faz essa, quebra este galho, como a gente vai fazer esta aventura de
RPG com 40 alunos da favela. A gente vai falar de Delfos, Orgues e dragões, outra
realidade. A Idade Média aqui foi diferente. A gente pode contemplar porque no P.
continua a haver Idade Média, lá ainda não tem esgoto, ainda lá não tem asfalto. Então
assim difícil estes momentos de aprendizado, de formação de fato que fosse relevante
deste povo. Para o professor até é relevante, para mim é até legal porque eu acabo
aprendendo mais. Agora para os estudantes eu não sei como isso é convertido para os
estudantes. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

Esta divisão, daqueles que estão fora da sala de aula e daqueles que estão dentro,
combinada à precarização da formação do professor, produz, muitas vezes, uma aversão ao que
se denomina como trabalho intelectual, seja real ou aparente. O trabalho teórico na educação
acaba por ser mal-visto pelos professores. O efeito disso pode se apresentar através de um certo
anti-intelectualismo resultado das condições objetivas do ofício docente. Para Adorno (2008, p.
136), o anti-intelectualismo se “relaciona, em última análise, com a divisão do trabalho intelectual
e trabalho braçal e com o ressentimento daqueles que são excluídos do trabalho intelectual e do
ócio, mas que, em razão de mecanismos sociais de obnubilação, não se dirige contra as causas e
sim contra os que são os seus beneficiários, pretensos ou reais.”
Por outro lado, Adorno (2010) nos coloca que é próprio da pseudoformação a utilização
de um campo epistemológico que acaba por cindir as condições objetivas em que se estabelece
a formação. O próprio trabalho de pesquisa em educação, sob esta dinâmica, separa as
condições subjetivas das condições objetivas. É o que denúncia o professor Fernando, “a Idade
Média aqui foi diferente”. É nesse contexto, pelo viés da produção científica, que se
constituíram as formulações da Teoria Crítica:

Não é o significado da teoria em geral que é questionado aqui, mas a teoria esboçada
“de cima para baixo” por outros, elaborada sem contato direto com os problemas de
uma ciência empírica particular. (...) Na medida em que o conceito da teoria é
independentizado, como que saindo da essência interna da gnose (Erkenntnis), ou
possuindo uma fundamentação a-histórica, ele se transforma em uma categoria
coisificada (verdingkichte) e, por isso, ideológica. (HORKHEIMER, 1989, p. 33-5).
107

Como se pudéssemos formar um sujeito que não vive diante das próprias pressões
imediatas de sobrevivência, inclusive gestores e coordenadores, que lhes fazem recorrer às
categorias fixas de entendimento para dar respostas ao próprio ritual de funcionamento da
máquina educacional. Há toda uma formação que se constitui através destas cisões, destas
separações que se dão no campo da realidade social e seus conflitos e no campo epistemológico.
É assim que Adorno (2010) ironiza os professores e intelectuais que viveram na época
do nazismo, pois o fato de terem acesso a uma formação erudita não lhes privou de servirem ao
nacional-socialismo. Tal dissociação torna-se uma marca da pseudoformação.

Max Frisch observou que havia pessoas que se dedicavam, com paixão e compreensão,
aos chamados bens culturais, e, no entanto, puderam encarregar-se tranquilamente da
práxis assassina do nacional-socialismo. Tal fato não apenas indica uma consciência
progressivamente dissociada, mas sobretudo dá um desmentido, objetivo ao conteúdo
daqueles bens culturais – a humanidade e tudo o que lhe for inerente – enquanto sejam
apenas bens, com sentido isolado, dissociado da implantação das coisas humanas. A
formação que se esquece disso, que descansa em si mesma e se absolutiza, acaba por
converter-se em semiformação. (ADORNO, 2010, p. 10).

O professor Fernando reflete sobre a dissociação da formação na universidade em


relação à realidade onde vive. Discute que a formação acadêmica contribui para sua educação
em geral, mas questiona o quanto ela ajudou nos aspectos particulares do seu ofício como
professor, no sentido de ter que dar conta de uma realidade muito diversa, que caracteriza uma
educação para uma população que é atravessada por um legado histórico da escravidão e que
frequenta escolas localizadas nas periferias de São Paulo.
Interessante observar que o professor Fernando não traz uma dimensão faltante na
formação, tentando preencher o mal-estar civilizatório inerente à profissão. Pelo contrário, faz
a crítica da formação como princípio de realidade, que se apresenta na universidade com uma
perspectiva limitada de reflexão e alcance, que não considera as bases históricas, da realidade
social, se aproximando da crítica de Adorno em torno da pseudoformação.

A formação acadêmica foi legal, foi bacana. Eu achei que foi ótima até para área da
educação em geral, bem ampla. Mas por exemplo nenhuma das disciplinas que a gente
teve com a H., com ninguém na parte da educação você contemplava de fato a educação
para ex-escravos. A gente não tinha na formação a ideia de que a gente tem que trabalhar
de maneira diferente com as pessoas que são tratadas como ex-escravos, como marginais,
como bandidos que não produzem cultura. A gente não teve uma disciplina para trabalhar
isso. Então era muito louco porque a gente tinha lá um pensamento de escola estruturada
dentro da ideia da igualdade, sim é era muito legal. Vamos trabalhar o Piaget, as formas
artísticas... e escola da Ponte, que legal vamos trabalhar sem fronteiras, sem barreiras,
sem limites. A gente dá aula dentro de uma sala de cadeia. E se a gente sai da sala de aula
é pior, porque a visão é mais feia. O pátio é mais feio, a quadra é mais feia, tudo dentro
da escola é horroroso, causa angústia. Então assim nenhum dos pensadores contemplava
para esta realidade, porque esta realidade é muito recente. Ninguém trabalha isso de fato.
Quem está trabalhando estas questões, às vezes nem é da educação. Você vai trabalhar
com um pessoal que trabalha a parte... tem gente de psicologia e psicanálise que entende
108

muito melhor essas questões do que a própria educação, do que a história. A gente foi
começar a trabalhar, a gente tem um quadrinho sobre escravidão do Brasil a menos de 10
anos aí, de um especialista o Marcelo d´Salete. Então assim antes não tinha nem isso. Os
negros não falavam sobre eles. A cultura dos negros, que ainda é considerada banditista
até hoje é considerada banditista. Funk ainda é coisa de bandido. Então o moleque vai
vestido de funkeiro é bandido. E aí depois de tanto tempo que você é tratado desse jeito
por que não ser? Só leva, tô passando fome, passando mó veneno, por que não ser? E o
problema é quando ele começa a acreditar que ele realmente é. Ou então tá bom, eu não
vou ser, o que eu tenho que ser? Então eu vou ter que abdicar da minha cultura, da minha
experiência de vida para ser um civilizado como você quer que eu seja? Bacana,
obrigado, é isso que eu preciso. Aí fica aquele pobre de direita reproduzindo os valores,
reproduzindo aquilo que o patrão classe média quer dele. É triste porque aí este cara
vendeu toda a história dele, ele já não se enxerga como igual. Ele se enxerga como
superior. Dentro da própria quebrada. E vai gerando conflito dentro da quebrada. A
Universidade não consegue observar essas minúcias, estas microrrelações que acontecem
do macrocosmo que é a favela. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

O professor Fernando nos coloca para pensar os aspectos particulares do capitalismo no


Brasil, marcado pelas dimensões periféricas em um quadro global (FERNANDES, 2020). O
quanto nossa formação histórica sob o legado da escravidão imprimiu formas de adaptação,
desigualdades e mesmo cisões na formação dos indivíduos (MOURA, 2021). Ou seja, há
aspectos do capitalismo no Brasil que se desenvolvem de modo hipertardio, o que traz um modo
particular de efeitos regressivos à sociabilidade brasileira (CHASIN, 2000).
Os limites desta dissertação não nos permitem avançar como gostaríamos nestas
leituras. No entanto, queremos deixar em aberto a necessidade de que, para aprofundarmos a
compreensão do mal-estar do professor brasileiro, temos que tomar a centralidade da realidade
social brasileira e as formas de capitalismo que aqui se exercem a fim de realizar efetivamente
uma escuta do professor em suas dimensões psíquicas em conexão às particularidades
históricas, políticas e econômicas do seu desenvolvimento social.
Finalizamos o capítulo constatando, uma vez mais, a complexidade que os dados nos
apresentam para a análise. Várias camadas da realidade social emergem nas falas dos professores
que nos fazem refletir em torno do seu mal-estar. Uma camada certamente está relacionada às
tendências históricas destrutivas que buscam capturar o indivíduo, tornando-o mais adaptado às
formas de sociabilidade e trabalho regressivas – examinadas mais detidamente a seguir.
109

4. O MAL-ESTAR E A DESTRUTIVIDADE

Nunca houve um monumento da cultura


que não fosse também um monumento da barbárie.

Walter Benjamin

Não é preciso dizer que uma cultura que


deixa insatisfeito e induz à revolta um
número tão grande de participantes não tem
perspectivas de se manter duradouramente, nem o merece.

Sigmund Freud

Quem combate monstruosidades deve


cuidar para que não se torne um monstro.
E se você olhar longamente para um abismo,
o abismo também olha para dentro de você.

Friedrich Nietzsche

No contexto da Primeira Guerra Mundial e da gripe espanhola, das perdas de pessoas


próximas ou pela própria doença, seu câncer na garganta, ou mesmo os abalos decorrentes das
divisões internas e rupturas no interior do movimento psicanalítico45, Freud estabeleceu, de
modo mais profundo, um campo de análise da destrutividade interna e externa aos indivíduos.46
A guerra foi um fator paradigmático não só para a psicanálise, mas para a teoria social
de modo geral. Como elaborar tamanha destrutividade e quais os efeitos de um conflito em
escala mundial, do ponto de vista individual e social? A guerra, certamente, parece ser a síntese
mais emblemática deste momento histórico. Contudo, a destrutividade – forma de expressão do

45
Em 1914, Freud escreve Contribuição à história do movimento psicanalítico, no qual faz um balanço da construção
da psicanálise até ali e levanta as questões que, a seu ver, produziram as rupturas de Jung e Adler. Freud demonstra
estar bastante incomodado. “Não é coisa fácil ou invejável narrar a história desses dois movimentos de separação, já
que, por um lado, faltam-me fortes impulsos pessoais para fazê-lo – não esperava gratidão, nem sou vingativo em grau
eficaz; por outro lado, sei que nisso me exponho às invectivas de adversários pouco escrupulosos e ofereço aos inimigos
da psicanálise o tão ansiado espetáculo de ‘psicanalistas dilacerando uns aos outros’. Foi-me necessária muita
superação para não pelejar com adversários de fora da psicanálise, e agora me vejo obrigado a encetar a luta com
aqueles que dela foram seguidores, ou ainda se consideram tais. Mas não tenho opção; silenciar seria cômodo ou
covarde, e prejudicaria mais a causa do que a revelação direta dos danos existentes.” (FREUD, 2012c, p. 303).
46
Urania Tourinho Peres no posfácio de Luto e Melancolia, de 1915, obra que o psicanalista escreveu em meio à
guerra, assinala que “Freud confronta-se, ainda, com a possibilidade da morte de uma pessoa amada. Dois de seus
filhos encontram-se na guerra, e a expectativa angustiante de notícias o acompanha. Ele será avisado de que uma
bala atravessara o gorro e outra havia roçado o braço de seu primogênito que lutava na Galitzia (...) Constatamos,
desse modo, que o tema da morte o domina: o temor da perda de filhos amados e a iminência do afastamento de
um discípulo idealizado, que lhe acenava a decisão de abandoná-lo na luta pelo avanço da psicanálise. Vive, assim,
a possibilidade tanto da perda de um ente querido pela morte, como a perda, por abandono, de um discípulo
igualmente querido. Podemos ainda lembrar que havia perdido Emmanuel, irmão por parte de pai, em um acidente
ferroviário ocorrido um ano antes. Empreende, então, uma rica leitura, a partir de sua clínica, da circunstância em
que está inserido e de fatos da própria vida.” (PERES, 2013, p. 64).
110

instinto de morte – está amalgamada à própria lógica do progresso civilizatório o que nos faz
pensar, com Freud, de que não é simples postular a sua existência e dinâmica.

Não era fácil mostrar a atividade desse suposto instinto de morte. As manifestações
de Eros eram suficientemente visíveis e ruidosas; era de supor que o instinto de morte
trabalhasse silenciosamente no interior do ser vivo, para a dissolução deste, mas isso
não constituía prova, é claro. Levava-nos mais longe a ideia de que uma parte do
instinto se volta contra o mundo externo e depois vem à luz como instinto de agressão
e destruição. Assim o próprio instinto seria obrigado ao serviço de Eros, na medida
em que o vivente destruiria outras coisas, animadas e inanimadas, em vez de si
próprio. Inversamente, a limitação dessa agressão voltada para fora teria de aumentar
a autodestruição, aliás sempre existente. (FREUD, 2010a, p. 86).

Um aspecto desta destrutividade amalgamada à ideia de progresso foi apontado por


Walter Benjamin, que refletiu sobre o impacto da guerra na configuração da subjetividade de
sua época. Concluiu que o resultado mais radical deste desenvolvimento cultural foi o declínio
da experiência dos indivíduos. Como diz Benjamin (1994, p. 198):

É como se estivéssemos privados de uma faculdade que nos parecia segura e inalienável:
a faculdade de intercambiar experiências. (...) No final da guerra, observou-se que os
combatentes voltavam mudos do campo de batalha, não mais ricos, e sim mais pobres
em experiência comunicável. E o que se difundiu dez anos depois, na enxurrada de
livros sobre a guerra, nada tinha em comum com uma experiência transmitida de boca
em boca. Não havia nada de anormal nisso. Porque nunca houve experiências mais
radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a
experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a
experiência ética pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde
puxado por cavalos se encontrou ao ar livre numa paisagem em que nada permanecera
inalterado, exceto as nuvens, e debaixo delas, num campo de forças de torrentes e
explosões, o frágil e minúsculo corpo humano.

Sabemos que Freud não passou incólume a esses períodos históricos, tanto do ponto de
vista pessoal (ao se exilar em Londres, ao fugir do nazismo, além de ter dois filhos diretamente
envolvidos no front da guerra e perder uma filha e um neto para a pandemia de gripe espanhola;
assim como atender pacientes que voltavam da guerra), quanto sua produção na psicanálise foi
também influenciada por esse contexto.
Já no início da Primeira Guerra Mundial, o psicanalista refletiu sobre os efeitos e o
legado da guerra. Em Considerações atuais sobre a guerra, de 1915, diz:

Quer nos parecer que jamais um acontecimento destruiu tantos bens preciosos da
humanidade, jamais confundiu tantas inteligências das mais lúcidas e degradou tão
radicalmente o que era elevado. Até mesmo a ciência perdeu sua desapaixonada
imparcialidade; profundamente exasperados, seus servidores buscam extrair-lhe
armas, para dar contribuição à luta contra os inimigos. O antropólogo tem que declarar
o adversário um ser inferior e degenerado, o psiquiatra tem que diagnosticar nele uma
perturbação espiritual ou psíquica. Mas provavelmente sentimos o mal desse tempo
com intensidade desmedida, não tendo o direito de compará-lo com aquele de tempos
que não vivenciamos. (FREUD, 2010l, p. 210).
111

Neste texto, Freud reflete sobre a importância das ilusões na manutenção da saúde
psíquica e como a guerra, de certa forma, produziu apenas desilusão e decepção. A guerra
desmascarava aqueles Estados que se apresentavam como guardiões das normas éticas, mas
que foram capazes das maiores barbaridades e, igualmente, desmascarava a brutalidade dos
indivíduos que nem a mais elevada cultura arrefeceu.
Por um lado, percebemos as questões do espanto de Freud com tamanha brutalidade e
destrutividade humana que a cultura não conteve. Neste sentido, sem dúvida a guerra é um
fenômeno social e político da maior importância para a virada da teoria freudiana. Por outro
lado, vemos que sua preocupação não era apenas em compreender a dinâmica psíquica, era
também perceber a dinâmica social articulada a ela.

Mas a guerra não pode ser eliminada; enquanto as condições de existência dos povos
forem tão diferentes, e tão fortes as aversões entre eles, há de haver guerras. Então se
apresenta a pergunta: não deveríamos ceder e nos adaptar a ela? Não deveríamos admitir
que com nossa atitude cultural diante da morte vivemos psicologicamente acima dos
nossos meios, mais uma vez, e voltar atrás e reconhecer a verdade? Não seria melhor
dar à morte o lugar que lhe cabe, na realidade e em nossos pensamentos, e pôr um pouco
mais à mostra nossa atitude inconsciente ante a morte, que até agora reprimimos
cuidadosamente? Isso não parece uma realização maior, seria antes um passo atrás em
vários aspectos, uma regressão, mas tem a vantagem de levar mais em conta a verdade
e nos tornar a vida novamente suportável. Suportar a vida continua a ser o primeiro
dever dos vivos. A ilusão perde o valor se nos atrapalha nisso. (FREUD, 2010l, p. 246).

Em outro belo texto, A transitoriedade, de 1916, também escrito em meio à Primeira


Guerra Mundial, Freud discute sobre o aspecto da impossibilidade da imortalidade das coisas. O
psicanalista defendia que é justamente pela passagem do tempo e da experiência que as coisas do
mundo seriam valorizadas. Freud está sob uma dimensão da experiência e da possibilidade de
fruição das coisas em uma temporalidade. “Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo.
A limitação da possibilidade de fruição aumenta a sua preciosidade.” (FREUD, 2010m, p. 249).
Podemos perceber o psicanalista, ao lado do filósofo Walter Benjamin, como um crítico
do modelo de evolução cultural que tornava a experiência, a fruição do mundo, extremamente
imediata, fragmentada e destrutiva. Foi assim que ele descreveu esse estado de coisas já em
1908, em seu texto, A nova moral sexual ‘cultural’ e o nervosismo moderno.

Os nervos exaustos procuram a recuperação em estímulos exacerbados, em prazeres


bastante condimentados, apenas para cansar-se ainda mais (...) nossos ouvidos são
estimulados e superexcitados por uma música ministrada em grandes doses, importuna
e ruidosa, os teatros capturam todos os nossos sentidos com suas apresentações
excitantes; também as artes plásticas se voltam preferentemente para o que é repulsivo,
feio e excitante, e não se pejam de pôr ante nossos olhos, com revoltante verismo,
também o que a realidade oferece de mais terrível. (FREUD, 2015b, p. 363-4).
112

A reflexão se amplia em torno de como a libido é estimulada num contexto de relações de


objeto que não permitem a experiência de fruição com eles. “Se os objetos são destruídos, ou se os
perdemos, nossa capacidade amorosa (libido) é novamente liberada; pode então recorrer a outros
objetos em substituição, ou regressar temporariamente ao Eu.” (FREUD, 2010m, p. 250).
O modelo de progresso com o impacto da guerra empobrece demasiadamente a libido.
A guerra como o ápice destrutivo desta forma de progresso abalou de forma profunda tudo
aquilo em que a civilização acreditava. O orgulho do progresso da humanidade por meio da
ciência e do cultivo do espírito humano, a esperança, as diversas e originais trilhas desbravadas
por pensadores e artistas, tudo se mostrou essencialmente frágil diante daquele cenário. Isso
deslocou também a libido. (FREUD, 2010m).
O que compreendemos, através destas construções, é que a libido, para Freud, não é
indiferente à situação social: é, também, determinada por ela. O narcisismo individual
transformou-se em narcisismo coletivo mediado pelas demandas da guerra: “Não é de estranhar
que a nossa libido, tão empobrecida de objetos, tenha se ligado com intensidade tanto maior
àquilo que nos restou, que o amor à pátria, a ternura pelos mais próximos e o orgulho pelo que
temos em comum tenham se fortalecido subitamente.” (FREUD, 2010m, p. 251).
Há, neste momento do desenvolvimento da teoria freudiana, a função do trabalho de
luto para a reconstrução de tudo aquilo que foi destruído. A virada que marcará o novo dualismo
(pulsão de vida e pulsão de morte) ainda não foi estabelecida. Entretanto, suas bases estavam
cada vez mais latentes na construção da teoria freudiana.
Percebe-se que, independente dessa virada epistemológica, há o papel ativo do homem na
(re)construção da cultura, de modo que ela possa dar conta dos processos destrutivos da
sociedade. “Superado o luto, perceberemos que a nossa elevada estima dos bens culturais não
sofreu com a descoberta da sua precariedade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e
talvez em terreno mais firme e de modo mais duradouro do que antes.” (FREUD, 2010m, p.252).
Convocado, por Albert Einstein, a falar sobre Por que a guerra?, em 1932, muitos anos
depois de A transitoriedade, de 1916, numa troca de cartas públicas em um jornal da época, Freud
avançou na análise da articulação da dinâmica psíquica e da dinâmica social. Um claro movimento
de leitura teórica de continuidade ao O mal-estar na civilização, de 1930. Ao caracterizar a violência
como inerente à condição humana, supera a perspectiva anterior da sua teoria das pulsões (sexuais
e de autoconservação), marcando o novo dualismo entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Fala, em sua carta para Einstein, sobre como a marca psíquica da individualidade
humana produziu uma forma de desenvolvimento cultural e relações de poder. E que o próprio
113

processo civilizatório criou modos de dominação nos quais a agressividade não pode ser
totalmente suprimida e assume determinadas dinâmicas sociais.

À intenção de matar talvez se oponha a reflexão de que o inimigo pode ser empregado
em serviços úteis, quando é deixado com vida e amedrontado. Então a violência se
limita a subjugá-lo, em vez de matá-lo. É quando se começa a poupar o inimigo, mas
doravante o vencedor tem de contar com a expectante sede de vingança do vencido,
sacrifica uma parte de sua segurança. (FREUD, 2010i, p. 420).

As relações sociais desiguais no seio da comunidade entre homens e mulheres, brancos


e negros, senhores e escravos, patrões e empregados etc., produzem formas de dominação às
quais há relações de poder e leis que beneficiam aqueles que dominam. Somente a luta dos
dominados poderia produzir um deslocamento do poder, beneficiando-os. Nas palavras de
Freud: “constantes esforços dos oprimidos para conquistar mais poder e ter essas mudanças
reconhecidas em lei – para, bem ao contrário, ir do direito desigual ao direito igual para todos.”
(FREUD, 2010i, p. 422).
No texto O futuro de uma ilusão, de 1927, Freud já apontava como essa dinâmica de
dominação estava produzindo processos destrutivos na sociedade e que um dos sintomas seria
que tais processos eram destrutivos também para promover mudanças políticas, sociais e
culturais. E que essa seria uma necessidade fundamental daqueles que não estavam sendo
beneficiados pela cultura.

Quando às restrições que concernem apenas a determinadas classes da sociedade,


encontramos condições duras e que jamais foram ignoradas. É de esperar que essas
classes desfavorecidas invejem as prerrogativas das privilegiadas e tudo façam para
livrar-se de suas privações extras. Quando isso não for possível, haverá uma
duradoura insatisfação no interior dessa cultura, que poderá conduzir a rebeliões
perigosas. Porém, se uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma
parte de seus membros tem como pressuposto a opressão de outra parte, talvez a
maioria – e esse é o caso de todas as culturas atuais –, então é compreensível que esses
oprimidos desenvolvam forte hostilidade em relação à cultura que viabilizam
mediante seu trabalho, mas de cujos bens participam muito pouco. Assim, não se pode
esperar uma internalização das proibições culturais nos oprimidos; pelo contrário, eles
não se dispõem a reconhecê-las, empenham-se em destruir a própria cultura, e
eventualmente em abolir seus pressupostos. A hostilidade à cultura dessas classes é
tão evidente que não se deu atenção à hostilidade mais latente das camadas
favorecidas da sociedade. Não é preciso dizer que uma cultura que deixa insatisfeito
e induz à revolta um número tão grande de participantes não tem perspectivas de se
manter duradouramente, nem o merece. (FREUD, 2014b, p. 242-3).

Freud alerta para como se ignora “a hostilidade mais latente das camadas favorecidas
da sociedade”, que ficam obscurecidas pela destrutiva ação dos menos favorecidos. Esse
aspecto é fundamental, visto que a dominação se dá muitas vezes pelos discursos e ações
aparentemente mais “virtuosos”. Em nome de combater o mal, praticam-se as maiores
barbáries. A história está recheada de exemplos, mas parece que Freud nos mostra que a
114

dominação tem tamanha força porque ela está nos meandros, nas marcas inconscientes da
cultura, do seu cotidiano.
Na mesma carta para Einstein, Freud refletiu em que condições seria possível conter as
dimensões destrutivas e de violência na evolução cultural. Assumiu as balizas relacionadas aos
instintos de vida e de morte, e como eles estavam em conexão um com o outro. Ambos são
fundamentais para os fenômenos da vida.

Assim, por exemplo, o instinto de autoconservação é certamente de natureza erótica, mas


necessita dispor da agressividade para fazer valer sua intenção. Assim também o instinto
do amor, voltado para objetos, requer um quê do instinto de dominação para se apoderar
do seu objeto. A dificuldade de isolar em suas manifestações as duas espécies de instintos
é que durante muito tempo nos impediu de conhecê-las. (FREUD, 2010i, p. 427).

Freud trabalha com a perspectiva de que quando incitados à guerra os homens


mobilizam camadas do prazer de agressão e de destruição. O psicanalista elabora sobre como
determinada dimensão cultural e social convoca as camadas mais profundas do psiquismo e os
instintos mais primitivos dos indivíduos.47
Muitas vezes, as formas desses impulsos destrutivos se realizarem são a conexão aos
ideais de uma época histórica de modo que assumam dimensões eróticas. Interessante pensar
em um tempo em que o que é valorizado e reconhecido socialmente seja justamente o que é da
dimensão instintual mais destrutiva. Há um conjunto de formas cínicas destes enunciados se
realizarem: “A guerra para democracia”, “a guerra para a paz”, a guerra para a liberdade”.48

47
Em um artigo intitulado O mal-estar na modernidade e psicanálise: a psicanálise à prova do social, Joel Birman
faz uma crítica a tradição psicanalítica que não incorporou o que ele chama do “último Freud”. “Contudo, é preciso
ainda evocar que quase nunca a tradição psicanalítica se manteve fiel a esse deslocamento teórico operado no
discurso freudiano. Em geral, aquela tradição misturava alguns fragmentos do último Freud com alguns dos
conceitos do primeiro, de forma que a tese de que a psicanálise foi colocada decisivamente em questão pelo social
foi esquecida e recalcada. Com isso, a fulgurância crítica do gesto teórico do último Freud foi colocada em
suspensão e no limite conduzida ao silêncio. Isso quer dizer, pois, que nem sempre a tradição psicanalítica se
mostrou condizente e à altura com a leitura crítica de Freud sobre a modernidade. (...) Tudo isso nos revela o
conformismo crítico assumido pela tradição psicanalítica pós-freudiana. Ao silenciar a radicalidade da crítica
freudiana sobre a modernidade, a psicanálise assumiu um tom ao mesmo tempo triunfalista e cientificista, que são
incompatíveis com os argumentos radicais sobre o mal-estar na modernidade. A psicanálise não saiu indene,
contudo, desse esquecimento e silêncio. Essa solução de compromisso lhe custou caro, pois algo da argúcia
psicanalítica se perdeu, evidentemente. Com efeito, a psicanálise como discurso teórico perdeu suas dimensões
ética e política, ficando restrita a uma mera perspectiva terapêutica na qual a harmonia do sujeito no campo social
seria sua finalidade maior. Vale dizer, a psicanálise incorporou, assim, em seu corpo teórico, uma perspectiva
normativa pela qual a medicalização do social pôde se realizar sem resistências na medida em que foi silenciado
o potencial crítico da tese sobre o mal-estar na modernidade.” (BIRMAN, 1998, p. 126).
48
Na época de Freud, as guerras ainda estavam ligadas estritamente aos ideais patrióticos de nacionalidade. O
impactante livro Blackwater: a ascensão do exército mercenário mais poderoso do mundo, de Jeremy Scahill,
relata como a empresa de treinamento militar Blackwater tornou-se na guerra do Iraque em 2003 um monopólio
empresarial que treinava e recrutava mercenários no mundo para combater pelos EUA no Oriente Médio,
financiado pelo Estado americano e que representava um novo paradigma para as guerras contemporâneas,
elevando a destrutividade da guerra a um negócio lucrativo para toda ordem de interessados e indivíduos de
nacionalidades distintas. A guerra para a democracia e a liberdade foi um slogan defendido por Bush quando
115

Podemos certamente ampliar às várias esferas da vida as expressões que preconizam um


avanço moderno que nada mais é do que precarizar a vida e o trabalho como formas desses impulsos
destrutivos se conectarem aos ideais eróticos. A cartilha neoliberal é uma amostra rica nestes
discursos. Os próprios professores e trabalhadores como “colaboradores” ou como “gestores de sala
de aula”, ou, como nos aponta Laval, “na escola neoliberal (...) o sistema escolar é obrigado a passar
do reino dos valores culturais à lógica do valor econômico.” (LAVAL, 2021, p. 288).
Destacamos, aqui, a complexidade do pensamento freudiano em sua análise dos
indivíduos nas dinâmicas sociais.

O prazer na agressão e na destruição é certamente um deles; as inúmeras crueldades que


vemos na história e na vida cotidiana confirmam sua existência e sua força. A mescla
desses impulsos destrutivos com outros, eróticos e ideais, facilita naturalmente sua
satisfação. Às vezes temos a impressão, ao saber de atos cruéis acontecidos na história,
de que os motivos ideais só teriam servido como pretextos para os apetites destrutivos;
outras vezes, no caso das atrocidades da Santa Inquisição, por exemplo, achamos que
os motivos ideais se impuseram à consciência, enquanto os destrutivos lhe trouxeram
um reforço inconsciente. As duas coisas são possíveis. (FREUD, 2010i, p. 428).

A construção da argumentação freudiana estabelece que não é possível abolir as


tendências agressivas humanas. Cita os bolchevistas que, mesmo sob a virtude dos ideais de
abolição da agressividade humana, através da necessidade de mudanças econômicas e
materiais, utilizam-se justamente do ódio como forma de união entre si.
Os processos de Moscou e a perseguição aos que pensavam diferente 49 , mesmo no
interior do movimento político comunista, como a perseguição aos trotskistas, evidenciam esta
50
afirmação do psicanalista. Trotsky, simpático do pensamento freudiano , levava a
agressividade bastante a sério. Em sua autobiografia, de 1929, quando estava exilado da União
Soviética, descreveu uma cena de sua época de escola.

Eu ia para a escola com o uniforme novo, muito bem arrumado, tinha um boné novo, de
fita amarela, ornado de uma notável placa de metal que tinha as iniciais entrelaçadas da
escola, entre dois ramos de três folhas. Nas costas, uma sacola nova com os livros de

invadiu o Iraque em 2003, quando dois militares da Blackwater foram emboscados em Fallujah, cidade ocupada
iraquiana: “Nós enfrentaremos os bandidos e os terroristas que preferem continuar matando inocentes a aceitar o
avanço da liberdade no Iraque.” (SCAHILL, 2008, p. 172).
49
Como traz o historiador Eric Hobsbawn (2002, p. 78) em seu clássico Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-
1991: “No fim, os interesses de Estado da União Soviética prevaleceram sobre os interesses revolucionários mundiais
da Internacional Comunista, que Stalin reduziu a um instrumento da política de Estado soviético, sob estrito controle
do Partido Comunista soviético, expurgando, dissolvendo e reformando seus componentes à vontade.”
50
Em uma troca de cartas e artigos com o Socialist Workers Party (Partido Socialista dos Trabalhadores) nos Estados
Unidos sobre a natureza política da URSS, Trotsky ironiza: “Alguns camaradas, ou ex-camaradas, como Bruno R.,
tendo esquecido as discussões e decisões anteriores da Quarta Internacional, tentam explicar minha análise pessoal
sobre o Estado soviético, recorrendo à psicanálise: “Uma vez que Trostky participou da Revolução Russa, é difícil
que abandone a idéia de Estado operário, porque teria que renunciar à causa de toda sua vida. (...) Creio que o velho
Freud, que era muito perspicaz, teria dado um grande puxão de orelhas nestas espécies de psicanalistas. Naturalmente,
não me atreveria a fazer o mesmo. No entanto, atrevo-me a assegurar aos meus críticos, que o subjetivismo e o
sentimentalismo estão neles, e não em mim.” (TROTSKY, 1942, p.39).
116

aula, encadernados de novo, brilhantes, e um porta-penas com lápis, caneta e borracha.


Entusiasta, eu passeava esta carga magnifica pela longa rua Uspenkaia, regozijando-me
em pensar que a escola era longe. Parecia-me que todos os transeuntes contemplavam
com estupefação, alguns mesmos talvez com ciúme, a minha magnífica aparência.
Confiado, curioso, defrontava eu todos os que encontrava. Mas de repente,
imprevisivelmente, um rapazola alto e magro, de treze anos mais ou menos, recua com
a cabeça, expectora com ruído e lança um grande escarro na minha blusa nova à altura
do ombro; lança-me um olhar de desprezo e, sem dizer palavra, continua o seu caminho.
(...) Qual seria o motivo dessa ação do rapaz? Agora vejo claramente: o rapazinho
desprovido de tudo, com a camisa rasgada, os pés envoltos em tiras, deve andar a
recados dos patrões, ao passo que outros meninos se dão ares importantes com os seus
belos uniformes escolares... E o menino tinha dirigido sobre mim o seu sentimento de
protesto social. Mas, eu não fazia ainda generalizações, naquele tempo. Esfreguei o
ombro com folhas de castanheiro. Estava fora de mim, de despeito e de impotência e fiz
o resto do percurso com os pensamentos mais sombrios. (TROTSKY, 1978, p. 52-3).

Será que estamos diante da “vingança dos dominados”, como nos lembra Freud nessa
cena um tanto curiosa que Trotsky nos revela? A mesma agressividade que produz a barbárie
produz também o protesto social, afinal, assim há os deslocamentos de poder, tornando mais
igualitárias as relações na história? A marca do pensamento freudiano é que não é possível a
reconciliação dos instintos com a cultura. Isso não significa que a dinâmica social não possa
favorecer em maior ou menor medida impulsos destrutivos dos indivíduos51. A guerra, na forma
em que ela assumiu no século XX, talvez seja a expressão maior dessa destrutividade sem limites.
Freud também dará sua saída para conter ou deslocar estas dimensões destrutivas. A
educação de indivíduos autônomos e determinados pela razão são fundamentais para a
constituição de uma comunidade que fique menos refém destes impulsos. Freud sabia que, em
sua reflexão em Psicologia das massas e análise do eu, as massas são facilmente guiadas por
líderes por identificação.

Inscreve-se na inata e inerradicável desigualdade dos homens o fato de eles se repartirem


em líderes e dependentes. Esses últimos são a grande maioria, necessitam de uma
autoridade que tome decisões por eles, decisões que em geral eles acatam
incondicionalmente. Aqui talvez se possa acrescentar que deveria haver mais cuidado
do que antes em educar uma camada superior de indivíduos de pensamento autônomo,
refratários à intimidação e buscadores da verdade, aos quais caberá a direção das massas
subordinadas (...) A condição ideal seria, naturalmente, uma comunidade de indivíduos
que tivessem sujeitado a sua vida instintual à ditadura da razão. (FREUD, 2010i, p. 431).

51
Adorno, em Educação contra barbárie (2006), discute a ação de jovens e adultos mediadas por reflexão, as
quais, mesmo que rompam os limites da legalidade, não expressariam a barbárie (que ele define como esta
violência primitiva a qual se aproxima da caracterização da destrutividade, do instinto de morte de Freud), mas
que a intervenção exagerada da polícia em movimentos como este, sim. “Certamente penso assim. Se examinarmos
mais de perto os acontecimentos que ocorrem atualmente na rebelião estudantil, então descobriremos que de modo
algum se trata neste caso de erupções primitivas de violência, mas em geral de modos de agir politicamente
refletidos. Se neste caso esta reflexão é correta ou equivocada, isto não precisa ser discutido agora. Mas não é
verdade que se trata de uma consciência deformada, imediatamente agressiva. Os acontecimentos são entendidos,
na pior das hipóteses, como estando a serviço da humanidade. Creio que, quando um time de fora que vence é
ofendido e agredido num estádio, ou quando um grupo de presumíveis bons cidadãos agride estudantes ainda que
só mediante palavras, podemos apreender de um modo radical, a partir desses exemplos tão atuais, a diferença
entre o que é e o que não é barbárie.” (ADORNO, 2006b, p. 160).
117

Freud finaliza seu texto na aposta, apesar dos descaminhos da civilização, do papel da
cultura no deslocamento dos impulsos destrutivos. A razão, o intelecto, assim como a internalização
da agressividade voltada ao convívio social, tornam-se ganhos do processo civilizatório. “Duas
parecem ser as mais importantes características psicológicas da cultura: o fortalecimento do
intelecto, que começa a dominar a vida instintual, e a internalização da tendência à agressividade,
com todas as suas consequências vantajosas e perigosas.” (FREUD, 2010i, p. 434).
Do ponto de vista clínico, a Primeira Guerra Mundial resultou em homens que estiveram
sob o impacto de imensa violência. A “neurose de guerra” transformou-se no sintoma daquele
momento histórico. E a teoria freudiana teve que se modificar para compreender o fenômeno da
destrutividade que aparecia na clínica com pacientes que resistiam inconscientemente às mudanças,
tomados pela chamada “compulsão à repetição”, que se estabelecia pela transferência entre paciente
e analista e, também, por conta de fenômenos externos, sociais (FREUD, 2010d).
A “neurose de guerra” torna mais complexa, igualmente, a teoria do trauma na psicanálise.
Ou seja, um mundo externo pode produzir um transbordamento que rompe e ultrapassa as defesas
e barreiras do psiquismo nos adultos. E inclusive pode se sobrepor às próprias memória e
singularidade que marcaram o indivíduo em sua fase infantil. 52 A guerra, como nos mostram
Benjamin e Freud, é um fenômeno externo de destruição da experiência singular. O que faz com
que o próprio sonho não seja mais a realização de um desejo, mas a tentativa de uma forma
“enviesada” de elaboração por compulsão desse transbordamento, deste impacto.

Aqui seria, então, o lugar de admitir pela primeira vez uma exceção à tese de que o sonho
é uma realização de desejo. Os sonhos de angústia não constituem exceções tais, como já
demonstrei repetidamente e em detalhe, e tampouco os “sonhos de castigo”, pois apenas
substituem a realização proibida do desejo pelo castigo que lhe é apropriado, sendo,
portanto, a realização de desejo da consciência de culpa que reage ao instinto repudiado.
Mas os supramencionados sonhos dos neuróticos traumáticos já não se incluem na
perspectiva da realização de desejo, nem os sonhos, ocorrentes nas psicanálises, que nos
trazem à memória os traumas psíquicos da infância. Eles obedecem antes à compulsão de
repetição, que na análise, de fato, é favorecida pelo desejo (encorajado pela “sugestão”)
de evocar o que foi esquecido e reprimido. (FREUD, 2010d, p. 196).

Diante dos efeitos das dinâmicas sociais e históricas no psiquismo dos indivíduos, aos quais
afetam diretamente os caminhos e deslocamentos da libido e da agressividade, como nos mostra
Freud no percurso de sua obra, avançaremos no decorrer dos próximos capítulos nos

52
Em Inibição, sintoma e angústia, Freud levanta a possibilidade da angústia também ser determinada pela
intensidade dos fatores externos e não somente pelo “medo”, “angústia de castração”. “Há a considerar também
que nas vivências que levam à neurose traumática é rompida a proteção contra estímulos externos e quantidades
muito grandes de excitação se aproximam do aparelho psíquico, de maneira que uma segunda possibilidade se
apresenta: a angústia não apenas é sinalizada como afeto, mas também é produzida como algo novo nas condições
econômicas da situação.” (FREUD, 2014c, p. 70).
118

desdobramentos psíquicos destes efeitos. A análise dos sonhos observada por Freud nas neuroses
traumáticas no colocam como questão para pensarmos a relação dos professores com seus sonhos.

4.1 Mal-estar, cisões, desfusão e sonhos

O fenômeno clínico dos sonhos, em Freud, nos fez pensar, a partir da análise dos dados
da pesquisa, se os professores sonham com o trabalho. Diante da intensidade dos fenômenos
sociais de conflito no trabalho, como será que o sonho aparece em suas vidas? Esta não foi uma
pergunta feita aos entrevistados e nem apareceu espontaneamente nas entrevistas. No entanto,
para pensar se esta é uma questão válida, resolvemos retomar o trabalho de escuta, como
combinado com os professores conforme as análises de dados fossem colocando questões, e
perguntar a um dos professores entrevistados se ele sonha com o trabalho. Sua resposta foi
muito interessante e realmente dá margem para a ampliação das pesquisas sobre o mal-estar
dos professores a partir dos sonhos relacionados ao trabalho docente53.

Raramente tenho sonhos. Durmo como uma pedra. Isso no geral... Sobre o trabalho,
acho que já olhei tempo demais para o abismo. No geral, volto para casa e sigo de
boa. Alguns dias mais cansado, outros menos. Mas acho que tem mais relação com a
jornada extensa. Quando dou uma prensa num aluno encapetado, isso não me abala
mais, eu acho. Pelo menos não tem produzido sonhos ou pesadelos. Talvez seja de
pessoa para pessoa. Sou um sobrevivente. Com o tempo, você aprende a ser um ator.
Sério! Hoje dou aquelas explosões controladas em sala. No momento seguinte tô
fazendo piada na sala dos professores. E minha pálpebra nos olhos não treme há anos.
Parece uma forma de adaptação...
Ah deve ser isso mesmo. Vejo minha irmã. Ou alguns colegas novos. Vejo eles
sofrendo coisas que sofria anos atrás. Mas hoje devo ter feito esse processo que você
falou. Daí vejo uns colegas que não seguram a sala de aula. Eles saem extremamente
alterados das aulas no fim do dia. Atualmente eu só saio cansado. Sei lá viu... A gente
precisa sobreviver né... E vamos tocando o barco... (risos). Hoje eu entendo o R.
(antigo diretor de sua escola que se aposentou). Nossa agora fiquei pensando... Por
que não tenho sonhos ou pesadelos? Ou se tenho, não consigo lembrar? Estranho.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

Resolvemos escolher o professor João para fazer esta pergunta porque, após a entrevista,
ele disse que só aceitou participar e falar de todas as questões porque sabia de minha origem e
história como professor de educação básica também. Acreditamos que esta constatação de

53
José de Souza Martins, em seu livro A sociabilidade do homem simples, resgatou a tradição sociológica dos estudos
dos sonhos. Em um determinado trecho diz: “Florestan Fernandes, num estudo sociológico pioneiro sobre os sonhos
de habitantes da cidade de São Paulo, no início dos anos quarenta, sugere justamente, em curta e fundamental
passagem que o sonho é, para o homem comum, mais do que o sonhar. Para o homem comum, o sonho não se separa
da interpretação do sonho. Sociologicamente, o sonhado é o interpretável. Basicamente, “porque o indivíduo se
utiliza, nessas circunstâncias, de representações coletivas, a interpretação do sonho aparece como um fenômeno
social, estando mais em função da cultura do grupo, que do próprio indivíduo.” (MARTINS, 2015, p. 60). O
lançamento recente do livro Sonhos confinados: o que sonham os brasileiros em tempos de pandemia, de 2021, por
eminentes psicanalistas, que trata da dimensão traumática da pandemia representada no sonho dos brasileiros, mostra
como o espaço para a análise da dimensão social no psiquismo é campo rico para pesquisas e interpretações.
119

identificação e transferencial com o pesquisador é um dado de pesquisa que diz sobre sua
condição docente. Nos parece que esta afirmação do professor João entra na “cisão externa”
que se estabelece através da precarização do trabalho docente que já discutimos nesta
dissertação, no tópico de formação.
A “cisão externa” é resultado de um processo de empobrecimento intelectual do professor
a partir da desvalorização e da separação, alienação 54 do “trabalho manual” do “trabalho
intelectual”. Aqueles que estão fora (acadêmicos, especialistas, gestão...) da sala de aula, passam
a serem reconhecidos socialmente como os que têm as respostas para o mal-estar docente, o que
produz ressentimento social e uma ligação libidinal que unifica o grupo dos professores em um
discurso do “nós e eles”, “aqueles que estão no chão da sala de aula” e os que não estão.
Libido, aliás, como nos mostra Freud, que quando obstaculizada, empobrecida em seus
objetos (de intelectualidade), precisa encontrar outro investimento, seja em si ou em outro
objeto. Neste sentido, o professor tem receio de ser desmentido55 “por aqueles que estão fora,
portanto não conhecem a sala de aula e a escola”.
A resposta do professor João sobre seus sonhos é muito significativa e tentaremos
desenvolver os desdobramentos conceituais que ela mobiliza ao longo da dissertação.
É importante destacar que o professor vai produzindo uma defesa não só externa, da “cisão
externa”, daqueles que estão dentro e daqueles que estão fora da escola, sobretudo, interna, no que
Ferenczi denomina “cisão do Eu”56, a qual se torna a expressão de uma forma de adaptação do
indivíduo a situações constantemente hostis. Uma parte do Eu é reprimida e a outra introjeta o

54
Sobre o processo de alienação, Karl Marx estabelece que: “O trabalho externo, o trabalho no qual o homem se
exterioriza, é um trabalho de auto-sacriício, de mortificação. Finalmente, a externalidade (Ausserlinchkeit) do
trabalho aparece para o trabalhador como se [o trabalho] não fosse seu próprio, mas de um outro, como se [o
trabalho] não lhe pertencesse, como se ele no trabalho não pertencesse a si mesmo, mas a um outro. Assim como
na religião a auto-atividade da fantasia humana, do cérebro e do coração humanos, atua independentemente do
indivíduo sobre ele, isto é, como uma atividade estranha, divina ou diabólica, assim também a atividade do
trabalhador não é a sua auto-atividade. Ela pertence a outro, é a perda de si mesmo.” (MARX, 2004, p. 83).
55
Sándor Ferenczi em sua teoria do trauma demonstra que um indivíduo pode sofrer uma situação de violência,
de abuso, de dor num primeiro tempo, porém, em um segundo, o ambiente. ao não reconhecer sua dor, produz
uma intensificação do sofrimento ou a própria dimensão traumática, tornando a experiência mais dolorosa pelo
desmentido do que pelo ato de violência em si. Como diz o psicanalista e pesquisador de Ferenczi, Eugenio
Canesin Dal Molin, na revista Cult de agosto de 2022, “Em situações de violência contra criança, as tentativas de
comunicação que esta faz sobre o primeiro choque são invalidadas, desacreditadas, negadas, desmentidas pelos
adultos”. Esta categoria pode ser utilizada, por exemplo, nos casos de racismo ou de abuso sexual em que a vítima
é desacreditada e culpada pelo ato de violência. Bastante comum no Brasil, no caso dos professores, há uma prática
de culpá-lo individualmente por uma crise educacional que tem vários determinantes.
56
Como nos coloca Eugênio Canesin Dal Molin na revista Cult de agosto de 2022, “sentindo-se completamente
sozinho, a agonia física e psíquica torna-se mais intensa e conduz a uma clivagem do eu que se faz acompanhar,
paralelamente, da identificação com o agressor (...) ao render-se, o indivíduo faz algo da ordem do ‘fingir-se de
morto dos animais’. Experimenta estar fora do próprio corpo, como um observador insensível da violência de que
é alvo. Na medida em que uma parte sua ainda é acessível a emoções, ele volta aos seus interesses, escreve
Ferenczi, para os únicos sentimentos que sobram do processo, isto é, os sentimentos do agressor.”
120

ambiente hostil. Na expressão utilizada por Ferenczi, “introjeta o agressor” para melhor se adaptar
às dinâmicas sociais da escola. Dormir como uma “pedra” ou ser uma “pedra”, não se “abalar
mais” com a realidade, “ser um ator”, “não ter mais as pálpebras trêmulas” são sintomas desta
cisão do Eu, de uma certa desafetação e indiferença como estratégias de defesa que atravessam o
próprio corpo.
Importante ressaltar que Freud, em 1919, em seu texto Introdução à psicanálise das
neuroses de guerra, percebia as dinâmicas psíquicas de um conflito no Eu ocasionado pelas
dinâmicas traumáticas da realidade exterior:

(...) as neuroses de guerra devem ser compreendidas como neuroses traumáticas que
foram possibilitadas ou favorecidas por um conflito do Eu. A contribuição de Karl
Abraham traz boas indicações acerca desse conflito do Eu; também os autores ingleses
e americanos citados por Jones o perceberam. Ele se dá entre o velho Eu pacífico e o
novo Eu guerreiro dos soldados, e torna-se agudo assim que o Eu-de-paz enxerga o
enorme perigo de vida que lhe trazem as audácias de seu parasitário sósia recém-
formado. Tanto podemos dizer que o velho Eu se protege do risco de vida mediante a
fuga na neurose traumática, como que se defende do novo Eu, percebido como
ameaçador para sua vida. Assim, a precondição, o solo nutriz para as neuroses de
guerra seria o exército nacional de conscritos; em mercenários, em soldados
profissionais, não haveria possibilidade de ela surgirem. (FREUD, 2010h, p. 385).

A prática de aproximar a patologia, neste contexto, à “patologia social” da guerra e à


“normalidade”, é uma experiência do saber e do trabalho da psicanálise desde os seus inícios.
Foi pela guerra, por exemplo, que autores como Benjamin e Freud perceberam fenômenos
sociais da destrutividade dos “momentos de paz” ou do “progresso”.
A menção de Freud sobre os exércitos é muito curiosa, visto que um “exército nacional
de conscritos”, convocados obrigatoriamente para a guerra e o serviço militar, ou seja, sob a
necessidade externa, imposta, de intenso e traumático mal-estar sem recursos psíquicos para
tal, são obrigados a cindirem seu Eu para preservar algum nível de saúde psíquica e estabilidade
através do adoecimento. Pelo contrário, aos “mercenários”, segundo Freud, já constituídos num
modo (cindido?) profissional (falsos-selfs), desafetados, não haveria necessidade dessas cisões
surgirem. Há de se refletir como questão, em aberto, se, no caso dos mercenários, não estamos
num estágio mais avançado e complexo tanto da adaptação, quanto de uma forma de cisão do
Eu para dar conta da realidade exterior, a barbárie.57

57
Talvez Winnicott nos ajudasse com sua conceituação de falso e verdadeiro self, categorias constitucionais e
complementares no modo de ser, suas maneiras muito cindidas de se apresentarem em um indivíduo, podem
indicar processos de defesa e adoecimento importantes. Uma obra winnicottiana muito interessante como
desdobramentos da pesquisa, para aprofundarmos essas possibilidades de cisão e adaptação, é a de Júlio de Mello
Filho, Vivendo num país de falsos-selves. Em um determinado momento de sua construção analítica compara os
pacientes “normóticos” com os “falsos-selves”: “O normótico tem identidades com o falso-self, mas também
dessemelhanças. Ambos são hiperadaptados à realidade, o que faz com que se sintam normais, o que faz bem ao
121

As formas de cisão, como mecanismo de defesa, produzem no professor João uma


leitura psíquica do social que varia entre o “céu” e o “inferno” também. A cisão da realidade
como modo de autopreservação de um adoecimento mais drástico. De que céu e inferno o
professor se refere quando dá “uma prensa num aluno encapetado”? O aluno, a síntese final e
expressão mais imediata de um modo de relações amplas e regressivas no mundo do trabalho,
aparece como o signo do “capeta”, do “inferno”. A “prensa”, expressão de uma máquina que
prensa os objetos, os comprimi, talvez faça uma alusão ao próprio lugar mecânico e repetitivo,
do irrepresentável que assumiu o trabalho docente. Visto que esta ação de prensar o aluno não
lhe “abala mais, eu acho”. Ora, como diz o professor na sequência, “pelo menos não tem
produzido sonhos ou pesadelos.” Para em seguida marcar: “sou um sobrevivente”. Nesta forma
de cisão não dá para mutilar uma parte de si sem afetar o todo. Portanto, para “sobreviver” vão
os pesadelos e, também, os sonhos.58
Em suas reflexões a partir da vida danificada (Adorno, 1992), percebemos o modo como
a modernidade realizou a naturalização da violência primitiva que reveste a barbárie, mesmo
nos “cenários de paz”, os quais se encontram indivíduos cindidos e/ou desintegrados em
sociabilidades regressivas na massa. O que favorece toda ordem de discursos autoritários e
“servidões voluntárias” a um líder ou uma autoridade externa, que constituem uma formação
social fixa e orgânica. Os efeitos deste modo de ser se colocam cada vez mais sem nenhum tipo
de resistência ou reflexão como nos traz o filósofo.

(...) A separação que se processa entre as características e a base pulsional, assim como
entre elas e a ipseidade que as comanda lá onde antes apenas as mantinha juntas, leva o
homem a pagar sua crescente organização interna com uma crescente desintegração. A
consumação da divisão do trabalho no indivíduo, sua objetivação radical, conduz à sua
cisão doentia. Daí o “caráter psicótico”, o pressuposto antropológico de todos os
movimentos de massa totalitários. Precisamente essa transição de características fixas a
modos de comportamento que disparam em precisão – uma aparente vivificação – é
expressão da crescente composição orgânica. Reações rápidas, sem a mediação do que
constitui o indivíduo, não restauram a espontaneidade, mas estabelecem a pessoa como
instrumento de medida disponível e decifrável pela autoridade central. Quanto mais
imediata é a sua decisão, tanto mais profundamente sedimentada está, na verdade, a
mediação: nos reflexos de pronta resposta, desprovidos de resistência, o sujeito
extinguiu-se por completo. Assim, os reflexos biológicos – modelos dos atuais reflexos
sociais -, quando confrontados com a subjetividade, são também algo objetivado,
estranho: não é por acaso que são chamados com frequência de “mecânicos”. Quanto
mais os organismos estão próximos da morte, tanto mais regridem ao estado de

self. Isso também diminui os conflitos interpessoais e com a realidade ambiental, diminuindo o sofrimento egóico.
Mas, em troca, diminui as suas sensibilidades e a capacidade de modificar o ser (...). Vejo no normótico uma vida
mais comum, plana, regular, com o mundo das coisas. Já no falso-self – principalmente nos ostensivos – vejo uma
vida mais tumultuada, mais dominada pela ambição, pela necessidade de maiores falsidades para viver, enquanto
o falso-self patológico faz da falsidade o seu zelo existencial.” (FILHO, 2003, p. 93).
58
No tópico 5.3 desta dissertação sobre os processos de adaptação e sofrimento dos professores veremos que esta
forma de perceber a realidade do professor João expressará fenômenos psíquicos e sociais relacionados ao cinismo
como estratégia de defesa.
122

convulsões. De acordo com isso, as tendências destrutivas das massas, que explodem
em ambas as modalidades de estados totalitários, não seriam tanto desejos de morte,
quanto manifestações daquilo que já são. Eles assassinam para que a eles se iguale o que
lhes parece vivo. (ADORNO,1992, p. 202).

Aquilo que lhes parece “vivo” e tem qualquer expressão de espontaneidade, passa a
incomodar as formações sociais fixas e destrutivas pelas quais os indivíduos se associam nos
agrupamentos (massa). Para Adorno é na base material da sociedade, na própria divisão social
do trabalho que se realiza sua objetivação radical em um modo de cisão doentia do indivíduo,
na qual o sujeito se extingue por completo. E este processo de regressão social se dá, segundo
Adorno, também pela “introjeção ao agressor” que está colocado desde muito cedo na
adaptação pela qual são submetidas as crianças e adolescentes na cultura, a um certo
conformismo com o mundo, o que nos faz pensar uma dimensão social mais profunda das cisões
do Eu59.

(...) a realidade se tornou tão poderosa que se impõe desde o início aos homens -, de
forma que este processo de adaptação seria realizado hoje de um modo antes automático.
A educação por meio da família, na medida em que é consciente, por meio da escola, da
universidade teria neste momento de conformismo onipresente muito mais a tarefa de
fortalecer a resistência do que de fortalecer a adaptação. Se posso crer em minhas
observações, suporia mesmo que entre os jovens e, sobretudo, entre as crianças
encontra-se algo como um realismo supervalorizado – talvez o correto fosse: pseudo-
realismo – que remete a uma cicatriz. Pelo fato de o processo de adaptação ser tão
desmensuradamente forçado por todo o contexto em que homens vivem, eles precisam
impor a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação
a si mesmo, e, nos termos de Freud, identificando-se ao agressor. A crítica deste
realismo supervalorizado parece-me ser uma das tarefas educacionais mais decisivas, a
ser implementada, entretanto, já na primeira infância. (ADORNO, 2006f, p. 144-5).

A relação que o professor João faz com os professores mais novos, inclusive sua irmã
que também é professora, é um dado que aparece na pesquisa em outras entrevistas. Os
professores mais novos, ou nem tanto, que lutam contra o embrutecimento do espaço escolar,

59
Apesar de haver diferentes abordagens e profundidades nas leituras das cisões e clivagens do Eu, todas tomam a
relação intensa, traumática com o ambiente, com a realidade exterior como paradigma de análise. Os autores
denominados freudo-marxistas (ROUANET, 1983) da década de 20 partiam da questão de o porquê as massas terem
ações que se colocavam em última instância contra elas mesmas? Wilhelm Reich (2001), em Psicologias de massas
do fascismo, ao criticar as análises marxistas sobre a ascensão do fascismo, aponta que: “Ora, este marxismo comum
afirmava que uma crise econômica como a de 1929-33 tinha uma tal proporção que conduziria necessariamente a uma
orientação ideológica esquerdista das massas por ela atingidas. Enquanto, mesmo depois da derrota de janeiro de 1933,
se continuava a falar de um “ímpeto revolucionário” na Alemanha, a realidade mostrava que a crise econômica, em
vez de provocar a esperada virada para a esquerda nas ideologias das massas, conduzia a uma extrema virada para a
direita na ideologia das camadas proletárias da população. Disso resultou uma clivagem entre a base econômica, que
pendeu para a esquerda, e a ideologia de largas camadas da sociedade, que pendeu para a direita. Esta clivagem foi
ignorada, o que impediu que se perguntasse como era possível que as largas massas se tornassem nacionalistas num
período de miséria. Palavras como ‘chauvinismo’, ‘psicose’, ‘consequências de Versalhes’ não explicam a tendência
da classe média para a direita radical em períodos de crise, porque não apreendem efetivamente os processos
envolvidos nessa tendência. De fato, não era só a classe média que se voltava a direita, mas também inúmeros, e nem
sempre os piores, elementos do proletariado.” (REICH, 2001, p. 7).
123

têm medo, têm receio de ficar como os professores mais velhos, adaptados, cindidos à realidade
social ou mesmo objetivamente doentes psíquica ou corporalmente.
Neste sentido, ao adaptar-se à realidade o professor João torna-se, mesmo, um agente
adaptador do outro. Ou seja, de “agredido” passa a “agressor”. A psicanalista Anna Freud, ao
estudar, em sua clínica, as experiências de “introjeção do agressor”, relata:

Os exemplos que citei até agora ilustram um processo com que estamos muito
familiarizados. Uma criança introjeta uma certa característica de um objeto causador de
ansiedade e, assim, assimila uma experiência de ansiedade que acabou de ser sofrida.
Neste caso, o mecanismo de identificação ou introjeção combina-se com um segundo e
importante mecanismo. Ao personificar o agressor, ao assumir os seus atributos ou
imitar a sua agressão, a criança transforma-se de pessoa ameaçada na pessoa que
ameaça. Em Beyond the Pleasure Principle, o significado dessa mudança do papel
passivo para o ativo, como um meio de assimilar experiências desagradáveis ou
traumáticas na infância, é examinado em detalhe. “Se um médico examina a garganta
de uma criança ou realiza uma operação de pouca monta, a alarmante experiência será
certamente o tema do próximo jogo, mas neste o prazer obtido de uma outra fonte não
pode ser ignorado. Ao transitar da passividade da experiência para a atividade da
brincadeira, a criança aplica aos seus companheiros de jogo a ocorrência desagradável
que recaiu nela e assim se desforra por procuração”. (FREUD, 1974, p. 96)

Se pensarmos por esses pressupostos de Anna Freud podemos refletir em torno de um


lugar de mudança da “passividade” para a “atividade” do professor João, mediado pelas
dinâmicas regressivas de sociabilidade na escola. O que tem certamente implicações nos modos
dos “benefícios secundários do sintoma” estarem conectados a forma como se organiza as
relações de precarização do trabalho, portanto, sob uma dinâmica social de sofrimento comum.
Se há algum prazer nessa condição de “atividade”, ele está diretamente relacionado às fantasias
em torno das vantagens psíquicas da adaptação e da própria possibilidade de deslocamento de
dimensões agressivas e libidinais reprimidas. Ir à “desforra por procuração” pode representar
algum nível de prazer inconsciente, sádico a este professor que introjeta o ambiente, o agressor.
Por outro lado, esse fenômeno também nos parece uma estratégia de defesa, visto que
tende a evitar que o professor estabeleça um adoecimento mais intenso, que colocaria sua
própria vida social, para além do trabalho estritamente, em limitações profundas. Todavia,
podemos falar de algum nível de uma atuação60 , num espaço escolar precarizado que não
possibilita reflexões e elaborações coletivas.
É evidente que essas situações normalmente não são binárias; são regressivas de modos
transicionais a depender das situações concretas vividas. No que pese o alerta de Adorno da

60
“Acting out: Noção criada pelos psicanalistas de língua inglesa e depois retomada tal e qual em francês, para
traduzir o que Sigmund Freud denomina de colocação em prática ou em ato, segundo o verbo alemão agieren. O
termo remete à técnica psicanalítica e designa a maneira como um sujeito passa inconscientemente ao ato, fora e
dentro do tratamento psicanalítico, ao mesmo tempo para evitar a verbalização da lembrança recalcada e para se
furtar à transferência. No Brasil também se usa ‘atuação’.” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 5).
124

dimensão social mais ampla da adaptação, o que observamos é que há um processo que vai
minando a capacidade psíquica e corporal do professor sustentar sua individualidade. Trata-se
de um conjunto de violências mais ou menos intensas, permanentes, que produzem esse
sintoma. Acreditamos que a “cisão externa” diz respeito preponderantemente às dimensões
conscientes e pré-conscientes e a “cisão do Eu” mobilize um trabalho mais demorado e
profundo sob as camadas do inconsciente, inclusive no Eu, produzindo uma manifestação de
uma neurose atual, marcada pelo seu núcleo traumático.
O professor João diz gostar, em outro momento de sua entrevista, do trabalho como
docente e que não se vê fazendo outra coisa. Ao mesmo tempo, a sensação de cansaço, o
abismo, em referência a Nietzsche61 “ao olhar tanto para o abismo, o abismo olha para você”,
“um sobrevivente”. Palavras fortes, que lembram cenários e metáforas das guerras.
Os sonhos certamente fazem parte da riqueza da vida psíquica. O sonho é uma forma de
descansar psiquicamente, como nos lembra Freud em seu clássico A interpretação dos sonhos
(2019). Ter sonhos traumáticos compulsivos ou não os ter, ou não os lembrar em nenhum
momento, revela sobre a saúde psíquica das pessoas. Em Complemento metapsicológico à
teoria dos sonhos, Freud (2010k, p. 153) diz:

Igualmente compreensível se torna a faculdade “diagnóstica” do sonho, universalmente


reconhecida e vista como enigmática, em que padecimentos físicos incipientes são
notados antes e de modo mais nítido que na vigília, e todas as sensações corporais do
instante são aumentadas enormemente. Esse aumento é de natureza hipocondríaca, tem
por pressupostos que todo investimento psíquico foi retirado do mundo externo para o
próprio Eu, e possibilita agora o reconhecimento precoce de mudanças corporais que na
vida de vigília permaneceriam inadvertidas por algum tempo.

É possível que uma “pedra” sonhe? O professor João tem uma jornada de trabalho entre
50 e 60 horas semanais na escola. Com esta vivência na escola, no mínimo se esperaria, em
algum momento, restos diurnos importantes do espaço escolar. Para além de pensar que ele
possa ter algum “benefício secundário” sintomático ao trabalhar assim, há de se refletir como
um sistema educacional na cidade mais rica do Brasil permite que um professor trabalhe com
crianças e adolescentes em formação com esta extensa jornada de trabalho.
Isso não parece ser uma contingência do princípio de realidade, mas através de Marcuse
(2010), de um “princípio do desempenho”, o qual se realiza do ponto de vista histórico como o
atual estágio do princípio de realidade. É uma forma histórica do princípio de realidade se
realizar que justamente convoca as dimensões instintuais mais destrutivas dos professores,

61
É Nietzsche que nos lembra, antes mesmo de Freud, em Para Além do Bem e do Mal, no aforismo 146: “Quem
combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um
abismo, o abismo também olha para dentro de você.” (NIETZSCHE, 1992, p. 79).
125

interna e externamente. É isso que nos ensinou Freud sobre os efeitos das dinâmicas sociais
sobre o psiquismo. Em seu clássico O problema econômico do masoquismo, de 1924,
desenvolve as interconexões das dinâmicas sociais e psíquicas com profundidade:

A volta do sadismo contra a própria pessoa acontece regularmente na repressão cultural


dos instintos, que impede que boa parte dos componentes instintuais destrutivos da
pessoa tenham aplicação na vida. Pode-se imaginar que esta porção refreada do instinto
de destruição surja do Eu como uma intensificação do masoquismo. Mas os fenômenos
da consciência moral levam a supor que a destrutividade que retorna do mundo exterior
também é acolhida pelo Super-eu sem tal transformação, e eleva o sadismo deste para
com o Eu. O sadismo do Super-eu e o masoquismo do Eu complementam um ao outro e
se juntam para produzir as mesmas consequências. (FREUD, 2011d, p. 201).

O que vemos é que não só determinada realidade social e cultural pode convocar as
dimensões mais destrutivas dos indivíduos, pode também intensificar as dimensões mais
autodestrutivas e sádicas, que atuam como complemento de “benefícios secundários”, como o
próprio processo de adaptação (o Eu masoquista como processo de autoconservação) e a cisão
do Eu para dar conta e/ou não entrar em pane nessa realidade social e cultural.
A questão feita mobilizou o professor João a pensar sobre o porquê de não ter sonhos.
Ao se indagar sobre o aspecto “estranho” deste fenômeno, pensamos sobre o inquietante, o
estranho familiar em Freud. Pelos dados da pesquisa, parece ser a forma como também os
professores mais jovens veem os professores mais velhos que estão adaptados pela “cisão do
Eu”.62 O estranho familiar, o inquietante de buscar não ser como eles, mas, ao mesmo tempo,
estar sob a mesma condição de trabalho que eles.
Neste estranho familiar, a relação “eu e o outro” se reduz, mobilizando dimensões muito
profundas do desamparo e da castração. “Uma hora o abismo olha para você” nos lembra o
professor João ou, como diz Freud, “o efeito inquietante é fácil e frequentemente atingido
quando a fronteira entre fantasia e realidade é apagada, quando nos vem ao encontro algo real
que até então víamos como fantástico, quando um símbolo toma a função e o significado pleno
do simbolizado, e assim por diante.” (FREUD, 2010g, p. 364).

62
Como nos lembra o psicanalista Luiz Claudio Figueiredo no capítulo Modernidade, trauma e dissociação: “É
certo que podemos observar no desenvolvimento da psicanálise um retorno freudo-ferencziano ao traumático e à
clivagem. Em Além do princípio de prazer, Freud coloca a experiência do trauma no centro e na base do processo
de constituição do psiquismo. É para lidar com as experiências e ameaças de efração decorrentes da incidência
sobre a substância viva de forças externas muito poderosas que se cria uma crosta mineralizada e mortificada. Da
mesma forma, é para enfrentar as inevitáveis rupturas dessa crista de proteção que devem se formar as reservas de
energia quiescente no interior da vesícula viva. Serão essas reservas que acudirão em socorro das partes injuriadas
se a crosta for rompida, e quando essa mobilização for intensa será vivida como dor. Temos aí reconhecida a
necessidade de que a substância viva passe por um processo de cisões, na forma de uma diferenciação interna,
capaz de produzir áreas relativamente especializadas e separadas umas das outras de forma a enfrentar os riscos
do traumatismo, sendo as próprias experiências de trauma e dor as que criam e fortalecem essas regiões
relativamente dissociadas umas das outras.” (FIGUEIREDO, 2018, p. 19).
126

Ou, como nos diz a professora Ana sobre seu encontro com o estranho familiar:

eu trabalhei com uma professora que todo dia ela: “ah podia acabar alguma coisa,
acontecer alguma coisa para acabar a água, acabar a luz, para não ter aula.” Todo dia ela
falava isso, e eu ficava pensando meu Deus do céu, essa professora não quer dar aula?
Mas hoje em dia, mas eu era mais nova, hoje em dia eu entendo ela. Porque é difícil,
porque ela já estava há bastante tempo. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de
magistério).

A professora Ana complementa de outra forma as questões que o professor João trouxe.
O que estamos observando, a partir da análise do mal-estar docente, é um fenômeno muito mais
complexo, visto que o professor João diz que, no conjunto da entrevista, apesar de perceber os
adoecimentos na escola, físicos ou emocionais, de seus colegas professores, de certa forma
conseguiu passar incólume por eles. Ou seja, o professor João seria um professor visto e
reconhecido pelos seus pares como aquele que dá conta do mal-estar docente comum, que todos
os professores passam no âmbito das “profissões impossíveis”.
Vemos, no entanto, que este passar “incólume” significa constituir um modo de ser
adaptado e cindido no Eu como defesa. Um processo que produz um sofrimento relacionado à
desconexão consigo e com o outro, pois certos adoecimentos corporais e emocionais fazem
parte da saúde psíquica. São uma resposta do corpo ou do psiquismo que algo não vai bem, seja
do ponto de vista interno ou externo.63 Ponderamos, a longo prazo, qual o impacto desse modo
de ser adaptado para os professores? Não parece ser dos melhores e talvez mobilize, igualmente,
a desfusão da pulsão de vida e da pulsão de morte, sob hegemonia desta.
É o que vemos na teoria freudiana a respeito da disjunção, da desfusão da pulsão de vida
e da pulsão de morte. Certamente, uma das formas desta separação é o impacto das experiências
traumáticas. Sabemos também que Freud faz a análise desta disjunção da pulsão de vida e da
pulsão de morte a partir da etiologia da neurose como, por exemplo, em casos de neurose
obsessiva e melancolia.

Havendo admitido a concepção de uma mescla [ou junção] das duas espécies de instintos,
impõe-se-nos a possibilidade de uma – mais ou menos completa – disjunção desses
instintos. No componente sádico do instinto sexual teríamos o exemplo clássico de uma
mescla instintual adequada a um fim; no sadismo que se tornou independente como
perversão, o modelo de uma disjunção, embora não levada ao extremo. Então se
descortina para nós um largo âmbito de fatos, que ainda não foi considerado sob esta luz.
Percebemos que o instinto de destruição é habitualmente posto a serviço de Eros para

63
O psicanalista Pierre Fédida, em seu livro Dos benefícios da depressão, alerta que “(...) a psicanálise freudiana
constitui, com sua psicopatologia e sua clínica, a única tentativa para manter no centro da experiência humana a
função de uma negatividade (pulsão de morte, destrutividade, culpabilidade, masoquismo originário) entrando na
compreensão da subjetividade da vida psíquica. Ora – segundo eixo maior –, é no momento em que presenciamos
uma banalização médica da depressão (as neurociências sendo convocadas em auxílio) que os próprios psicanalistas
sentem-se tentados a abandonar o paradigma freudiano da vida psíquica e a promover uma psicoterapia intersubjetiva
regulada por critérios de eficácia da readaptação do indivíduo.” (FÉDIDA, 2009 p.14-5).
127

fins de descarga, suspeitamos que o ataque epiléptico seja produto e indício de uma
disjunção de instintos, e aprendemos a ver que, entre os efeitos de algumas neuroses
graves – as neuroses obsessivas, por exemplo –, merecem particular atenção a disjunção
instintual e a proeminência do instinto de morte. (FREUD, 2011b, p. 52).

Percebemos que esta desfusão dos instintos de morte e de vida se dão, para Freud,
também na cultura. Em O mal-estar na civilização, Freud se preocupava com a frustração
excessiva no psiquismo e de como a destrutividade poderia se voltar para o próprio indivíduo
como sentimento de culpa e recriminações, sendo a fonte de toda ordem de ressentimentos.
Suas preocupações relacionadas a como a sociedade produziria meios para diminuir a
intensidade da destrutividade são muito significativas. Isso o fez polemizar com os comunistas
de seu tempo. Apesar de evitar qualquer tipo de idealização das possibilidades de transformar a
realidade pelos comunistas, e inclusive criticá-los por desconhecerem a natureza humana, Freud
asseverou: “parece-me que uma real mudança nas relações das pessoas com a propriedade será
de maior valia, neste ponto, que qualquer mandamento ético.” (FREUD, 2010a, p. 119).
Trata-se de bases materiais e não um mandamento do “amar o próximo como a si
mesmo”, o qual Freud critica de forma contundente. Na educação, isso teria como correlato “o
trabalhar por amor”, a “vocação” e toda ordem de filosofias moralistas. O dilema em torno da
destrutividade da humanidade e de como ela vai evitar a desfusão dos instintos em seu
desenvolvimento cultural, transformou-se numa preocupação crescente, resultado do próprio
contexto histórico em que estava inserido e de suas experiências clínicas.

A meu ver, a questão decisiva para a espécie humana é saber se, e em que medida, a
sua evolução cultural poderá controlar as perturbações trazidas à vida em comum
pelos instintos humanos de agressão e autodestruição. Precisamente quanto a isso a
época de hoje merecerá talvez um interesse especial. Atualmente os seres humanos
atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a
elas para exterminarem até o último homem. Eles sabem disso; daí seu medo. Cabe
agora esperar que a outra das duas “potencias celestiais”, o eterno Eros, empreenda
um esforço para afirmar-se na luta contra o adversário igualmente imortal. Mas quem
pode prever o sucesso e o desenlace? (FREUD, 2010a, p. 122).

Quando uma professora, categoria V, diz que não sabe a hora que poderia dar a entrevista
porque não sabia na semana quando daria aula, quantas aulas daria, nem em que período do dia
ou da noite, nos perguntamos se isso não é carregado de um mal-estar destrutivo? Ou seja, a
professora está à serviço da escola nos três períodos letivos. Não há contenção externa que facilite
o processo de contenção do mundo interno da professora. Para além de questões relacionadas “ao
128

complexo de castração” que ela possa ter, a lógica é que a professora só recebe se der aula. Eis o
contrato precarizado e perverso em plena rede estadual de ensino do Estado de São Paulo.64
A professora Vera, categoria O, em um primeiro momento teve que desmarcar a
entrevista por causa da desorganização nas atribuições de aula, comentando que houve
professores que falaram em suicídio se não conseguissem alguma aula. Não é muito difícil
realizar um levantamento e verificar que anualmente há problemas nas atribuições de aula da
rede de ensino estadual65. São situações humilhantes, nas quais os professores passam às vezes
horas em pé, sem se alimentar, sob todas as intempéries do clima à espera e na incerteza de
aulas para completar sua jornada de trabalho.
Contudo, por que estes professores não saem da educação ou vão procurar outras redes
de ensino? Eles saem e é o que mostra a pesquisa de João Zafalão (2021) Do que adoecem os
professores e as professoras, de que há um processo de envelhecimento na rede estadual de
ensino de São Paulo, visto que os professores mais jovens e com mais possibilidades procuram
outras profissões ou outras redes de ensino com melhores condições de trabalho e salário. Há uma
série de determinantes sociais nesta saída, visto que esse movimento não é possível para todos.
Numa sociedade capitalista, o desamparo é intensificado quando há possibilidade maior
de desemprego. Parece que a “evolução cultural” não tem sido capaz de conter as dimensões
instituais destrutivas humanas; ao contrário, tem produzido mais desfusão instintual. Neste
sentido, pensamos que Freud era um psicanalista preocupado com as questões de sua época e é
interessante observar que ele aponta não a exclusão do debate econômico, mas sua

64
Como nos lembra o psicanalista Hélio Pelegrino em seu clássico artigo Pacto Social e Pacto Edípico, em que articula
a constituição do psiquismo com as dinâmicas sociais: “O pacto com a sociedade, como ficou visto, é preparado e
caucionado pelo pacto primordial. A renúncia edípica prefigura e torna possível a renúncia posterior, exigida pelo
trabalho. Se o pacto social é iníquo, e avilta o trabalho, ele vai aviltar e tornar iníqua a renúncia pulsional por ele próprio
exigida. O amor ao trabalho só é possível na medida em que os direitos do trabalhador sejam minimamente respeitados.
Se isto não ocorre, há uma ruptura do pacto social. O trabalho torna-se sem sentido, aviltante e humilhante, tanto quanto
o sacrifício e a renúncia que, em seu nome, me disponho a fazer. Rompo, aí, com a sociedade, e esta ruptura terá,
inevitavelmente, profundas repercussões intrapsíquicas, que irão sacudir, sob a forma de um abalo sísmico, os
fundamentos do pacto primordial com o Pai simbólico – e com a Lei da Cultura.” (PELLEGRINO, 1983).
65
A chamada do G1, de 24 de janeiro de 2020, aponta um problema recorrente nas atribuições de aula dos
professores da rede estadual de São Paulo: “Professores da rede estadual de SP relatam problemas e tumulto no
processo de atribuição de aulas. Docentes deveriam escolher turmas e escolas de acordo com um sistema de pontos,
mas classificação errada prejudicou resultados. Secretaria de Educação nega problemas e alega aumento na
demanda, mas prorroga prazo para atribuição.” G1. “Professores da rede estadual de SP relatam problemas e
tumulto no processo de atribuição de aulas”, 24 jan. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/educacao/noticia/2020/01/24/professores-da-rede-estadual-de-sp-relatam-problemas-e-tumulto-no-
processo-de-atribuicao-de-aulas.ghtml. Acesso em: 04 jan. 2023. Enquanto escrevo esta dissertação, os
professores da rede estadual de ensino liderados pelo seu sindicato, a Apeoesp, organizaram um ato, no dia 4 de
janeiro de 2023, em pleno período de férias, por causa das mudanças repentinas nos modos de atribuição de
2022/2023. Cf. G1. “Professores estaduais fazem ato no Centro de SP para pedir ao governo anulação do processo
de distribuição de aulas”, 04 jan. 2023. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/sao-
paulo/noticia/2023/01/04/professores-estaduais-fazem-ato-no-centro-de-sp-para-pedir-ao-governo-anulacao-do-
processo-de-distribuicao-de-aulas.ghtml. Acesso em: 04 jan. 2023.
129

complexidade. Como, por exemplo, as ideologias que se internalizam no psiquismo. Os


comunistas, para Freud, explicam parte do processo e não a totalidade dos fenômenos sociais.

Provavelmente as concepções históricas chamadas materialistas pecam por subestimar


esse fator. Elas o põem de lado com a observação de que as “ideologias” dos homens nada
mais são que produto e superestrutura de suas relações econômicas atuais. Isso é verdade,
mas muito provavelmente não é toda a verdade. A humanidade nunca vive inteiramente
no presente; o passado, a tradição da raça e do povo prossegue vivendo nas ideologias do
Super-eu, apenas muito lentamente cede às influências do presente, às novas mudanças, e,
na medida em que atua através do Super-eu, desempenha um grande papel na vida
humana, independente das condições econômicas. (FREUD, 2010a, p. 206).

“Isto é verdade, mas muito provavelmente não é toda a verdade”. Freud dialoga com as
questões e os interlocutores políticos e econômicos de seu tempo, buscando no psiquismo a
dimensão filogenética e histórica das ideologias. Ou seja, Freud, em sua obra, não produz uma
clínica fechada em si. Sobretudo, amplia substancialmente este lugar, trazendo importantes
perspectivas de pensar o social e a cultura. O Super-eu é o herdeiro do complexo de Édipo numa
dimensão cultural e histórica. São esses objetos primários e históricos que se internalizam.
No caso da educação, em especial, pensamos que, quando Freud atribui “governar,
analisar e educar” às profissões impossíveis, que lidam diretamente com o desamparo e a
incompletude, ser professor tem uma particularidade social e histórica que talvez ser
psicanalista e governante não tenham.
Primeiro que estamos falando de uma situação no atual contexto histórico em que a
maioria da população tem acesso ao ensino básico fundamental público e com ela constitui
laços diretos entre colegas ou professores e profissionais de educação. 66 Nem todo mundo vai
passar por um psicanalista, profissão ainda marcada pelo segmento das classes médias
urbanas67, e a própria relação dos governos, além de ser limitada a uma minoria geralmente

66
Em 2015 um forte movimento dos estudantes da rede estadual de ensino de São Paulo ocupou dezenas de escolas
para se contrapor à política de reorganização das escolas por parte do governo estadual, na época comandado por
Geraldo Alckmin. O movimento por vários dias organizou uma série de atividades políticas, culturais e
educacionais nas escolas com amplo apoio dos bairros e da população, o que obrigou o governador a ceder e
negociar com os estudantes. O lastro de sociabilidade que as escolas têm nos bairros em São Paulo é uma referência
restrita a poucas instituições. Fonte: https://portal.aprendiz.uol.com.br/2015/12/30/retrospectiva-2015-o-
movimento-secundarista-que-chacoalhou-educacao-brasileira/
67
Essa era inclusive uma preocupação de Freud. Em seu texto Caminhos da terapia psicanalítica, de 1919, diz:
“Pode-se prever que em algum momento a consciência da sociedade despertará, advertindo-a de que o pobre tem
tanto direito a auxílio psíquico quanto hoje em dia já tem a cirurgias vitais. E que as neuroses não afetam menos a
saúde do povo do que a tuberculose, e assim como esta não podem ser deixadas ao impotente cuidado do indivíduo.
Então serão construídos sanatórios ou consultórios que empregarão médicos de formação psicanalítica, para que,
mediante a análise, sejam mantidos capazes de resistência e de realização homens que de outro modo se entregariam
à bebida, mulheres que ameaçam sucumbir sob a carga de privações, crianças que só tem diante de si a escolha entre
neurose e o embrutecimento. Esses tratamentos serão gratuitos. Talvez demore muito até que o Estado sinta como
urgentes esses deveres. As circunstâncias presentes podem adiar mais ainda esse momento. Talvez a beneficência
privada venha a criar institutos assim; mas um dia isso terá de ocorrer. (...) Veremos, provavelmente, que os pobres
130

com amplo poder econômico, se dá com a população de modo geral bastante indireta na maior
parte do tempo.68
A educação é uma experiência que afeta diretamente o conjunto da sociedade. Num
contexto político e histórico, é na escola que se depositam, atualmente, as maiores ilusões e
desilusões, os discursos mais inflamados e os mais críticos, as esperanças mais potentes e as falas
mais absurdas. Das profissões impossíveis, a mais impossível. A escola é fonte, na atualidade, de
variadas disputas políticas e públicas ou que ocultam interesses dos mais diversos.69

se acham ainda menos dispostos a renunciar a suas neuroses do que os ricos, porque a difícil vida que os espera não
atrai, e a doença significa, para eles, mais um título à assistência social. É possível que só consigamos realizar algo
se pudermos juntar auxílio psíquico e apoio material, à maneira do imperador José.” (FREUD, 2010f, p. 292).
68
O livro de Elizabeth Ann Danto, As clínicas públicas de Freud: psicanálise e justiça social, não só analisa o
papel importante da formação e do papel das clínicas públicas, mostrando o engajamento de Freud nesta prática,
como também mostra toda a importância dos debates de ordem sociais, políticas e econômicas que estão colocados
entre as décadas de 1920 e 1930 no interior do movimento psicanalítico, com a participação direta de psicanalistas
de orientações liberais, progressistas, socialistas, comunistas etc. Uma história que, nos parece, ficou reprimida e
até recusada se formos pensar em como a psicanálise pós-freudiana empobreceu sua crítica social, como nos
lembra Joel Birman (1997). Assim como Freud faz com a psicanálise e as clínicas públicas, também caracterizamos
a educação em sua particularidade histórica, portanto, a mais impossível das profissões. “Como se antecipando
aos seus críticos, Freud apontava que essa escassez de recursos conferia ao tratamento o caráter de um privilégio,
e esse privilégio limitava os benefícios que a psicanálise poderia alcançar caso seu escopo fosse ampliado.
Segundo, ‘existe apenas um punhado’ de médicos qualificados para praticar a análise. A escassez de terapeutas e
de pacientes sugeria que a psicanálise poderia cair nas garras de um elitismo perigoso. Essa situação deveria ser
superada se os analistas alertassem mais pessoas para o seu potencial curativo. Terceiro, ‘mesmo trabalhando
muito, cada [analista] pode dedicar-se, em um ano, somente a um pequeno número de pacientes’. Esse dilema é
intrínseco ao formato intensivo e demorado do trabalho analítico, mas para Freud também significava que os
analistas não poderiam assumir uma posição de responsabilidade social que fosse compatível com sua obrigação
(...) O quarto ponto de Freud, de que a ‘enorme quantidade de miséria neurótica’ real que o analista pode eliminar
é, na melhor das hipóteses, ‘quase insignificante’ quando comparada à sua realidade no mundo, parece um simples
termo de isenção de responsabilidade. É neste trecho, entretanto, que ressurge a consciência social dos tempos da
adolescência e da universidade de Freud. O sofrimento humano não precisa ser tão difundido na sociedade nem
tão profundamente doloroso para o indivíduo. De mais a mais, o sofrimento não deriva apenas da natureza humana,
porque é, pelo menos em parte, imposto injustamente e em grande medida pelos status econômico e pela posição
na sociedade, uma desigualdade social que Ferenczi descreveu vividamente na carta de 1910. A desigualdade,
resumiu Freud, é o problema fundamental, e ele lamentava que fatores socioeconômicos explícitos restringissem
o tratamento psicanalítico às ‘classes abastadas’.” (DANTO, 2019, p. 10-1).
69
O percurso da escrita desta dissertação acontece no contexto eleitoral brasileiro. O primeiro debate dos candidatos
à presidência da República do Brasil, em 28 de agosto de 2022, na rede Bandeirantes, demonstra que o tema da
educação é fértil em afirmações de efeito. Separei algumas frases dos candidatos para identificar no social que tipo
discurso é proferido sobre uma temática tão complexa. “A educação foi abandonada no país” (Lula); “O padrão de
escola que se oferece hoje na rede pública, salvo muito maravilhosas exceções, é o ensino do século XIX, é o ensino
do século XX, é o decoreba, é o ensino sem graça, é o enciclopedismo raso em que o menino é obrigado a decorar
coisas que não têm sentido pra ele em tempos de Google. Isso é puro lixo.” (Ciro Gomes); “Neste Brasil em que nós
gastamos 5,8% do PIB com educação há tantos anos, as crianças continuam não aprendendo, os professores
continuam não ensinando.” (Felipe D´Ávila) ; “O nosso jovem vai ganhar dinheiro todo ano, e no final do terceiro
ano do ensino médio, vai ganhar cinco mil reais pra fazer o que ele quiser, dar uma entrada numa moto ou num
celular, mas pra que ele não saia.” (Simone Tebet) ; “Por isso a nossa primeira proposta, é revolucionária, é isentar...
escutem bem, escutem bem, isentar de imposto de renda todos os professores.” (Soraya Thronick); Apesar de
Bolsonaro, neste debate, não ter tocado na questão da educação, o que já é algo significativo do ponto de vista do
silêncio, sabemos que seus temas relacionados a colégios militares, “ideologia de gênero” e controle do trabalho do
professor fazem parte do seu programa de governo. UOL. “Íntegra do debate presidencial”, 29 ago. 2022. Disponível
em: https://noticias.uol.com.br/eleicoes/2022/08/29/debate-uol-integra.htm. Acesso em: 29 ago. 2022.
131

Neste contexto, o cenário da pandemia de Coronavírus (2020-2021) intensificou as


dimensões destrutivas do atual estágio do capitalismo, seja no aumento da concentração de riqueza
no mundo, seja no fortalecimento de políticos e discursos nacionalistas de direita, assim como as
dificuldades de acesso aos direitos básicos de saúde, educação e vacina para viver. A escola, em
especial a rede estadual de ensino de São Paulo, também expressou estas contradições com mais
intensidade devido, inclusive, a limitada capacidade de resistência política e coletiva dos
professores.

4.2. Mal-estar, pandemia e “greve pela vida”

Ao observar o período de percurso desta dissertação (2021-2023) podemos visualizar


algumas políticas e práticas do governo estadual de São Paulo que precarizam ou intensificam
o trabalho dos professores, inclusive no contexto da pandemia de Coronavírus. Em outubro de
2021 e em março de 2022 tivemos duas evidentes derrotas dos professores na Assembleia
Legislativa de São Paulo, na qual os professores perderam direitos (já explicitados no capítulo
1). A própria pandemia – se pensarmos que a escola era um lugar de aglomeração, portanto
deveria ser prioridade no início da vacinação, demonstrou a falta de cuidado do governo que
resultou em mortes dos profissionais de educação e alunos. Por último, a política dos itinerários
formativos, impostas pela nova BNCC, na qual faltaram professores para todas as disciplinas70.
Nunca é demais lembrar que essa é a rede de ensino do estado mais rico da federação. O que
percebemos, pelas falas dos professores entrevistados, é que “não há paz na rede de ensino

70
A nota da REPU sobre a implementação do novo ensino e dos chamados itinerários formativos diz: “O cenário
mostrado nesses dados é alarmante: é como se os/as estudantes tivessem, em vez de cinco dias letivos por semana,
apenas quatro. Diferentemente da exclusão gerada pela pandemia e pela falta de acesso a equipamentos e recursos
suficientes para o ensino remoto, agora estamos diante de um cenário de aulas presenciais e regulares, no primeiro
semestre de implementação daquilo que o governo do estado de São Paulo costuma chamar de ‘revolução
educacional’. Para o segundo semestre de 2022, a situação não é melhor, pois o montante de aulas sem
professores/as aumenta para 24.943 (27,8% do total). (...) A rede estadual de ensino paulista tem um déficit
histórico de professores concursados, sendo fortemente dependente da presença de docentes temporários e
eventuais. O último concurso público para contratação de professores/as para o Ensino Médio e os anos finais do
Ensino Fundamental foi realizado em 2013. Longe de facilitar a atribuição de professores/as nas aulas, o NEM
promove uma violenta intensificação do trabalho docente, uma vez que um/a docente que antes trabalhava com
uma única disciplina em várias turmas ou escolas agora completa a sua carga horária com diversos itinerários
formativos em várias turmas ou escolas. Tal condição se soma à já conhecida desvalorização do trabalho docente
na rede estadual (BARBOSA et al., 2021).” REDE ESCOLA PÚBLICA E UNIVERSIDADE. “Novo Ensino
Médio e indução de desigualdades escolares na rede estadual de São Paulo [Nota Técnica]”. São Paulo: REPU, 02
jun. 2022. Disponível em: https://www.repu.com.br/notas-tecnicas. Acesso em: 04 jun. 2022.
132

estadual”71. Todo final de ano se espera alguma famigerada surpresa relacionada às políticas
que interferem diretamente no trabalho do professor na escola.
Ainda sob o contexto da pandemia de Coronavírus, no início do ano de 2021, os
professores entrevistados vivenciaram o governo estadual de São Paulo flexibilizar as medidas
para conter a disseminação da Covid e indicar a volta às aulas presenciais em forma de rodízio
dos alunos. Com os conflitos entre o governo estadual de São Paulo de Dória e o governo
federal de Bolsonaro sobre o uso da Coronavac, vacina de origem chinesa, o processo de
vacinação no Brasil atrasou alguns meses, o que produziu uma CPI no Senado Federal sobre a
política federal de vacinação.72
O início da vacinação em janeiro/fevereiro de 2021 entusiasmou a população de que o
pior havia passado, no que pese intensa propaganda contrária, negacionista por parte de
segmentos da sociedade identificados ao Bolsonarismo. O próprio presidente, em vídeos na
internet, indicava, imitando o até então presidente do EUA, Donald Trump, o uso da Cloroquina
para conter a Covid, questionando a qualidade da vacina de origem chinesa.73
O primeiro semestre de 2021, em especial os meses de março, abril e maio, foi o pior
da pandemia até então. A falta de vacinas para todo o território, as prioridades aos trabalhadores
da saúde e aos idosos, assim como as disputas de segmentos das classes sociais para serem
vacinados, certamente ainda produzirão muitos estudos, de como o processo de vacinação

71
Enquanto finalizo esta dissertação, vejo, através das redes sociais de professores e da imprensa, mais uma
mudança na política de atribuições de aula 2022/2023 que produz enorme mal-estar. O professor Fernando Cassio,
membro da REPU, na Carta Capital de 27 de dezembro de 2022 relata: “Ocorre que Nalva e os outros 152 mil
docentes da rede estadual paulista foram surpreendidos por uma mudança nas regras de atribuição das aulas para
2023 por parte da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP). Agora, aqueles docentes com
jornada de 32 horas em sala de aula têm prioridade na escolha das aulas. Isso significa que professores efetivos
mais experientes e com formação mais sólida, mas que tenham a chamada “jornada básica” de 20 horas semanais,
correm o risco de ficar sem aula nas escolas que lecionam há anos e com as quais têm estreitos vínculos
profissionais e afetivos (...) Com a mudança nas regras – agravada pela Reforma do Ensino Médio que dizimou as
aulas de Filosofia – Nalva se viu obrigada a ampliar sua jornada de trabalho para poder manter seu vínculo com a
escola em que dá aulas, e ainda assim não foi a professora com maior pontuação em sua área naquela escola.
Resultado: assumirá uma única aula de Filosofia em 2023, somada a 14 (catorze!) componentes curriculares
diferentes: A cultura e seus sentidos, Ativismo Digital, Cidadania Digital, Cidadania Global, Cidadania e Justiça,
Diálogos acerca dos Direitos Humanos, Eu e os outros, Juventude, Economia e Trabalho, Liberdade, determinismo
e responsabilidade, Pensamento, política e trabalho, Sociedade e meio ambiente, Tecnologia, comunicação e
cultura, Tópicos de cidadania, Trabalho e vida. Sendo humanamente impossível que qualquer professor consiga
preparar 15 cursos diferentes para ser ministrados em apenas 20 horas-aulas semanais, esta será uma oportunidade
ímpar para a professora ensinar aos seus estudantes a construção ideológica do conceito de cidadania na sociedade
neoliberal.” FERNANDO CASSIO. “De saída do governo, PSDB chantageia professores na escolha das aulas
para 2023”, Carta Capital, 27 dez. 2022. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/de-saida-do-
governo-psdb-chantageia-professores-na-escolha-das-aulas-para-2023/. Acesso em: 27 dez. 2022.
72
CORREIO BRAZILIENSE. “CPI encerra atividades e culpa Bolsonaro por tragédia da covid”, 27 out. 2021.
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/10/4958390-cpi-encerra-atividades-e-culpa-
bolsonaro-por-tragedia-da-covid.html. Acesso em: 28 out. 2021.
73
O GLOBO. “Coronavírus: na redes, Bolsonaro imita discurso de Trump na crise sanitária”, 02 abr. 2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/coronavirus-nas-redes-bolsonaro-imita-discurso-de-trump-na-
crise-sanitaria-24345653. Acesso em: 03 abr. 2020.
133

intensificou as desigualdades sociais e raciais no Brasil e permitiu que se evidenciasse o papel


do Estado e das classes dominantes em sua necropolítica74. Estudos iniciais já indicam o perfil
da população mais afetada pela Covid: pobres, negros, indígenas e mulheres.75
Na educação, vista inicialmente como não prioritária na vacinação, houve um intenso
debate sobre os riscos do retorno às aulas presenciais. Mesmo com todas as “garantias” do
governo, as aglomerações na escola poderiam intensificar a pandemia.
Os profissionais da educação das redes de ensino estadual e municipal de São Paulo
declararam “greve pela vida.” Talvez esta tenha sido a primeira vez na história da educação
paulista que uma greve foi deflagrada não por aumentos salariais ou por condições de trabalho,
mas para viver, sem nenhum uso retórico da expressão. Os variados registros sindicais e na
imprensa demonstraram que professores e profissionais da educação destas redes perderam a
vida devido à contaminação na escola.76
A pressão da greve e do debate na sociedade fez com que o governo estadual resolvesse
vacinar os profissionais de educação acima de 47 anos a partir do mês de abril, um dos
momentos mais mortíferos da pandemia77, o que produziu uma divisão nas redes de ensino e
do próprio movimento grevista.
Com maior força de organização sindical, os professores e profissionais de educação da
rede municipal de São Paulo fizeram mais de 100 dias de greve, numa das maiores greves da
história do movimento sindical brasileiro.78 Na rede estadual, a desarticulação sindical e dos

74
O filósofo Achille Mbembe (2019) discute, em um breve ensaio, o modo como o Estado atua de forma consciente
o seu poder para definir quem pode viver e ou morrer socialmente, caracterizando este modo de fazer política
como “necropolítica”, mediado pela modernidade tardia.
75
O livro de Joel Birman, O trauma na pandemia do coronavírus: suas dimensões políticas, sociais, econômicas,
ecológicas, culturais, éticas e científicas, traça um panorama inicial desse momento traumático do mundo e em
especial do Brasil na qual aproximadamente 700 mil mortes ocorreram. “Não resta dúvida, então, como os
indivíduos negros e pardos foram mais atingidos pela Covid-19, se mensurarmos tanto os casos clínicos de
infectados quanto os mortos, uma vez que esse contingente populacional se encontra principalmente entre as
classes sociais pobres e precárias, muito mais expostas à disseminação do vírus do que as populações brancas,
representadas pelas classes médias e as elites”. (BIRMAN, 2021, p. 98).
76
Em 20 de março de 2021, o sindicato dos professores da rede estadual alertou: “Apeoesp: com aulas presenciais,
2.294 professores contraíram Covid e 48 morreram”. Em abril de 2021 tivemos o pico da pandemia e
conjuntamente um movimento grevista que obrigou o governo Dória a iniciar a vacinação dos professores. A
TRIBUNA PIRACICABANA. “Apeoesp: com aulas presenciais, 2.294 professores contraíram Covid e 48
morreram”, 20 mar. 2021. Disponível em: https://www.atribunapiracicabana.com.br/2021/03/20/apeoesp-com-
aulas-presenciais-2-294-professores-contrairam-covid-e-48-morreram/. Acesso em: 21 mar. 2021.
77
Faltando ainda 6 dias para acabar o mês de abril ele já se tornará o mês mais mortífero da pandemia. Em 24
dias de abril quase 68 mil mortes. G1. “A 6 dias do fim, abril se torna o mês mais letal da pandemia no Brasil”, 24
abr. 2021. Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2021/04/24/abril-se-torna-o-mes-
mais-letal-da-pandemia-no-brasil.ghtml. Acesso em: 24 abr. 2021.
78
“100 dias de greve pela vida: Um professor tem 3 vezes mais chance de pegar COVID do que um trabalhador
da mesma idade. E por causa disso os professores entenderam que a luta na rua é mais segura do que a resignação
dentro de uma sala. Não é admissível ver vans escolares transportando caixões de colegas mortos em decorrência
de uma doença para a qual já existe vacina.” JACOBIN BRASIL. “100 dias de greve pela vida”, 20 mai. 2021.
Disponível em: https://jacobin.com.br/2021/05/100-dias-de-greve-pela-vida/. Acesso em: 25 mai. 2021.
134

professores enfraqueceu demasiadamente a greve. Uma das evidências mais claras disso é que
muitos diretores da rede municipal não cortaram o ponto dos professores, o que permitiu que
terminassem a greve sem descontos salariais e ficassem disponíveis apenas para as reposições.
Na rede estadual, a unidade entre os profissionais de educação não existiu, produto das
políticas de divisão da categoria organizadas pelos governos estaduais de São Paulo ao longo dos
anos, assim como o enfraquecimento sindical, fenômeno que carrega as particularidades da
Apeoesp, mas que tem dimensões históricas nacionais e internacionais.79 Os professores da rede
estadual correram mais riscos de morte pela precarização de sua organização sindical e de trabalho.
Interessante observar que esta diferença entre as redes estadual e municipal de São Paulo
é um dado comum na pesquisa, na fala dos professores com relação ao plano de carreira,
condições de trabalho e salário, e unidade política e pedagógica dos professores. A rede de
ensino municipal de São Paulo é, segundo os dados da pesquisa, mais atrativa para os
professores, no que pese também estar sob efeito da precariedade. A comparação com a rede
de ensino estadual torna mais evidente a intensidade da precariedade desta rede de ensino.
Nos dados de pesquisa percebemos que o concurso da rede municipal de educação é
uma forma mais segura para os professores deixarem a rede de ensino estadual. O que é
interessante observar no próprio processo de vacinação contra a Covid, o envelhecimento maior
dos professores da rede estadual de ensino com relação à rede municipal. A rede estadual de
ensino não é atrativa para os professores mais jovens ou aqueles que estão iniciando seu
percurso educacional, como nos mostra também a pesquisa de Zafalão (2021). Muitos dados da
pesquisa indicaram sobre a dimensão de um “mal-estar destrutivo” na rede de ensino estadual,
ou seja, um mal-estar intensificado pelas condições de precarização do trabalho e das relações
de trabalho, de desligamento, não de ampliação de Eros, de instinto de vida, mas justamente,
como nos traz Freud, instinto de morte, de Thanatos.
O uso por parte dos professores de palavras relacionadas às metáforas de guerra, em seu
trabalho na escola, nos indica isso: “afiar a espada” (professor Luiz) “munição” (professor
Fernando), “desunião” (Professora Luana), “sobrevivente” (Professor João) tornada mais
evidente pela consigna “greve pela vida”. No que pese representar alguma possibilidade de luta

79
Em O homem unidimensional, Herbert Marcuse discute o fechamento do universo político e a indiferenciação
das corporações e os sindicatos apontando internacionalmente os efeitos dos processos de integração e adaptação
dos sindicatos e partidos de esquerda ao atual estágio do capitalismo. “Esses partidos comunistas nacionais
desempenham o papel histórico de partidos de oposição legal, ‘condenados’ a ser não-radicais. Eles testemunham
a profundidade e alcance da integração capitalista e as condições que fazem a diferença qualitativa de interesses
em conflito parecerem diferenças quantitativas dentro da sociedade estabelecida.” (MARCUSE, 2015, p. 56-7).
135

dos professores para viver, o uso destas expressões aponta para dimensões de um mal-estar
destrutivo em que estão colocados os professores da rede de ensino pública estadual.
Há muitas pesquisas e especialistas que tentam adaptar o professor a estas situações
muitas vezes vistas como contingentes. A tese de doutorado de Ademir Henrique Manfré, O
mal-estar docente e os limites da experiência no tempo presente: uma leitura frankfurtiana
(2014), estudou uma série de trabalhos acadêmicos que encontraram, como saída para o mal-
estar docente, uma maior adequação frente às exigências. As pesquisas estudadas pelo autor
apontaram o que os professores buscam para o bem-estar: práticas de resiliência, fé,
afastamento dos problemas, impor limites, dialogar, harmonia no trabalho, greves, paralisações
e terapia. Manfré aponta que “esses autores defendem a tese de que os professores melhores
capacitados estariam em boas condições de evitar o adoecimento, o mal-estar, a angústia. Desse
modo compreendem o bom professor como aquele que não adoece, ou seja, o professor seria
aquele que encontra satisfação nos próprios sintomas.” (MANFRÉ, 2014, p. 67).
Manfré desenvolve sua crítica com base nos pressupostos de O mal-estar na civilização e
da particularidade do ofício docente, e a partir de Birman, Bauman, Benjamin e Adorno, a análise
do empobrecimento da experiência relacionada às transformações tecnológicas da sociedade e o
advento da racionalidade instrumental. O indivíduo ajustado seria aquele que carrega as marcas
objetivas irracionais, destrutivas. Os sujeitos, portanto, que se adaptam a esse modelo de sociedade
não são menos enfermos que os indivíduos supostamente doentes. Ao contrário, confirmam o
triunfo da sociabilidade instrumental sobre a esfera individual. (MANFRÉ, 2014).
É claro que há estudos mais longos que mostram a precarização do trabalho dos
professores, como o de Zafalão (2021) que estudou a rede de ensino de 2007 a 2018, apontando
as políticas do governo estadual que precarizaram o trabalho dos professores. No entanto, o que
está colocado se olharmos de modo mais amplo para a organização social sob o capital em
âmbito mundial, é que elas revelam uma formação social, que em nada colabora, como nos
lembra Freud, para a melhora nas perturbações trazidas pelos instintos de destruição, mas os
amplifica ao não oferecer algum amparo para o mal-estar.

4.3 Mal-estar, monopolização do capital e fascismo


136

Os processos de concentração e monopolização de riqueza no mundo e no Brasil80 pós-


pandemia demonstram que as crises de todas as ordens são muitas vezes oportunidades para
um novo estágio de acumulação de capital. Da mesma forma, a utilização de tecnologias
militares através de drones, por exemplo, servem a um nível de destrutividade sem limites,
como observamos na guerra da Ucrânia, aos quais estes equipamentos intervêm e filmam em
tempo real soldados ucranianos e russos se dilacerando por vezes em lutas de trincheiras e
cenários que lembram a barbárie da Primeira Guerra Mundial.
Nos parece que as bases que Freud definiu em um dos últimos textos de sua vida, quando
analisava os efeitos destrutivos do stalinismo, do nazismo e o fascismo, permanecem. Segundo
o psicanalista, “vivemos numa época singular. Percebemos, com espanto, que o progresso fez
um pacto com a barbárie.” (FREUD, 2018a, p. 79). E acrescenta na sequência:

Na Rússia soviética, procurou-se melhorar as condições de vida de 100 milhões de


pessoas mantidas na opressão. O governo foi ousado ao lhe tirar o “ópio” da religião,
e teve a sabedoria de lhes dar uma medida razoável de liberdade sexual; mas, ao
mesmo tempo, sujeitou-as à mais cruel coação e privou-as de toda possibilidade de
pensar livremente. Com violência semelhante, o povo italiano é educado no culto à
ordem e ao sentimento do dever. No caso do povo alemão, sentimos como que o alívio
de uma atormentadora apreensão, ao ver que a recaída numa barbárie pré-histórica
pode ocorrer sem se apoiar numa ideia progressista.

É sob estes fundamentos da relação entre “progresso” e “barbárie” que se encontram as


condições pelas quais a rede estadual de ensino de São Paulo está, certamente, relacionada as
políticas que dizem sobre a forma hegemônica do capital monopolista se desenvolver no mundo
(ADORNO, 2020a; MARCUSE, 2010; MÉSZAROS, 2006; LAVAL, 2019; MBEMBE, 2019).
Formas locais de manifestação do mal-estar e da destrutividade são cada vez mais conectadas
de forma global. O contexto de pandemia (cerca de 700 mil mortos somente no Brasil) e
discursos negacionistas de vacina, de guerra (Rússia x Ucrânia/Otan) nos faz reviver expressões
que pareciam esquecidas como uso de armas nucleares, além da própria lógica de expansão e
acumulação do capital.81

80
Segundo estudo da FGV: “O estudo mostrou que o Índice de Gini – utilizado para medir o grau de concentração
de renda e apontar a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos – chegou a 0,7068 em 2020,
valor é superior ao 0,6013 calculado apenas na Pnad Contínua. Cada 0,03 ponto corresponde a uma grande
mudança da desigualdade e quanto mais perto de 1, maior é a desigualdade. O fato é que houve um aumento na
desigualdade entre os mais pobres e mais ricos no Brasil, principalmente devido ao efeito da pandemia sobre a
classe média.” Disponível em: https://ibase.br/pesquisa-da-fgv-aponta-aumento-da-desigualdade-social-apos-a-
pandemia/. Acesso: 19/07/2023.
81
Putin, que utilizou uma retórica de utilização de armas nucleares caso o ocidente ameaçasse a Rússia, diz que
“o mundo enfrenta década mais perigosa desde segunda guerra mundial”. CNN BRASIL. “Putin diz que mundo
enfrenta ‘década mais perigosa’ desde Segunda Guerra Mundial”, 27 out. 2022. Disponível em:
https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/putin-diz-que-mundo-enfrenta-decada-mais-perigosa-desde-
segunda-guerra-mundial/. Acesso em: 28 out. 2022.
137

O aumento dos discursos nacionalistas de extrema-direita em países do centro e da


periferia do capitalismo (Trump, Le Pen, Putin, Bolsonaro, Meloni etc.), nos evidenciam que
ainda estamos próximos das questões que Freud apontou em suas obras a partir de 1920, Além
do Princípio do Prazer, e em 1921, Psicologias das massas e análise do eu. Como lembra
Adorno: “com frequência ocorre que convicções e ideologias, justamente quando elas não são
mais de fato substanciais devido à situação objetiva, assumem então seu caráter demoníaco, seu
caráter verdadeiramente destrutivo.” (ADORNO, 2020a, p. 48).
É desta perspectiva que Adorno, em um texto de 1967, resultado de uma conferência
nomeada Aspectos do novo radicalismo de direita, observou que os fundamentos que
produziram o fascismo ainda existiam. Um destes pressupostos é a dinâmica de concentração
do capital que se tornou monopolista no século XX e que produz efeitos sociais decisivos nos
modos de organização das classes sociais e nos indivíduos.

(...) essa tendência de concentração ainda significa a possibilidade de desclassificação


permanente de camadas que eram completamente burguesas de acordo com sua
consciência de classe subjetiva e que querem fixar seus privilégios e seu status social,
e possivelmente fortalecê-los. Esses grupos continuam a tender a um ódio ao
socialismo ou àquilo que eles chamam de socialismo, isto é, transferem a culpa de sua
própria desclassificação potencial não ao aparato que a causa, mas àqueles que se
opuseram criticamente ao sistema no qual outrora elas possuíam status, ao menos
concepções tradicionais. (ADORNO, 2020a, p. 46).

No livro Para Além do Capital, Mészáros traz o aspecto destrutivo do modo de


organização atual, a queima incessante e desenfreada do valor de uso das coisas como uma
marca da contemporaneidade. O título da obra do filósofo nos remete associativamente ao Para
além do princípio do prazer, de Freud, e a manifestação da compulsão como aquilo que está na
ordem do irrepresentável, do instinto de morte, Thanatos.

A expansão desenfreada do capital desses últimos séculos abriu-se não apenas em resposta
a necessidades reais, mas também por gerar apetites imaginários ou artificiais – para os
quais, em princípio, não há nenhum limite, a não ser a quebra do motor que continua a
gerá-los em escala cada vez maior e cada vez mais destrutiva – pelo modo de existência
independente e pelo poder de consumo auto-afirmativo. (MÉSZÁROS, 2006, p. 109).

As bases do progresso e da razão como formas de iluminar um ideal de civilização


entraram em crise no século XX. A falência da promessa de autonomia modifica a própria
forma como os sujeitos se relacionam com a cultura, muitas vezes de modo irracional. As
democracias não respondem ao anseio de amplas camadas da população. É o que nos lembra
Adorno em 1967,

(...) a democracia, no que concerne ao conteúdo (o conteúdo socioeconômico), até


hoje não se concretizou real e totalmente em nenhum lugar, tendo permanecido como
algo formal. E, nesse sentido, poderíamos caracterizar os movimentos fascistas como
138

as feridas, as cicatrizes de uma democracia que até hoje ainda não faz justiça a seu
próprio conceito. (ADORNO, 2020a, p. 51).

O legado destes processos históricos é a relação formal da maioria dos indivíduos com
a cultura, o trabalho e a democracia. Como não se sentem parte, normalmente excluídos de suas
benesses e prazeres, tentam voltar para si exclusivamente a libido que poderia encontrar vazão
nos objetos da cultura, nas relações intersubjetivas e no trabalho.
Herbert Marcuse, em Eros e Civilização, caracterizou este momento histórico sob as
bases da mais-repressão e do princípio do desempenho, a forma como o princípio de realidade
assumiria no atual contexto histórico. A dominação, para o filósofo, passou por um crescente
processo de racionalização na qual

Os homens não vivem sua própria vida, mas desempenham tão-só funções
preestabelecidas. Enquanto trabalham, não satisfazem suas próprias necessidades e
faculdades, mas trabalham em alienação. O trabalho tornou-se agora geral, assim
como as restrições impostas à libido: o tempo de trabalho, que ocupa a maior parte do
tempo alienado significa ausência de gratificação, negação do princípio de prazer. A
libido é desviada para desempenhos socialmente úteis, em que o indivíduo trabalha
para si mesmo somente na medida em que trabalha para o sistema, empenho em
atividades que, na grande maioria dos casos, não coincidem com suas próprias
faculdades e desejos. (MARCUSE, 2010, p. 58).

Neste âmbito, é interessante observar que os homens não só passam pela lógica da
dominação no trabalho, mas o seu tempo livre também está sob a mesma lógica. No atual
estágio da civilização, produziu-se uma indústria de entretenimento que controla diretamente o
tempo de lazer como se estivesse sob a lógica do trabalho.
A tese de Marcuse em Eros e Civilização é que este modelo de desenvolvimento
civilizatório produz unicamente destrutividade reconhecida como progresso, o que torna mais
complexa as saídas para construção de um outro princípio de realidade.

(...) através da destruição tecnológica construtiva, através da violação construtiva da


natureza, os instintos ainda estariam agindo no sentido do aniquilamento da vida. A
hipótese radical de Para Além do Princípio do Prazer manter-se-ia de pé: os instintos de
autopreservação, autoafirmação e domínio, na medida em que tenham absorvido a
destrutividade, teriam a função de garantir “o próprio rumo para a morte” do organismo.
Freud rejeitou essa hipótese quase a seguir à sua apresentação, mas as formulações
expostas em Mal-estar na Civilização parecem restaurar o seu conteúdo essencial. E o
fato da destruição da vida (humana e animal) ter progredido com o progresso da
civilização, da crueldade, o ódio e o extermínio científico do homem terem aumentado
em relação à possibilidade real de eliminação da opressão – essa característica dos
estágios mais recentes da civilização industrial possuiria raízes instintivas que perpetuam
a destrutividade para além dos limites de toda a racionalidade. Portanto, o crescente
domínio da natureza, com a crescente produtividade do trabalho, desenvolveria e supriria
as necessidades humanas somente como um subproduto; a riqueza e os conhecimentos
culturais crescentes forneceriam o material para a destruição progressiva e a necessidade
de uma cada vez maior repressão instintiva. (MARCUSE, 2010, p. 90).
139

Ao ler o conjunto da obra de Freud, compartilhamos com Marcuse o fato de que as


formulações expostas em O mal-estar na civilização e em outros textos do psicanalista,
estabelecem as bases da dimensão destrutiva da civilização, inclusive a caminho de uma
aniquilação.
Por fim, trabalhamos, no início deste capítulo, um panorama da situação histórica da
atualidade combinada aos aspectos políticos, econômicos e psíquicos na rede estadual de ensino
de São Paulo. Na sequência iremos marcar estas dimensões destrutivas que aparecem como
fenômeno da dinâmica social através das falas dos professores em sua experiência na escola,
qual seja: quais são os efeitos psíquicos e sociais deste mal-estar destrutivo.
140

5. MAL-ESTAR E SOFRIMENTO

Ser um professor crítico é cansativo.

Professor João

Em O mal-estar na civilização, Freud estabelece as bases de um modo de sofrer humano


marcado pela “evolução cultural”. Uma das características deste mal-estar é que renunciamos
às dimensões instintuais para viver em sociedade. Um conflito que não pode ser reconciliado e
marca a vida humana.
Ao colocar em evidência a causa de muitos fenômenos individuais ou sociais que
pareciam ocultos ou inexplicáveis, Freud dá destaque a um modo de sofrer humano desde os
seus princípios – da sexualidade e o desamparo infantil.
Sob o desenvolvimento da sexualidade e o desamparo infantil se constituiu uma relação
com o mundo e um modo de sofrimento. Do sentimento oceânico às formas místicas, das
demandas religiosas a um Pai onipotente e todos os deslocamentos que daí derivam, “tudo isso
é tão claramente infantil, tão alheio à realidade, que para alguém de atitude humanitária é
doloroso pensar que a grande maioria dos mortais nunca se porá acima desta concepção de vida.”
(FREUD, 2010a, p. 27).
No entanto, Freud reconhece a dureza da vida e as formas de deslocamentos, de buscas
por diversões, gratificações e mesmo substâncias químicas como parte da vida que visam
mitigar esses sofrimentos ou que estão no contexto de uma busca da felicidade, da ausência de
dores e desprazer e encontro com fortes prazeres. Como nos lembra o psicanalista, “a vida, tal
como nos coube, é muito difícil para nós, traz demasiadas dores, decepções, tarefas insolúveis.
Para suportá-la, não podemos dispensar paliativos.” (FREUD, 2010a, p. 28).
Nesta busca por felicidade, o humano não dará conta de aplacar todas as formas de
sofrer. Assim, o sofrimento é parte substancial da condição humana; o modo como cada
indivíduo sustentará esse sofrimento dirá sobre sua relação consigo e com o mundo.

Apesar dessa incompletude de nossa investigação, arrisco-me a fazer algumas


observações conclusivas. O programa de ser feliz, que nos é imposto pelo princípio do
prazer, é irrealizável, mas não nos é permitido – ou melhor, não somos capazes de –
abandonar os esforços para de alguma maneira tornar menos distante a sua realização.
Nisso há diferentes caminhos que podem ser tomados, seja dando prioridade ao conteúdo
positivo da meta, a obtenção de prazer, ou ao negativo, evitar o desprazer. Em nenhum
desses caminhos podemos alcançar tudo o que desejamos. (FREUD, 2010a, p. 40).

O que vemos Freud demarcar é que o sofrimento faz parte da condição humana, mas
não significa que devemos simplesmente nos adaptar a ele. Melhorar a vida e suas condições
141

torna-se a mais virtuosa e complexa das ações. “Se não podemos abolir todo o sofrer, podemos
abolir parte dele, e mitigar outra parte – uma experiência milenar nos convenceu disso.”
(FREUD, 2010a, p. 44).
Por isso, pensar e observar as dinâmicas individuais e sociais em seus modos de
sofrimentos passam a ser fonte de pesquisa da psicanálise. Assim como há modos de sofrer
individuais, há aqueles em grupo, como nos apontou Freud em Psicologia das massas [grupo]
e análise do eu. Todavia, mesmo antes deste clássico há muitas alusões de Freud aos aspectos
comuns do sofrimento.
Quando temos contato com o conjunto dos textos de Freud, uma obra longa que
demonstra um árduo percurso de elaboração através de suas experiências clínicas e observação
da sociedade, notamos que a realidade social ou a chamada realidade exterior sempre aparece
no conjunto de seus textos e jogam luz a um modo de ser e sofrer comum.
Mesmo na Interpretação dos Sonhos, de 1900, obra que se considera inaugural da
psicanálise, em que cada sonho tem uma construção bastante singular a partir do “trabalho do
sonho”, no qual cabe ao indivíduo analisado construir o significado pela relação entre o
conteúdo manifesto e latente, temos já uma dimensão social que escapa82, chamada por Freud
de “sonhos típicos”, mais comum de significados. Estes sonhos diriam sobre a condição
humana, a experiência social de sonhar e de sofrer.

Em geral, não somos capazes de interpretar o sonho de outra pessoa se ela não quiser
nos fornecer os pensamentos inconscientes que estão por trás do conteúdo do sonho,
o que prejudica fortemente a utilização prática do nosso método de intepretação dos
sonhos. Mas, em pleno contraste com a liberdade que o indivíduo tem para formar seu
mundo onírico ao seu modo e assim torná-lo inacessível à compreensão dos outros,
existe certo número de sonhos que quase todos os indivíduos têm da mesma forma e
que nos habituamos a supor que tem o mesmo significado para todos. Esses sonhos
típicos merecem um interesse especial também porque, presumivelmente, vêm das
mesmas fontes em todas as pessoas e, portanto, parecem especialmente adequados a
nos esclarecer sobre as fontes dos sonhos. (FREUD, 2019, p. 280-1).

Nestes sonhos típicos temos aqueles de embaraço causados pela nudez, o sonho de
morte de pessoas queridas, sonhos de voar ou cair, sonhos com exames. O sonho de morte de
pessoas queridas abre, de forma mais significativa, a relação com o complexo de Édipo, pedra
fundamental da construção freudiana.
O Édipo, a relação com os pais, a relação de amor e ódio, como uma expressão da
ambivalência, é comum aos indivíduos. Isso certamente diz sobre um modelo de família

82
Não podemos deixar de considerar também que o próprio conteúdo dos sonhos revela por si expressões dos
signos e símbolos de uma cultura. Portanto, são estritamente sociais na medida em que, apesar de apresentarem
significados singulares na análise do sonho, se dão sobre imagens que tem um sentido social e comunicável, que
não excluem as lógicas de poder, distinção e dominações sociais.
142

determinada historicamente83. O que escapa nesses “sonhos típicos” é como se realiza um modo
de mal-estar e sofrimento comum.
Um outro texto interessante em que escapa uma dimensão mais social de um modo de
sofrer dos indivíduos é O chiste e sua relação com o inconsciente, de 1905, no qual se distingue
as formas como as classes sociais percebem o que é cômico, e até a forma como realizam a
dimensão agressiva que se desrecalca no chiste.

Aqui se torna finalmente compreensível o que o chiste faz a serviço de sua tendência. Ele
possibilita a satisfação de um instinto (lascivo e hostil) ante um obstáculo que se acha em
seu caminho, desviando-se dele e assim criando prazer a partir de uma fonte de prazer que
se tornaria inacessível por causa desse obstáculo. O obstáculo no caminho não é outra
coisa senão a incapacidade da mulher, tão maior quanto mais elevadas a formação e a
classe social, de suportar o que é francamente sexual. (FREUD, 2017, p. 144-5).

Neste trecho, Freud traz aspectos relacionados à educação da mulher, carregada de


repressão de sua sexualidade. Discute como o riso se dá pelas classes sociais sendo um “obstáculo”
aos segmentos mais elevados, do ponto de vista socioeconômico, para lidar com a sexualidade.
Nas classes sociais populares, a repressão à sexualidade é menor por determinantes
sociais. Freud (2017, p. 145) complementa que “pode-se observar como os homens de classes
mais altas são levados, na companhia de moças de classes inferiores, a rebaixar as piadas
chistosas a piadas vulgares de baixo calão.”
Além da relação de poder entre homens e mulheres observada por Freud que, por si só, já
produzirá um tipo de chiste e humor, temos as diferenças de classes sociais e como a agressividade
circula entre elas, produzindo uma relação de mal-estar e sofrimento bastante particular.
A repressão, apesar de ser um processo psíquico que atravessa a todos, tem uma
diferença social. Se a psique não tolera a renúncia a um prazer, ela vai encontrar formas de

83
Em Temas básicos de sociologia, Adorno escreve um capítulo muito interessante sobre o conceito de “família”, no
qual situa suas bases, relações sociais e crises do ponto de vista histórico. Em um determinado trecho diz: “a
consciência ingênua vê as relações privadas como uma ilha situada em pleno fluxo da dinâmica social, como um
resíduo do estado natural. Na verdade, a família não só depende da realidade social, em suas sucessivas concretizações
históricas, mas também está socialmente mediatizada, mesmo em sua estrutura mais íntima.” (ADORNO, 1973, p.
133). Maria Rita Kehl, em seu artigo Em defesa da família tentacular, contribui para situar a família do ponto de
vista histórico e sua expressão nas formas de sintoma. “Vale lembrar que na época em que Freud começou a escutar
as expressões do sofrimento das histéricas e a entender as razões das inibições culposas dos obsessivos, a família
nuclear burguesa estava em pleno apogeu. Era do seio das famílias vienenses mais estruturadas, no final do século
XIX, que vieram os primeiros pacientes que possibilitaram ao Dr. Sigmund Freud investigar a origem das neuroses
e inventar a psicanálise. Aquele foi o modelo de família onde germinaram as modalidades modernas de mal estar,
que Freud associou às exigências da monogamia, às restrições sexuais impostas sobretudo às mulheres, à
claustrofobia doméstica que contribuía para fixar os filhos no lugar de objetos do amor incestuoso de suas mães.
Observem que estou invertendo propositalmente os termos do chamado Complexo de Édipo, ao afirmar que são as
mães, insatisfeitas tanto com as limitações de seu destino doméstico quanto com a pobreza de sua vida sexual, que
fazem dos filhos o objeto de um investimento libidinal pesado demais.” (KEHL, 2013).
143

reverter esta renúncia, e o chiste marcado pelas diferenças de gênero e classe social atua no
sentido de reparar tal renúncia ao prazer reprimido.

Quando rimos de um chiste obsceno fino, rimos da mesma coisa que leva o camponês a
rir da rude piada de baixo calão; o prazer se origina nos dois casos da mesma fonte; mas
não conseguiríamos rir de piada grosseira – nos envergonharíamos ou ela nos pareceria
asquerosa; somente rimos quando o chiste nos presta seu auxílio. (FREUD, 2017, p. 146).

Não há dúvidas que, aqui, Freud está discutindo uma forma de mal-estar e sofrimento
relacionado à condição social dos indivíduos, e de como eles expressam, do ponto de vista do
seu processo psíquico, as formas de deslocar os modos de repressão marcados pelas
determinantes de classe social e gênero.
Mesmo quando Freud se dedica ao entendimento propriamente da etiologia das
neuroses, em especial aqui a neurose histérica, em seu texto Fantasias histéricas e
bissexualidade, de 1908, na relação com determinadas impressões e vivências (traumáticas)
atuantes, as quais passam por um processo de conversão através das redes associativas
inconscientes, aponta que

Se não houver nenhuma outra forma de satisfação sexual, se a pessoa ficar em abstinência
e não conseguir sublimar sua libido, isto é, desviar sua excitação sexual para uma meta
mais elevada, estarão dadas as condições para que a fantasia inconsciente seja reavivada,
cresça e, com toda a força da necessidade amorosa, imponha-se como sintoma
patológico, ao menos numa parte de seu conteúdo. (FREUD, 2015a, p. 343).

Nesse domínio, as fantasias inconscientes que produzem a neurose também podem


encontrar na realidade social e na relação com os objetos da cultura uma forma de canalizar,
deslocar esta libido. Sabemos que, num certo sentido, esses objetos podem ser quaisquer.
Contudo, a cultura determinada historicamente e a própria condição de classe social, gênero e
raça dos indivíduos estabelecem objetos que são mais ou menos acessíveis, mais ou menos
reconhecidos socialmente, que se oferecem para os indivíduos.
Como nos lembra o próprio Freud, “o trabalho” é decisivo para a economia libidinal
(Freud, 2010a). Pensamos o que significa para os indivíduos passarem a maior parte do tempo
em um trabalho no qual esta libido não possa encontrar uma vazão, mas, justamente ao
contrário, retornar para o Eu intensificando os processos neuróticos, relacionados à própria
etiologia da neurose, como discute Freud, em especial, nesse texto de 1908.
As neuroses dos indivíduos podem não só afetar seu olhar sobre a realidade, relacionadas
ao que é chamado de projeção em psicanálise. Podem ser introjetadas, afetadas pela realidade
exterior de acordo com sua intensidade, sua obstaculização ou precariedade. Os traços histéricos
ou obsessivos (para falar das duas neuroses que Freud se dedicou mais ao longo da sua obra)
144

podem ser acentuados. Portanto, estudar psicanálise associada à educação exige que
compreendamos as dinâmicas sociais do trabalho do professor também como uma realidade
social e não apenas psíquica do indivíduo isolado, relacionada às suas fantasias inconscientes.
Até do ponto de vista estritamente clínico, a relação entre realidade psíquica e realidade
exterior é muito mais complexa, na obra de Freud, do que apenas o “eu não acredito mais na
minha neurótica”.84 É o que mostra Nelson Coelho Junior no livro A força da realidade na clínica
freudiana (1995). Em seu percurso sobre a obra de Freud evidencia as dificuldades de estabelecer
um determinismo a respeito da realidade psíquica ou realidade exterior. Elas se complementam
de modo aberto. Segundo o autor: “em nenhum momento da obra de Freud, nem mesmo no
período da teoria da sedução, parece haver completa autonomia de uma realidade com relação à
outra; há sempre algum tipo de relação entre elas.” (COELHO JUNIOR, 1995, p. 105).
O que Freud pensará, em um determinado momento de sua obra, é que as determinações
das exigências culturais e individuais estão na ordem de um equilíbrio sempre em aberto,
representando modos de sofrer.

Boa parte da peleja da humanidade se concentra em torno da tarefa de achar um


equilíbrio adequado, isto é, que traga felicidade, entre tais exigências individuais e
aquelas do grupo, culturais; é um dos problemas que concernem ao seu próprio
destino, a questão de se este equilíbrio é alcançável mediante uma determinada
configuração cultural ou se o conflito é insolúvel. (FREUD, 2010a, p. 58).

Na busca por certo equilíbrio, o prazer e a realidade não produzem uma unidade completa
absoluta. Exigem uma relação muitas vezes de difícil complementariedade. Já a partir do
nascimento (alguns psicanalistas, como Otto Rank 85 , trabalham, inclusive, um trauma do
nascimento, como uma marca desta primeira separação) temos as primeiras relações do bebê com
a mãe que se desenvolverão por uma unidade psíquica, produto da dependência do bebê,
combinada às renúncias instintuais deste desenvolvimento. Como Freud (2010a, p. 99) nos coloca:

84
Na carta 69 das correspondências com Fliess, Freud escreve esta famosa frase que marca uma virada na “teoria
da sedução” , ao estabelecer a relação no campo da sexualidade entre pais e filhos no âmbito da fantasia e não
mais da ordem estrita da realidade exterior. (MASSON, 1986).
85
Como nos coloca Érica Gonçalves de Castro na introdução à obra O trauma do nascimento, de Otto Rank, “Como
diz o título completo da obra, trata-se de delimitar o significado desse trauma inicial para a psicanálise da época. Assim,
o nascimento constitui um trauma sui generis e com consequências. A principal referência de Rank será Interpretação
dos sonhos, o que ficaria patente na exposição, mesmo se a obra não fosse dedicada a Freud. Se este, nesta obra seminal,
define o ato do nascimento como ‘a primeira experiência da ansiedade’, bem como ‘a fonte e o protótipo do afeto da
ansiedade’, em Rank, essa experiência assumirá um valor causal decisivo. Rank sublinha a importância da separação
do corpo da mãe e da perda da situação de prazer própria da vida intrauterina, trauma que, para ele, será fonte de todas
as neuroses e a chave para sua cura. A separação biológica da mãe desdobra-se, portanto, no protótipo de uma angústia
psíquica. Enquanto Freud considera que as modalidades psíquicas e fisiológicas do nascimento constituam uma causa
de angústia, mas sustenta que a fonte mesma das neuroses seja de ordem sexual, para Rank, toda e qualquer angústia
neurótica repete os fenômenos fisiológicos do nascimento.” (RANK, 2016, p. 14).
145

(...) toda renúncia instintual torna-se uma fonte dinâmica da consciência, toda nova
renúncia aumenta o rigor e a intolerância desta, e, se pudéssemos harmonizar isso melhor
com o que sabemos da história da origem da consciência, seríamos tentados a defender a
tese paradoxal de que a consciência é resultado da renúncia instintual, ou de que esta (a
nós imposta do exterior) cria a consciência, que então exige mais renúncia instintual.

Quando a mãe se afasta do bebê, por circunstâncias pessoais ou externas, estamos diante
de um princípio de realidade que produz renúncia instintual, que estabelece uma frustração para
a criança e marca sua consciência. A forma como a criança irá lidar com essa realidade será o
produto de um saber para ela, uma marca constituinte e inconsciente subjetiva.
Esse princípio de realidade se amplia socialmente, constitui novas formas de frustração
e de renúncias, novos modos de sofrer marcados por uma frustração produzida na cultura.

Essa “frustração cultural” domina o largo âmbito dos vínculos sociais entre os
homens; já sabemos que é a causa da hostilidade que todas as culturas têm de
combater. Ela também colocará sérias exigências ao nosso trabalho científico; aí
teremos muito o que esclarecer. Não é fácil compreender como se torna possível
privar um instinto de satisfação. É algo que tem seus perigos; se não for compensado
economicamente, podem-se esperar graves distúrbios. (FREUD, 2010a, p. 60).

A relação de um certo equilíbrio entre a frustração cultural e as necessidades instintuais


são uma preocupação de Freud, visto que se, de alguma forma, essa frustração for excessiva,
“podem-se esperar graves distúrbios” caso não sejam compensados economicamente (libido).
Sob um determinado contexto, acreditamos que há uma possibilidade de o indivíduo sustentar,
com seus recursos psíquicos, algum nível de intensidade do mal-estar. Porém, a depender da
intensidade, outros recursos psíquicos, inclusive o adoecimento, serão demandados.
Freud, em Para Além do Princípio do Prazer, observou a brincadeira do “Fort-Da” que
uma criança fazia com o carrinho, afastando (Fort) e trazendo de volta (Da), simbolizando a
presença e a ausência da mãe. Através da brincadeira, a criança produz uma forma de lidar com
a angústia de separação, a relação prazer-desprazer e com a agressividade e destrutividade dela
decorrentes. De tal modo, produz um saber constituinte através dessa experiência, dessa
atividade. “Ele se achava numa situação de passividade, foi atingido pela vivência e, ao repeti-
la como jogo, embora fosse desprazerosa, assumiu um papel ativo.” (FREUD, 2010d, p. 173).
Há um saber, portanto, que é produto da experiência humana consigo, com o mundo e com
os outros que está na ordem da relação com a frustração e com o sofrimento. Freud destaca e amplia
socialmente que esse modo de sofrer humano é resultado das dores e envelhecimento do corpo, a
impossibilidade do controle da natureza e a relação com os outros, que expressam a marca da
condição do mal-estar humano. A maneira como os indivíduos lidarão com tais adversidades
constituirá modos de sofrer que podem ser criativos, como na brincadeira do neto de Freud.
146

As relações primárias dos indivíduos com o outro e o mundo constituirão um modo de


ser, um funcionamento para cada um. São das instâncias do desenvolvimento do Eu, Id e
Superego, mediadas pelas ligações pulsionais e a realidade externa, a qual cada indivíduo
conduzirá seu modo de viver e sofrer. Isso produz certamente uma combinação bastante
complexa entre as dimensões mais profundas, inconscientes do psiquismo e das dinâmicas
históricas e sociais que influenciam nessa constituição.
Como traz Freud em A questão da Análise Leiga: diálogo com um interlocutor
imparcial, de 1926, sobre a importância do Eu e suas relações com o Id e o mundo externo:

É tarefa do Eu, então, evitar esse malogro, mediar entre as exigências do Id e as


objeções do mundo exterior. Ele desenvolve sua atividade em duas direções. Por um
lado, observa o mundo exterior com seu órgão sensorial, o sistema da consciência, a
fim de agarrar o momento propício para uma satisfação sem danos; por outro lado,
influencia o Id, refreia suas “paixões”, induz os instintos a adiar sua satisfação e até
mesmo, se percebida a necessidade, a modificar suas metas, ou abandoná-las em troca
de compensação. Ao assim domar os impulsos do Id, substitui o princípio do prazer
que antes era o único a decidir, pelo que denominamos princípio da realidade, que,
embora tenha os mesmos objetivos finais, leva em conta as condições estabelecidas
pelo mundo real externo. Mais tarde, o Eu aprende que há ainda outro meio para
garantir a satisfação, além da mencionada adaptação ao mundo exterior. Pode-se
intervir de maneira transformadora no mundo exterior, nele produzindo
intencionalmente as condições que possibilitam a satisfação. Essa atividade se torna,
então, a suprema realização do Eu; decidir quando é mais adequado controlar suas
paixões e curvar-se ante a realidade, ou tomar o partido delas e opor-se ao mundo
exterior, constitui a essência da sabedoria de viver. (FREUD, 2014d, p. 148-9)

O trecho acima é muito interessante e diz da relação do indivíduo, do seu Eu, com a
transformação da realidade exterior. A importância de dar um destino para a energia pulsional
para fora, para transformar a realidade estabelecendo a “suprema realização do Eu”. Ao mesmo
tempo, Freud estabelece que a sabedoria de viver não está relacionada a tomar as paixões como
meta absoluta. É preciso fazer uma leitura da realidade para preservar a individualidade, o
próprio psiquismo, na perspectiva da autoconservação.
Essa construção freudiana nos possibilita pensar sobre o lugar do sofrimento destrutivo
no qual os professores estão inseridos. As condições de uma frustração excessiva (FREUD,
2010a) produzidas pelas dinâmicas compulsivas, destrutivas do trabalho (FREUD, 2010a),
produzem efeitos na realidade psíquica dos professores fazendo do sofrimento não uma
experiência de enriquecimento da consciência, do Eu, mas justamente de empobrecimento, de
produção de defesas e formas destrutivas do funcionamento psíquico, no qual os adoecimentos
de várias ordens se apresentam.
Se a realidade externa intensifica traços psíquicos destrutivos nos indivíduos, torna-se
ainda mais importante compreender as dinâmicas sociais do princípio de realidade, que não são
a-históricas. Dos primeiros cuidados maternos ao mundo do trabalho ele responde a complexas
147

dinâmicas sociais que, se analisadas pelo recorte exclusivo e isolados da realidade psíquica,
ficam empobrecidos e mutilados. São análises que engendram uma forma de olhar a realidade
externa muitas vezes não reconhecendo seu teor destrutivo, apenas contingente.
Esse não é um debate certamente fácil na psicanálise 86 . Atravessa a história do
movimento psicanalítico. Está na própria fundação da psicanálise a partir da “teoria da
sedução”, e em alguns momentos representa processos de ruptura dentro da psicanálise. Pelo
que observamos da bibliografia sobre o assunto, essa discussão se assemelha a um tabu 87 ,
relacionado a quem faz ou não psicanálise, o que é ou não psicanálise.88
Nosso objetivo não é certamente aprofundar nesta discussão. Entretanto, como
queremos trazer para o diálogo o psicanalista Sándor Ferenczi, contemporâneo de Freud, que a
nosso ver traz contribuições decisivas para a compreensão do trauma na psicanálise, o trauma
real89, consideramos que é necessário tocar nesse debate, visto que avaliamos que o professor,

86
“Segundo Castel (1978): “Ao que parece, este esquema foi montado através da história do movimento analítico
como uma resposta às singulares condições de seu desenrolar (isolamento num meio hostil, insegurança, tensões
internas ao grupo etc.). Fez do devir psicanalítico uma sucessão de processos, encenou sua história como um
tribunal. Toda a diferença foi percebida como uma desavença de ordem teórica e esta desavença, por sua vez, foi
interpretada como uma traição ao espírito da psicanálise. Já ao tempo de Freud, Adler, Jung e os outros não foram
condenados apenas por terem se separado da ortodoxia em pontos fundamentais (a sexualidade infantil, o
complexo de Édipo etc.). Graças a este abandono, tornaram-se renegados, pois foram acusados de terem escolhido
(por pusilanimidade, por ambição, por interesse etc.) o não-analítico contra o analítico. Excetuando a exigência
de confissão (o que não é pouco), é a pura lógica dos processos stalinistas. E não poderia deixar de ser diferente
num universo dicotômico, onde o não-analítico não pode ser pensado por si mesmo.” (CASTEL, 1978, p.24).
87
Nos últimos tempos há um esforço intelectual de pesquisas que visam resgatar a história do movimento
psicanalítico de psicanalistas que foram “esquecidos” como Otto Gross (CHECCHIA; SOUZA; LIMA, 2017),
Sabina Spielrein (CROMBERG, 2021), Marie Langer (GARCIA, 2023), ou mesmo expulsos das Associações
Nacionais ou Internacionais de Psicanálise (IPA) como Wilhelm Reich (GARCIA, 2023) e Jacques Lacan
(ROUDINESCO; PLON, 1998), entre outros. Uma prática por vezes comum destes processos é analisar o psicanalista
não pelo conteúdo do seu trabalho, mas por pretensas “análises psíquicas” pessoais, muitas vezes afirmando que
aquilo que se diz não é psicanálise, mas algum “sintoma”, de modo que o movimento psicanalítico dominante
demarque aqueles que estão fora e que estão dentro das associações ou dos grupos psicanalíticos, fortalecendo
unidades a partir da indiferenciação, da falência da crítica e do empobrecimento da capacidade criativa.
88
O resgate do psicanalista Sándor Ferenczi no cenário psicanalítico brasileiro, depois de longo esquecimento de
seu legado, tem trazido muitos debates em torno das dimensões do trauma e da realidade social. O impactante
livro de Jefrrey Moussaieff Masson, Atentado à verdade, a supressão da teoria da sedução por Freud, nos coloca
na complexidade das discussões em torno da realidade psíquica e da realidade exterior na construção da teoria da
sedução em Freud. “No ensaio de 1932, Ferenczi havia repetido a essência do ensaio de 1896 de Freud, A etiologia
da histeria, e foi mais além ao investigar as defesas que as pessoas desenvolviam para afastar o conhecimento das
suas mágoas da infância. O ensaio de Ferenczi era uma resposta ao abandono por Freud da teoria da sedução, pois
afirma que um trauma real pode por si só originar fantasias terríveis – que essas fantasias provêm de um
acontecimento real, e não as substituem. As pessoas adoecem por causa do que lhes aconteceu, não pelo que elas
imaginam haver lhe acontecido.” (MASSON, 1984, p. 174).
89
Em um dos últimos artigos antes de falecer, Confusão de línguas entre os adultos e a criança, Ferenczi discorre:
“Em primeiro lugar, puder confirmar a hipótese já enunciada de que nunca será demais insistir sobre a importância
do traumatismo e, em especial, do traumatismo sexual como fator patogênico. Mesmo crianças pertencentes a
famílias respeitáveis e de tradição puritana são, com mais frequência do que se ousaria pensar, vítimas de violências
e de estupros. São ora os próprios pais que buscam um substituto para suas insatisfações, dessa maneira patológica,
ora pessoas de confiança, membros da mesma família (tios, tias, avós), os preceptores ou o pessoal doméstico que
abusam da ignorância e da inocência das crianças. A objeção, a saber, que se trataria de fantasias da própria criança,
ou seja, mentiras histéricas, perde lamentavelmente sua força, em consequência do número considerável de pacientes,
em análise, que confessam ter mantido relações sexuais com crianças.” (FERENCZI, 2011, p. 116).
148

pela constância de situações adversas, com intensidades variadas inclusive traumáticas, está sob
um sofrimento destrutivo e não criativo.
Isso implica pensar que a intensidade é agravada pela situação de desmentido de sua dor90,
seja por um ambiente de trabalho que não consegue dar o suporte de elaboração do seu mal-estar,
seja por intervenções em várias esferas socioculturais (governos, familiares de estudantes,
gestores, especialistas etc.), seja pela precariedade das condições de trabalho na qual a libido que
não encontra vazão no objeto, volta-se para o processo de autopreservação ou autorrecriminações,
produzindo um espaço de relações interpessoais bastante embrutecedor e empobrecedor, muitas
vezes, nas escolas. Como nos coloca o psicanalista Eugênio Canesin Dal Molin (2016, p. 173):

Se o desenvolvimento da teoria psicanalítica pendera a balança acrescentando


demasiado peso ao prato da fantasia na equação etiológica, Ferenczi comunica seu
desejo de reavaliar a importância da realidade na geração da patologia. E faz questão
de explicitar em que sentido lhe parece correto acertar o desnível: sua experiência
clínica revelou um substrato histérico de fundo traumático – um conflito entre o Eu e
o ambiente – na doença psíquica que, quando atingido e tratado, trazia melhores
efeitos terapêuticos. A tentativa de reequilibrar os pratos invoca uma crítica ao estado
atual da arte; ao desconsiderar a importância dos embates reais entre o Eu e os objetos
externos, a teoria e, consequentemente, a clínica negligenciam aspectos importantes
da patogênese e de como tratá-la com mais profundidade. O foco de Ferenczi vai cada
vez mais se concentrar simultaneamente em dois pontos explicitados nessa carta: o
trauma real e seus efeitos, e como tratá-lo analiticamente.

A segunda teoria do trauma (Além do princípio do prazer, 1920), em Freud, abre para
pensarmos a relação da realidade exterior com o psiquismo. É evidente que nem todas as
experiências que os professores sofrem são de alta intensidade, no que pese isso também
acontecer.91 No entanto, consideramos, como nos lembra a psicanalista Myriam Uchitel, que a
experiência “do trauma cumulativo, em cada acontecimento, por si só, não é suficiente para ter
caráter traumático, mas a soma dos efeitos de cada um (...).” (UCHITEL, 2000, p. 148).

90
Daniel Kupermann, um estudioso da obra de Ferenczi, evidencia como ele ampliou o conceito de Verleugnung,
recusa, em Freud: “Em contrapartida, na descrição de Ferenczi o evento traumático se consuma apenas no tempo
do desmentido empreendido pelo outro em que se confiava, e quem se solicitou auxílio para representar a violência
sofrida. Assim, ao propor uma leitura relacional do conceito freudiano de Verleugnung – a recusa da castração
encontrada nas perversões – Ferenczi abre caminhos para a concepção de trauma social, indicando que o não
reconhecimento da narrativa de sofrimento de um sujeito em condição de vulnerabilidade implica no desmentido
da sua experiência e do seu testemunho pelo outro a quem se recorreu no campo social e político.”
(KUPERMANN, 2019, p. 77).
91
Há relatos públicos e notórios de professores que são agredidos, sofrem ameaças de morte por alunos ou pais,
que inclusive entram armados na escola. O caso da professora da rede estadual de São Paulo, Rosymeire de
Oliveira, é bem emblemático disso. Teve que se afastar depois de ser ameaçada por um aluno armado, não teve
apoio do ambiente escolar, entrou em depressão e teve que se readaptar das funções da sala de aula, a qual a
colocou em outro nível da indiferença e do desmentido como professora no ambiente escolar. Virou “a professora
readaptada”, perdeu o nome! Escreveu uma tese de doutorado sobre todo este processo pela qual passou que a
ajudou a elaborar e refletir sobre suas experiências. G1. “‘Acho que nunca senti tanta solidão’: professora se afasta
das salas de aula após ser ameaçada por aluno armado”, 15 out. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/educacao/volta-as-aulas/noticia/2020/10/15/acho-que-nunca-senti-tanta-solidao-professora-
se-afasta-das-salas-de-aula-apos-ser-ameacada-por-aluno-armado.ghtml. Acesso em: 15 out. 2020.
149

Entre grandes ou pequenos traumas acumulados vai se constituindo um modo de sofrer


e de ser docente. O que observamos nos dados da pesquisa é que há um ambiente escolar que,
por razões determinadas pelo funcionamento de uma precariedade do trabalho e das relações
de trabalho, produz desmentido, não reconhecendo a dor do professor, a intensidade de seu mal-
estar, intensificando o sofrimento destrutivo e produzindo formas de defesa desse professor,
individualmente ou em grupo para se relacionar com o espaço escolar, cisões do Eu.
O espaço escolar vai sendo permeado por pouca capacidade de elasticidade e reflexão,
intensificando processos de resistência que não encontram mais lugar na palavra. A própria
possibilidade de pensar em mudar esta realidade, como nos lembra Freud sobre “a plenitude de
realização do Eu”, encontra as formas destrutivas e traumáticas nos indivíduos pelas quais as
condições objetivas da sociedade e do trabalho se estabelecem. Conforme Adorno (2006e, p. 185):

qualquer tentativa séria de conduzir a sociedade à emancipação – evito de propósito


a palavra educar – é submetida a resistências enormes, e porque tudo o que há de ruim
no mundo imediatamente encontra seus advogados loquazes, que procurarão
demonstrar que, justamente o que pretendemos encontra-se de há muito superado ou
então está desatualizado ou é utópico. (...) transformar efetivamente o nosso mundo
em um aspecto específico qualquer imediatamente são submetidas à potência
avassaladora do existente e parecem condenadas à impotência.

Reafirmamos, portanto, quando pensamos em modos de sofrer, que há uma dinâmica


histórica no princípio de realidade92 que também produz uma dimensão social inconsciente.
Mesmo considerando o conflito interno do indivíduo relacionado estritamente “às etiologias da
neurose”, a realidade social tensiona as dimensões da fantasia singular. Logo, o mal-estar
civilizatório tem, igualmente, a sua particularidade histórica.

(...) o conceito puro de sociedade é tão abstrato quanto o conceito puro de indivíduo,
assim como o de uma eterna antítese entre ambos. Mas o certo e o errado de um e
outro momento, a sua substância e a sua mera aparência, não se deixam determinar
completamente ao nível das generalizações, tornando-se necessária a análise das
relações sociais concretas e da configuração concreta que o indivíduo assume nessas
relações. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 53).

A escuta do mal-estar dos professores deve considerar a mediação social, se não


corremos o risco de “sem saber”93 produzir uma interpretação liberal da análise dos dados.

92
Estas são questões que são objeto de estudo desde os autores chamados “freudo-marxistas”, como Wilhelm
Reich: “Mas a definição do princípio de realidade como exigência da sociedade permanece formal se não
acrescentar concretamente que o princípio da realidade, sob a forma que reveste para nós atualmente, é o princípio
da sociedade capitalista, baseada na economia privada. São numerosos os desvios idealistas em psicanálise quanto
à maneira de conceber o princípio de realidade. Assim, ele é muitas vezes apresentado como um dado absoluto.
Por adaptação à realidade entende-se simplesmente a adaptação à sociedade, o que, na pedagogia como na
terapêutica das neuroses, constitui inegavelmente uma formulação conservadora.” (REICH, 1974, p. 47).
93
Há uma série de produções que tentam compreender a dimensão histórica, social e inconsciente do sofrimento.
A psicanalista Miriam Deubiex Rosa traz que, “mais importante ou tão importante quanto à dimensão de cada
150

Sob a influência do liberalismo, da teoria da livre concorrência, surgiu o costume de


considerar as mônadas como algo absoluto, um ser em si. Por isso nunca será demais
realçar o valor da obra realizada pela sociologia e, antes desta, pela filosofia
especulativa da sociedade, quando abalaram essa crença e mostraram que o próprio
indivíduo está socialmente mediado. (ADORNO; HORKHEIMER, 1973, p. 47).

A seguir, dialogaremos criticamente com uma interpretação do mal-estar docente que traz
elementos para pensar a dinâmica psíquica e narcísica individual do mal-estar do professor, mas
que acaba por não avançar nas conexões necessárias com as dinâmicas sociais desse mal-estar.

5.1. Um diálogo crítico com uma leitura psicanalítica do mal-estar e sofrimento


docente

Nas leituras dos trabalhos de pesquisa e da bibliografia nos chamou atenção o livro O
nome atual do mal-estar docente (2016), de Marcelo Ricardo Pereira que integra o LEPSI-UFMG
(Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas sobre a Infância – IP/FE-USP). Trata-se de
um trabalho de pesquisa no campo da psicanálise e na temática do ofício do professor.
Pereira analisa o fenômeno do estado depressivo dos professores e aponta que a saída é o
encontro com o mal-estar inerente ao ofício docente como aquele que tem que se manter transitório,
provisório, em uma dimensão de incompletude que traz significado a esta posição subjetiva.
O autor questiona se este discurso generalizado dos sintomas docentes não estaria
“inflacionado” e que as reais causas do desamparo em torno do mal-estar não estão sendo
investigadas. “Eis o que nos querem fazer inferir muitos professores, gestores, entidades de
classe e outros que, em geral, professam o discurso pedagógico. Mas devemos aqui ir devagar
com o andor! Será que esta tragédia anunciada é de todo verdadeira? Será mesmo que padecem
mais aqueles que ensinam?” (PEREIRA, 2016, p. 23).
Ele caracteriza o mal-estar docente o associando ao mal-estar contemporâneo da
sociedade ocidental e, assim, coloca em dúvida se os professores tenderiam de fato a um
sofrimento maior que o restante da população. Segundo o autor, o mal-estar da sociedade
ocidental é comum a todos e está relacionado ao

sujeito nossa hipótese forte é que há no analista uma resistência de classe social na escuta clínica desses sujeitos.
Ou seja, o psicanalista está implicado nas normativas e nos interesses de classe de seu grupo social, o que pode
ser impeditivo da escuta clínica. Consideramos que a resistência do analista é o principal entrave à escuta clínica
nestes contextos.” (ROSA, 2016, p. 48). Acompanhamos também, na produção teórica nas últimas décadas, como
a dimensão racial inconsciente é um fator de resistências às escutas em determinados contextos. O livro de Cida
Bento, O pacto da branquitude, inaugurou uma série de trabalhos com a temática “branquitude” no Brasil. Como
Bento nos coloca: “Este pacto da branquitude possui um componente narcísico, de autopreservação, como se o
“diferente” ameaçasse “o normal”, “o universal”. Esse sentimento de ameaça e medo está na essência do
preconceito, da representação que é feita do outro e da forma como reagimos a ele.” (BENTO, 2022, p. 18).
151

recuo do desejo, a covardia moral, a inibição de se colocar à prova e o ganho


proveniente de tal estado. Sem buscar nem culpados, nem heróis procuramos
compreender não apenas o que os professores narraram sobre suas vidas, mas também
o quanto a escola, sob o efeito da maternagem, pode estar corroborando para manter
em baixa a coragem moral daqueles que por ventura produzem algum sintoma
depressivo de si mesmos. (PEREIRA, 2016, p. 26).

Pereira critica uma produção de pesquisa marcada pela “experiência militante” que
tende a ratificar um resultado que já se sabe de antemão. Apesar de ampliar as pesquisas na área
da saúde do professor e das condições que o geram, elas examinam, segundo o autor, apenas
superficialmente as causas subjetivas e intrapsíquicas.
O psicanalista pergunta qual seria o ganho secundário do padecimento docente. Para
ele, o sintoma “passou a ser um fenômeno subjetivo constituído pela realização deformada do
desejo. Ele é uma ‘pantomima do desejo’ ou é aquilo que nas pessoas 'há de mais real’. Neste
sentido o sintoma mescla restrição e satisfação, interdição e gozo, pois, se há alguma realização
de desejo, essa se dá de maneira enviesada.” (PEREIRA, 2016, p. 80). Os professores teriam
um ganho proveniente de seu lugar social de sofrimento. Segundo Pereira,

professores parecem gozar dessa condição. Mesmo anunciando recorrentemente que


“não dão conta”, por serem submetidos muitas vezes a situações bastante
constrangedoras, senão insuportáveis, é de se espantar porque tantos docentes nessa
condição permanecem na profissão. E ainda que digam querer deixá-la, logo se
corrigem, dizendo que não há saída, que não há mais tempo ou que não sabem fazer
outra coisa. Resta-nos então investigar de que “ganho” se trata ao se fixar tão
adesivamente ao sintoma. (PEREIRA, 2016, p. 83).

Seria interessante pensar, já que Pereira coloca em dúvida se professores adoecem mais
do que a população de modo geral, se o “não há saída” que os professores apontam não estaria
relacionado ao mundo do trabalho e não somente ao ofício de professor. É preciso uma
mediação do social na escuta desta singularidade.94 O pensamento freudiano nos leva a essas

94
Nos próprios dados de pesquisa de 10 professores relatados nos estudos de casos de Pereira (2016), poderia
haver desdobramentos da escuta nesse sentido. Por exemplo, quais são as implicações psíquicas das experiências
intensas e traumáticas que os professores sofrem em sala de aula?, as quais são um problema social e não apenas
individual da posição subjetiva neurótica do professor, visto que passar “o pênis na garrafa que a professora vai
beber água”, “ameaçar quebrar os dentes” de outra docente ou o aluno que “quebra o vidro de uma sala de aula
com uma mochila”, entre outros relatos descritos pelo autor, não são fenômenos banais, “gatilhos”, mas
experiências intensas, por vezes traumáticas e contínuas, e não fenômenos isolados, visto que produzem formas
de adoecimentos relacionados à clivagem do Eu, automatismos e adaptações justamente para evitar adoecimentos
mais drásticos ou mesmo formas de se afastar deste ambiente hostil. Colocamos em questão se estamos falando
somente de “covardia moral” frente ao recuo do desejo? Nas falas que Pereira nos traz, sabe-se muito pouco de
quais dinâmicas sociais, de condições de trabalho e relações de trabalho específicas, inclusive para além da sala
de aula, no ambiente escolar, estes professores estão trazendo, visto que o autor mutila o mal-estar docente em
uma leitura marcada pelo determinismo dos processos de desenvolvimento constitucional primário dos
professores. A realidade social passa a ser vista preponderante como um lugar de uma Outra cena. Os
desdobramentos de uma escuta do social a partir da fala dos professores seria uma possibilidade de pensar
profundamente o discurso sugerido por Pereira: do professor como aquele que se “vitimiza”, ou seja, poderíamos
152

possibilidades de caminho. O ofício de professor se liga à uma marca civilizatória das profissões
impossíveis, mas também está sob a lógica da objetividade do trabalho, ou seja, das mediações
da “necessidade externa”, e, segundo Freud (2010a), o trabalho tem uma importância decisiva
na economia libidinal. Freud compreende o impacto negativo de um mundo do trabalho em que
“a imensa maioria dos homens trabalha apenas forçada pela necessidade, e graves problemas
sociais derivam dessa natural aversão humana ao trabalho.” (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).
Sob esta perspectiva social, Pereira diz o seguinte:

(...) o declínio da dimensão trágica do pai acompanhado pelo imperativo hedonista da


satisfação pulsional. (...) O sujeito é levado a obrigação de se satisfazer sob a pena
superegoica de achar-se em defasagem. (...) Tais excessos se nivelariam mais aos
impulsos sem representação – à pulsão de morte – do que à vontade de potência – ou
a modos de afirmação e subjetividade do desejo. (PEREIRA, 2016, p. 109).

O autor se aproxima do que traz Marcuse (2010) em Eros e Civilização, de sociedades


organizadas pelo “princípio do desempenho e da mais-repressão” com a hegemonia da pulsão
de morte sobre a pulsão de vida.
O pesquisador aponta a realidade das demandas sociais do campo educacional e situa
que esse impulso à morte é derivado das demandas contraditórias do outro social, das exigências
externas na educação. Todavia, não desenvolve sua argumentação no sentido da particularidade
destas demandas em um modo de sofrer docente. Retoma uma tese freudiana de que isso está
no campo de um princípio de realidade que não é total. Isso faz parte da própria condição do
ofício docente, que está presente de forma mais direta nas dinâmicas transferenciais do
professor com crianças e adolescentes, sujeitos em formação.
Citando Winnicott, Pereira diz que o melhor que se pode fazer nessa difícil relação com
adolescentes é “sobreviver, sobreviver incólumes e sem alterar-se, sem o abandono de qualquer
princípio importante (...). Mas não é o que acontece. Na maioria das vezes, o docente tende a
abdicar do adolescente, a desresponsabilizar-se por ele e a criticamente avaliá-lo.” (PEREIRA,

perceber as várias dimensões dos “benefícios secundários do sintoma” e não apenas que o professor goza
isoladamente com seu sofrimento, pois já que não sai da rede de ensino tendo tantos infortúnios esta seria a única
conclusão a se tirar. Importante destacar que em determinados contextos há vítimas, há abusos, há exploração,
pode ser que não seja só do professor, mas isso não exclui a escuta deste lugar social como expressão de uma
dimensão e conflito intrapsíquico também. Nos parece que Pereira poderia escutar de fato e não como uma
“hipótese a se considerar”, sem nenhum desdobramento, o que a professora que ele nomeia curiosamente de
“Dora”, nome de um famoso caso de Freud descrito em 1905, ao qual é reconhecido na tradição psicanalítica como
um caso em que Freud teve muitas dificuldades de escutar. A professora Dora que Pereira nos traz fala sobre a
dinâmica social no interior da escola, que convoca o pior das pessoas. “Ela própria suspeita de uma hipótese que
convém aqui considerar: a escola tem evocado o pior das pessoas, ela parece fazer isso com todos. ‘Não pode ser
coincidência, não – diz Dora –, toda pessoa mal-humorada, estranha, esquisita vem parar na escola [...]. Será que
junta muita gente estranha na escola ou as pessoas vão ficando desse jeito nela?’” (PEREIRA, 2016, p. 123). A
fala de Dora demonstra que o sofrimento que a escola produz é comum, o que torna necessário analisar estes
fenômenos de sofrimento com as mediações sociais necessárias para não produzir desmentido da dor do professor.
153

2016, p. 110). Isso se voltaria contra seu próprio trabalho: uma leitura da tese freudiana de
sustentar o mal-estar relacionado à incompletude deste ofício.
O que vai se colocando aqui, apesar das ponderações do autor em torno da existência de
sofrimento e mal-estar, é que o professor não renunciaria à satisfação secundária do seu
sintoma, de seu narcisismo.

Acreditando-se responsável pela transmissão do saber – e não pelo adolescente –,


pautada nos ideais pedagógicos que a formação e a sociedade ocidental lhe imprimem,
e ao mesmo tempo sob ameaça contínua de não efetivá-lo, o professor tende a viver o
fracasso como algo muito próprio; como um golpe ou um mal-estar laboral de
múltiplas dimensões. (PEREIRA, 2016, p. 111).

Ele também discute sobre o estado depressivo que caracteriza os professores que
entrevistou e aponta que está relacionado ao “horror ante o vazio da existência”, ao mesmo
tempo em que “o horror por não se achar em condições de atender as demandas do outro social”.
O professor buscaria uma “demissão subjetiva” se retirando deste jogo ao invés de inscrever a
marca de sua individualidade diante destas demandas. “A luta de cada um é inscrever sua
própria individualidade, ao mesmo tempo, dentro e fora de tal demanda, podendo inclusive
resistir a ela.” (PEREIRA, 2016, p. 151).
O que Pereira nos traz é uma análise através de uma leitura de clínica, mais precisamente
através de Lacan no segundo tempo do Édipo, no estágio do ser ou não ser. A covardia moral,
portanto, é que os professores não entrariam no terceiro tempo assumindo que não são o falo,
mas que podem tê-lo ao entrar no jogo, responsabilizando-se pelo seu desejo, assim como o
mal-estar dele decorrente.95
Trazendo Marcuse (2010) para a reflexão, apontamos que este Eu não desenvolvido,
não autônomo, está relacionado ao modo social e econômico do atual estágio do capitalismo,
que penetra profundamente no modo de organização familiar e representa a esfera do declínio
da autoridade paterna. “O superego desprende-se de sua origem, e a experiência traumática do
pai é superada por imagens exógenas. À medida que a família se torna cada vez menos decisiva

95
No capítulo X do Seminário 5, Os três tempos do édipo, Lacan diz: “A experiência prova que, na medida em
que a criança não ultrapassa esse ponto nodal, isto é, não aceita a privação do falo efetuada na mãe pelo pai, ela
mantém em pauta – a correlação se fundamenta na estrutura – uma certa forma de identificação com o objeto da
mãe, esse objeto que lhes apresento desde a origem como um objeto rival, para empregar a palavra que surge aí
(...) a questão que se coloca é ser ou não ser, to be or not to be o falo. No plano imaginário, trata-se, para o sujeito,
de ser ou não ser o falo. A fase a ser atravessada coloca o sujeito na situação de escolher.” No parágrafo seguinte
Lacan continua o que é interessante destacar: “Ponham também esse escolher entre aspas, porque o sujeito é tão
passivo quanto ativo nisso, pela simples razão de que não é ele quem manipula as cordinhas do simbólico. A frase
foi começada antes dele, foi começada por seus pais, e aquilo a que pretendo conduzi-lo é precisamente a relação
de cada um desses pais com essa frase começada, e a maneira como convém que a frase seja sustentada por uma
certa posição recíproca dos pais em relação a ela. Mas, digamos, uma vez que convém nos exprimirmos bem, que
existe, em termos neutros, uma alternativa entre ser ou não ser o falo.” (LACAN, 1999, p. 192).
154

em dirigir a adaptação do indivíduo à sociedade, o conflito pai-filho também deixa de constituir


o conflito-modelo.” (MARCUSE, 2010, p. 96).
Para Marcuse (2010), é no modo de organização social e econômico que se encontram
as respostas para o empobrecimento da experiência e, por conseguinte, para quebra da relação
de conflito que constitui o Eu e o sujeito na modernidade. O modo de ser dos indivíduos pelos
seus referenciais psíquicos inconscientes e profundos passa a ser marcado por identificações a
partir do processo de monopolização do capitalismo. Conforme Marcuse (2010, p. 96):

Essa mudança deriva dos processos econômicos fundamentais que têm caracterizado,
desde o princípio do século, a transformação do capitalismo livre em organizado. A
empresa familiar independente e, subsequentemente, a empresa pessoal independente
deixaram de ser as unidades do sistema social; estão sendo absorvidas nos agrupamentos
e associações impessoais em grande escala. Ao mesmo tempo, o valor social do indivíduo
é medido, primordialmente, em termos de aptidões e qualidades de adaptação
padronizadas, em lugar do julgamento autônomo e da responsabilidade social.

Compartilhamos com Pereira a importância da marca da individualidade do professor


na vida e em seu ofício, dos processos de resistência (atividade) que existem nas falas e atitudes
dos professores. Trabalhamos, no entanto, com a hipótese de que o impacto dessa marca da
individualidade como atividade retorna de forma muito mais intensa a esse professor. Ou seja,
o professor que tenta marcar sua individualidade em um mundo cada vez mais padronizado e
precarizado tem que lidar com um mal-estar muito mais intenso, destrutivo.
É neste contexto que refletimos sobre os limites do professor que certamente estão
conectados às dimensões intrapsíquicas (a castração e o narcisismo), sobretudo, aos
determinantes sociais. Retomando Adorno (2006, p. 185): “(...) as tentativas de transformar
efetivamente o nosso mundo em um aspecto específico qualquer imediatamente são submetidas
à potência avassaladora do existente e parecem condenadas à impotência.”
No decorrer do texto, Pereira indaga sobre um excesso de narcisismo nos entrevistados
que faz com que não se vejam como seres castrados. De tal forma, é como se tivessem uma
onipotência em lidar com situações reais mediante uma idealização do lugar docente na cultura.
Os professores entrevistados, segundo o pesquisador, sabem que não podem responder
toda a demanda e, portanto, se evadiram. “Ao contrário, presos à necessidade de perfeição, a
semblantes de potência e até falsos selfs, preferem agarrar-se à sua ‘doença da alma’, à falta de
ânimo, à impotência sacrificial, do que se colocar à prova.” (PEREIRA, 2016, p. 158). O
pesquisador acrescenta que

(...) apresentar-se de saída como impotente, como ocorreu com a grande maioria dos
professores escutados, não deixa de revelar-nos uma pretensão de onipotência secreta
que esses docentes preservam ao não se colocarem em risco diante de seus desafios
155

pedagógicos cotidianos ou mesmo diante das atribulações de suas vidas particulares.


(PEREIRA, 2016, p. 159).

No sentido de ponderar e refletir sobre as conclusões que Pereira nos traz, pensamos
que o autor deposita demasiadamente na cultura (que não é um reflexo puro da realidade,
atravessada por dimensões traumáticas e alienantes, tanto quanto o psiquismo), a saída para os
professores exercerem plenamente seu ofício. Nada sabemos em sua pesquisa sobre as
condições de trabalho e a dinâmica social escolar dos professores de Minas Gerais escutados96.
É como se aquela realidade concreta não tivesse influência nas dimensões intrapsíquicas dos
professores. Ao tomar a realidade psíquica e a fantasia de modo isolado, “caso a caso”, a cultura
e a realidade exterior passam a ser contingentes na análise do mal-estar dos professores, como
algo dado, por isso sem mediação. Pereira recusa97 a fala dos professores sobre as dinâmicas
sociais regressivas do trabalho em nome do que ele denomina como “ausculta mais apurada”.
Adorno, que pode elucidar esse debate, em diálogo com a psicanalista Karen Horney98,
diz o seguinte:

96
O que Pereira (2016) nos traz é que escutou “quinze professores de adolescentes seja do 3º. Ciclo do ensino
fundamental, seja do ensino médio (ou de ambos), de escolas públicas de diferentes regiões da capital mineira,
que aceitaram testemunhar o que se passa consigo que os faz padecer psiquicamente. Na maioria das vezes, a
suspeita recai na lida cotidiana com adolescentes, na estrutura e na maquinaria escolares e em suas relações
pessoais malfadadas. Entretanto, a própria estrutura de enigma que cada caso apresenta requer, como veremos,
cuidados de manejo, relativizações e uma ausculta mais apurada.” (PEREIRA, 2016, p. 116).
97
Acreditamos, como Garcia (2023), que esta negação pode ser caracterizada como uma forma de “psicanalismo”.
“Evidentemente, a ronda de guarda que se faz sempre em nome de argumentos antropológicos sobre a ‘estrutura
do psiquismo’, que supostamente prevalecem sobre qualquer realidade social. E, segundo um paradoxo típico do
que em psicopatologia se costuma chamar de perversão, enquanto essa vulgata despeja seus preconceitos sobre o
homem, a mulher, a política, enquanto naturaliza a agressividade, ela autoriza o próprio avanço em nome de uma
pretensa neutralidade política que seria seu misterioso privilégio. Como todo pensamento burguês, essa psicanálise
acredita dizer a verdade sobre a natureza humana para além das diferenças culturais e históricas. Trata-se ainda de
psicanálise? Nada menos certo. Eis a razão pela qual nos propomos a falar, em relação a ela, de psicanalismo,
como discurso que participa da dominação e da fabricação da ideologia como ‘conjunto de produções ideais por
meio das quais uma classe dominante justifica seu domínio’.” (GARCIA, 2023, p. 21).
98
Interessante observar que a crítica que Adorno faz a Karen Horney em uma obra específica – A personaldiade
neurótica de nosso tempo de 1937 – tem o mesmo fundo político da própria crítica que Horney se viu obrigada a
fazer aos psicanalistas homens sobre a sexualidade feminina aos quais não levavam em conta os aspectos culturais,
sociais e históricos. Em sua obra póstuma, Psicologia feminina, no tópico sobre o “masoquismo feminino”, Horney
demarca as influências culturais e históricas que colocam a mulher nesta posição subjetiva. “Creio que estes
fenômenos aparecem em qualquer complexo cultural que inclua um ou mais dos seguintes fatores: 1- Bloqueio
das formas de liberar a comunicação e a sexualidade; 2- Restrição ao número de filhos, visto que o fato de tê-los
e cria-los proporciona à mulher diversos meios de satisfação gratificantes (a ternura, a realização, a auto-estima),
e isto se torna ainda mais importante quando se transforma em gabarito para valorização social; 3- Avaliação das
mulheres como seres em geral inferiores aos homens (na medida em que isto leva à deterioração da autoconfiança
feminina; 4- Dependência econômica das mulheres em relação aos homens ou à família, pois favorece a adaptação
dos sentimentos no sentido da dependência emocional; 5- Limitação das mulheres a certas esferas da vida,
construídas principalmente sobre ligações emocionais, como a vida familiar, a religião ou as obras de caridade; 6-
Excesso de mulheres casadouras, particularmente quando o casamento oferece a principal oportunidade de
satisfação sexual, de ter filhos, segurança e reconhecimento na sociedade. Esta condição é relevante visto que
favorece (como também (3) e (4) a dependência emocional em relação ao homem e, de forma geral,
desenvolvimento que não é autônomo, mas talhado e moldado por ideologias masculinas existentes. Ela é
pertinente na medida em que cria entre as mulheres competição particularmente forte da qual a retração é fator
importante para precipitar o fenômeno masoquista.” (HORNEY, 1991, p.226-7).
156

(...) ela [Horney] passa ao largo da raiz sociológica do narcisismo: de que o indivíduo,
devido às dificuldades quase instransponíveis que se colocam hoje em dia no caminho
de relações espontâneas e diretas entre os seres humanos, é forçado a dirigir para si
mesmo suas energias pulsionais não utilizadas. A saúde vislumbrada por Horney é da
mesma espécie que a sociedade que ela responsabiliza pelo surgimento das neuroses:
“uma autoconfiança robusta e segura se apoia em uma ampla base de qualidades
humanas, tais como iniciativa, coragem, independência, talentos, valores eróticos,
capacidade para controlar problemas. (ADORNO, 2015a, p. 60).

Pereira entende, então, que a escola pode estar protegendo esses professores que se
evadem – e se demitem subjetivamente. A escola passaria a se posicionar como uma mãe que
quer cuidar e proteger os seus. Refere-se, portanto, à maternagem pedagógica

que tende a maternizar sujeitos e procedimentos escolares a ponto de proteger a todos,


desconfiamos de que a escola contemporânea pode estar recobrindo as faltas de seus
membros – no caso, de seus professores -, exigindo-lhes mais burocracias do que
atitudes. Eles parecem reclamar da instituição escolar como se reclama de uma mãe
que falha em atender as suas demandas orais de constantemente alimentá-los.
(PEREIRA, 2016, p. 167).

A escola atuaria como uma “mãe” – eis a leitura do “princípio de realidade”, da


“realidade social”, tomada em sua dimensão psíquica primária isolada. E, como tal, não permite
que o professor ocupe um lugar adulto e autônomo, pois a dinâmica psíquica materna e escolar
encobriria a dimensão faltante dos professores. Os professores, como bebês, demandam cada
vez mais dessa mãe em suas reclamações, não aceitam as frustrações do “princípio de
realidade”, que não pode atender todas as suas demandas pelo princípio do prazer absoluto.
Podemos pensar também nos “bebês” que não abdicam de um mundo ideal (narcísico), do
sofrimento mundano, para ficar no colo da “mãe”.
Esta construção é uma leitura oriunda de uma certa clínica psicanalítica, um olhar sobre
a “realidade social”, tomada pelo pressuposto abstrato da relação entre o princípio de prazer e
o princípio de realidade. Compreendemos que sem as mediações na dinâmica psicossocial, esta
interpretação produz desmentido da dor do professor. Além disso, é uma compreensão que não
considera a construção do mal-estar civilizatório freudiano pela intensidade e preocupação do
psicanalista com os modos repressivos e intensos do sofrimento comum e seus efeitos psíquicos
– questão, como já mencionamos, presente no conjunto da obra de Freud.
Pereira, então, delimita sua crítica e a saída para crise que vivemos ao mundo
educacional. Os formadores e gestores passam a ter um papel fundamental para colocar o debate
em seu epicentro, assim como profissionais nas escolas que tenham uma formação psicanalítica
para poder escutar esse mal-estar.

Repensar suas condições de trabalho, sua remuneração, suas relações com o saber e
com a formação são essenciais, mas sobremaneira, precisamos auxiliar o professor a
157

recuperar sua coragem moral para atuar em situações de incerteza e descontinuidades.


Também devemos ajudá-los a dar respostas mais ou menos rápidas mediante tais
situações, lidar com a apatia do alunado sem se tornar apático e entender as formas de
“mal-estar na civilização” que continuam a assolar o planeta de maneira geral,
inclusive o mundo pedagógico. (PEREIRA, 2016, p. 171).

Uma leitura que pode se transformar em triunfalista (BIRMAN, 1997) do papel de


psicanalistas, gestores e formadores se não levada a sério e em profundidade as condições e
precarização do trabalho. Até porque os gestores (direções, assistentes de direção,
coordenadores, supervisores) também, em sua maioria, são ou foram professores e têm a marca
desse mal-estar em sua história pessoal. Há de se investigar o porquê se tornaram gestores, se
há alguma expressão relacionada à intensidade do mal-estar da condição de professores e,
portanto, resultado dos sintomas de mal-estar docente 99 . Além disso, quais as demandas e
dinâmicas sociais que afetam o ofício do “gestor” em particular. Se eles ocupam o lugar de
“mãe” numa escola, é importante compreender como se constituíram as dimensões social,
econômica e histórica dessa imagem, ou seja, compreendê-las com as devidas mediações
sociais. “Gestor”, ao menos numa sociedade capitalista, não é uma palavra qualquer.
Há pouca interconexão de Pereira sobre as dinâmicas sociais que produzem o mal-estar
docente. A divisão das condições de trabalho, culturais e da individualidade através da covardia
moral, diante das dimensões traumáticas da experiência escolar na atualidade, produz um
paradoxo da própria castração. Aquilo que se vê como “covardia moral”, na verdade pode ser
tão somente uma estratégia de defesa para não adoecer drasticamente diante dos efeitos intensos
do sofrimento destrutivo pelos quais os professores passam.
Como se sustenta a qualquer custo (“sobreviver, sobreviver incólumes e sem alterar-se,
sem o abandono de qualquer princípio importante”) num ambiente de trabalho e social que não
contribui para a sustentação interna do professor diante de tamanhas adversidades? É até curioso
o uso do significante “sobreviver” por parte de Pereira. Temos que considerar, afinal, que até para
um psicanalista em seu consultório particular haveria limites (o que se ensina normalmente em
uma formação psicanalítica). Para um psicanalista no CAPS (Centro de Apoio Psicossocial) ou
num posto de saúde de um bairro da periferia de São Paulo, estaria sob um determinado contexto,
que não pode ser excluído da análise do mal-estar pessoal ou tratado como contingente.
Nesse sentido, acreditamos que é preciso uma mediação social ao investigar o trabalho
do professor para não cair num recorte isolado, como se a análise estivesse se dando num setting
psicanalítico, no qual o narcisismo, como esfera intrapsíquica, pode se tornar a questão

99
No conjunto da pesquisa veremos que há falas de professores que apontam que ocupar um cargo de gestão numa
escola é uma das saídas para dar conta do mal-estar docente.
158

fundamental. Se assim for, retomamos a saída proposta por Freud (2010a), indicando que o
professor deve passar por um processo analítico para realizar sua formação docente.
Pensamos que, se há uma “função maternal” na escola que deixa o professor preso a uma
“manifestação regressiva narcísica, edípica” e “infantil” (infans) é certamente pela precarização
do trabalho, significado maior do declínio da autoridade paterna (MARCUSE, 2010;
PELEGRINO, 1983). Afinal, para Freud, o trabalho é a possibilidade da ampliação da
comunidade (FREUD, 2010a). A escola não faz de outra forma – não porque esteja presa a um
modo maternal e\ou adaptativo de seu corpo de gestores, mas porque sua lógica estrutural está
amarrada a formas política e econômica de organização (ZAFALÃO, 2021), na qual a autonomia
docente é um entrave tanto ao modo de organização social e histórico no Brasil, quanto ao projeto
político e econômico dos governos. Não por acaso que a escola e o professor sejam tão atacados,
na atualidade, com projetos como o das “Escolas sem Partido” 100 ou, mais recentemente, a
política curricular nacional do “Novo Ensino Médio”, que afetam diretamente o conteúdo das
aulas e a autonomia do professor.101 A autonomia docente é o horror das classes dominantes.
A defesa por melhores condições de trabalho e salário pelos professores e, inclusive, as
pesquisas que Pereira caracteriza como “experiência militante” de “autores raivosos com o
capitalismo” 102 , estão na ordem de dar um destino, na cultura, para a dinâmica social da
agressividade determinada pela realidade social e obstaculizada pelo trabalho ou da dinâmica
da dominação entre classes sociais. (FREUD, 2010i; 2014b).
Pereira corre o risco de caminhar em outra direção, mas na mesma toada da crítica que
faz às pesquisas que denomina como “experiência militante”. Ao dissociar os aspectos sociais
dos individuais, ele acaba por desacreditar o sofrimento decorrente do ato docente, produzindo
uma “experiência liberal” de pesquisa, na qual a responsabilidade é essencialmente do
indivíduo e seu conflito interno, sua “covardia moral” ou “demissão subjetiva”. Se associa,

100
A “Escola sem Partido” é um movimento fundado por Miguel Nagib. Seu programa pode ser acessado na internet:
www.escolasempartido.org. Nagib crítica “a experiência militante” dos professores em sala de aula. No site encontramos
os objetivos do programa: “Para informar os estudantes sobre o direito que eles têm de não ser doutrinados e manipulados
por seus professores. Uma vez informados, os estudantes – que são as vítimas da doutrinação – aprenderão a se defender
das condutas abusivas eventualmente praticadas por seus professores militantes.”
101
Enquanto escrevo esta dissertação um movimento nacional contra o Novo Ensino Médio é organizado pelas
entidades sindicais e educacionais de professores e da sociedade civil. Sob influência dos empresários da educação o
novo ensino médio responde as demandas neoliberais de ensino. FERNANDO CASSIO. “O ‘Novo’ Ensino Médio
é muito pior que o anterior”, Carta Capital, 13 fev. 2023. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-
novo-ensino-medio-e-muito-pior-que-o-anterior/. Acesso em: 13 fev. 2023.
102
“Autores muito raivosos com o capitalismo” e com as condições da política educacional atual que se empenham
em livrar os sujeitos desses males são importantes nesse cenário, mas infelizmente também produzem muitos
enganos quando o assunto é a produção de saberes pelo sujeito.” (FAVACHO apud PEREIRA, 2016, p.55).
159

portanto, como resultado de suas conclusões, aos discursos comuns do governo estadual de São
Paulo (ZAFALÃO, 2021).

5.2. Análise dos dados sobre o sofrimento e a adaptação dos professores

Perguntamos aos professores se há um processo de adaptação no trabalho, se com o


tempo ele vai perdendo a capacidade crítica e, também, se haveria alguma possibilidade de
aprendizado, de criação através do sofrimento na educação.
O professor Fernando aponta que o sofrimento docente não é libertador, mas limítrofe,
engessado e atrofia o professor.

Não, quando você sofre você não cria, você sofre. Acho que não, o sofrimento que a
gente passa ele é o sofrimento de engessar. Não é um sofrimento libertador. É um
sofrimento que engessa, que faz você se sentir incapaz. Faz criar patologias em você,
impede você de prosseguir. Você ir além: daqui eu vou fazer o mestrado. Não dá, cada
vez mais o cara se sente incapaz de qualquer coisa. O professor vai se limitando, ele
vai ficando limítrofe mesmo. Ele vai atrofiando tudo no físico ao psicológico.
(Professor Fernando, categoria O, 12 de magistério).

Observamos através deste relato o uso de palavras fortes para se referir ao sofrimento
do professor que nos remete a uma dimensão destrutiva, mortífera deste ofício. O termo
“atrofiar”, relacionado tanto à dimensão psíquica quanto ao corpo, evidencia o impacto das
dinâmicas sociais em um modo de mal-estar docente. O “engessar”, naquilo que não pode ter
movimento, plasticidade, perspectiva, tornando-o “incapaz”, assim como o “limítrofe”, que
define exatamente os limites e a extensão de seu trabalho. Justamente por buscar uma prática
que marca sua individualidade no processo educacional, o professor Fernando vive de forma
mais intensa seu mal-estar num espaço de trabalho cada mais precarizado e padronizado.
Sobre os processos de adaptação na escola e a perda da capacidade crítica e reflexiva, o
professor Fernando é enfático: a escola é “uma máquina de moer gente”. Interessante pensar que
este professor é bastante crítico e atuante no trabalho com os seus estudantes, sustentando
variados conflitos com a gestão pela defesa da autonomia docente. Isto certamente produz um
retorno intenso em sofrimento que lhe remete reflexivamente, também, a se tornar, pela introjeção
deste ambiente agressor, em um professor hostil. Seu atual estágio de sofrimento o faz pensar em
diminuir sua carga horária, o que certamente traz implicações financeiras, por outro lado.

Olha ele vai perdendo até a vontade. É o que eu falei, aquilo é uma máquina de moer
gente. Eu lembro quando eu entrei lá eu tinha que ficar sentado esperando professor faltar.
Eu era eventual. E aí o professor chegava lá falando mal de aluno e eu querendo dar aula.
Eu tinha vontade de dar aula e o professor chegava lá falando mal da aula. Eu ficava puto,
e eu falava mano então porque você não falta. Você pode faltar, você falta eu dou aula,
160

você recebe, eu também. Porra, faz essa! O dia que eu ficar reclamando o dia de entrar
em sala de aula eu paro de dar aula. E esse ano agora por causa disso tudo que aconteceu,
ano que vem vou pegar carga mínima porque estava me fazendo mal. Porque eu já estava
falando mal, já estava fazendo: putz vou ter que entrar na sala. Então eu consegui
perceber isso, e consigo lembrar da minha fala de 12 anos atrás. Então é assim é uma
máquina de moer gente. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A “máquina de moer gente”, de violências variadas que produz cisão no Eu dos


professores. Uma das formas de defesa que o professor encontra é um afastamento da escola,
através da diminuição da carga horária para enfrentar o desmentido e a desautorização à
autonomia do trabalho docente, como uma das manifestações de violência e sofrimento.
A professora Vera nos relata uma experiência semelhante, numa escola estadual
localizada numa região de bairros mais elitizados de São Paulo, na qual há um certo “processo
seletivo” de estudantes, excluindo indivíduos de regiões de bairros mais pobres. A exclusão,
portanto, não parece ser somente de estudantes, mas da própria capacidade crítica, reflexiva e
autônoma do professor.

Você acha que há um processo de adaptação do professor? Que com o tempo ele
vai perdendo sua capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço do seu trabalho?
É chegar em sala de aula você vai ter que dar o que tem que ser e acabou. Você não vai
poder ser amigo do aluno, você não vai poder fazer aquilo que você deseja ser para
entender seu aluno, as necessidades dele, passar o que é necessário. O que ele precisa
pro futuro dele. (...) Então assim, pelo que eu entendo dessa escola, ali é um pessoal um
pouco elitizado. Eu conversei com alguns professores que deram aula nesta escola. Eles
falaram vai com calma. Não vai com crítica, não fala de governo. Mas lá dá para dar
aula. Só dá o que tem que ser mesmo. Aquilo que está no Centro de Mídias, aquilo que
está no apostilado. Faça isso, acabou. Faça sua parte e vem embora se não você vai ter
problema. E como é que é o ambiente? O ambiente é bom. O pessoal é elitizado. É um
pessoal diferente, e ali eles fazem peneira. Não é qualquer aluno que estuda lá. Se você
vem do G. e o P. eles não pegam. “É mais um pessoal dali, tem muitos alunos da L..
Pessoal da L., tem o pessoal melhorzinho ali, você vai gostar”. “Só que são um pessoal
um pouco elitizado, e você tem que só tomar cuidado com críticas dentro da sala de aula
porque levam tudo para a gestão”. Então é isso, acho que você perde as críticas, você é
um filósofo não crítico. Isso é ruim. Então assim, eu vou ter que chegar e ser uma
máquina. Descartes falou isso, isso é isso... acabou! Eu acho ruim isso porque você não
pode discorrer com o que realmente é a real daquele filósofo. E fazer uma comparação
contemporânea. Isso é muito ruim. Só dar a disciplina e pronto eu acho muito vago.
Vamos ver, vamos tentar. As professoras que já passaram por lá criticaram porque disse
que você não pode ser crítica, você não pode discorrer algo contemporâneo. Você tem
que ficar sempre naquela. É atividade que tem que ser dada e acabou. É como se fosse
uma questão que você tem que responder. Só isso. Difícil né? Mas vamos tentar né
Marcelo. É o que tem para hoje. (Professora Vera, categoria O, 13 de magistério).

Como estar bem numa escola na qual é produzido um ambiente de controle, de


perseguição, como aquele sintetizado pelo panóptico de Bentham? A professora nos relata, em
outro momento da entrevista, que para criar “você precisa estar bem”. Essa escola, pelo que
vamos observando, intensifica o sofrimento destrutivo e não criativo. Ou é possível estar bem
mutilando uma parte de si para trabalhar?
161

A própria unidade escolar produz formas para decidir quem está apto ou não para
estudar nela, assim como, num certo sentido, quem está apto para trabalhar ali ou não. Estas
formas de exclusão são um sintoma social frequente no país, que, sem dúvida, se desdobrariam
em variadas possibilidades de análise que fogem ao escopo deste trabalho. No entanto, o que
se evidencia é de que a precarização do trabalho e da escola encontram estratégias de defesa
que reafirmam os aspectos mais perversos individuais e da cultura e história brasileiras, como
a exclusão dos estudantes mais pobres, inclusive da escola pública.
A professora Denise é cética em relação a ver alguma possibilidade criativa no
sofrimento. Aponta o desânimo dos professores nessas possibilidades: “Pode existir alguma
possibilidade criativa, mas o pessoal está meio desanimado para estas criatividades. Os
professores não estão assim muito aptos a ser criativos com inovações não.” (Professora Denise,
categoria V, três anos de magistério).
Como uma professora que está iniciando na rede de ensino, a professora Denise percebe
que as condições materiais do professor intensificam os processos adaptativos pela perda da
capacidade crítica e reflexão docente. Diante de um cenário de variados estímulos que as
crianças e adolescentes têm na atualidade, torna-se mais patente a necessidade de condições de
trabalho que construam a possibilidade de atendimento dessa juventude.

Sim. Sim, com certeza, é isso que nós estamos conversando. E alguns professores não
somente porque eles estão próximos de uma aposentadoria, com 20, 30 anos já com uma
profissão nas costas. Também pelo fato que alguns às vezes não estão contentes com a
remuneração. Às vezes só conseguiu aula longe da sua casa. Já chega ali cansado, vai
para uma escola aqui vai para outra escola lá. Isso afeta muito e com o tempo há este
desgaste. Sim, com certeza porque é uma vida do professorado que não é uma vida fácil
pelo que eu estou percebendo. Tem professor que de manhã cedo está numa escola, de
tarde está na outra. Tem prova, tem trabalho, tem um monte de coisa e nós temos a nossa
vida, nós temos a nossa família também. Então juntando tudo isso e com o ser humano
que hoje em dia não está fácil de se lidar, principalmente a juventude que é uma avalanche
das redes sociais, das mídias e um monte de coisa na nossa cabeça. Então isso acaba
trazendo um desgaste sim para muitos professores, não poucos. É triste porque a área da
educação é maravilhosa, porque ensinar é um dom. Infelizmente há o desgaste sim por
meio desses profissionais. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).

O que aparece nos dados da pesquisa é que esse professor está cada vez mais isolado em
um mal-estar, tanto o necessário à profissão, quanto o de sua intensidade destrutiva. E, num
determinado momento, mesmo os professores mais críticos e reflexivos, adoecem de alguma forma.
O olhar dos jovens professores para os professores mais velhos é uma constatação do
inquietante desse processo, porque estão igualmente inseridos no mesmo agrupamento social.
Portanto, nada lhes garante que não fiquem iguais.
A professora Luana, com oito anos de rede estadual, aponta isso. Reflete sobre a relação
entre sofrimento, experiência e criatividade. Parece que o conjunto das experiências na escola
162

não agregam mais. Por serem demasiadamente intensas e precárias, não produzem mais uma
memória significativa.

Ah não digo pelo sofrimento, mas por exemplo a gente vai se superando. A gente teve
muita dificuldade nesta pandemia e a gente descobriu outras maneiras de trabalhar com os
alunos. Agora o sofrimento em si você fica como experiência. Eu penso só a experiência
mesmo. Por exemplo esta escola que eu passei eu tive o desafio, tive esta experiência para
contar. Mas não consigo te falar o que eu consegui me beneficiar disso daí. A não ser pela
experiência. Eu passei por aquilo e fim. Não agregou para mim, não sei se é porque eu
fiquei tão chateada, tão sobrecarregada que eu não vi. Só pela satisfação por eu ter
cumprido aquele desafio. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

Perguntada se haveria um processo de adaptação do professor, pela sua experiência pessoal


avalia que não – no que pese o relato do empobrecimento da experiência como memória
significativa. Ou seja, sua satisfação se deu “por eu ter cumprido aquele desafio” ou “eu passei por
aquilo e fim”. Parece haver uma dissociação, um hiato, talvez ainda incipiente da experiência, do
ponto de vista do retorno em gratificação psíquica (que não ocorreu visto que “não agregou”, a
“sobrecarregou”, a “chateou”) do próprio resultado, do “cumprir o desafio”. Nos perguntamos se
por esta fala não podemos perceber o início dos processos que podem culminar posteriormente em
cisões do Eu, desafetação ou indiferença como formas particulares de defesa no trabalho.

Você acha que há um processo de adaptação do professor? Que com o tempo ele
vai perdendo a capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço do seu trabalho?
Eu acho que não. Eu acho que a gente sempre tem a convicção, porque eu tenho a
convicção do meu valor, do quanto meu trabalho é importante, entendeu... Por isso
que eu fico chateada com este não plano de carreira. Porque por exemplo, eu não
quero sair da minha profissão, eu gosto de ser professora. Mas eu sou desvalorizada.
Eu sou desmotivada, mas eu acho que o professor sabe do valor do seu trabalho...
Você percebe isso nos seus colegas também, que eles continuam bastante críticos,
reflexivos, mesmo com o tempo de profissão, com todas estas frustrações que
você está colocando?
É então os mais velhos não mais... já perde um pouco, já são bem chateados, não
aceitam muito bem as mudanças que têm. E fica mais difícil para eles trabalharem.
(Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

O que se coloca parece ser um processo de acúmulo da intensidade desse mal-estar nos
professores ao longo dos anos, que favorece processos de adoecimento cumulativo, visto que a
professora salienta o peso da desvalorização pelas condições de trabalho. Em sua fala é possível
perceber sua luta de sustentação narcísica (“o professor sabe do valor do seu trabalho”), para
continuar na profissão, mesmo com todo processo de desmotivação externa que enfrenta.
O professor Luiz, que trabalha em três escolas da rede estadual para completar a jornada,
é contundente sobre o sofrimento e o processo de adaptação do professor. Segundo ele, o professor
vai se adaptando ao que é exigido burocraticamente na escola de modo que o pensar, a criação e
as possibilidades da positividade do mal-estar passam a ser tratados como um problema.
163

Este exemplo, o que você acha que acontece com o professor que trabalha a semana
inteira, o dia inteiro, não para para ler um livro, para ler um jornal. Uma pessoa que
vive em função do trabalho. Que não discute com os outros colegas, porque não tem
nem tempo hábil para isso. Chega na escola já vai para a sala de aula. Sai da escola
vai para a casa, come e dorme. Esse ano eu nunca me senti um alienígena, nunca me
senti um alienígena como este ano. De estar em três escolas, e eu não me senti
conectado... apesar de ter colegas que eu conheço há muito tempo, às vezes vai falar
alguma coisa do sindicato, paralisação, coisa do tipo eu não sei às vezes como entrar
na conversa, porque eu não conheço o quadro de professores plenamente ainda. E tem
professores que sim, eles têm uma visão bastante turva a respeito da própria carreira.
Não pense, trabalhe! E para algumas equipes gestoras isso é ótimo. O cara não falta,
preenche o diário tudo direitinho, não fica entregando nota com atraso, não tem
encheção de saco dos alunos. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

A cisão externa, objetiva da condição de trabalho do professor Luiz, de estar em três


escolas diferentes para compor jornada, o faz se sentir um “alienígena”, um ser de outro planeta,
“sem conexão” com a escola e seus pares, aos quais, pelo seu relato, também entram em mundo
próprio, particular, pela extensa jornada de trabalho que dissocia o trabalho intelectual e o
trabalho manual.
São tantas cisões na realidade social do trabalho que exigir do professor que sustente
este mal-estar exclusivamente pelo seu “narcisismo e castração” é produzir uma dissociação na
própria teoria e, na prática, um desmentido das condições de trabalho do professor.
Refletimos também qual a gestão, com o melhor espírito crítico, reflexivo e boa vontade,
consegue sustentar um corpo docente nestas condições de trabalho? Independente das demandas
externas que recebe da Secretaria de Educação, estamos diante de um contexto social também
precário para o trabalho dos gestores. Não parece haver dúvidas que se as escutarmos, como
hipótese, teremos que os professores, em tais condições de trabalho, devem representar desafios e
dificuldades muitas vezes intransponíveis e, consequentemente, processos de adoecimento para
eles, assim como o discurso da culpabilização individual de determinado professor.
O professor Luiz nos relata também uma certa mudança na forma como o professor olha
a realidade. É importante demarcar a palavra “turva”, sobre a visão dos professores em relação
à carreira. Com “turva”, que vai perdendo o brilho, vai ficando opaco, percebe-se uma variação
quando se trata de “água turva”, podemos pensar uma instabilidade, uma hesitação, uma dúvida,
que não deixa de representar o processo pelo qual passa a dinâmica interna do professor. Estes
estímulos, excitações externas, tóxicas, que penetram no psiquismo e no corpo, fazem deste
aparelho psíquico cada vez mais turvo, endurecido, cindido, porque podem também se associar
às dimensões destrutivas do mundo psíquico de cada professor e intensificá-las.
A análise das entrevistas vem nos revelando que a realidade das condições de trabalho
rompe as barreiras de proteção psíquica, minam suas defesas psíquicas e corporais. É, de fato,
um “cenário psíquico de guerra” que o professor enfrenta – não por acaso as expressões
164

metafóricas de guerra como já salientamos. Até que esses professores, de modo cada vez mais
hegemônicos, mesmo que não totalmente, se adaptem à burocracia escolar pelos seus interesses
conscientes e inconscientes de autoconservação psíquica, mesmo naquilo que o masoquismo
tem de importante, que é poder sustentar algum nível de dor e adaptação para sobreviver, ou
seja, para não “quebrar” definitivamente, entrar em pane ou adoecer de modo absoluto.
Nesse âmbito, compreendemos o que o professor Luiz nos traz como uma formação de
compromisso: “Não pense, trabalhe!” Pensar não só dá trabalho; também coloca os professores
para lidar com um mal-estar intensamente destrutivo, tal como estamos observando pelos dados do
conjunto da pesquisa. Isso é um efeito daquilo que Freud (2014g, p. 506) alertou: “no mundo, não
existe apenas a infelicidade provocada pela neurose, mas também sofrimento real, irremovível.”
O “não pensar” pode ser uma estratégia de defesa, como enfatiza Christophe Dejours:

Pensar a ameaça de ser despossuído de si pelo trabalho repetitivo é uma fonte


suplementar de sofrimento. Com ou sem a injunção organizacional de não pensar,
aquele ou aquela que se esforça em assumir a situação de trabalho, no longo prazo é
tomado pelo desejo de não mais pensar... sente a necessidade de pôr um basta no
sofrimento e na angústia que implica a consciência clara da situação vivenciada.
(DEJOURS, 2022a, p. 62).

Tornar consciente e clara a situação vivenciada em um espaço cada vez mais precarizado
e padronizado de trabalho eleva a angústia, visto que as determinantes objetivas de mudança
envolvem aspectos muito mais complexos do que saídas meramente individuais. O que vai
restando ao professor para manter algum grau de autopreservação é responder às demandas da
burocracia, de modo exclusivo, expressão normalmente dissociada da experiência do trabalho,
mas que coaduna com as necessidades funcionais da forma como a escola se organiza na
atualidade. As gestões também são cobradas pelas diretrizes externas, heterônomas. Segundo o
professor Luiz: “E para algumas equipes gestoras isso é ótimo. O cara não falta, preenche o diário
tudo direitinho, não fica entregando nota com atraso, não tem encheção de saco dos alunos”.
Esse modo de adaptação do professor à burocracia escolar produz muitos efeitos
sintomáticos no ambiente de trabalho docente. Movimentos de resistências a mudanças,
dificuldades para trabalhos coletivos, formas de boicotes conscientes ou inconscientes aos
trabalhos de colegas que pensam possibilidades de refletir sobre o trabalho e suas dinâmicas.
De modo que se cria um círculo de (de)formação no interior de escola marcado pela constante
introjeção do ambiente agressor entre os professores mais antigos e mais novos. Como nos
coloca Christophe Dejours (2022, p. 66):

De um lado, é necessário convir sobre a utilidade, o valor “adaptativo”, mas de outro


importa observar que a negação dos estreitamentos da capacidade de pensar apresentam
lá seus inconvenientes. Não apenas porque acarretam um empobrecimento da
165

subjetividade, mas porque ainda engendram a famosa “resistência à mudança”. Difíceis


de serem operacionalizadas, dispendiosas em esforço e em energia, quando são instaladas
e se mostram eficazes, as defesas devem ser conservadas, mantidas e protegidas. Assim,
as estratégias de defesa participam da perpetuação das situações sobre as quais,
justamente, elas têm por princípio combater os efeitos psíquicos deletérios.

O que vemos, pelos dados da pesquisa, é que aqueles que lutam contra o seu
embrutecimento sentem a intensidade do mal-estar escolar, pois, como nos lembra o professor
Fernando no início deste tópico, a escola produz um “trabalho engessado, limítrofe e atrofiante”,
ou mesmo se apresenta como um “moedor de gente”. Diante das circunstâncias, “se pudemos dizer
que, diante de um conflito, o neurótico sempre busca refúgio na doença, temos que reconhecer que
em muitos casos essa fuga é plenamente justificada, e o médico que percebeu esse estado de coisas
se retirará em silêncio, pleno de consideração para com o enfermo.” (FREUD, 2014g, p. 506).
Na medida em que o social convoca as dimensões mais regressivas individuais e
grupais, o que é mobilizado nos processos psíquicos em forma de autopreservação são as
camadas mais destrutivas individuais, sem ligação de Eros. O professor entra no automático, o
que nos faz refletir se há algum nível de gratificação neste ser automático (Não pense,
trabalhe!)103, seja prazer sem representação, marcados pelas dinâmicas sociais regressivas e
pela pulsão de morte104, seja clivagem do Eu (CALLIGARIS, 2022), na qual a gratificação

103
Calligaris (2022) trabalhou, em sua tese de Doutorado, de 1991, sobre as formas perversas de relações sociais e
em grupo. Em especial a experiência nazista lhe chama atenção pelo caráter de servidão instrumental daqueles que
tiveram participação na máquina burocrática nazista. Ao mesmo tempo, o psicanalista parece ir além ao estabelecer
uma forma de gozo particular contemporânea. Calligaris adentra a tradição que discute as formas de clivagem do Eu
por uma operação semelhante ao fetichismo, na qual o Eu não produz negação da castração, mas a substitui pelo
fetiche. Na perspectiva social, o fetiche estaria conectado às formas de instrumentalidade e adequação, na qual há um
gozo próprio de submissão a lei instrumental, sem a culpa produzida pelo recalque. Este gozo estaria sobre a
“miragem narcísica” do Eu ideal que se expressaria em ser o falo materno. Como diz Calligaris: “já o fetichista
econômico, quer dizer, o homem comum, conseguindo criar em seu cotidiano não sexual uma montagem que garante
o gozo difuso e contínuo da sua adequação a um conjunto social que regula o funcionamento de todos, ele sim, terá
conseguido uma ‘perversão’ bem sucedida. Terá conseguido ser o fetiche, o órgão adequado do corpo social, graças,
é claro, à invenção de uma cena presidida por um saber – ou manual de instruções, se preferirem – que lhe garanta o
domînio sobre o seu próprio oferecimento. A vitória se mede, aliás, pelo sucesso de sua denegação, pelo fato de nada
mais impor nem permitir, em princípio, que a cena se revele como tal.” (CALLIGARIS, 2022, p. 407). Mais à frente,
complementa: “Superar vergonha, repulsa, dor, contradizer inclusive os ideais sociais mais elementares se torna
possível, pois não é em nome de um gozo narcísico, que cairia sob a pressão do recalmento, mas em nome do serviço
que se presta a um dever, ou seja, a um outro ‘ideal’ . Em suma, o que se coloca com a cena é um serviço prestado
ao “supereu” materno, que se realiza graças a um saber que dá o troco e o disfarça em serviço a um ‘supereu’ paterno,
fundado em uma nova idealidade.” (CALLIGARIS, 2022, p. 414).
104
O psicanalista Christophe Dejours aponta que: “Muitas pessoas permanecem na normalidade, mas ao preço de
sintomas psicóticos depressivos, aditivos, psicopatológicos, de caráter somáticos, com os quais elas devem
estabelecer um compromisso mais ou menos precário. Em todos esses sujeitos, que formam uma legião, o
inconsciente amencial não permanece mudo, longe disso. O tributo pago à compulsão de morte é, em certas
situações, uma clivagem imperfeita que se traduz pela angústia. (...) Na arena das relações sociais, a luta pela
dominação oferece numerosas oportunidades de encontrar saídas para a destrutibilidade dirigida contra pessoas,
contra a subjetividade do outro. A vida profissional, em particular, está repleta de situações propícias para isso, a
ponto de se tornar difícil para quem trabalha escapar de uma tal situação. É a via expressa a que eu acima já havia
referido pelo nome de ‘via social’ da compulsão de morte.” (DEJOURS, 2022, p. 172-3).
166

passa a ser a própria relação do indivíduo com a instrumentalidade da lei burocrática e


heterônoma. Cumpri-la sem pensar, destituído da subjetividade!
É evidente que entramos em um cenário que está relacionado não só ao mal-estar dos
professores; está ligado ao próprio mal-estar da modernidade capitalista em seu estágio destrutivo.
Estamos falando de dinâmicas sociais que produziram, ao longo da história, todo tipo de barbáries.
Como nos coloca Dejours (2022a, p. 66): “Ao se considerar esses dados sociológicos sobre a
divisão social do trabalho, importa reconhecer que as estratégias coletivas e individuais de defesa
destinadas, em primeira instância, a proteger a saúde mental, constituem, em segunda instância,
poderosos propulsores para a servidão voluntária e para a reprodução da dominação.”
O professor Pedro, com 21 anos de rede estadual, relata sua luta para não se adaptar.
Pelo que diz, parece ser um processo muito intenso, que envolve muitas variáveis sociais e
individuais do professor. A desvalorização material do professor produz um forte componente
de desvalorização psíquica.

Sim. Trabalhei com uma professora que falou uma vez assim para mim: “professor, dar
aula no estado emburrece a gente” e eu fiquei com esta frase na cabeça, porque como eu
dou aula de inglês também eu percebi que minha pronúncia já não é tão boa quanto era,
porque não uso isso em sala de aula do Estado, não ensino pronúncia. E eu comecei a ver
assim, achei outro dia que aquelas limpezas que a gente faz de final de ano, comecei a
achar as aulas minhas de quando eu comecei a dar aulas. Eu olhava assim e pensava,
gente se eu fosse dar uma aula dessa hoje os alunos não conseguiriam entender. A gente
perde muito. A pessoa que tem a vocação mesmo ela precisa até por uma questão acho
que dela ou pensando no seu aluno de estar sempre estudando, refletindo sofre seu
processo. Refletir sobre o que está passando. Buscar novas maneiras de pensar..., mas o
discurso que eu ouço é muito assim, “ah, mas você vai atrás de novos aplicativos, você
vai atrás de novas formas de aula, mas o que o governo paga para gente...” É um
argumento que eu nem quero contra-argumentar porque para mim é uma questão de ter
foco no aluno. Então quando a gente pensa: você perde muito, no Estado você perde
muito intelectualmente. Não se vê como especialista. Nós tivemos uma reposição ontem
e eu disse nós somos especialistas em nossas áreas e algumas pessoas riram. Porque acho
que estão desacreditando delas mesmas. Eu acho que é bem por aí mesmo, é bem como
você colocou mesmo. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Há um lugar de desesperança, de desacreditar em si, que vai se constituindo como modo


de ser docente. O trabalho docente, da forma em que está organizado neste “princípio de
realidade”, não apenas “emburrece”, como embrutece o professor. Vai tornando o professor
pragmático, rude, bruto, indiferente, o que tem efeitos em uma dinâmica psíquica. Esse “novo
normal” não passa ileso à dinâmica psíquica como se se pudesse separar simplesmente daquilo
que produz mal-estar externo. Na verdade, afeta todas as esferas da vida do professor. Uma das
167

marcas mais importante desse embrutecimento é a perda do lugar intelectual do professor,


chave fundamental, narcísica da identidade docente.105
Os “professores riram” do professor Pedro por ele lembrar os colegas que são
intelectuais. Por mais que o professor Pedro resista, como atividade consciente, a “emburrecer”,
convocando os colegas a pensar com ele e evidentemente tendo que lidar com a intensidade da
ambivalência do ambiente escolar, o riso certamente é motivado pela dissociação entre o
aparente, um certo ideal do Eu na cultura do professor e sua imagem, daquela da realidade
social em que esta imagem é colocada à prova.
O próprio professor Pedro reconhece a seguir o que significa esta dissociação ao relatar
o caso de um colega professor de Artes com o qual trabalhou. Comenta que foi observando e
acompanhando o adoecimento deste professor pela perda da autonomia no trabalho devido a
políticas externas, alheias, heterônomas à experiência escolar.

(...) este professor que eu conheço, professor de Artes, ele era um excelente professor.
Ele fazia muitas coisas na escola, ele foi um dos primeiros em falar em protagonismo
juvenil na escola. Nós fizemos trabalhos muito bacanas juntos. Ele foi ficando...
adoecendo emocionalmente porque a direção da escola cedendo à pressão da Seduc
começou a podar isso, isso pode, isso não pode, então você percebe que o professor,
o sofrimento dele foi oriundo de uma mudança na postura de entender a educação.
(Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Este relato do professor Pedro é bastante paradigmático do quanto o modo de


funcionamento escolar medido pelas políticas externas, avessas à experiência do cotidiano
escolar, afetou dimensões intrapsíquicas desse professor, até o seu adoecimento paralisador.
Um professor de Artes como se espera tinha na criatividade e na autonomia dos estudantes o
motor de suas ações. Pelo seu adoecimento, a criatividade e autonomia eram-lhes decisivas em
seu funcionamento psíquico.
A professora Ana e o professor João acreditam que seja possível pensar na possibilidade
de um sofrimento que produza criação, reflexão. Contudo, mostram-se céticos tanto pelo não
saber que isto movimenta, quanto por tudo que movimenta o processo educacional. Certamente,
a sala de aula é apenas um aspecto de todo mundo social e do trabalho da educação.

Sim, eu acho que sim. Eu acho que a partir do que a gente passa na sala de aula e na
escola em si, nas relações com outras pessoas dentro da escola eu acho que há

105
Sabemos que a categoria “identidade” não é uma categoria psicanalítica propriamente dita. No entanto, como nos
traz Dejours: “a teoria das relações sociais de sexo e de trabalho está no direito de exigir da psicologia e da psicanálise
que essas integrem o real do social na teoria do sujeito, pois ela pode demonstrar que a luta pela identidade e pela
normalidade não se apresenta da mesma maneira para uma mulher e para um homem. (...) a identidade psicológica
define-se como procura do sentimento de unidade da personalidade – em detrimento das pressões exercidas sobre o
sujeito pelos diferentes determinismos que pesam sobre as suas condutas – e como sentimento de continuidade dessa
unidade, a despeito dos constrangimentos que levam a fragmentá-la, e que são provenientes de circunstâncias externas
ou de movimentos pulsionais que afetam a identidade e seu âmago.” (DEJOURS, 2022, p. 175-6).
168

possibilidade de a gente repensar e achar possíveis soluções ou caminhos. Só que eu


acho que é um trabalho bem difícil e complicado, a educação é muito grande. Você tem
redes diferentes, mas eu acho que há possibilidade de tentar achar caminhos, mas quais
não sei, não sei quais seriam, o que poderia ser feito. Mas eu acho que é importante sim
refletir sobre este processo. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

A professora Ana revela uma indeterminação do saber que faz parte do processo do mal-
estar docente. Aponta a necessidade de reflexão, de pensar caminhos para lidar e transformar o
mal-estar. O não-saber que a professora relata parece estar relacionado também a que as
possibilidades se dão coletivamente, com os outros, sejam professores, estudantes, comunidade
escolar ou mesmo outras instâncias. O que implica pensar os efeitos na intensidade do mal-
estar quando as possibilidades coletivas estão obstaculizadas – visto que uma resposta
“terapêutica” isolada tem seus limites para dar conta desse mal-estar.
Talvez por isso o “não-saber” que a professora revela se conecte a uma sensação de
impotência: “a educação é muito grande, com redes diferentes”. Se tomarmos esta fala somente
sob um prisma exclusivo “neurótico”, “do não dar conta”, e não pensarmos as mediações
necessárias entre o individual e o social, entramos naquilo que Adorno (2006d, p. 36) criticava:

a ideologia dominante hoje em dia define que, quanto mais as pessoas estiverem
submetidas a contextos objetivos em relação aos quais são impotentes, ou acreditam ser
impotentes, tanto mais elas tornarão subjetiva esta impotência. Conforme o ditado de que
tudo depende unicamente das pessoas, atribuem às pessoas tudo o que depende das
condições objetivas, de tal modo que as condições existentes permanecem intocadas.

O que a professora Ana aponta é um dado do princípio de realidade de que, de fato, as


questões são grandiosas e complexas. Reprimir ou mesmo recusar uma compreensão mais
ampla do social não leva somente a processos adaptativos, mas revela, em sua construção, em
seu raciocínio lógico 106 e, também, em um certo ideal narcísico 107 , o atual estágio do
capitalismo que parece se beneficiar totalmente da falência da crítica.

106
Marcuse, em O homem unidimensional (2015), apontou o declínio do universo político, da crítica e do negativo e
como isso adentrou na própria racionalidade dos indivíduos. A construção lógica, do raciocínio, na racionalidade por
si mesma, estaria impossibilitada de desenvolver a crítica. “A transformação do pensamento crítico em pensamento
positivo acontece principalmente no tratamento terapêutico dos conceitos universais; sua tradução em termos
operacionais e comportamentais... (...) O caráter terapêutico da análise filosófica é fortemente enfatizado – cura de
ilusões, decepções, obscurantismos, enigmas insolúveis, questões sem respostas, de fantasmas e espectros. Quem é o
paciente? Aparentemente certo tipo de intelectual, cuja mente e linguagem não se conformam com os termos do
discurso comum. Há, de fato, uma boa porção de psicanálise nessa filosofia – análise sem a compreensão fundamental
de Freud de que o problema do paciente está enraizado em uma doença geral que não pode ser curada pela terapia
analítica. Ou, de certo modo, de acordo com Freud, a doença do paciente é uma reação de protesto contra o mundo
doente no qual ele vive. Mas o médico tem que desconsiderar o problema ‘moral’. Ele tem que recuperar a saúde do
paciente, torná-lo capaz de funcionar normalmente neste mundo.” (MARCUSE, 2015, p. 183).
107
Christopher Lasch, em A cultura do narcisismo (1983), aponta o enfraquecimento do sentido do tempo histórico
como expressão desta cultura do narcisismo, no caso, na sociedade americana, que parece ter encontrado
ramificações particulares em todo mundo ocidental: “Desesperançadas de incrementar suas vidas com o que
interessa, as pessoas convenceram-se de que o importante é o autocrescimento psíquico: entrar em contato com
169

Quando a professora Ana aponta a grandiosidade da questão, não tomando para si


isoladamente a impotência, compreende, por estar inserida diretamente nela, o quão complexa
são as relações local e a social na educação, e que o “não-saber”, que se realiza a partir da
negação destas constatações mais amplas, pode representar saídas individuais que justamente
reafirmam modos sociais regressivos e adaptativos.108
O professor João, apesar de avaliar que há uma possibilidade de aprendizado a partir
do conflito, aponta que os professores fazem um movimento de saída da educação pelo tipo de
sofrimento que ela produz. Quando ficam, o que se coloca é um discurso de lamentação e
autorrecriminação. Diz que essas possibilidades de transformações criativas são saídas pontuais
e não gerais.

A minha resposta vai parecer contraditória, eu acho que sim há uma possibilidade, eu
acho que situações de conflito, de problemas e tal, elas podem mover as pessoas. Mas
ao mesmo tempo eu não sei exatamente o porquê eu acho que isso não tem movido os
professores enquanto grupo. Individualmente provoca movimentos sim, e dependendo
o desenrolar dessa reação, desse movimento.... O que eu tenho visto é que este professor
para fazer um paralelo com os alunos, este professor ele evade. Ou ele evade da sala de
aula para os cargos da burocracia escolar, ou ele evade para outras áreas de trabalho. E
aqui eu não estou nem assim julgando o professor. É um caminho possível a ser adotado.
Mas enquanto grupo o que eu tenho visto na minha experiência é que este sofrimento
ele só provoca lamentação. É lamentação, é desilusão, é reprodução de frases do tipo
assim, “se eu pudesse eu ia embora, ia fazer outra coisa”, “não vejo a hora de chegar ao
final de semana, de chegar as férias”. Não sei eu acho que algumas escolas provocaram
este movimento que você está me perguntando. Aí acho que resta fazer uma pesquisa
para ver o porquê isso, no meu ponto de vista, ele é mais pontual do que digamos
genérico. Você vai achar uma escola ou outra que este movimento na cabeça de um
diretor, de um grupo de professores de repente provocou uma escola de derrubar os
muros, provocou uma escola de fazer um projeto. Mas no geral parece que não provoca
isso não. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

Interessante que a associação do professor João é que “o professor, para fazer um


paralelo com os alunos, o professor evade”. Teríamos que pensar se o professor não evade do
processo de infantilização que o ambiente escolar e de trabalho produz. Ao ser desautorizado
social e materialmente em sua autonomia, como vemos pelos dados da pesquisa em vários

seus sentimentos, comer alimentos saudáveis, tomar lições de dança clássica ou dança-do-ventre, mergulhar na
sabedoria do Oriente, correr, apreender a se ‘relacionar’, superar o ‘medo do prazer’. Por si sós inofensivas, essas
buscas, elevadas ao nível de um programa e embrulhadas na retórica da autenticidade e da consciência, significam
um recuo da política e um repúdio ao passado recente.” (LASCH, 1983, p. 25).
108
É importante destacar que este olhar restrito sobre as questões que se apresentam na escola também são
mobilizados por uma política consciente dos governos que formam, que educam os professores em um modo de
trabalho neoliberal. Como discute Aparecida Neri de Souza sobre as políticas governamentais para os professores
da rede estadual de São Paulo: “Outra característica do trabalho moderno é a individualização sistemática da gestão
dos trabalhadores mediante a vinculação entre salário e desempenhos. Nesse caso, os professores são remunerados
de acordo com os resultados obtidos por seus alunos; isso introduz uma nova concepção de trabalho docente. A
competição e os valores empresariais constituem referências para a organização e a gestão do trabalho numa visão
pragmática e utilitarista.” (SOUZA, 2013, p. 224).
170

depoimentos, uma saída, como estratégia de defesa do professor, é se evadir ou se adaptar,


ligando-se libidinalmente a um discurso comum e recriminativo, ressentido.
Outro dado a se pensar, também, é o fato de que, no entendimento do professor João, o
professor pode “evadir para a burocracia”, para os cargos de gestão. Isso muda a configuração
inclusive do lugar e função social e administrativa da gestão. Se as marcas do mal-estar docente
fazem o professor “evadir”, “escapar”, “fugir” para cargos que tem que coordenar e dirigir o
trabalho docente, temos uma questão de impacto nas dinâmicas sociais do espaço escolar, que
precisariam ser desdobradas em novas questões e investigações científicas. E que talvez diga
respeito ao incremento de um modo de administrar a educação essencialmente burocrático, que
encontra matéria prima no mal-estar docente para ampliação de sua manifestação e expansão.
Com relação ao processo de adaptação, o professor João pensa os aspectos do que seria
um movimento consciente do professor nessa ação:

Eu acho que há um processo de adaptação, mas eu tenho dúvidas se ele perde a


capacidade crítica. Eu acho que conforme ele vai se cansando e vai se adaptando a
este dia a dia que é pesado, a gente sabe que tem profissões que são tão difíceis ou
mais, mas enfim. Eu acho que conforme ele vai se adaptando ele vai ficando mais
pragmático. Eu não acho que ele perde a capacidade crítica, eu acho que simplesmente
ele não quer mais usar. Eu acho que ele vai chegando à conclusão que bom seu eu
fizer dessa maneira mais crítica, vai dar muito mais trabalho seja um possível
enfrentamento com colegas de trabalho, com a gestão, às vezes até com a comunidade,
os pais. E se eu fizer dessa maneira mais simples, ninguém vai me encher o saco, o
salário vai cair do mesmo jeito. (...) Eu acho que ele se adapta sabe. É uma adaptação
no geral consciente, é aquela frase, “eu sei o que estou fazendo, mas eu faço”. É
cansativo, na verdade você enfrentar. Depois que eu voltei do afastamento pela greve,
trabalho remoto e tal... eu arrumei uma briga com a gestão da municipal. Por quê?
Porque eu fico cobrando coisas. Eu não aceito que a janela esteja quebrada, precisa
de ventilação pro protocolo. O computador que a escola já está com eles lá, mas está
encaixotado. Ser um professor crítico é cansativo. Se eu não fizesse nada do que eu
faço: greve, cobrar a direção. Se eu simplesmente chegasse, assinasse o livro ponto,
passasse aquele conteúdo na sala de aula e voltasse para casa a vida seria mais fácil.
Essa é a verdade. Então não sei te responder se ele perde. Eu acho que é consciente
sabe. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

O que se vê por este depoimento do professor João é uma forma de defesa dessa
realidade social, “eu sei o que estou fazendo, mas eu faço”, que é a expressão do cinismo109,

109
Peter Sloterdijk, em Crítica da Razão Cínica, discute que: “O cínico moderno é um associal integrado, páreo para
qualquer hippie na falta de ilusões subconscientes. A ele próprio, seu olhar mau e claro não surge como defeito
pessoal ou como mania amoral a ser justificada por ele mesmo. Instintivamente, ele compreende seu modo de existir
não mais como algo que tem a ver com ser-mau, mas enquanto partícipe de uma maneira de ver, coletiva e
realisticamente conformada. Essa é a forma corrente por meio da qual as pessoas esclarecidas não se veem como
aquelas que continuam sendo tolas. Parece mesmo haver algo de saudável nisso – exatamente em favor disso fala a
vontade de autoconservação. Trata-se da postura daqueles que se conscientizaram que os tempos da vaidade se foram
(...) Psicologicamente, o cínico do presente deixa-se compreender como um caso limite de melancolia, que mantém
seus sintomas depressivos sob controle e, em certa medida, pode permanecer apto para o trabalho. Sim, é isso que
importa ao cinismo moderno: a capacidade de trabalho de seus representantes – apesar de tudo, e mesmo depois de
tudo. (...) Sabem o que fazem, mas o fazem porque as ramificações objetivas e os impulsos de autoconservação a
171

uma certa forma de “perverter” o princípio de realidade. Por isso, o professor coloca a dimensão
consciente de não perder a crítica (de optar pelo pragmatismo) ao se adaptar ao modo social
cínico e à deformação do princípio de realidade, que se apresentam nas suas condições precárias
de trabalho e em seus discursos.
É como se o cinismo das exigências do discurso pedagógico, dissociado das bases
materiais para sua realização, encontrasse, na dissociação, sua “resistência e crítica consciente”.
Por isso, a sensação pessoal do professor de não perder sua capacidade crítica. Como está isolado,
somente com seus recursos psíquicos para lidar com tamanhas questões, sua fantasia é “ludibriar
o sistema com as armas do sistema”, para não produzir uma forma de adoecimento mais intensa
e destrutiva. A questão é que tal forma de ser já é produto individual do adoecimento social.
Uma possibilidade de interpretação desse fenômeno social do cinismo se dá com aquilo
que nos coloca o instigante trabalho de Peter Sloterdijk sobre a Crítica da Razão Cínica:

Isso resulta em nossa primeira definição: cinismo é a falsa consciência esclarecida.


Ele é a consciência infeliz modernizada, da qual o Esclarecimento se ocupa ao mesmo
tempo com êxito e em vão. Ele aprendeu sua lição sobre o Esclarecimento, mas não a
consumou, nem pôde consumar. Ao mesmo tempo bem instituída e miserável, essa
consciência não se sente mais aturdida por nenhuma crítica ideológica; sua falsidade
já está reflexivamente conformada. (SLOTERDIJK, 2012, p. 34).

A intensidade das adversidades, a sensação de isolamento do professor, o próprio


cinismo do ambiente escolar, produzem o cinismo docente, conformado, pois a possibilidade
de autonomia não tem condição social para se consumar. Avaliamos que este fenômeno social
do cinismo é mais um estágio da “introjeção do agressor”, da cisão do Eu. O professor reprime
uma parte de si criativa, um Eu que buscaria gratificações através da realidade exterior e assume
um “Eu cínico”, reflexo da introjeção do “ambiente agressor”110 como modo de funcionamento.
Como esse “Eu cínico” reflete, em alguma medida, um estágio da autoconservação, ele passa a
representar, pela fantasia do professor, um modo crítico, consciente de lidar com uma realidade
social precária e obstaculizada. Afinal, uma escola em que o professor tem que exigir o básico
dos traços civilizatórios (janela quebrada, ventilação para o protocolo, computador
encaixotado), dá o tom do desgaste de constituir demandas mais complexas e esclarecidas.

curto prazo falam a mesma língua e lhe dizem que, se assim é, assim deveria ser. Dizem-lhes também que, de qualquer
maneira, ainda que eles não o fizessem, outros o fariam, talvez pior. Desse modo, o novo cinismo integrado tem
frequentemente o sentimento compreensível de ser vítima e fazer sacrifícios.” (SLOTERDIJK, 2012, p. 33).
110
Utilizo o termo “ambiente” visto que não se trata, muitas vezes, de uma relação individual específica com um
gestor, professor, supervisor, estudante ou mesmo pais, mas o conjunto das relações em que se produz que, ora ou
outra, pode se fixar em alguém de modo específico. Contudo, é na própria dinâmica social que organiza as
diferentes individualidades e sociabilidades regressivas as quais ele se apresenta.
172

“Ser um professor crítico é cansativo!” porque não estamos falando de demandas


pontuais ou de experiências que possam produzir um retorno em gratificação ou frustração ao
Eu, de modo que ele se constitua também para melhor sustentar o mal-estar, mas da necessidade
intensa e constante, traumática, para cada professor marcar sua individualidade num espaço
escolar precarizado e padronizado, no qual, inclusive, há uma falência das formas de resistência
coletivas e sindicais, tal como observamos na análise dos dados de pesquisa.111
No que pese a particularidade da profissão impossível, que Freud nos traz sobre o mal-
estar do professor, há uma manifestação com expressões políticas e econômicas que afeta o
interior das escolas e produz uma intensidade do mal-estar de difícil elaboração e reflexão.
Há pouco espaço social, de tempo e de condições objetivas para digestão e depuração
dessas experiências psíquicas na escola. O que significa que o professor produz formas de se
autopreservar psiquicamente para evitar uma maneira de adoecimento mais drástica, mesmo
que sua situação social represente uma formação de compromisso, um sintoma. Seguiremos,
no próximo tópico, caracterizando essa intensidade.

111
Christophe Dejours (2022, p. 224) sinaliza que: “Desde Freud a questão do sujeito deslocou-se de um sujeito
consciente possuidor de um poder soberano pela utilização da razão para a de um sujeito dividido, ou de um Eu que
não é senhor em sua própria casa, visto que uma parte dele próprio, que reside no inconsciente sexual recalcado, lhe é
e sempre será estranha. Hoje é sem dúvida necessário dar um passo a mais: a clivagem do Eu, que atravessa até o
inconsciente, deixa-se conhecer pela duplicidade fundamental e primária do sujeito em relação a si próprio, cujo
instrumento é uma preguiça do pensamento que poderia estar no princípio da banalidade do mal, em todo ser humano.
É uma questão que, ao contrário, sugere que a coragem não deveria ser originariamente pensada em sua relação com
o perigo advindo do exterior, e sim na vontade de lutar consigo mesmo para recusar a facilidade que consiste em ceder
para a akrasia.” Para Dejours a akrasia seria uma forma do cinismo se manifestar, “vejo o melhor e o aprovo, faço o
pior” (DEJOURS, 2022, p. 222). No entanto, parece que, até pelo que Dejours traz em sua obra, as forças de dominação
que cindem o Eu são muito mais intensas que simplesmente colocadas por uma “preguiça de pensar”. Se elas
atravessam inclusive o inconsciente, estamos falando de um modo de defesa fundamental para o indivíduo sustentar
algum nível de autopreservação e organização psíquica ao custo de mutilar uma parte de sua subjetividade. Como
marca deste individuo se encontra, portanto, uma expressão da introjeção do agressor, como nos traz Adorno (2006f).
173

6. MAL-ESTAR, NARCISISMO E TRABALHO

E eu tive um lapso de tempo, eu tinha esquecido meu nome.

Professor Luiz

Em O mal-estar na civilização, Freud trata do processo de “evolução cultural”, em


especial os aspectos filogenéticos do desenvolvimento humano. Nessa construção, o psicanalista
demarca que “o trabalho” não seria uma categoria qualquer, mas um dos fundamentos da
sociabilidade humana. Segundo Freud, o homem primitivo, ao perceber que seu destino
dependeria essencialmente dele, torna o trabalho uma forma de ampliação da comunidade.

Após o homem primitivo descobrir que estava em suas mãos – literalmente – melhorar
sua sorte na Terra mediante o trabalho, não podia lhe ser indiferente o fato de alguém
trabalhar com ele ou contra ele. O outro indivíduo adquiriu a seus olhos o valor de um
colaborador, com o qual era útil viver. (FREUD, 2010a, p. 61).

As determinações relacionadas às necessidades externas, simples ou complexas, obrigaram


o desenvolvimento humano a ampliar as relações interpessoais, estabelecendo novas normas de
funcionamento social entre homens e mulheres. Ao ampliar para a comunidade o exercício
relacionado aos processos de autoconservação e garantias do prazer, elas também se estabilizaram.

A vida humana em comum teve então um duplo fundamento: a compulsão ao trabalho,


criada pela necessidade externa, e o poder do amor, que no caso do homem não
dispensava o objeto sexual, a mulher, e no caso da mulher não dispensava o que saíra
dela mesma, a criança. Eros e Ananké tornaram-se também os pais da cultura humana.
O primeiro êxito cultural consistiu em que um número grande de pessoas pôde viver
em comunidade. E como os dois grandes poderes atuavam aí conjuntamente, cabia
esperar que a evolução posterior ocorresse de modo suave, rumo a um domínio cada
vez melhor do mundo externo e à ampliação do número de pessoas abrangido pela
comunidade. Assim não é fácil entender como essa cultura pode não tornar felizes os
que dela participam. (FREUD, 2010a, p. 62-3).

O trabalho (necessidade ou Ananké) e o amor (Eros) são duas categorias centrais no


desenvolvimento humano, para Freud. Mediados pela cultura, produzem importantes objetos
para os investimentos libidinais. Marcaram e continuam marcando a “evolução cultural”. A
forma como homens e mulheres trabalham e amam ainda são decisivas para caracterizar a
maneira como se estabelece o mal-estar humano.112

112
São vários os autores que buscam atualizar o mal-estar contemporâneo. Para citar talvez um dos mais
conhecidos na atualidade, Zygmut Bauman, que traz a ideia de que o trabalho e o amor estão sob a lógica do
consumo e não mais da produção como na época de Freud. Sua caracterização conceitual de “amor líquido” e
“modernidade líquida” aponta que nada mais é feito para durar. Isso implica que “a vida organizada em torno do
consumo, por outro lado, deve bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e
quereres voláteis – não mais por regulação normativa. Nenhum vizinho em particular oferece um ponto de
referência para uma vida de sucesso; uma sociedade de consumidores se baseia na comparação universal – e o céu
é único limite.” (BAUMAN, 2001, p. 90).
174

Sabemos que apesar de Freud apontar a dimensão faltante inerente à condição humana
em O mal-estar na civilização, compreende que renunciar aos prazeres do amor sexual para
evitar algum tipo de perda ou dor, provoca um enorme empobrecimento da vida psíquica e
social. “De imediato queremos expor as nossas duas principais objeções. Um amor que não
escolhe parece-nos perder uma parte do seu valor, ao cometer injustiça com o objeto. Além
disso, nem todos os humanos são dignos de amor.” (FREUD, 2010a, p. 65).
De tal modo, é difícil pensar – e essa foi uma das preocupações de Freud no conjunto do
texto – na impossibilidade de abdicar do amor sexual para não ter nenhum sofrimento. Esta prática
torna-se uma tarefa muito dispendiosa que produz, evidentemente, novas formas de sofrer.
A maneira como homens e mulheres realizam o amor e o trabalho torna-se, portanto,
fundamental para a saúde psíquica. E a cultura, determinada historicamente, amplia ou reduz
as possibilidades de a energia libidinal se desenvolver pelo quantum de repressão. 113 “Já
sabemos que nisso a cultura segue a coação da necessidade econômica, pois tem de subtrair à
sexualidade um elevado montante da energia psíquica que despende.” (FREUD, 2010a, p. 68).
Freud, apesar de colocar o amor e o trabalho como dois paradigmas da evolução cultural
em O mal-estar na civilização, dedica-se mais à compreensão do amor e suas vicissitudes. O
trabalho apareceria caracterizado de modo genérico nas chamadas sublimações, as
possibilidades que os humanos têm de desviar da meta sexual a libido para fins relacionados à
cultura e ao trabalho.

A sublimação dos instintos empresta aqui sua ajuda. O melhor resultado é obtido
quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de
trabalho psíquico e intelectual. Então o destino não pode fazer muito contra o
indivíduo. A satisfação desse gênero, como a alegria do pesquisador na solução de
problemas e na apreensão da verdade, tem uma qualidade especial, que um dia
poderemos caracterizar metapsicologicamente. (FREUD, 2010a, p. 35).

A sublimação é uma categoria em aberto no conjunto da obra freudiana. Não há um


texto específico que trabalhe este tema. É um conceito que se modifica e acompanha a obra de

113
Em 1925 Freud escreve As resistências à psicanálise e considera que o quantum de repressão é um dado histórico,
portanto passível de ser criticado e mudado. Isso não significa que a dimensão faltante desaparecerá, mas que a
intensidade da repressão, da coação das necessidades econômicas, são construções culturais e sociais e que podem
produzir mais ou menos formas de sofrer. “A psicanálise desvela as fraquezas desse sistema e recomenda sua
alteração. Ela propõe que se reduza a severidade da repressão instintual e que se dê mais ênfase à veracidade. A
sociedade foi muito longe na supressão de determinados impulsos instintuais; a eles deve ser concedido um maior
grau de satisfação, e no caso de outros o inadequado método de suprimi-lo pela via da repressão deve ser substituído
por um procedimento melhor e mais seguro. Por causa dessa crítica a psicanálise foi considerada ‘hostil à civilização’.
Tal resistência não durará eternamente. A longo prazo, nenhuma instituição humana pode escapar à influência da
visão crítica fundamentada, mas até agora a atitude das pessoas ante a psicanálise é dominada por esse medo, que
desata as paixões e reduz a exigência de argumentar logicamente.” (FREUD, 2011c, p. 263).
175

Freud em suas transformações 114 . Assim como a sublimação, a categoria trabalho também
poderia ter um melhor desenvolvimento na teoria freudiana, considerando sua importância
psíquica115, cultural, histórica e filogenética.
Em O mal-estar na civilização, numa nota de rodapé, Freud abre a perspectiva da
necessidade de buscar uma análise mais profunda do trabalho para o desenvolvimento humano.

Não havendo uma disposição especial que prescreva imperiosamente a direção dos
interesses vitais de alguém, o trabalho acessível a todos pode ocupar o lugar que lhe é
proposto pelo sábio conselho de Voltaire. Não é possível, nos limites de um panorama
sucinto, examinar satisfatoriamente a importância do trabalho para a economia libidinal.
Nenhuma outra técnica para condução da vida prende a pessoa tão firmemente à
realidade como a ênfase no trabalho, que no mínimo a insere de modo seguro numa
porção da realidade, na comunidade humana. (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).

Neste trecho, a despeito de não haver forma de determinar os interesses singulares mais
profundos, destaque-se o trabalho que, se for acessível a todos, possibilita funções psíquica e
social fundamentais. Consideramos que a referência a Voltaire, em seu clássico conto Candido,
o Otimista116, se deve ao seguinte diálogo, que se estabelece entre Cândido e o velho que o

114
A psicanalista Sissi Vigil Castiel descreve, em seu livro Sublimação: clínica e metapsicologia, que “há
momentos distintos da teorização do processo sublimatório em Freud; um primeiro momento no qual dizia que a
sublimação se caracteriza pela dessexualização pulsional, no qual haveria uma modificação da meta da pulsão, de
tal modo que os objetivos passariam de sexuais a não-sexuais. Em segundo momento, Freud define a sublimação
como um dos quatro destinos pulsionais, sendo este o mais evoluído e, mais tarde, afirma que paralelamente à
mudança da meta na sublimação haveria, também, uma mudança nos objetos. A primeira postulação de Freud
sobre a sublimação implica impasses no que diz respeito à caracterização da sublimação, enquanto as outras duas
permitem uma abertura maior do conceito, tanto no que diz respeito à metapsicologia quanto à clínica. Entende-
se que a primeira postulação freudiana tem como objetivo mostrar que a sexualidade está na origem das criações
humanas muito mais do que definir a sublimação em si mesma, enquanto as duas últimas pretendem explicar mais
detidamente o processo sublimatório.” (CASTIEL, 2007, p. 12).
115
Na própria obra de Freud, no que diz respeito ao trabalho psíquico, encontramos referências ao “trabalho do
sonho” e o “trabalho do luto”, “o trabalho de elaboração” que resulta de processos de transformação no psiquismo
fundamentais para o indivíduo. É por este caminho que Christophe Dejours constrói sua teoria na relação pulsão,
corpo e trabalho: “Contudo, a pulsão não é apenas um conceito, é também um ser: ‘representante’ psíquico. ‘A
pulsão aparece-nos [...] representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo e que atingem a alma’.
Aqui Freud emprega claramente os termos ‘corpo’ e ‘alma’, e o representante psíquico está investido do mesmo
estatuto ontológico que esses dois últimos. A pulsão, ademais, é um ser psíquico e não físico, e ela tem por
incumbência representar na alma o que, do corpo, é capaz de chegar até ela. ‘A pulsão aparece-nos [...] como uma
medida da exigência de trabalho imposta ao anímico por sua correlação com o corpóreo. Este último termo –
trabalho é finalmente aquele que causa maior estranheza nessa definição sugerida por Freud e que, na verdade, foi
o menos comentado’.” (DEJOURS, 2022, p. 64). Mais à frente, Dejours complementa: “É possível definir, com
alguma precisão, a natureza desse trabalho? Na relação entre o corpo e a alma, a pulsão agiria inicialmente como
geradora da excitação, cujo aumento provocado por seu poder de desagregação – ou mesmo de desestabilização –
exigiria em contrapartida um trabalho, efetuado pelo Eu sob o efeito da mencionada pressão em contínuo
movimento. Esse trabalho consiste em rearranjar as ligações até então estabelecidas entre os traços mnésicos.
Trata-se de um trabalho de rearranjo do Eu a suceder, em um segundo momento, à sua desestabilização sob o
efeito da pressão pulsional.” (DEJOURS, 2022, p. 76).
116
Neste conto, Voltaire, de uma perspectiva literária, discute as questões filosóficas de seu tempo. Nos chama atenção
que um dos personagens da obra, o filósofo Pangloss, defende a ideia de uma harmonia no mundo, na qual tudo tem
uma “causa relacionada ao melhor dos mundos possíveis”, de natureza divina. O otimismo de Cândido (influenciado
por Pangloss), no decorrer da narrativa, vai se perdendo pelas experiências reais com o mundo. Afinal, o mal existe e
é necessário conviver com ele. Talvez este conto de Voltaire tenha influenciado a construção de O mal-estar na
176

recebera em sua fazenda: “‘- O Senhor com certeza possui uma vasta e magnífica terra... disse
Cândido ao velho’, no que o velho responde: ‘- Tenho apenas vinte jeiras, que cultivo com os
meus filhos; o trabalho afasta de nós três grandes males: o tédio, o vício e a necessidade’.”
(VOLTAIRE, 2002, p. 233).
A referência ao tédio117, ao vício e à necessidade são expressões de dimensões humanas
que estão colocadas nos mundos interno e externo dos indivíduos. O trabalho aparece como um
organizador psíquico na cultura. As dimensões autodestrutivas que possam estar relacionadas ao
tédio e ao vício podem encontrar um destino para fora, através do trabalho e da cultura.
Freud destaca as dificuldades de analisar a importância do trabalho para a economia
libidinal em um “panorama sucinto” e logo reafirma que nada prende a pessoa de “modo tão
firme à realidade como a ênfase ao trabalho”. O psicanalista coloca o trabalho como uma
categoria central para a psicanálise e que necessitaria de melhores desenvolvimentos analíticos
e teóricos. Na continuação da nota, reforça a perspectiva psíquica sobre o trabalho.

A possibilidade que oferece de deslocar para o trabalho e os relacionamentos humanos a


ele ligados uma forte medida de componentes libidinais – narcísicos, agressivos e mesmo
eróticos – empresta-lhe um valor que não fica atrás de seu caráter imprescindível para a
afirmação e justificação da existência na sociedade. (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).

Aqui vemos uma marca definitiva do caráter particular e decisivo do trabalho para a
economia psíquica e libidinal. Os componentes ligados à imagem do indivíduo, como ele se vê
e como o outro o reconhece, o destino da agressividade como constitucional (um desafio para

civilização, de Freud, mais do que imaginamos, tendo em vista que o psicanalista também desconstrói visões de mundo,
como o “sentimento oceânico”, “do amar ao próximo como a ti a mesmo”, “os ideais comunistas” para revelar
justamente o desamparo e o pendor agressivo constitucional dos humanos. O que resta aos humanos sabendo que a
maldade é um dado da realidade? Acreditamos aí a referência de Freud a Voltaire, pois, para o filósofo, resta o trabalho
duro e simples, “cultivar seu jardim”, “pois quando o homem foi colocado no jardim do Éden, ali foi colocado ut
operaretur eum, para que trabalhasse; o que prova que o homem não nasceu para o descanso. Trabalhemos sem
filosofar – disse Martinho. – É a única maneira de tornar a vida suportável.” (VOLTAIRE, 2002, p. 233).
117
Adorno, em um artigo denominado Tempo Livre, discute a respeito do tédio e o relaciona como Freud aos efeitos
da imposição do trabalho como necessidade externa, não-livre. “O tédio existe em função da vida sob a coação do
trabalho, e sob a rigorosa divisão do trabalho. Não teria que existir. Sempre que a conduta no tempo livre é
verdadeiramente autônoma, determinada pelas próprias pessoas enquanto seres livres, é difícil que se instale o tédio;
tampouco ali onde elas perseguem seu anseio de felicidade, ou onde sua atividade no tempo livre é racional em si
mesma, como algo em si pleno de sentido. O próprio bobear não precisa ser obtuso, podendo ser beatificamente
desfrutado como dispensa dos autocontroles. Se as pessoas pudessem decidir sobre si mesmas e sobre suas vidas, se
não estivessem encerradas no sempre-igual, então não se entediariam. Tédio é o reflexo do cinza objetivo. Ocorre
com ele algo semelhante ao que se dá com a apatia política. A razão mais importante para esta última é o sentimento,
de nenhum modo injustificado das massas, de que, com a margem de participação na política que lhes é reservada
pela sociedade, pouco podem mudar sua existência, bem como, talvez, em todos os sistemas da terra atualmente. O
nexo entre política e os seus próprios interesses lhe é opaco, por isso recuam diante da atividade política. Em íntima
relação com o tédio está o sentimento, justificado ou neurótico, de impotência: tédio é o desespero objetivo. Mas, ao
mesmo tempo, também a expressão de deformações que a constituição global da sociedade produz nas pessoas. A
mais importante, sem dúvida, é a detração da fantasia e seu atrofiamento.” (ADORNO, 1995, p. 76).
177

a cultura), a dimensão erótica, amorosa, que produz retorno em gratificação, prazer e ligação,
vínculos firmes com a realidade e com os outros.118
Justamente por reconhecer todas essas características psíquicas e sociais, Freud percebe
o impacto de uma forma de trabalho obstaculizada, controlada, imposta para os indivíduos e
que não favoreça a criação, a liberdade, o reconhecimento narcísico e, como consequência,
resulte nas impossibilidades de gratificações psíquicas.

A atividade profissional traz particular satisfação quando é escolhida livremente, isto


é, quando permite tornar úteis, através da sublimação, pendores existentes, impulsos
instintuais subsistentes ou constitucionalmente reforçados. E, no entanto, o trabalho
não é muito apreciado como via para a felicidade. As pessoas não se lançam a ele
como a outras possibilidades de gratificação. A imensa maioria dos homens trabalha
apenas forçada pela necessidade, e graves problemas sociais derivam dessa natural
aversão humana ao trabalho. (FREUD, 2010a, p. 36, nota 8).

A finalização desta nota de rodapé coloca Freud como um pensador da cultura e das
articulações das dimensões psíquicas com as dinâmicas sociais. Demonstra como as determinações
históricas produzem sofrimentos sociais comuns. O modo de organização econômico e social
transforma o trabalho em “aversão humana”. É certo que isso produz implicações psíquicas,
corporais e das dinâmicas sociais, tal como observamos na análise dos dados da pesquisa.
Ao compartilhar com Freud da necessidade de colocar o trabalho em um lugar de
importância, queremos avançar na caracterização deste conceito dentro da economia libidinal
e do narcisismo dos indivíduos. Assim, em diálogo com o texto de Freud, A teoria da libido e
o narcisismo, de 1917, daremos o estatuto de objeto libidinal para o trabalho. Neste texto, Freud
considera que: “Os investimentos de energia que o Eu dedica aos objetos de seus desejos
sexuais, nós os chamamos libido; a todos os demais, originários dos instintos de
autoconservação, demos o nome de interesse.” (FREUD, 2014e, p. 548).
Sabemos que, para Freud, a sexualidade do indivíduo o ultrapassa e ocupa o papel de
ligação com o mundo e com a espécie. Neste sentido, Freud se pergunta o que acontece com a
libido que, por algum motivo, não consegue se ligar aos objetos. Utiliza-se dos estudos de
Abraham em relação às patologias denominadas dementia praecox.

Então se levantou a questão do que aconteceria com essa libido dos dementes, afastada
dos objetos. Abraham não titubeou em responder: ela reverteria para o Eu, e essa
reversão reflexiva é a fonte da megalomania na demência precoce. A megalomania pode
perfeitamente ser comparada à conhecida superestimação sexual do objeto na vida

118
Para Christophe Dejours (2022, p. 123), “o trabalho é a um só tempo oportunidade e mediação de uma
ampliação da subjetividade que se inscreve na dinâmica da sublimação. Com essa descoberta inesperada, de que
o trabalho, contrariamente ao que reza a teoria convencional, não se presta apenas como canalização possível à
excitação, mas pode contribuir, como contrapartida, à expansão do repertório erótico do corpo e à acomodação da
economia pulsional em seu conjunto (e ainda ao enriquecimento do patrimônio pulsional).”
178

amorosa. Assim, pela primeira vez, aprendemos a compreender um traço de uma


afecção psicótica relacionando-o com a vida amorosa normal. (FREUD, 2014e, p. 549).

A prática de aproximar a patologia da normalidade é uma experiência do saber e do


trabalho da psicanálise. Aqui percebemos que a libido tem uma dinâmica entre as instâncias do
Eu e do objeto que determina a relação entre os dois e, portanto, com o Eu e o mundo.

Lentamente, fomos nos familiarizando com a concepção de que a libido, que


encontramos apegada aos objetos e que é expressão do anseio de neles conquistar
satisfação, pode também deixá-los substituindo-os pelo próprio Eu, uma concepção
que gradualmente se desenvolveu de forma mais coerente. O nome para essa alocação
da libido – narcisismo -, tomamos emprestado a uma perversão descrita por Paul
Nacke, na qual o indivíduo trata o próprio corpo com todas as carícias normalmente
dedicadas a um objeto sexual externo. (FREUD, 2014e, p. 550).

A partir desses referenciais que revelam a constituição dos indivíduos relacionados à


fase autoerótica e, posteriormente, sua relação com o outro e com o princípio de realidade,
Freud estabelece que assim seria possível compreender os estados psíquicos normais: “Com o
auxílio dessas concepções, podemos agora explicar toda uma série de estados psíquicos, ou,
dizendo-o de forma mais modesta, podemos descrevê-los na linguagem da teoria da libido – estados
que devemos atribuir à vida normal, como a conduta psíquica no enamoramento, no adoecimento
orgânico ou no sono.” (FREUD, 2014e, p. 551).
É neste ponto que gostaríamos de inserir, considerando a importância que Freud deu em
O mal-estar na civilização, um quarto aspecto, ao lado do enamoramento, do adoecimento
orgânico e do sono: o trabalho. Consideramos que o trabalho é um objeto da cultura que afeta
diretamente a dinâmica libidinal das pessoas, inclusive quando não trabalham, seja pelo
desemprego, seja porque se utilizam do trabalho de outros.119
Ao tratar dos três aspectos que Freud levantou, o primeiro deles o sono, revela-se um
movimento de retorno da libido investida no mundo para o Eu. De tal modo, “no indivíduo que
dorme, restabelece-se o estado primordial da distribuição da libido, o narcisismo pleno, em que
libido e interesse do Eu, ainda unidos e indiferenciáveis, habitam o Eu que basta a si mesmo.”
(FREUD, 2014e, p. 551).
No processo de enamoramento há o investimento libidinal no objeto amoroso que eleva
o altruísmo e produz um retorno narcísico ao Eu. “Em regra, o objeto sexual atrai para si uma

119
Theodor Adorno, em Reflexões sobre a teoria de classes, de 1942, discute a importância do trabalho que marca os
ideais de uma cultura. Assim, utiliza como exemplo a própria alegoria da caverna, de Platão, que é a metáfora da
exploração da mineração do mundo antigo. Portanto, nada escaparia à lógica e às contradições da divisão do trabalho.
“Jacob Burckhardt (1908, p. 164) suspeita que a alegoria da caverna na República platônica, a simbologia mais solene
da doutrina das ideias eternas, seja configurada a partir da imagem das horríveis minas de prata atenienses. Então,
inclusive o pensamento filosófico da verdade eterna teria surgido na contemplação do tormento presente. Toda a história
significa história das lutas de classes porque sempre foi o mesmo, pré-história.” (ADORNO, 1942, p. 260).
179

parte do narcisismo do Eu, e isso faz notar no que chamamos “superestimação sexual” do
objeto.” (FREUD, 2014e, p. 552).
Na doença orgânica há um retorno, ao Eu, da libido dos objetos. A libido, de volta ao
Eu, é resultado intensificado da parte enferma do corpo. Este retorno seria mais intenso que o
próprio interesse egoísta em relação ao mundo exterior. “A libido recolhida retorna ao Eu como
investimento intensificado da porção enferma do corpo. Podemos mesmo ousar afirmar que,
em tais condições, a retirada da libido de seus objetos é mais notável do que o afastamento do
interesse egoísta em relação ao mundo exterior.” (FREUD, 2014e, p. 555).
O que Freud estabelece no sono, no enamoramento e na doença orgânica representa
processos normais de retorno da libido ao Eu. É certo que ele está preocupado com os processos
patogênicos deste retorno e, nesse sentido, a determinadas fixações relacionadas ao que
chamará de “neuroses narcísicas” que, neste momento, se referiam à psicose.
Entretanto, dificuldades de dormir, de sonhar, de descansar, processos de luto que se
transformam em melancolia, adoecimentos corporais repetitivos podem revelar não somente
fixações relacionadas ao narcisismo primitivo, mas, igualmente, dinâmicas sociais articuladas
a dimensões primárias dos indivíduos.
Destacamos, como Freud, a importância do trabalho como objeto da cultura. Assim,
estabelecemos uma diferença do trabalho como objeto libidinal para os demais objetos
(lembrando que para a psicanálise qualquer objeto pode se tornar libidinal). A diferença se
estabelece pela mediação da necessidade externa.
A necessidade externa do trabalho torna-se um ideal introjetado pela cultura desde cedo
através dos pais, em referência à identidade profissional dos pais e, também, à situação
econômica familiar que produzirá melhores ou piores condições de vida material para os filhos,
marcando processos de identificação.
Quando analisamos as perspectivas relacionadas ao “mal-estar e superego”, percebemos
como a relação dos ideais profissionais para os professores fala sobre as dinâmicas de
transmissão geracionais na família. Como nos lembra a professora Luana: “gosto de ser
professora, mas não gostaria que meu filho fosse”. Uma transmissão geracional carregada de
ambivalência sobre sua situação no trabalho como professora.
Não é incomum o processo de constituição da identidade dos indivíduos estar
relacionado ao trabalho, “ao que o indivíduo faz” ou “o que quer ser quando crescer?” Ora, “o
que você faz?” não é uma pergunta genérica, mas tem justamente uma determinação cultural
internalizada, de modo que os indivíduos a relacionam diretamente ao trabalho, mesmo sem
180

estar caracterizado na questão. Na comunicação social, na linguagem, vemos uma distinção do


trabalho como objeto libidinal.
O próprio processo de independência dos filhos e seus conflitos perante os pais é
igualmente marcado pelo trabalho, por dar conta psíquica dessa necessidade externa, da
separação e constituição de seus próprios ideais. O trabalho dá um lugar para as pessoas no
mundo e revela dimensões dos ideais narcísicos e da cultura. Seja pela necessidade externa,
condicionada pelas determinações econômicas de sobrevivência, seja pelas gratificações do
trabalho para o Eu, de modo material ou narcísico, o trabalho, como lembra Freud, nos prende
firmemente à realidade e é fundamental para a economia libidinal. (FREUD, 2010a).
Colocamos o trabalho como um objeto libidinal marcado pela necessidade econômica e
psíquica. Sendo marcado pela necessidade econômica, trata-se da sobrevivência do indivíduo.
E é justamente por determinações econômicas que se insere o eixo das determinações externas
que limitam as escolhas, fazendo com que, mesmo em sofrimento, as pessoas tenham que
continuar trabalhando em determinada situação.
As questões objetivas constituem um modo particular da dinâmica psíquica pela
dependência econômica do indivíduo ao trabalho – se o comparamos, por exemplo, ao
enamoramento. Na escolha amorosa, nos parece que as dinâmicas psíquicas propriamente ditas
influenciem mais que as determinações externas, no que pese as relações amorosas também
serem determinadas pelo modo que a cultura estabelece as possibilidades de encontros e
separações com mais ou menos repressão. O aumento no número de divórcios na
contemporaneidade são reveladores das influências das mudanças dos ideais culturais.120
Pensamos sobre o impacto das dinâmicas sociais relacionadas ao trabalho no psiquismo
do indivíduo: trabalhos em ambientes de relações precarizadas, trabalhos em que há pouco
reconhecimento, em que há formas de violência simbólica, trabalhos que são remunerados de
forma inadequada, em que há processos de assédio moral, excessiva competitividade como ideal
e instabilidade de emprego, em que há excesso da jornada de trabalho e horas-extras, em que não
há fronteiras nítidas entre local de trabalho e casa etc. Considerando que, normalmente o trabalho
é uma atividade diária, não há como pensá-lo fora da dinâmica e investimento libidinal.
Nesse âmbito, pensamos, como Freud, que o trabalho, sua forma de organização na
cultura, suas exigências ideais, apontam para um “Super-eu da cultura, exatamente como o dos

120
“Na avaliação do IBGE, a elevação sucessiva, ao longo dos anos, do número de divórcios concedidos revela “uma
gradual mudança de comportamento da sociedade brasileira, que passou a aceitá-lo com maior naturalidade e a acessar
os serviços de Justiça de modo a formalizar as dissoluções dos casamentos.” AGÊNCIA BRASL. “Divórcio cresce mais
de 160% em uma década”, 30 nov. 2015. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2015-
11/divorcio-cresce-mais-de-160-em-uma-decada. Acesso em: 21 jan. 2022.
181

indivíduos, [que] institui severas exigências ideais, cujo não cumprimento é punido mediante
“angústia de consciência.” (FREUD, 2010a, p. 117).
Sob tais condições culturais, temos uma libido que não consegue investir no objeto e
deve retornar ao Eu como processo de autoconservação ou de autopunição, a depender da forma
como os ambientes do trabalho e o social se realizam em conexão com as dinâmicas internas
dos indivíduos.

Coisa bem diferente acontece, todavia, quando determinado processo, deveras


enérgico, obriga à retirada da libido dos objetos. A libido que se tornou narcisista não
é capaz de encontrar seu caminho de volta aos objetos, e esse impedimento da
mobilidade da libido torna-se, de fato, patogênico. Parece que, além de certa medida,
a acumulação de libido narcísica não é tolerada. Podemos também imaginar que o
investimento objetal se produz justamente pelo fato de o Eu ter de enviar para fora
sua libido, a fim de não adoecer com seu represamento. (FREUD, 2014e, p. 557).

O que significa o represamento da libido no Eu em uma situação de necessidade externa


como o trabalho, constante, diária, e, ao mesmo tempo, de intenso mal-estar e adversidade para
este investimento? O deslocamento da libido para outras esferas da vida pode ser uma solução que
produzirá muita infelicidade, visto que o trabalho não é um objeto contingencial, mas normalmente
ocupa parte importante das horas de vida. O ressentimento parece um outro caminho, ao não se
realizar no trabalho, o indivíduo volta a agressividade/libido para si, produzindo processos
autorrecriminatórios121. Outras formas são variadas estratégias de defesa individuais ou em grupos
no trabalho ou fora dele. Além disso, o adoecimento psíquico ou físico, que incide, por vezes, em
afastamento do trabalho. Importante destacar, como possibilidade, a luta política pela
transformação das condições de trabalho que, talvez, seja uma forma de evitar o adoecimento,
deslocando a agressividade/libido para um objetivo comum, normalmente reconhecido
socialmente como ideal e que pode trazer gratificações substitutivas ao Eu.
Freud nos dá a possibilidade de pensar as dinâmicas internas e externas articuladas. É
certo que determinada situação do trabalho, adversa, isolada ou constante, pode afetar os
indivíduos de modos diferentes. Todavia, o que observamos, pelos dados da pesquisa, é que
existe uma intensidade do mal-estar do trabalho que cada vez mais ultrapassa a capacidade dos
indivíduos de se autopreservarem. Isso talvez possa indicar um modo de organização cultural

121
Como nos coloca Maria Rita Kehl (2014, p. 36) sobre a complexidade do ressentimento nas sociedades
capitalistas: “O afeto é resistente porque conta com o que se chama ‘covalidação social’, ou mesmo com uma
covalidação ‘real’: as sociedades capitalistas frequentemente produzem as condições para que grandes
contingentes de trabalhadores sejam de fato prejudicadas e lançados à margem do campo de possibilidades efetivas
de inserção, em razão de uma ordem tão injusta que não se pode atribuir a eles a responsabilidade pelo prejuízo de
que são verdadeiramente vítimas. Nessas condições em que não são corresponsáveis por seus fracassos, o
ressentimento adquire prestígio e convoca identificações e simpatias, e o ressentido sempre encontra os motivos
para se mostrar coberto de razões em suas queixas.”
182

que aponte para um “além do princípio do mal-estar”122 , do ponto de vista de como a sociedade
se organiza no atual princípio de realidade.
Como nos coloca Freud, a frustração excessiva e as severas exigências ideais podem
mobilizar, na dinâmica interna do indivíduo, processos de autorrecriminação e autopunição intensos,
relacionados à sua constituição psíquica. O Supereu, intensificado pelas dificuldades externas,
tortura sadicamente o Eu. No texto A teoria da libido e o narcisismo, de 1917, é possível ver o esboço
da construção do Supereu, que fica mais evidente posteriormente, em O Eu e o Id, de 1923.

Ele sente, no seu Eu, a vigência de uma instância que mede seu Eu atual e cada uma
de suas atividades conforme um Eu ideal, que criou ao longo de seu desenvolvimento.
Acreditamos também que essa criação se deu com o propósito de restabelecer aquela
autossatisfação outrora vinculada ao narcisismo infantil primário, a qual, desde então,
sofreu tantas perturbações e ofensas. Conhecemos essa instância auto-observadora
como o censor do Eu, a consciência; trata-se da mesma instância que, à noite, exerce
a censura onírica, da qual partem as repressões contra os desejos não confiáveis. Ao
se decompor, no delírio de observação, ela nos revela ser originária da influência
exercida por pais, educadores e pelo meio social, da identificação com algumas dessas
pessoas modelares. (FREUD, 2014e, p. 567).

Uma das expressões da constituição deste Supereu é ser herdeiro do complexo de Édipo.
Entretanto, isso não torna menos significativa a importância de compreender uma dinâmica
social que produz adoecimento. Excluir a análise social pode implicar em processos de
adaptação do indivíduo ou mesmo cisões do Eu para se moldar à sociedade.
Se considerarmos que determinado trabalho envolve uma relação com um certo ideal na
cultura, inclusive como parte da constituição do Supereu, e que a profissão de professor, em
especial, como pudemos acompanhar até aqui, tem inclusive uma herança arcaica que atravessa
de modo geracional as famílias dos professores, parece haver um grande peso no que significaria
o professor não conseguir realizar seu trabalho de modo significativo. Há, certamente, uma crise
com esse ideal que pode se expressar diante de uma realidade precarizada e obstaculizada,
representando uma perda melancólica123, intensificando os processos de autorrecriminações.

122
É o próprio Freud que reconhece que o trabalho produz sofrimentos comuns, aversão ao trabalho. Neste sentido,
consideramos que Freud traz a referência a um modo de trabalho forçado pela necessidade, na ordem de uma
repetição destrutiva, uma “compulsão”, sem representação na possibilidade de experiência e gratificação. Não se
trata mais da dimensão faltante, com referência às gratificações e frustrações das experiências, mas de um campo
da destrutividade psíquica e física dos indivíduos.
123
Em Luto e melancolia Freud caracteriza algumas bases do luto e da melancolia: “Via de regra, luto é a reação a
perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar, como pátria, liberdade, um ideal etc. Sob as
mesmas influências observamos, em algumas pessoas, melancolia em vez de luto, e por isso suspeitamos que nelas
exista uma predisposição patológica. (...) A melancolia se caracteriza, em termos psíquicos, por um abatimento
doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e
diminuição da autoestima, que se expressa em recriminações e ofensas à própria pessoa e pode chegar a uma delirante
expectativa de punição. Esse quadro se torna mais compreensível para nós se consideramos que o luto exibe os
mesmos traços, com exceção de um: nele a autoestima não é afetada.” (FREUD, 2010o, p.172-3).
183

Disso pudemos concluir que, de fato, o melancólico retirou sua libido do objeto, mas este,
mediante um processo que cabe chamar de “identificação narcisista”, foi estabelecido em
seu próprio Eu, foi como que projetado para o Eu. Aqui posso lhes oferecer apenas uma
imagem ilustrativa, não uma descrição topológico-dinâmica ordenada. Esse Eu passa,
então a ser tratado como o objeto abandonado e sofre todas as agressões e manifestações
do desejo de vingança que tinham por alvo o objeto. (FREUD, 2014e, p. 565).

Considerando que o trabalho, e a posição do indivíduo frente a ele, encontra-se em um


lugar do ideal social, não o realizar implica, de algum modo, um referencial narcísico
importante. Como nos lembra Freud (2010c, p. 50) em Introdução ao Narcisismo:

Do ideal do Eu sai um importante caminho para o entendimento da psicologia da massa.


Além do seu lado individual, ele tem o social, é também o ideal comum de uma família,
uma classe, uma nação. Liga não apenas a libido narcísica, mas também um montante
considerável da libido homossexual de uma pessoa, que por essa via retorna ao Eu. A
insatisfação pelo não cumprimento desse ideal libera libido homossexual que se
transforma em consciência de culpa (angústia social).

Interessante observar como Freud articula a não realização do ideal do Eu do ponto de


vista social – ora pensando o medo do castigo dos pais pela perda do amor, em que
posteriormente a sociedade assume este lugar, ora pensando que a liberação da libido
homossexual e a paranoia, uma forma do Eu se atacar por não ter se realizado através do seu
ideal do Eu: “Torna-se mais compreensível porque a paranoia é frequentemente causada pela
ofensa ao Eu, pelo fracasso da satisfação no âmbito do ideal do Eu, e também porque a formação
de ideal e a sublimação convergem no ideal do Eu, a involução das sublimações e eventual
transformação dos ideais nos casos de parafrenia.” (FREUD, 2010c, p. 50).
Apontamos, em duas frentes articuladas, sobre a particularidade do ofício de professores de
educação básica, caracterizado por Freud como uma das “profissões impossíveis” pelo seu lugar de
incompletude e não-saber na relação com os estudantes e com o próprio conhecimento, o que
certamente movimenta os ideais do professor. Igualmente, acerca da intensidade do mal-estar que
salienta como a cultura do trabalho se organiza em um determinado princípio de realidade.

6.1. Do trabalho ideal ao ideal de trabalho

Para iniciar essa reflexão, trazemos um dos capítulos do livro Mal-estar na escola e a
aposta docente: encontros e desencontros, de Scherer e Carneiro (2020). O capítulo trata
essencialmente da relação entre professor e estudante e o mal-estar e a angústia dos professores
no indeterminado destas relações.

Por estarem distantes do esperado, muitas vezes certas crianças, adolescentes ou


grupos de alunos impõem-se como obstáculo para o professor, um limite. Diante
disso, como construir um caminho, uma direção de trabalho? Quais
184

caminhos/posições podem dificultar ou favorecer a ação docente? (SCHERER;


CARNEIRO, 2020, p. 134).

O texto discute que certos professores, mesmo diante das dificuldades, conseguem
encontrar formas alternativas na realização do seu ofício. Ou seja, que não se sentem impotentes
diante das circunstâncias. Por meio da pesquisa-intervenção, dentro da tradição da clínica
psicanalítica, as autoras realizaram conversas em grupos de professores. “Tal ação visa
promover possibilidades elaborativas para o mal-estar, contribuindo para uma redução da
tensão e transformação do mal-estar em patologia.” (SHERER; CARNEIRO, 2022, p. 135).
Recorrem ao mal-estar freudiano como a marca civilizatória da renúncia instintual para
se viver em sociedade e trabalham na perspectiva que a educação tenta, muitas vezes, apaziguar
esse mal-estar, essa tensão, e que, evidentemente, em algum momento isso escaparia ao controle
e apaziguamento.

Na escola, o mal-estar emerge quando algo se interpõe diante da aposta do professor,


ou seja, quando a falha no processo educativo é iminente. Alunos que não
correspondem ao esperado, turmas desinteressadas, condições de trabalho que não
favorecem e dificuldades de aprendizagem dos alunos são alguns relatos relativos ao
mal-estar docente. (SHERER; CARNEIRO, 2020, p. 136).

A orientação das pesquisadoras é, segundo os ideais de Freud, que o educador deve


renunciar à “satisfação plena” aceitando “a desordem da pulsão”. Neste sentido, os ideais da
cultura combinam-se com o do professor, sobre os objetivos da educação aos quais deveriam
ser atingidos. O que faz o professor, a partir da constituição do seu narcisismo e de suas
projeções, encontrar as barreiras desse lugar ideal. Entraríamos no impossível do educar, que
não se realiza de modo total. Esta é exatamente a marca desta profissão.
Contudo, entendemos que essa abordagem trata apenas de uma parte do mal-estar
docente: limita-se ao mal-estar produzido em sala de aula com os estudantes. Isola o professor
de todo contexto social que o marca. Perde, portanto, a dinâmica social constituinte do professor
como trabalhador. Corre o risco de produzir processos de adaptação do professor (MANFRÉ,
2014) ao tratar as dinâmicas sociais (estudantes que não correspondem ao esperado, turmas
desinteressadas, condições de trabalho) como contingências do princípio de realidade que o
professor tem dificuldade de lidar exclusivamente por conta de seu narcisismo.
As pesquisadoras trabalham da perspectiva do vazio do ofício docente, trazendo o
diálogo entre Freud e Lacan:

Apostamos na posição do professor que assume a função do artesão, molda seu trabalho
a partir do vazio, contorna as bordas desse furo demarcado pela emergência do
inesperado em sua prática educativa, de modo a construir saberes singulares e apostar
185

na criação. Lança-se como protagonista de trabalhos pedagógicos e garante que o espaço


vazio sirva como impulso para a invenção. (SCHERER; CARNEIRO, 2020, p. 140-1).

Entendemos que o que as pesquisadoras apontam faz parte do mal-estar presente no


ofício docente e partilhamos da noção de que é na relação deste mal-estar que podem ocorrer
possibilidades criativas no ofício do professor.124 Questionamos, por outro lado, até que ponto
as mudanças na sociedade não interferem também em um modo de mal-estar docente e, por
isso, apontaríamos para o princípio de realidade como histórico125, como bem expôs Marcuse
(2010) em Eros e civilização. Além do mais, pensamos que Freud (2010a) igualmente apontava
para a historicidade contida no princípio de realidade através dos seus textos denominados
“sociais”, às preocupações da possibilidade de aniquilação da humanidade em decorrência dos
caminhos que a cultura estava (e permanece) seguindo.
O que verificamos, pela análise dos dados e da bibliografia, é uma perspectiva do mal-
estar modificada pelas formas da organização do trabalho que produz intensidade repressiva e
sociabilidades regressivas. Ou seja, capturam a libido/agressividade produzindo um tipo de
satisfação regressiva deslocada pela obstaculização do trabalho.
Do ponto de vista de como se produzem ideais na cultura e infortúnios relacionados a
esses ideais, o professor fica cada vez mais sozinho diante de um trabalho que lhe atravessa em
todas as dimensões: econômicas, sociais, culturais, psíquicas. Na rede estadual de São Paulo,

as condições de trabalho, consideradas penosas, legitimadas pelas políticas públicas


educacionais através de leis, decretos e resoluções, organizam o trabalho docente paulista
na noção de mérito individual, de que o esforço individual do professor e da professora
marcam o “sucesso” ou o “fracasso” do processo educacional e de sua trajetória
profissional. (...) O trabalho medido, avaliado, mensurado mediante indicadores e metas
estabelecidas externamente, as determinações sobre o conteúdo do trabalho – currículos
prescritos, avaliações externas – limitam a autonomia intelectual, retiram o sentido, geram
frustração e adoecimento profissional. (ZAFALÃO, 2021, p. 93-4).

Referimo-nos, aqui, a dimensões da cultura e da economia que influenciam um modo


Superegóico de ser. Intensificam-se pelos infortúnios e exigências ideais modos de funcionamento

124
No entanto, o trabalho do professor de educação básica, na atualidade, é cada vez menos artesanal (COSTA;
NETO; SOUZA, 2009; OLIVEIRA, 2004; JACOMINI; PENNA, 2016; SOUZA, 2013), como realidade ou como
metáfora, e que aqui, também por condições de trabalho, por variados atravessamentos na formação naquilo que
Manfré (2014), dialogando com Adorno (2010), traz do “empobrecimento da experiência”, mas também da lógica
do estranhamento do trabalho (MARX, 2004a) ou da falência da cultura (ADORNO, 2006b). As indicações
bibliográficas nesta nota servem apenas para reforçar a complexidade da compreensão das dinâmicas sociais
relacionadas às contradições do trabalho e ao seu mal-estar. Não entraremos detalhadamente nelas. Todavia,
acreditamos que o rico material das entrevistas evidencia a intensidade deste mal-estar e é justamente nestes dados
que centramos na análise do mal-estar docente, como estamos trabalhando.
125
Marcuse atribui que “embora qualquer forma de princípio de realidade exija um considerável grau e âmbito de
controle repressivo sobre os instintos, as instituições históricas específicas do princípio de realidade e os interesses
específicos de dominação introduzem controles adicionais acima e além dos indispensáveis à associação civilizada
humana. Esses controles adicionais, gerados pelas instituições específicas de dominação, receberam de nós o nome
de mais-repressão.” (MARCUSE, 2010, p.52-3).
186

destrutivos no psiquismo dos indivíduos, através de um paradoxal reconhecimento social. Podemos


pensar uma espécie de um Para Além do Princípio do Prazer da cultura. Neste formato ideal a meta
é quantitativa, mesmo que ela não diga nada sobre a experiência singular da formação de
professores e estudantes. O parâmetro ideal é externo aos indivíduos, heterônomo.

6.2. Análise dos dados da pesquisa referentes ao trabalho e às relações de trabalho

Para ficar mais evidente como se dão as dinâmicas sociais, analisaremos na sequência
falas dos professores, para refletir sobre como as políticas relacionadas à precarização do
trabalho contribuem com a produção do mal-estar docente em uma forma de sofrimento
comum.
Um primeiro dado da relação da intensidade do mal-estar está relacionado às políticas
dos governos na rede de ensino estadual de São Paulo, que dividem os professores e produzem
uma relação marcada cada vez mais pelo “narcisismo das pequenas diferenças”126. Como nos
coloca o professor João:

Vou tentar responder focando só na estadual. Sim tem divisões, ainda tem divisões
geracionais. Ainda tem uma parte dos professores com uma faixa etária de 50, 60 anos.
E você percebe um recorte nisso. Você também percebe um recorte de formação. Entre
aqueles professores que seja porque fizeram universidades mais tradicionais ou porque
por conta própria correram atrás de estudar ou de fazer uma reflexão por conta própria.
Também tem um recorte de contrato de trabalho. Na rede estadual hoje nós temos
basicamente 3 ou 4 grupos de professores. Você tem os efetivos, você tem os professores
estáveis que praticamente já deixaram de existir, eu nunca conheci um professor estável
na rede estadual, mas sei que tem um caso ou outro. São pessoas que ganharam
estabilidade entre os anos 80 e 90. E você tem estáveis daquela reforma de 2007, que
alguns chamam genericamente de categoria F, eles ainda existem, e você tem os novos
contratos que as pessoas chamam genericamente de categoria O, que tem um contrato
de trabalho extremamente precarizado, mas que com a nova reforma que foi feita agora
nas últimas semanas eles tentaram nivelar por baixo. E puxaram o contrato dos efetivos
para algo mais próximo destes contratados por tempo determinado. Você percebe a
divisão clara por exemplo quando tem a necessidade de você fazer um movimento
sindical, reclamar das coisas que precisam melhorar, você percebe claramente uma
primeira divisão que é: “ah eu não quero, eu não vou participar, eu não posso porque eu
sou contratado”. Os professores no recorte geracional você tem aquele pessoal da velha
guarda, que está muito cansado, que já viveu muita coisa, que não espera a hora de
aposentar. Você também tem um recorte daquele pessoal que mesmo sendo efetivo você
percebe na fala, no discurso, de que “assim que eu achar outra coisa eu vou embora.”
Também tem isso. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

126
Sigmund Freud não tem um texto específico sobre o “narcisismo das pequenas diferenças”. A primeira vez que a
expressão aparece é em Psicologia das massas e análise do Eu, de 1921. Neste momento Freud caracteriza que: “Nas
antipatias e aversões não disfarçadas para com estranhos que se acham próximos, podemos reconhecer a expressão
de um amor a si próprio, um narcisismo que se empenha na afirmação de si, e se comporta como se a ocorrência de
um desvio em relação a seus desenvolvimentos individuais acarretasse uma crítica deles e uma exortação a modificá-
los. Não sabemos por que uma suscetibilidade tão grande envolveria justamente esses detalhes de diferenciação; mas
é inegável que nesse comportamento dos indivíduos se manifesta uma prontidão para o ódio, uma agressividade cuja
procedência é desconhecida, e à qual se pode atribuir um caráter elementar.” (FREUD, 2011a, p. 57).
187

O professor João descreveu variadas divisões na categoria dos professores da rede


estadual que produzem formas de ser, inclusive formas de exercer a agressividade por essas
divisões, sejam externas ou internas aos indivíduos. Ou seja, estas divisões contratuais
prejudicam as formas de realizar a agressividade mediada pela cultura, por Eros, visto que as
divisões culminam na limitação da organização sindical, as quais os professores contratados
justificam que podem ser punidos caso participem de movimentos grevistas.
Se a civilização visa ampliar a comunidade inibindo a libido na meta, sendo esta uma das
suas marcas civilizatórias, não podemos esquecer que o pendor à agressividade é um fator que
não pode ser ignorado e que também pode ser favorecido culturalmente. Como nos lembra Freud:

A existência desse pendor a agressão, que podemos sentir em nós mesmos e


justificadamente pressupor nos demais, é o fator que perturba nossa relação com o
próximo e obriga a civilização a seus grandes dispêndios. Devido a essa hostilidade
primária entre os homens, a sociedade é permanentemente ameaçada de desintegração.
O interesse do trabalho em comum não a manteria; paixões movidas por instintos são
mais fortes que interesses ditados pela razão. (FREUD, 2010a, p. 78).

Mesmo esse pendor à agressividade sendo constitucional, determinadas divisões


produzidas externamente intensificam a dinâmica da agressividade, mobilizando, inclusive, a
agressividade entre grupos identificados entre si ou, como nos relata o professor Pedro, em
situações em que professores, em especial os contratados, reprimem a própria agressividade, ao
invés de dar um destino a ela, mediados pela cultura. Evitam ocupar espaços, exercer o seu
papel crítico, se posicionar. Para o professor Pedro, na escola formam-se “castas”, formas de
“estamentos” sem mobilidade social, grupos fechados em si sob uma determinada lógica
subjetiva e regras particularizadas de conduta.

É péssimo. É muito, muito ruim. Porque acaba se criando dentro da escola como se
fosse uma questão de castas. É uma hierarquização dentro da própria escola, então
você tem professores que são contratados, você tem professores que são efetivos. Não
é dado um tratamento diferente para eles, a escola não dá um tratamento diferente
para eles, os próprios colegas não dão, mas eles se sentem diferentes, mas eles se
sentem menos aptos a falar, a se posicionar, então por exemplo, tem uma professora
lá que ela tem bastante pontuação. Ela é categoria O e tem bastante pontuação. Todo
ano ela pega aula na escola. Ela já falou para mim que não gosta de se envolver em
polêmica aqui, eu não gosto de bater de frente com a direção, porque eu preciso de
aula. É cruel, é cruel isso, você entende? Então de repente um professor se submete a
certas coisas porque ele sabe que se ele for legal, se ele for bacana, se ele não der
problema de horário, se ele não se atrasar, se ele não pedir ajuda dos colegas para lidar
com questões de indisciplina e tal ele precisa daquela aula. Então esta divisão dentro
da escola eu acho cruel por isso, porque ela acaba colocando o professor, o próprio
professor, não um contra o outro, nesta escola que estou nunca percebi isso, mas a
própria pessoa fica numa posição de submissão. Então as pessoas falam: “você fala
isso porque você é efetivo”, “você fala isso porque tem tanto tempo de escola”. Eu
falo gente quando entrei no Estado eu falava. Mas é como as primeiras perguntas que
você me fez. Eu já entrei no Estado direto como professor efetivo. Mas eu nunca fiz
essa questão de falar assim, eu faço isso porque eu sou efetivo, eu faço aquilo porque
188

eu sou efetivo. Mas eu sinto muita crueldade dos colegas, que eles são contratados.
Que às vezes eles precisam se colocar numa situação de submissão mesmo como eu
disse. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Certamente, essa agressividade introjetada pela submissão deve se exprimir em algum


lugar: no próprio corpo do professor, no psiquismo, nas relações pessoais, nos estudantes... As
possibilidades podem ser muitas. Uma das maneiras de escapar é pela hostilidade aos
agrupamentos dos professores por contrato de trabalho. Ou seja, o próprio contrato de trabalho
mobilizando ligações libidinais de grupos, como expressão da agressividade deslocada para que
esta não fique represada. Uma simbologia de distinção que apareceu nos dados de pesquisa é a
divisão da mesa na sala dos professores. Perguntada sobre se havia divisão de grupos na escola,
a professora Ana responde:

Eu acho que tem, nossa muito. Na escola do Estado que estou hoje não tem muito.
Mas a que eu trabalhei anterior do Estado tinha até o lugar dos professores separados.
Os que eram amigos da diretora.
Tem privilégios?
Não era uma coisa explícita, acho que sim. Tinha uma mesa na sala dos professores,
e na ponta da mesa sempre sentavam as mesmas pessoas. Você podia se sentar lá, não
era algo que era demarcado, mas ao mesmo tempo você sabia que você não era muito
bem-vindo se você não fizesse parte do grupo. Esse grupo muito amigo, puxa saco da
diretora e por exemplo, umas das professoras eu sabia que a diretora facilitava para
ela na hora da atribuição de algumas turmas que ela queria. Não só uma, mas duas,
três professoras lá, ela ajudava.
Mas essa diferença era por quê? Você acha que é por antiguidade, geracional,
assim...
Não, eu acho que a diferença era os que queriam ter privilégios na escola e os que não
ligavam para isso. E os que queriam ter privilégio eram amigos da gestão. E eles
formavam um grupo, e a maioria deles eram concursados. Essa escola que eu trabalhei
eu era artigo 22, era efetiva, mas estava como artigo 22. E você fica emprestado, e vários
professores vinham me perguntar se eu era contratada. E aí quando eu falava não, eu era
efetiva, estou no artigo 22 eu percebi que eles mudavam até o jeito de lidar.
Você acha que contratado é visto de uma maneira pior vamos dizer assim?
Sim. Nessa escola que estou hoje eu percebo que alguns tem isso. Que depois que
eles foram percebendo que eu era efetiva, que tinha acabado de vir do 202, e
principalmente que eu tenho prefeitura alguns começaram a chegar mais próximo
perguntando coisa, porque antes ficava distante. Mas tem isso sim, não só na rede
estadual, na municipal também. Eu percebo isso, mas é outra coisa. (Professora Ana,
categoria A, 15 anos de magistério).

Em um trabalho que está obstaculizado, em que há dificuldades de realizá-lo por uma


série de determinações, os pendores agressivos constitucionais podem escapar de outras formas.
Acreditamos que isso favoreça as hostilidades no interior da escola entre os grupos, nos quais
o narcisismo não pode se realizar de um modo, escapa de modo intenso por outro. O que Freud
caracterizava como “o narcisismo das pequenas diferenças” se expressa em professores que
fazem o mesmo trabalho, portanto, têm mais semelhanças do que diferenças, mas com
condições distintas contratuais e de direitos.
189

Não é de menosprezar a vantagem que tem um grupamento cultural menor, de permitir


ao instinto um escape, através da hostilização dos que não pertencem a ele. Sempre é
possível ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restem outras para
que se exteriorize a agressividade (...) Dei a isso o nome de “narcisismo das pequenas
diferenças”, que não chega a contribuir muito para seu esclarecimento. Percebe-se
nele uma cômoda e relativamente inócua satisfação da agressividade, através da qual
é facilitada a coesão entre os membros da comunidade. (FREUD, 2010a, p. 80-1).

O professor Luiz aponta o lugar da mesa da sala dos professores como um símbolo
dessas distinções e divisões:

Tem uma escola que eu trabalhei por exemplo e ele brincava, eu já era categoria F na
hora, “óh seguinte, aqui na mesa senta efetivo, categoria F pode sentar no sofá, na época
categoria L senta nos banquinhos mais perto da parede.” Ele falou num tom de
brincadeira, mas sabe toda a brincadeira tem um fundo de verdade. Tem sim, tem
divisões, tem a chamada panelinha. Eu mesmo por exemplo estou pensando seriamente
se eu vou participar de confraternização este ano. Porque eu ando muito “p” da vida
com algumas coisas. Eu tenho alguns amigos, alguns mais próximos que este aí “ah
vamos marcar um barzinho tal dia, vamos”. A gente só vai tomar o cuidado de não fazer
no mesmo horário da confraternização da escola, porque aí fala cumprir horário. Meu
problema é que eu trabalho praticamente... segunda e quinta-feira à noite também. Se
eu tiver que cumprir horário eu vou miar as minhas confraternizações. Dependendo da
escola e eu estou em três. Mas enfim, direto ao centro aqui: sim, tem panelinhas, tem
divisões, por idade, por cargo, por tempo de escola também. Tem por vários motivos.
E por que você avalia que existem estas divisões assim?
Olha eu acho que tem uma palavra para isso que é consciência de classe127. Quando a
gente pensa em consciência de classe, eu não vou ficar discorrendo muito aqui
também, mas assim muitas vezes a gente que não se enxerga como alguém que
pertence a mesma profissão, a mesma carreira. Você sabe que aquele cara é professor,
mas aparentemente ele não é igual a você e vice-versa. Nós nos enxergamos com
diferença, apesar de nós termos as mesmas atribuições. Mas os nossos contratos não
são os mesmos. Já começa por aí estas divisões: efetivo, categoria F, categoria O,
categoria P e assim por diante. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

As brincadeiras são formas “mais leves” de desrecalcar as hostilidades entre os grupos


da escola. Vemos, pelas falas dos professores, que há uma política do governo de divisões que
produz uma dinâmica de agressividade no local de trabalho. Estabelecem-se um conjunto de
fantasias de pertencimento ou exclusão a determinados agrupamentos no interior da escola.
Pensamos que o conjunto das derrotas sindicais e perdas de direitos que os professores
vêm sofrendo intensificam as divisões na própria categoria. Ao não direcionar o pendor

127
Interessante esta observação do professor Luiz quanto “à consciência de classe”, porque nos remete às reuniões
da “Sociedade Psicológica das Quarta-feiras”, que marcaram os debates de Freud e um grupo de psicanalistas em
torno dos inícios da psicanálise no começo do século XX. No livro A controvérsia Freud-Adler, que representou uma
das primeiras rupturas no movimento psicanalítico, Bernhard Handlbauer traz o relato de uma reunião do dia 10 de
março de 1909 com o tema “A psicologia do marxismo”, apresentado por Adler. Handlbauer aponta a receptividade
do grupo à apresentação de Adler (“Freud disse que a sua atitude nessas palestras que ampliam o nosso horizonte só
pode ser receptiva”) e que Freud gostou e apontou que: “da avaliação crítica de Adler quanto às ideias como
formações de reação: Marx foi o primeiro a oferecer às classes oprimidas a oportunidade de se libertarem do
Cristianismo – por meio da visão do novo mundo que ele lhes proporcionava. Se o sadismo se convertesse em
Cristianismo (masoquismo), Marx explicou aos homens seu respectivo masoquismo, tornando-o o instinto primário
de autopreservação. Isso ilustra como, trazendo essas coisas à consciência, é possível levantar uma repressão. Desta
forma, o instinto de agressão foi passado para a consciência de classe.” (HANDLBAUER, 2005, p. 84-5).
190

agressivo contra os governos 128 (unidos libidinalmente pela consciência de classe), e na


impossibilidade de sublimar esse pendor na realização do trabalho, o que resta ao narcisismo
dos professores é se voltar libidinal e agressivamente contra si mesmos, para dar um destino à
descarga das dinâmicas psíquicas internas.
O professor Luiz relata que em momentos de embates sindicais essas diferenças
contratuais se agudizam no interior da categoria e na escola.

Refletem sim. Já vi professores efetivos demonstrarem muito ódio pelos professores


categoria O. Principalmente na época de greve. Ah porque professor categoria O não
para. Os eventuais quando a gente está fazendo greve eles vão lá e entram no nosso
lugar. Vou dar um exemplo quando eu estava na greve de 2015, 92 dias, tem professor
que entrou para dar as minhas aulas. Para sair mais cedo, para ganhar um dia de folga
na semana. Tem cara que fez isso. Ah você pensa, você está numa confraternização se
olha para o cara você vai querer fazer o que com ele? Então a gente entende também
que isso é um processo de precarização, fruto também de processo de precarização. Se
o cara não entra para dar aula você não aparece mais aqui para dar aula. Principalmente
para os eventuais. Se você é professor está no estágio probatório tem diretor que fala,
“oh seguinte, você está no estágio probatório, vai fazer greve pode te prejudicar depois”.
Tem todas estas fitas aí. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistérios).

A professora Luana reafirma as divisões e indica que a mesa na sala dos professores já
adentrou o imaginário129 da rede estadual de ensino como representativo dessa distinção, sendo
algo que circula na rede, mesmo sem fazer parte da experiência pessoal dela.

Tem divisões sim, vários colegas já me falaram, eu já ouvi falar que tinha mesa separada
para eventual e mesa de efetivo. Eu não passei por isso, mas eu já ouvi colegas bem
próximos de mim sofrer este tipo de discriminação. Por exemplo, nesta escola que eu
eventuei, eu entrei e este professor até conversava comigo, tinha parceria comigo e tal.
Eu entrei, era a primeira aula, já tinha passado o tempo de tolerância, a inspetora mandou
eu entrar. Eu entrei estava começando a colocar o cabeçalho na lousa aí ele apareceu na
porta e ficou olhando para mim. Tipo que era a aula dele, aí eu fiquei constrangida, eu
saí porque eu ia bater de frente com ele. Nem questionei imagina...
Ele chegou um pouco atrasado e você assumiu as aulas...
Ele chegou atrasado e ficou me olhando na porta... “oi” e aí eu “oi” e aí ficou me
olhando pra mim. Eu falei era sua aula e ele falou é. Eu falei “ah tá bom”, eu peguei
minhas coisas e sai. É constrangedor! Depois a coordenadora chegou para mim e disse
que eu não devia ter saído, porque ele já tinha passado do horário, mas aí eu ia fazer
o quê? E já ouvi que tem escola que é bem pesada a discriminação mesmo na sala dos
professores. Teve um colega meu que falou que o professor pediu para ele se levantar
da cadeira da sala dos professores que ali era o lugar que ficava os efetivos. Então tem

128
Como já abordamos na dissertação, no texto Por que a Guerra?, Freud discute uma dinâmica da agressividade
ao longo da evolução cultural relacionada à tirania e à equidade: “Daí em diante há duas fontes de inquietação
relativamente ao direito na comunidade, mas também de aperfeiçoamento do direito. Primeiro, tentativas de alguns
senhores se colocarem acima das restrições vigentes para todos, ou seja, retrocederem do domínio do direito para
o domínio da violência; segundo, constantes esforços dos oprimidos para conquistar mais poder e ter essas
mudanças reconhecidas em lei – para, bem ao contrário, ir do direito desigual ao direito igual para todos. Essa
última corrente se torna particularmente significativa quando no interior da comunidade há verdadeiros
deslocamentos nas relações de poder, como pode ocorrer devido a fatores históricos diversos. Então o direito pode
gradualmente se adequar às novas relações de poder ou, o que é mais frequente, a classe dominante se recusa a
levar em conta essa mudança, e chega-se à rebelião, à guerra civil, ou seja, à temporária suspensão do direito e a
novos ensaios violentos, após os quais é instaurada uma nova ordem jurídica.” (FREUD, 2010i, p. 422).
129
Uso esta palavra no sentido de imagem e imaginação.
191

bastante. Não sei só com eventual, com categoria O, só por ser categoria O. O
professor não é uma classe unida não. E foi este caso que eu te falei. (Professora
Luana, categoria O, 8 anos de magistério).

A cena que a professora Luana relata revela exatamente as dinâmicas contratuais e de poder
na escola e como elas afetam os professores. A professora Luana, categoria V, eventual na época,
entrou na sala para substituir o professor, mas, quando o professor chegou depois do horário, teve
que se retirar constrangida. A coordenadora jogou a responsabilidade para ela sustentar o conflito
sem mediação da direção. Como a professora só recebe se der aula, temos uma intensificação do
mal-estar, como se a professora pudesse imaginariamente “roubar a aula do professor”.
Essas experiências produzem a memória coletiva das dinâmicas sociais de divisão que
produzem a formação libidinal de identificação entre grupos. É interessante lembrar que na rede
municipal o professor eventual recebe independente se der aula ou não, pelo simples fato de estar
disponível na escola quando algum professor faltar, o que revela que na rede estadual a política de
precarização do trabalho afeta diretamente as relações interpessoais e regressivas entre professores.
Esses dados de pesquisa, relacionados às divisões dos professores, aparecem em todos
os entrevistados. A professora Denise, categoria V, que tem apenas três anos de rede, diz:

Sim, eu percebo que às vezes alguns efetivos têm seu grupinho. E às vezes a categoria
O que não é efetiva é um outro grupo e a minha a V nem se fala é a mais simples aí.
Esta divisão é por contrato de trabalho que você está falando?
Isso.
Não seria por uma perspectiva geracional ou mesmo de modos de trabalhar
diferentes?
Não.
E por que você acha que acontece isso?
Bom porque os efetivos têm um pouco mais de benefícios, o próprio nome já diz. Eles estão
mais estacionados já. O categoria O a vida não é fácil não. Uma hora está numa escola,
outra hora está em outra. O contrato já vai vencer. Então eles têm alguns atritos ali sim.
Você acha que os efetivos olham com um olhar superior para os outros
professores de outros contratos?
Sim, já vi isso nas escolas já. Já sim.
(Professora Denise, categoria V, 3 anos de magistério).

O professor Fernando entende que essas divisões estão relacionadas ao dinheiro ou às


políticas dos governos aplicadas às bonificações por resultados, que produzem submissão dos
professores e divisão política na rede, inclusive mais ampliada já que determinados
profissionais que trabalham na escola como inspetores, cozinheiros, coordenadores etc., não
receberiam a bonificação.

Existe porque assim... não por contrato. Ah eu sou concursado, tem escolas que tem
isso sim. Tem escola que o contratado não come na mesa do concursado. Nas escolas
que eu trabalhei nunca aconteceu isso. Agora o que eu já vejo acontecer direto é a
divisão dos professores por conta do dinheiro. Então assim vai ter lá o Saresp. Vamos
boicotar o Saresp, se a gente boicota o índice da aprovação do Estado cai e aí ele vai
dialogar com a gente o governador. Ele não vai poder chegar e falar que aqui é o
192

Estado que mais educa gente pagando a miséria que ele paga. Aí os caras pô pode
crer, vamos ai, vamos! Aí a direção já pega pesado... a gente chega e diz que quer
boicotar este negócio. Aí tem um professor que fala e o bônus, ai fudeu. Você já
segregou o negócio por conta de 500 reais de bônus. A diretora colocou este ano, a
gente ia ter o abono. Ah o abono, os professores vão ganhar o abono. Só que os
profissionais da educação não ganharam o abono, o agente não ganhou, a gerente não
ganhou, essas profissionais, a coordenadora não ganhou, a direção não ganhou... A
diretora chegou na sala dos professores e falou assim: mais do que justo vocês fazerem
uma vaquinha para a gente pagar estes caras também. Vou querer 100 reais de cada
um de vocês. Eu falei comigo que você tem que reclamar? Sério que você vai meter
essa, 100 reais? Vai tentar tocar meu coração cristão? Ah para! Então tem essa
segregação sim. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

O que podemos observar ao escutar os oito professores entrevistados é o quanto é frágil


analiticamente fazer a interpretação desses dados por uma dimensão meramente individual, dos
conflitos psíquicos internos dos professores, isoladamente. Se há uma “neurose”, ela é
institucional, relacionada às dinâmicas conflitivas produzidas externamente nas escolas pelas
políticas de divisão dos governos. Estamos no âmbito do aprendizado que Freud nos traz da
“psicologia dos grupos e análise do eu”, no que se refere ao mal-estar do professor.
Se aprofundarmos essa perspectiva social, podemos pensar sobre a satisfação secundária
social do sintoma, e não meramente individual. Para este ganho secundário é preciso considerar
as relações de dominação, os ideais da cultura dominante que produzem as fantasias de
distinção e divisão social, e como elas reproduzem ganhos narcísicos nos vários segmentos das
classes sociais marcados por gênero, raça, sexualidade, regionalidade, trabalho etc. Como nos
abre para pensar o próprio Freud em O futuro de uma ilusão, de 1927:

A satisfação narcísica advinda do ideal cultural é também uma das forças que atuam
eficazmente contra a hostilidade à cultura no interior do grupo cultural. Não apenas as
classes privilegiadas que desfrutam os benefícios dessa cultura, mas também os oprimidos
podem partilhar essa satisfação, pois o direito de desprezar aqueles de fora os compensa
pelos danos que sofrem no seu próprio grupo. O indivíduo pode ser um miserável plebeu,
importunado por dívidas e pelo serviço militar, mas é um cidadão de Roma, tem seu
quinhão na tarefa de dominar outras nações e ditar-lhes as leis. Mas essa identificação dos
oprimidos com a classe que os domina e explora é apenas parte de um contexto maior.
Aqueles podem estar afetivamente ligados a esta; apesar da hostilidade, enxergam nos
senhores o seu ideal. Se não existissem tais relações fundamentalmente satisfatórias, seria
incompreensível que certas culturas se conservassem por tanto tempo, não obstante a
justificada hostilidade de grandes massas. (FREUD, 2014b, p. 244).

As mediações de como os ideais culturais dominantes entram em cada espaço social só


podemos saber analisando e investigando concretamente cada espaço. Porém, ao observarmos
as relações de hostilidade entre os professores, percebemos que elas não se distinguem de
diferenças sociais mais amplas entre classes sociais dominantes e oprimidas. Assumem, talvez,
um caráter mais caricatural, cômico ou farsante como sustentação.
De algum modo, elas manifestam um sintoma que é social, marcado pela distinção de
classes. O ideal cultural convoca intensamente o “narcisismo das pequenas diferenças”, em um
193

trabalho em que as políticas dos governos estão transformando todos os professores em


“contratados”, pela perda de direitos, o que demonstra que as gratificações narcísicas são um
impulso subjetivo fundamental da condição humana, mesmo nas mais adversas situações
sociais. Eis, aí, o ganho secundário narcísico e social da adaptação.
A professora Vera destaca como a divisão entre os professores produz um imaginário
persecutório entre eles:

A primeira é categoria O é categoria O, categoria F é F e A é A. Eu sou uma pessoa


que sento na mesa dou risada com todo mundo, toda piada, faço piada também. Mas
a gente percebe que quando tem um [professor] categoria efetivo ali eles fecham a
cara. Não ri, a piada pode ser boa, ótima. Isso enquanto eles estão fazendo piada, aí
você solta uma também, eu no meu caso. Eles fecham a cara, agora eu tenho que rir
deles? Então isso existe. Isso aconteceu várias vezes. Vive acontecendo, então eu já
vou para a escola agora preparada e infelizmente eu já vou menos, mexe com a tua
mente desde que você sai de casa. Pô vou ter que enfrentar aquela sala, ainda mais
quando você já conhece a sala dos professores. Hoje eu vou ter que enfrentar fulano
e ciclano, vou ficar quieta. E não é bom eu não sou uma pessoa quieta. Eu sou uma
pessoa ativa. Eu falo demais. Eu gosto de brincar. Eu gosto de festa. Gosto! Então
assim você leva um bolo, você põe em cima da mesa. Eles são capazes de comer tudo
que está na mesa que os professores levaram, mas o seu não come. Por quê? Porque
você é O. Já aconteceu é impressionante como as pessoas são capazes de acabar com
outro. Olha eu vou confessar uma coisa para você... eu nunca falei isso para ninguém,
só para os psicanalistas. Eu não gosto de ser humano tá, não gosto. Eu só trabalho
para o ser humano porque eu preciso. Eu só vivo com o ser humano porque é
necessário. Eu não gosto do ser humano. Eu tenho medo do ser humano. Eu acho que
é por isso que eu estou estudando psicanálise. E eu só falo isso para quem tem estudo
de psicanálise porque eu sei que você vai entender o que eu estou falando. Porque eu
não falo isso para ninguém, eu estou sozinha aqui porque se tivesse alguém em casa,
meu filho eu não ia falar. Ser humano para mim é... eu não sei... parece que ele já
nasce ruim de natureza. Parece que ele não procura o assertivo, ele não procura ser
empático, ele não procura ser bom, ele procura ser ruim. Então essa divisão dentro da
uma sala de professor é evidente. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de
magistério).

Teríamos que pensar de como o trabalho, no modo como ele é organizado, produz uma
relação bastante desumanizada entre as pessoas, que faz com que a professora Vera destaque
esse mal-estar intenso, traumático nas relações com os outros. Quando Freud diz sobre a
“aversão humana ao trabalho”, resultado da imposição por necessidade externa, destacamos
também a “aversão humana às relações humanas de trabalho”, isto é, as pessoas que dividem o
espaço do trabalho. E, também, qual o significado desta experiência para o conjunto das outras
relações humanas fora do trabalho, já que um indivíduo adoecido no trabalho refletirá essa
marca nas outras relações interpessoais.
Trata-se de uma dinâmica histórica e social que convoca os aspectos mais destrutivos dos
indivíduos. E eles existem, como nos mostrou Freud em seu texto para Einstein, Por que a guerra?
É interessante pensar como, nos lembra Freud em Introdução ao narcisismo, que ambientes de
ofensa ao Eu favorecem a produção de fantasias persecutórias. Não é nada difícil visualizar, como
194

sintoma a partir dessas divisões entre professores, um ambiente que favoreça fantasias cada vez
mais paranoicas, de desconfiança nas relações interpessoais e grupais na escola.
A professora Vera destaca uma questão, na sequência de seu relato, que apareceu pouco na
pesquisa, que mereceria um aprofundamento em outras investigações, que são as relações entre
homens e mulheres na rede estadual de ensino. A característica de gênero, na educação básica, uma
profissão ainda majoritariamente feminina, pode revelar algumas particularidades do mal-estar
docente: como este espaço, no qual determinada dinâmica social de mal-estar se realiza, favorece
formas de machismo e constrangimentos sexuais. A professora Vera nos relata uma situação:

É como ter um categoria V, que é o eventual. Eu tenho dó dessas meninas, essas


meninas de 18, 19 anos. “Professora eu posso assistir sua aula? Não quero ficar
sozinha aqui na sala...” Por que você não quer ficar sozinha aqui na sala dos
professores? “Eu posso ir lá não estou fazendo nada agora”. Vem! Ai depois eu vou
dar carona, eu sou esperta, você vai aonde, ainda mais quando é a noite. “Eu vou pegar
o metrô”. Vem ai! O que está acontecendo que você não quer ficar sozinha? Eu
descubro. Eu gosto disso, é o que eu estou te falando, eu quero saber o que o ser
humano sente, eu gosto dessa coisa de analisar. Aí elas falam “é porque tem professor
lá que fica me olhando”. Mas é normal todo mundo olha... “Ah não, não é normal.
Fica me secando eu não sei se é pro lado sexual ou é porque eu to V, porque eu to lá
querendo que ele falte.” Ah entendi. “Porque ele fica me perguntando. Eu não vou
faltar viu, eu não vou faltar”. Meu que chato hein. Quer dizer que já fizeram isso com
você? “Já!” Quantas vezes eu vi isso. Então categoria V é um estorvo dentro da escola,
o categoria O é outro estorvo. Cara nem fez concurso público, não entende porra
nenhuma e está dando aula. É o contrário, o categoria O se dedica mais que o A e do
que o F. Porque ele está estável, está garantido, ele pode chegar na sala de aula para
fazer o que ele quer. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

Parece que a precarização do trabalho, relacionada à categoria V, e o “olhar de ordem


sexual” se combinam, produzindo uma imagem marcada pela condensação, pela sobreposição
de imagens: “Fica me secando eu não sei se é pro lado sexual ou é porque eu tô V, porque eu
tô lá querendo que ele falte.” A imagem do “sexual” e “o roubo da aula” se misturam em uma
dinâmica social que favorece imagens persecutórias e abusivas.
O trabalho dos professores categoria V, que ficam disponíveis sem ter garantia de um
salário, é abusivo. De tal forma, variados fatores condensados da dinâmica social de poder se
combinam: diferenças contratuais, precarização do trabalho, diferenças de gênero e geracionais
etc. O que podemos pensar como hipótese é que ambientes precarizados e abusivos favorecem
relações abusivas e precarizadas. Convocam os pendores agressivos humanos, e o machismo é
uma possibilidade desta manifestação.

6.3. Os efeitos psíquicos e corporais da precarização do trabalho


195

Pelos dados da pesquisa vemos, de modo comum, a combinação de extensas jornadas


de trabalho com baixos salários. Como resultado dos baixos salários130 ocorre o acúmulo de
cargos e trabalhos, seja na própria rede de ensino estadual, na rede municipal ou em outras
profissões. Trata-se de um dado revelado por praticamente todos os professores entrevistados.
Estamos diante de um trabalho que, pela sua particularidade, exige demasiado do professor.
Assim, jornadas extensas com salários baixos e condições de trabalho precárias produzem uma
combinação de difícil equilíbrio.
Os processos transferenciais no ambiente escolar entre estudantes, professores e gestão se
intensificam e, sobre esse contexto social precário de trabalho, mesmo que se criem espaços de
reflexão (quando não viram “espaços motivacionais”), parecem insuficientes, justamente por sua
insuficiência, são olhados como mais um “problema” para o professor lidar, visto que constituem a
“promessa de uma autonomia” em desconexão com a intensidade de seu mal-estar.
O que observamos é um processo de perda de identidade – não apenas docente, mas de
identidade pessoal. Até aqui vimos como o professor passa a ser mais ou menos reconhecido a
depender de sua categoria de contrato de trabalho. O professor F, O, A, V marca uma
identidade, que influência aquilo que o indivíduo é, sua imagem, seu Eu.
Essa imagem, tomada pela precarização do trabalho, se produz como imagem
precarizada de si. Na medida em que a imagem tem uma base concreta, visto que, de fato, o
professor está sob as determinações desses contratos que se relacionam à sua posição social na
escola, o efeito passa a ser, também, uma relação psíquica com sua posição subjetiva mais
profunda, estabelecendo, muitas vezes, fantasias de inferioridade, persecutórias, incapacidade,
desesperança, ansiedade, autorrecriminações ou inibições de toda ordem. Por vezes, entram em
conexão com a história singular dos professores e podem intensificar processos que já existem
como disposição individual.
Uma das formas a qual se manifesta a cisão deste Eu, de adaptação do professor, é
resultado da dura jornada de trabalho, combinada a salários e condições de trabalho. Este Eu
não consegue depurar tamanha intensidade da realidade exterior; o que resta é introjetá-la como
mecanismo de defesa adaptativo para não entrar em pane ou pânico.

130
Segundo a nota técnica da GEPUD/REPU: “De acordo o relatório do 3º ciclo de monitoramento das metas do
PNE, em 2019, a média salarial da(o)s professora(e)s paulistas correspondia a 67,4% da média salarial de
profissionais com formação equivalente, R$ 3.572,66 e R$ 5.304,32. Em 2023, a Apeoesp divulga, com base em
dados do IBGE (PNAD Contínua), que a média salarial de profissionais com formação em nível superior é de R$
5.922,49. Sendo assim, o vencimento inicial da carreira deveria ser equivalente a esse valor.” Fonte: [Nota técnica].
São Paulo: GEPUD/REPU, 12 jun. 2023. Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e
www.repu.com.br/notas-tecnicas . Acesso: 12 de junho de 2023.
196

Mais uma vez, retomando Adorno, “pelo fato de o processo de adaptação ser tão
desmesuradamente forçado por todo o contexto em que os homens vivem, eles precisam impor
a adaptação a si mesmos de um modo dolorido, exagerando o realismo em relação a si mesmo,
e, nos termos de Freud, identificando-se ao agressor.” (ADORNO, 2006f, p. 145).
O professor Luiz expressou a situação de precarização. Mesmo sendo categoria F, com
mais de 10 anos de magistério estadual, ainda precisa trabalhar em três escolas para compor sua
jornada de trabalho.

Você trabalha em quantas escolas hoje?


Atualmente eu tô em três em escolas e tem dia que eu trabalho três turnos como é o
caso de segunda feira.
O fato de você ser categoria F que é considerado estável não lhe garante que você
tenha uma carga de jornada de aulas?
Eu tento ter essas aulas atribuídas. Se eu não conseguir pegar estas aulas na minha
sede eu tenho que ir na diretoria de ensino, você vai concorrendo, concorrendo até
você fechar as suas aulas. Só que tem um pequeno detalhe, se pode chegar num ponto
que foi o que aconteceu comigo em 2017, que para você ficar com 20 aulas...
20 aulas é o mínimo?
19 né... mas ai dá 20 normalmente, para eu ficar com 20 aulas por exemplo em 2017
eu fiquei em 5 escolas, e trabalhando 3 turnos, porque tive que entrar com laudo
médico da minha terapeuta na época, que inclusive um supervisor me aconselhou:
“seguinte, você chegar assim, eu entendo o problema que você está passando, mas
você precisa trazer um laudo médico que você tendo um laudo e um respaldo também
com o sindicato a gente assina, os supervisores vão assinar e você vai poder declinar
estas aulas. Então eu tive que me munir desta documentação para poder declinar as
aulas. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

O professor teria que trabalhar em cinco escolas para complementar uma jornada de 20
aulas. Só conseguiu declinar desta quantidade de escolas com um laudo médico. A pergunta
que fazemos é: nesta forma de organização do trabalho, que manifestação do mal-estar pode
ser produzida? Só é possível pensar em uma manifestação de sofrimento destrutiva, visto que
estamos diante de uma rede de ensino que autoriza essa forma precária de organização do
trabalho, mesmo de um professor que tem algum nível de estabilidade por ser categoria F.

O fato de trabalhar em mais escolas lhe produziu então algum problema de saúde?
Sim, transtorno de ansiedade generalizado e depressão. Isso deu uma recuada, eu fiquei
um ano e meio afastado inclusive, eu fiquei de 2018 a 2019. O segundo semestre de 2018
e o ano de 2019. Então até este problema começar a dar um recuo, demorou um tempo,
uma medicação, não é um termo mais apropriado, mas uma medicação que até me deixar
estabilizado demorou um tempo, e sim, essa rotina de trabalho. Fora também tolerar coisas
também no ambiente de trabalho que parando para pensar não deveriam ser toleradas. Isso
também afetou minha saúde mental e acabou refletindo na saúde física também. Somatizei
muitas coisas e para completar este ano eu tive que começar a fazer tratamento para
hipertensão em março. Inclusive estou no grupo de risco, eu fiquei mais tempo online, eu
voltei para as aulas presenciais em setembro depois de ter tomado a segunda dose contra
a covid. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

Uma das questões que o professor Luiz levanta, e que não deveria ser tolerada, é a do
racismo. Tanto do ponto de vista pessoal, como um professor negro, quanto ao conteúdo das
197

aulas de temáticas afro-brasileiras. Além disso, a própria conjuntura política do país colocou os
professores, em especial os de História, sob o olhar vigilante de estudantes e pais. Perguntado
sobre algum tipo de atrito na escola, o professor Luiz responde:

Com a gestão com relação ao conteúdo do meu trabalho não. E espero que fique assim.
Agora com alunos eu já tive. Por exemplo, quando eu estava ministrando conteúdos
de história afro-brasileira. Aquela coisa de um país colonizado estruturalmente racista,
aquela coisa toda. Quando você vai falar por exemplo de mitologia nórdica ou
germânica, mitologia greco-romana, quando você vai falar até mesmo de mitos ou
melhor dizendo religiões e mitos da antiga mesopotâmia, algumas coisas até desses,
mas agora se você vai falar alguma coisa sobre mitologia dos orixás por exemplo, tem
umas pessoas que ficam fora de si. Tem alunos que ficam exaltados, então sim, eu já
tive entreveros nesse sentido, resolvi dessa forma “olha é o seguinte eu estou
respaldado legalmente para tratar desses conteúdos. Os objetivos, as habilidades, as
competências são essas. Se você quiser fazer você faz, se você não quiser fazer você
vai ficar com zero nessa atividade.” Você lidar com racismo religioso e teoria religiosa
em sala de aula, não tem muito o que fazer neste sentido. (...) Já tiveram alunos que
tentaram gravar aulas minhas. Em 2015, ano da greve, inclusive 92 dias, que teve
reflexos inclusive na saúde mental e saúde física. Terminei aquela greve com
princípio de pneumonia. Mas voltando já teve alunos tentando gravar aulas minhas e
algum me perguntou: professor, qual sua opinião sobre o Bolsonaro? Só que quando
eu fui responder eu percebi que um garoto estava com um celular, ele estava meio
dando uma disfarçada, aí eu cheguei nele com todo o carinho, com muito amor. Pedi
para que ele abrisse a galeria dele... galeria, imagens e aí ele apagou minha foto e
apagou o vídeo. E a gente resolveu ali, e falei pra ele que nunca mais gravasse
conteúdo nenhum ou professor algum sem autorização expressa dele. Se não os seus
pais vão responder por isso. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

Além da particularidade histórica de gênero a respeito do mal-estar docente, temos


também a particularidade racial. Sustentar uma posição ética no que diz respeito ao ensino de
conteúdos marginalizados histórica e racialmente, o obriga, como professor, a sustentar
demasiados mal-estares racistas no ambiente escolar.
Certamente isso também produz efeitos psíquicos no professor. A psicanalista Neusa
Santos Souza aponta que, para o negro, mesmo que seja o melhor naquilo que faz não há
garantia de êxito, visto que o ideal do ego negro é, em grande medida, representado por um
ideal dominante branco e que esta é uma marca histórica que não tem reconciliação já que ser
branco lhe é impossível. “Sentimentos de culpa e inferioridade, insegurança e angústia,
atormentam aqueles cujo ego caiu em desgraça diante do superego. A distância entre o ideal e
o possível cria um fosso vivido com efeito de autodesvalorização, timidez, retraimento e
ansiedade fóbica.” (SOUZA, 2021 p. 73).

Você já sofreu casos de racismo?


Sim, tanto... no cursinho pré-vestibular comunitário não. Quando eu trabalhava na E.
eu fiquei sete anos lá e não. Na rede pública já, já sofri sim. Alguns sutis e outros mais
escancarados. Tipo “ei professor, posso fazer uma piadinha de preto”. Eu falei assim
não. Até porque piadinha de preto é piadinha racista. Eu não vim aqui para sofrer
racismo. Comentários a respeito do meu cabelo, por exemplo. Piadinhas a respeito
das roupas que eu estava usando, e a pigmentação, minha melanina. Por exemplo, teve
198

uma vez que eu fui para escola todo vestido de preto, camiseta preta, calça preta. E os
alunos começaram a fazer umas perguntas bem babacas, sem sentido. De professores
também, de professores eu já ouvi algumas bem desagradáveis. (Professor Luiz,
categoria O, 15 anos de magistério).

Nos estudos sobre o racismo é importante destacar as investigações em torno da


“branquitude”, um lugar demarcado pela dinâmica social e histórica de superioridade racial
branca que atravessa a formação de todos, brancos e não-brancos. Um professor negro, como o
professor Luiz, sustenta uma dimensão mais intensa do mal-estar destrutivo, pela marca do seu
corpo negro na sala de aula e na escola. Sendo a autoridade em sala de aula, é mobilizado para
com seus pares e estudantes, na dimensão transferencial das marcas de uma sociedade racista,
como a brasileira.131 Schucman, aponta que:

Na sociedade brasileira, os indivíduos, querendo ou não, são classificados racialmente


logo que nasceram. Nos classificados socialmente como brancos recaem atributos e
significados positivos ligados à identidade racial à qual pertencem, tais como
inteligência, beleza, educação, progresso etc. A concepção estética e subjetiva da
branquitude é, dessa maneira, supervalorizada em relação às identidades raciais não
brancas (SOVIK, 2004), o que acarreta a ideia de que a superioridade constitui um
dos traços característicos. (FANON, 1980). (SCHUCMAN, 2020, p. 68).

Contribui para o mal-estar destrutivo no trabalho docente a particularidade racial que o


professor Luiz tem que dar conta, que certamente vai mobilizar dimensões psíquicas da própria
constituição da identidade do professor, em seu adoecimento e na relação com o desmentido
social. Nesse sentido, há interconexões de classe e raça que ampliam, tornam mais complexas
as formas de introjeção do agressor, tanto do ponto de vista de um ambiente de trabalho
precarizado quanto dos referenciais de uma sociedade marcada pela branquitude.

Você avalia que esta hipertensão também é resultado do trabalho?


Olha tem uma combinação de fatores, uma rotina de trabalho pesada, nestes últimos
anos todos. Para você ter uma ideia, em 2006 eu trabalhava como eventual de segunda
a sexta feira das 7h da manhã até 22h45 da noite da mesma escola. Tinha dias que eu
dava 15 aulas. Eu lembro de uma vez que estava dando aula para um EJA, uma sexta-
feira à noite, era o 3L, 3 L não, 3H e estava terminando a aula numa sexta-feira e alguns
alunos estavam me cumprimentando, porque ia tocar o sinal. E uma aluna me perguntou:
professor, qual o seu nome mesmo? E eu tive um lapso de tempo, eu tinha esquecido
meu nome, pode parecer uma coisa esquisita ou até forçada, eu travei e disse... “ah sim,
Luiz, agora que eu entendi sua pergunta”. Eu fiquei de segunda a sexta feira trabalhando
das 7h até 22h45. Isso em 2006. Então voltando, atualizando para 2021, então sim essa
rotina de trabalho pesada para você tentar ter algum padrão de vida na verdade está
tendo um efeito, como eu poderia dizer, como dizia uma terapeuta que eu tinha em 2012:
“o que você vai ganhar a mais vai gastar com remédio e com tratamento”. E eu nem
estava no estado que eu entrei de 2016, para 2017. Por isso você volta naquela pergunta
que você fez a cerca de 7 minutos atrás: essa rotina de trabalho está compensando? O
que compensaria para mim nos próximos anos é prestar concurso e ficar num cargo só.

131
Sabemos como, do ponto de vista ideológico, na formação histórica do Brasil, principalmente pós-década de
1930, que teve como marco o antropólogo Gilberto Freire e seu livro Casa e Grande e Senzala, a tentativa de
imputar um discurso da “democracia racial” no Brasil, que na verdade foi a forma como as classes dominantes
brasileiras encontraram para tornar o racismo e a exploração do trabalhador negro naturalizados, a-históricos.
199

Mas um cargo que tenha um valor que eu consiga manter um determinado padrão de
vida. Porque do jeito como está agora não dá para dizer que está compensando não.
(Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

O professor nos relata que, desde o início como professor da rede estadual e categoria
V, eventual, trabalhou intensamente, chegando a lecionar 15 aulas por dia. As demandas
produzidas para os professores eventuais são as mais destrutivas, aquelas em que o professor
fica disponível na escola e só recebe se der aula. Um professor que trabalha 15 aulas por dia
evidencia que o princípio de realidade é não somente destrutivo, mas traumático.
O adoecimento do professor é notório e reconhecido por ele. Contudo, o que nos chama a
atenção para a intensidade traumática do trabalho é o esquecimento do nome. O significado pode
estar relacionado a uma perda da identidade não apenas docente, mas do próprio ser, do Eu do
professor. “Eu tive um lapso de tempo, eu tinha esquecido meu nome”, pois numa jornada de
trabalho e sob estas condições de trabalho, o tempo da experiência se perde e precariza qualquer
possibilidade de um mal-estar que possa ser criativo, sustentado. O nome nos dá um lugar psíquico,
uma rede de significados, de existência. Neste contexto, não se trata de um lapso qualquer.

E o que você avalia desta questão de esquecer seu nome, de estar trabalhando uma
semana inteira muito e esquecer o próprio nome. É muito simbólico isso, não?
E sabe uma coisa que aconteceu este ano também, eu fui fazer um cadastro. E acho que
eu estava tão ansioso que foi a primeira vez que eu esqueci a minha idade. A idade é uma
coisa que eu nunca esqueci, eu posso esquecer... até quando minha ansiedade aperta às
vezes quando eu estou saindo de casa às pressas, eu esqueço onde, pequenos objetos, onde
eu coloquei a chave ou remédio que eu tenho que colocar na bolsa ou coisa do tipo. Eu
esqueci minha idade. A moça perguntou quantos anos o senhor tem? Eu falei, não eu tenho
40 anos, mas eu aí falei não peraí, eu tenho 42, desculpa. Sim, você esquecer seu próprio
nome ainda mais no seu ambiente de trabalho e ainda mais pensando no nosso curso. No
curso de História, um processo de alienação do trabalho. Você está trabalhando, eu estava
até lendo Chasin em pouco tempo atrás... Se esta lógica do capital e desgoverno do
trabalho, do trabalhador especificamente. Você trabalha, trabalha e trabalha para tentar
manter um padrão de vida que você não está mantendo plenamente, porque sua saúde está
acusando isso. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

Diante do corpo e do psiquismo que acusa o mal-estar e o esquecimento de si, qualquer


perspectiva de futuro fica igualmente incerta. O professor Luiz gostaria de se aposentar na
educação. Porém, diante da dura situação de trabalho que a cada ano piora, fica reticente.

Pretende se aposentar na educação?


Olha, eu comecei a dar aula há quase 20 anos. No Estado eu entrei em 2006, mas eu
já dava aula antes em cursinho pré-vestibular comunitário. Em quase 20 anos de
experiência e pelo que eu tenho visto na rede pública estadual principalmente eu diria
ainda que pretendo me aposentar como professor. Eu quero ficar na sala de aula
mesmo, só que a cada ano que passa isso está cada vez mais difícil. Como eu já tenho
conversado com alguns colegas, você enfrentar dupla, tripla jornada, para fechar sua
carga horária. Você manter os dois cargos enquanto compensar ainda e pelo que a
gente está vendo de impostos, tributações... Se você pegar uma escola que tem ALE
ainda, difícil acesso, você ainda ganha um percentual a mais. Fora isso não está uma
profissão muito atraente para você se manter tanto em termos materiais. Sem você
200

fazer este sacrifício de você manter dois cargos, você trabalhar dois, três turnos,
porque muitas vezes não consegue fechar sua jornada de trabalho na mesma escola.
Então você é obrigado a escolher outras escolas para compor sua jornada. Então está
inchado dependendo da área que você se encontra, mas tá mais precarizado também.
Isso que estou querendo dizer. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

Utilizamos o professor Luiz até aqui para trazer as questões da relação das jornadas de
trabalho e condições de trabalho com os aspectos subjetivos do mal-estar, entretanto são
condições apontadas por todos os professores entrevistados. Agudizam-se tais condições pelo
desenvolvimento e ampliação de Escolas em Período Integral (PEI), que intensificam o controle
e a exploração. O professor Luiz fala sobre um colega de trabalho em uma PEI:

Ele trabalhou numa PEI durante algum tempo, falou que é propaganda enganosa. O que
você ganha de adicional no seu trabalho, aquele 75% em cima do salário base o imposto
de renda come uma parte disso que você ganha mais. Fora que a maneira como as PEI
estão colocadas isso favorece muito assédio moral, tem muitas reclamações sobre isso,
assédio moral. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

A professora Vera, que trabalhou em uma PEI, relata sua experiência com a gestão da
escola, que tem poder para decidir se ela ganha ou não o bônus de final de ano.

Olha Marcelo, eu conversei com minha gestão sim. Com minha diretora semana
passada. Eu acho engraçado que o gestor principal que é o diretor de escola sempre acha
que ele tá certo em tudo. A diretora, como eu quis sair da PEI ela me “funicou” no direito
de eu receber pelo menos um pouquinho do abono, uma merrequinha. Foi ela que
interferiu sim. Ela podia ter me ajudado ela não ajudou. E ela foi bem sincera. “Você
me deu trabalho, então você não tem direito”. Então você pensa como eu fiquei do outro
lado do telefone. Eu estava no telefone. E ela grava tá. Ela grava. “Estou gravando o que
você está falando.” Foi semana passada. Quando os professores receberam eu liguei
para ela sim. O que está acontecendo? Está dando que eu tenho direito e eu não recebi.
“Você me deu trabalho, quantos atestados você pegou. Eu fechei você não vai receber.”
Porque eles mexem sim, mexem na sede. Eles têm direito. Eles têm este poder, eu pensei
que não. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

A afirmação “você me deu trabalho, quantos atestados você pegou” parece trazer uma
combinação do modo infantilizado do funcionamento do ambiente escolar, da “criança que deu
trabalho ao adulto” e, ao mesmo tempo, do poder que tem os gestores, em determinada estrutura
administrativa, de intensificar o adoecimento do professor, na medida em que os atestados
médicos podem servir para punir o professor por seu adoecimento.
As bonificações são mais um ingrediente que favorece as cisões do Eu no espaço
escolar, visto que o professor pode sustentar, mesmo adoecido, a intensidade do mal-estar
escolar para poder ter acesso a uma remuneração maior. O fato de a diretora estar gravando a
conversa com a professora Vera só demonstra que as relações de sociabilidade numa escola
estadual implicam em níveis regressivos e destrutivos importantes que, em última instância, a
prova material da verdade do que é dito é deslocado para uma esfera fora da escola, jurídica –
perversa ao próprio processo educacional, portanto.
201

A professora Vera é categoria O e o professor Luiz tem estabilidade contratual por ser
categoria F. Os contratos relacionados às categorias O e V são, como observamos na pesquisa,
os mais precarizados e, evidentemente, também produzem efeitos psíquicos intensos no
professor. É patente notar como cada tipo de contrato, pela sua precarização, produz
intensidades de mal-estares variadas.
A professora Luana, categoria O, teve que ficar em duas escolas, uma delas, segundo ela,
bem arbitrária, cheia de burocracias e excesso de trabalho, que lhe produziu efeitos psíquicos e
corporais intensos, além de uma enorme desmotivação, visto que parte importante desse trabalho
precisava ser feito em casa, já que as horas de trabalho na escola eram insuficientes.

Esse ano que eu fiquei em duas escolas, uma escola era bem arbitrária. Burocracia, muito
excesso de trabalho, e eu fiquei... só que eu estava, o começo foi em casa no remoto. Eu
fiquei mal, bem ansiosa, bem nervosa, muita dor de cabeça. No dia que eu fui na escola
que me passaram toda a demanda de trabalho eu tive muita dor de cabeça. Fiquei dois dias
com dor de cabeça, passei bastante nervoso. Muito desmotivada. Não cheguei a passar no
psicólogo e pegar licença, mas eu fiquei bem impactada na minha vida, fiquei bem
estressada, bem desmotivada. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

A professora Denise, que é categoria V, perguntada se sofreu algum tipo de violência


na escola, nos relata o seguinte:

Não. Só algumas vezes é “a professora substituta”. Às vezes este termo a gente não gosta
de ouvir muito, ser tachada como substituta e pensar que a nossa aula é uma “oba-oba”
para eles. Isso eu não gosto muito, mas também não dou trela, fico quietinha. Já escutei
algumas vezes, já faz um tempo, hoje em dia já está mais difícil de escutar este termo,
mais tranquilo. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).

A expressão “a professora substituta” ganha uma carga de violência simbólica no espaço


escolar porque se conecta aos aspectos contratuais da categoria V. Ao receber somente se entrar
em sala de aula, a professora ocupa um lugar à margem, na escola, que terá efeitos psíquicos
de desvalorização, de “inferioridade narcísica”. Quando perguntamos, ao final da entrevista, o
que achou da mesma, se havia algum questionamento, ela responde:

Gostei muito da entrevista. Espero ter ajudado, fiquei muito contente pelo convite.
Porque uma pessoa às vezes da categoria V ela não tem convites, ela não é chamada
assim nem para as reuniões da escola às vezes a gente participa muito. Então eu fiquei
agradecida pelo convite. (Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).

Os estudantes, de certa forma, ao chamá-la de “professora substituta”, apenas expressam


um sintoma do modo de organização do trabalho da rede de ensino estadual. A professora que
não tem nome, identidade. Quando convocada a falar sobre suas experiências, nesta pesquisa,
a pertencer de algum modo, a professora evidencia a precariedade do mundo do trabalho que
produz efeitos de “inferioridade narcísica”.
202

Outro efeito, nos professores, pelas condições de trabalho e salário é a sensação de


cansaço. Sustentar com o corpo e com seus ideais psíquicos o mal-estar destrutivo é uma tarefa
bastante árdua, pelo que nos relata os professores. O professor João diz:

Não é foco da sua pesquisa, mas na rede municipal as condições de salário elas não
são ótimas, mas elas são razoáveis. Na rede estadual que é seu foco as condições são
lamentáveis. A palavra que eu tenho é essa: elas são lamentáveis. O professor que
chegou agora ou há poucos anos e ele tem lá a sua jornada de 40 horas por semana,
ele vai tirar um salário líquido de 2.500, 2.600 reais. Se a escola tiver aquele benefício
de vulnerabilidade social talvez chegue a uns 2.800 de salário líquido. É uma situação
que se você for mais pragmático não dá para esperar que seja um bom resultado o
trabalho desse professor. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

Os efeitos psíquicos e corporais que o professor João nos relata são a sensação de
cansaço. Uma de nossas hipóteses é a constância desse cansaço produzir, ao longo do tempo,
no psiquismo e no corpo, um efeito traumático, pelo processo de acumulação que desencadeará
toda ordem de sintomas.

O que eu sinto vez por outra é cansaço. É uma atividade que deixa você muito
cansado, muito desgastado. É mais assim precisar procurar um especialista, tomar
alguma medicação ainda não tive estes momentos. As vezes uma dor muscular aqui,
outra ali. Você toma um dorflex, mas eu tenho quase certeza de que são dores causadas
por este estresse, este cansaço. Agora tem colegas que precisam de ajuda. (Professor
João, categoria A, 13 anos de magistério).

O professor João nos coloca uma experiência que aconteceu no retorno das aulas
presenciais, no último período da pandemia. As restrições a tal retorno limitaram o número de
estudantes que, segundo o professor, permitiu um trabalho com mais qualidade. A situação de
exceção admitiu uma forma de trabalho em que há possibilidades de tornar o mal-estar docente
uma experiência de fato criativa pelas condições de trabalho.

Essa experiência da pandemia tem sido até curiosa, depois que eu voltei pro trabalho
presencial de junho para cá as minhas salas de aula não tem mais que 15 alunos. Eu acho
que deve ser a primeira vez nestes meus 10 a 15 anos de magistério que no dia a dia eu
consigo dar aula para 5, 10, 15 alunos e eu consigo com calma ouvir uma dúvida deles.
Eu consigo com calma escutar eles, ler. Apesar dos protocolos, mas você vai lá com
cuidado, pega o caderno deles, dá uma lida. Então tem esta questão da jornada, tem a
estrutura. Você coloca muitos alunos numa sala. O nosso público, eu falo da escola
pública, mas eu nunca dei aula em escola particular, mas eu suponho que uma criança que
vem de uma família de classe média ela tem um pouco mais de condição de acompanhar
a escola. Eu sei que tem problemas, mas há um pouco mais de condições quanto a isso, os
nossos não dá para ter sala com 30, 35 alunos porque você precisa de uma atenção
individual maior. Os governos colocam de 30 a 35 no dia a dia. Além disso tem problemas
do tipo tecnológicos. Agora eles começaram a instalar projetores em sala de aula. Isso na
escola municipal. Na escola estadual o projeto não são projetores, são televisores. Na
escola municipal a situação da estrutura tecnológica é da seguinte maneira: eles instalaram
projetores no teto, das 18 salas de aula que nós temos, instalaram as caixas de som, mas
não colocaram os computadores de mesa, os desktops. Então cada professor tem que vir
com o notebook. A verdade que eles emprestaram o notebook da secretária de educação.
Toda aula você tem que ficar conectando. E dá problema isso, cabo quebra, enfim... é todo
um trabalho a mais se o professor quer dar uma aula diferenciada, ele tem um desgaste a
203

mais... não seria necessário se o governo melhorasse um pouco isso. A tecnologia resolve
tudo, não ela não resolve, ela não é tábua de salvação, é um elemento dessa conjuntura.
(Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

A professora Ana aponta que, a depender das localizações e regiões de São Paulo e do
interior de São Paulo, pode se ter 40 estudantes numa sala de aula.

Eu acho que aqui tem uma quantidade muito grande de aluno. Eu antes de dar aula na
escola que estou eu dei aula em uma outra em São Paulo e era a mesma coisa. Acho
que até mais alunos, e aí eu perguntei para outros colegas que dão aula aqui na região
da B, e eles falaram que é a mesma coisa, 38, 39, 40 alunos por sala. Lá em I. era 30,
28, 26. Lá em I. era tão... também a desorganização do Estado, as salas não tinham
um padrão, foram feitas de qualquer jeito. Então tem sala que cabia 40, tinha sala que
cabia 25. Então era bom para gente porque tem menos alunos, aqui tem mais. É um
impacto maior. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

A professora Luana, atualmente categoria O, relata suas experiências como eventual. É


alarmante o nível de precarização do professor eventual. Atrasos de pagamento, questões de
férias, vale alimentação, licença gestante são todos temas que colocam o professor eventual
como o paradigma maior do mal-estar destrutivo na rede de ensino.

(...) a questão financeira, estabilidade, é muito ruim. Porque por exemplo, eu comecei a
trabalhar em março de 2014 eu só fui receber meu primeiro salário em maio. Porque o
eventual é dois meses na frente, e a gente não tem direito ao vale alimentação que é
pouquíssimo, uma vergonha, 12 reais por dia. Mas pelo menos é um a mais. O eventual
não tem direito. As férias, como você não dá aula, você não recebe, aí eu fico 2 meses
sem receber. Em dezembro os professores não faltam então você acaba não dando aula
em dezembro. São 3 meses que você não tem salário, são os meses referentes a julho e
janeiro. E em dezembro teoricamente você também não recebe porque você dá
pouquíssimas aulas. Então eventual é muito ruim, porque você não tem estabilidade,
tem menos ainda, categoria O já é ruim, o eventual é pior ainda por conta que você fica
muitos meses sem receber. Eu fui gestante eventual, eu tive como licença maternidade
um salário-mínimo, porque eu não tinha aulas atribuídas então eles não faziam menção
das aulas que eu tinha. Então eu recebi um salário-mínimo por mês na minha licença
maternidade. (Professora Luana, categoria O, oito de anos de magistério).

É evidente que essa desvalorização terá efeitos práticos no trabalho da professora. Se o


Estado não valoriza um profissional de educação, como esperar que o ambiente escolar faça
isso? Inclusive, a professora Luana já comentou que a experiência como eventual foi
“traumática”. Ela mesma usou esta palavra, tal o nível de intensidade do mal-estar.

Sim, é ruim eu fazia parceria com alguns professores para ser um pouco melhor para
mim, então por exemplo eu fazia parceria com o professor de Ciências, com o professor
de Biologia, e eles falavam que o que eu desse em sala de aula iria valer um ponto para
mim. Então eu ia fazendo estes combinados, mas é porque eu estou te falando porque
eu eventuei em escolas que tinham esta abertura pro eventual. Mas tem colegas meus
que contam que não tinham respeito nenhum. Inclusive eu tive ensino médio, minha
disciplina Química é ensino médio, mas eu fui pegar Química agora, este ano, foi a
primeira vez que eu peguei química. Então quando eu eventuava no ensino médio era
muito ruim, eu eventuava em duas escolas. Eu eventuava em duas escolas de manhã, eu
eventuava no ensino médio e a tarde, eu eventuava no fundamental. O período da manhã
era horrível para mim, porque eu me sentia péssima na sala do ensino médio, muito
204

desvalorizada. Os alunos do ensino médio não querem saber muito, de 35 alunos 4


alunos faziam as lições. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

O professor Luiz nos relata a respeito de professores que vão buscar outras formas de
trabalho ao comentar sobre o valor social de ser professor. Trabalhar como Uber parece que
tem sido os caminhos de alguns professores. Diante da precarização do trabalho, de fato, se
diminuem as distinções de um professor categoria V, eventual, categoria O ou mesmo F do
processo de Uberização132 do trabalho.

(...) se você conversar com motoristas de aplicativo, Uber, inclusive eu já rodei com
professores também. O cara estava fazendo Uber para complementar a renda dele. Era
professor categoria O inclusive. Tem um discurso recorrente de que o professor, a
profissão do professor é a mais importante de todas. Só que quando você olha a nossa
estrutura de trabalho não é a profissão mais importante de todas. Tanto em termo de
remuneração, até também da própria estrutura material de muitas escolas. Até o ano
passado, 2020 para 2021, você tinha 800 escolas que não terão condição de começar
o ano em São Paulo, operacionais, é fiação, é esgoto a céu aberto. (Professor Luiz,
categoria F, 15 anos de magistério).

132
Um artigo (VENCO, 2019) que joga luz sobre esse processo de “Uberização do trabalho” e investiga se os elementos
novos de contratação, flexibilização e precarização do trabalho pode ser comparado ao trabalho e contratação dos
professores da rede estadual de ensino de São Paulo. A conclusão de Venco é que a rede estadual de ensino de São Paulo
estabelece formas de contração e precariedade do trabalho anteriores aos processos de uberização do trabalho. Ao fazer
um comparativo entre a uberização e a contratação na rede estadual de ensino, Venco nos traz que: “Nesse sentido,
pondera-se ser relevante considerar as permanências acerca da precariedade nas relações de trabalho, bem como ressaltar
os aspectos efetivamente novos nesse fenômeno. O cotejamento desses profissionais aos professores não efetivos na
rede estadual paulista revela aproximações entre ambos, a despeito de exercerem atividades profissionais distintas.
Segundo a definição de Abílio, as justaposições de tal lógica transposta à realidade dos professores não efetivos,
sintetizadas no Quadro 2, resultam: (a) no cadastramento de estudantes em formação ou profissionais formados na
condição de temporários ou eventuais, nas diretorias de ensino e escolas, respectivamente, sem que haja um aplicativo
para isso; (b) na propagação de uma ideia de liberdade no trabalho, calcada pela autodefinição da própria jornada e do
ganho salarial obtido pelo trabalho por conta própria. Tal dimensão, compreende-se, consiste em uma falsa noção de
autonomia e independência, implica importante intensificação e carga do trabalho, com vistas a obter rendimentos
suficientes à sobrevivência. Cabe indagar em quais condições trabalhadoras e trabalhadores, configurados como a
‘classe-que-vive-do-trabalho’, logram vender sua força de trabalho com perspectivas de libertação. No caso dos
professores não efetivos, há, segundo depoimentos coletados, a busca incessante de alternativas nas escolas que
ofereçam maior tempo de permanência, ou seja: aquelas em que haja profissionais em licença-maternidade, licença-
prêmio ou afastados por doença, pois somente assim terão algum salário fixo para suprimento das despesas mensais para
sobrevivência. Essas justaposições resultam ainda (c) na criação de estratégias para contornar a concorrência entre os
motoristas: o carro limpo, a oferta de balas ou guloseimas, a simpatia. Entre professores, são aqueles que atendem às
demandas do trabalho prescrito, que contornam os problemas de insubordinação nas turmas e aceitam ministrar qualquer
disciplina, mesmo que distinta de sua área de formação. Segundo um dos entrevistados, professor não efetivo, ‘é bom
ser visto pela direção como um professor que não cria caso, que aceita qualquer desafio... eles sempre chamam a gente
novamente’ (professor-estudante). Por fim, resultam (d) na avaliação permanente dos motoristas, uma vez que o
aplicativo demanda do cliente o julgamento sobre a oferta: limpeza, polidez, trajeto etc. No caso dos professores, tem-
se a avaliação homogênea do aprendizado dos estudantes, mensurada por testes padronizados e atrelada às formas de
controle, que se sofisticam e se redesenham. A tentativa de prescrição do trabalho intelectual, por meio de cadernos cujo
texto é invariavelmente elaborado em tempo verbal imperativo, mais do que sugerir atividades, induz a condutas
didáticas e de conteúdo aos docentes. Ressalte-se que, apesar de ilógico, os professores não efetivos são igualmente
alvos das pressões sofridas pelos demais, no alcance de resultados nas avaliações, uma vez que a lógica da política
educacional se sustenta pelo adestramento dos estudantes na realização dos testes. As formas de resistência frente a esses
padrões existem, mas, entre os intervalos de realização das pesquisas, apreende-se uma adesão à norma, mesmo que
entre alguns haja pesar. Há, portanto, elementos congruentes entre ambos que permitem afirmar que a uberização não
traz em seu bojo uma face totalmente inovadora.” (VENCO, 2019, p. 8).
205

A professora Denise fala de seu trabalho como um “extra”, “um plano B”, visto que ela
acumula sua jornada com o trabalho em um escritório de contabilidade. Se dependesse do
salário como professora para se manter, teria muitas dificuldades de viver.

Mas dá para ter um extrinha. No meu caso é um plano B, é um extra. Mas no caso se
você depende deste salário para pagar as suas contas, para ter seu sustento. Se fosse eu
só trabalhando como eventual eu teria uma preocupação na minha vida. Será que o mês
que vem vai dar para pagar todas as minhas contas? Será que mês que vem eu vou ter
um dinheirinho para comprar uma roupa mais, algo que eu esteja precisando na minha
casa, um eletrodoméstico que quebre ou numa enfermidade que precise? O dinheiro é
bem justo. O cargo de eventual ele é um cargo em que você nem tem um salário fixo.
Porque tem mês que você ganha mais, tem mês que você ganha menos. Pela quantidade
de aulas que você pega. Então é um cargo para você aceitar ter ele você tem que gostar
muito da área da educação. Você tem que passar por ele primeiro para depois ir ingressar
nas outras categorias no caso do estado. Se possível se for o meu caso ele ser um plano
B ou você se sujeitar a viver nessa. Um salário que é incerto, um mês é mais outro mês
é menos. E batalhar se fosse o meu caso só ser professora, se não tivesse o escritório
com certeza eu batalharia de fazer um meio a meio. Um pouco eventual e batalhar por
um pouquinho de aula categoria O, pegar umas aulas online, ter um pouco mais de aula.
(Professora Denise, categoria V, três anos de magistério).

Não podemos desconsiderar a dimensão do horror no espaço escolar. Sob a alta intensidade
do mal-estar que se produzem a indiferença, a desafetação, o cinismo, as cisões do Eu como
mecanismo de defesa. O professor Luiz relata sobre o horror de uma experiência que viveu:

Tem uma escola que trabalhei este ano que não vou citar o nome, mas se você quiser
você pode digitar no google a matéria, tinha um corpo de cadáver estendido do lado da
quadra. As aulas continuaram normalmente, as crianças do prédio elas conseguiam ver
o cadáver. Até a polícia cientifica chegar ali, isolarem, fazerem a perícia, recolherem o
corpo foram horas. Aí ficou naquelas, será que as aulas tinham quer ter continuado ou
será que era para ter interrompido? Mas como você dá aula normalmente com um
cadáver alguns metros da sua sala, estendido ali no mato. Sabe então não, a nossa
profissão não dá para dizer que ela é materialmente valorizada, talvez no imaginário das
pessoas seja. Mas o tratamento que a gente recebe não. Nós somos chamados de
vagabundos o tempo todo, de parasitas, que a gente está no bem bom. Olha quantas
férias vocês têm por ano. Que este ano que de 2021 para 2022 tomamos umas picotadas.
Depois eu preciso ver como ficou dos dias letivos e recesso. Então não, nossa profissão
não é valorizada. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

É difícil descrever essa cena, um corpo morto ali próximo à quadra na escola. O olhar
de espanto, de horror, de indiferença, da vida que segue.133 O professor Luiz se pergunta se
deveria haver aula naquele dia. Uma pergunta que, no mínimo, nos faz pensar se ela deveria
existir, e só existe porque parece que os professores estão se acostumando às várias violências
diárias de todas as ordens. Essa seria só mais uma para matar no peito e seguir em frente?

133
Esta cena nos lembra de duas músicas, “De frente pro crime” de João Bosco e Aldir Blanc e “Construção” de
Chico Buarque, na qual um corpo encontrado morto de um trabalhador pobre, ora atrapalha o tráfego de sábado ora
é apenas um detalhe no cotidiano dos bairros periféricos e da cidade, evidenciando que a naturalização da violência
e da morte na dinâmica social não é tão recente e nem tão “desviante” da nossa sociabilidade histórica brasileira.
206

O professor Fernando nos relata sobre suas impressões em relação às condições de trabalho
e das experiências de mal-estar destrutivo vividos na escola. Demarca essas condições como
“insalubres” e a escola como a expressão de uma “cadeia”. O professor vai sendo marcado no seu
psiquismo e no seu corpo como um dos “prisioneiros”, sob esses códigos de sobrevivência. Associa
sua experiência na educação da rede estadual com o tempo em que trabalhou na Fundação Casa.

Precárias.... não só precárias, insalubres. Este ano eu dei aula numa escola que era um
canteiro de obra. Era pedreiro, junto com estudante, pintando com tinta tóxica a
escola, quebrando com britadeira com corredor e você dentro de sala de aula. E não
pode fechar a porta por causa da covid. Eu falo mano vocês estão malucos? Não era
nem para a gente estar aqui, a escola está em reforma. Reforma essa inclusive que é
muito mais para gringo ver. (...) Escola ficou insalubre, é insalubre. E assim quando
não tem este caso, que é o caso da reforma e tal, é insalubre. Você trabalhar dentro de
uma cadeia é insalubre. Todo mundo que trabalhava na Fundação Casa trabalhava
com ONG. A ONG pagava 6 meses para você ficar em casa, fica em casa não faz
nada. Não faz nada, este aqui é o psicólogo doutor tal. Você vai lá fala com ele, fala
das suas coisas, o que está passando, como está o seu trampo. Porque não tem como
você trabalhar 5 anos, 2, 3 anos direto dentro de uma cadeia. Se fica ruim da cabeça.
Onde a gente trabalhava eu pensava nisso. Tinha arte-educador que estava 11 anos
que estava trabalhando com moleque dentro da cadeia. O cara já se sentia um dos
internos. Era foda. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

O professor João acrescenta a precarização das condições básicas do funcionamento de uma


escola. Inclusive, sobre a garantia de segurança em escolas localizadas em bairros com alto índice
de violência, com o Estado falhando em garantir a proteção do patrimônio e dos membros da
comunidade escolar. Tudo isso, sem dúvida, entra no contexto do ideal de valorização daqueles que
estão na escola. Um espaço abandonado pelo poder público intensifica o mal-estar do professor.

Na estadual que é o foco da sua pesquisa pelo eu entendi a situação é ainda mais precária.
Eu retornei ao trabalho presencial na prática no dia 1, 2 de agosto e eu retornei sem
energia elétrica na escola. A escola estadual fica numa área um pouco deserta aqui no
bairro. Ela fica dentro de um terreno que era uma antiga pedreira no M. E estava sem
caseiro e o governo estadual não paga vigilante para cuidar da escola. Resumindo a
escola sofreu uma meia dúzia de ataques durante a noite. A polícia acabou prendendo o
rapaz, coitado. Tinha saído da cadeia há pouco tempo, usuário de drogas, e ele entrava
na escola para arrancar tudo que é metal, tudo que era ferro da escola para revender em
ferro velho. Para ter uma graninha, nisso ele foi arrancando a fiação, arrancou os
disjuntores, arrancou as tomadas, arrancou o conduíte e bom se alguém um dia escutar
esta gravação no futuro vai achar estranho. Mas a verdade é que nós passamos o mês
inteiro de agosto sem energia elétrica na escola e dando aula. Nós dávamos 1h30 de aula
de manhã, ali entre 8h30 e 10h da manhã, aproveitando a luz do dia. Os alunos que iam
tinham essa 1h30 de aula, tomavam um lanche e voltavam para casa. Ainda hoje não
arrumaram 100% a escola. E devido este receio de assalto os televisores que chegaram,
que eram para serem instalados nas paredes da lousa para pode usar, pra projetar uma
imagem, outros são televisores bem grandes, mais de 40 polegadas, estão guardadas nos
depósitos da escola, numa sala cofre. E enfim, falta energia, você continua tendo
basicamente uma lousa, um giz. Eu não sou religioso, mas costumo brincar que graças
a Deus pelo menos o livro didático nós recebemos, porque eu também não posso
imprimir coisas porque não tenho condições estruturais para isso. Então quando eu me
refiro as condições de trabalho é um pouco isso. As jornadas são muito intensas para o
professor ter um salário próximo da classe média, ele tem que ter duas jornadas de
trabalho pelo menos. O que atrapalha o trabalho dele, porque ele vai ter que dar aula
207

correndo. Não tem tempo suficiente para corrigir coisas, para dar atenção adequada para
os alunos. E quando ele quer fazer algo diferente, no geral ele tem que se virar. Ou ele
compra projetor ou ele compra caixa de som, ou ele vai atrás de doações. É um pouco
nesta perspectiva. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

Como ter energia nessas condições? Energia libidinal, psíquica, mas também energia
elétrica na escola para ela poder realmente funcionar com o mínimo civilizatório exigido.
Esperamos, como o professor João, que as pessoas que escutem esta gravação ou leiam sua
transcrição achem no mínimo “estranho” uma escola funcionar sem luz por um mês. Se isso
não produz um mal-estar completamente destrutivo, regressivo, daquilo que minimamente
podemos pensar numa escola em 2023, é porque, certamente, a barbárie se instalou de tal modo
na sociedade, sua indiferença se estabeleceu de tal maneira, que situações assim se tornaram
completamente banalizadas. Não nos parece acaso o professor João convocar uma “ordem
divina” mescladas as resistências próprias ao humor, que mobilizado pelo desamparo de
situações bastante precárias, “costuma brincar que ‘graças a Deus’ pelo menos receberam o
livro didático”.
O professor Pedro e a professora Ana relatam a desconexão entre a responsabilidade do
trabalho e o salário, assim como a não perspectiva de futuro, de melhora, visto que os planos
de carreiras na rede estadual são burocráticos, baseados em prova meritocráticas e restritos, e
que em nada valorizam o professor.

Eu avalio minhas condições de salário e trabalho pensando no que eu tenho que fazer,
na minha responsabilidade, eu acho minhas condições de trabalho eu não diria
precárias, mas são bem complicadas e a remuneração é um fator bastante desanimador
(Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

A professora Ana acrescenta:

Eu acho que as condições de salário são péssimas no Estado. A gente não tem um
aumento significativo desde 2014 se eu não me engano. E nem tem, eu acho que a gente
pode ser que tenha uma coisa por causa do... pelo que entendi 2019 teve, 2020 teve por
causa do piso nacional, o piso nacional ultrapassou o salário da rede estadual.
Principalmente dos professores que tem mais aulas, tem 32 aulas, jornada completa
então o governador aumentou, mas ele aumentou como abono, mas eu não recebo
porque eu não tenho 32 aulas. Mas eu conversando com os colegas eles disseram que
aumentou só por causa disso. Então pode ser que aumente alguma coisa se o piso
nacional for reajustado. Mas o salário é péssimo e as condições de trabalho, o plano de
carreira do Estado é ridículo. Se faz uma pós-graduação e você ganha 70 reais de
aumento. Eu sou 2C no estado já e eu tenho dois quinquênios, eu tenho duas evoluções
por via não acadêmica e uma prova de mérito. E meu salário é basicamente dois salários-
mínimos. Para dar 20 aulas por semana, mais de 200 alunos. Então é uma situação, a
gente não tem perspectiva que o plano de carreira melhore, porque ninguém nunca fala
disso, e porque aquela prova de mérito que faz para ganhar 10% de aumento, tem ano
que tem, tem ano que não tem. Eu fiz em 2012 passei e eu consegui este aumento. Aí
eu podia fazer de novo em 2016, mas em 2016 não teve porque o governo não quis fazer
do nada. Não vamos fazer, aí depois teve em 2018, só que eu não quis fazer porque você
vai perdendo a vontade também. Para ganhar 10% de aumento fazer uma prova, que é
uma prova difícil. É tipo um concurso público, uma prova da Vunesp, com 50 questões,
208

mais duas questões dissertativas, tem que tirar no mínimo 6, agora tenho que tirar no
mínimo 7 na prova. Cada prova que você passa você tem que tirar nota mais alta. Como
você não tem estímulo, e nem tem tempo para estudar, não preciso. Pode passar a prova,
não quero. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Uma política claramente neoliberal para debater qualidade de educação e valorização do


professor. Aos professores, estabelecem uma prova que produz divisão na categoria, “narcisismo
das pequenas diferenças”. É uma política de humilhação, visto que o percurso de formação
acadêmica é pouco valorizado em seu plano de carreira, como nos relata a professora Ana.134
A professora Vera entra nos comparativos dos números, dos valores que ganha com os
gastos que teria que ter para uma vida minimante digna. É interessante pensar que isto tem sido
banalizado dos estudos do mal-estar docente, como um dado qualquer, contingente. Sendo que ele
é parte fundamental de sustentação do mundo psíquico do professor na escola e na sala de aula.

Salário é péssimo porque se você paga aluguel, hoje o aluguel num lugar bom 1.500
reais. Isso quarto, cozinha, não é bom, eu quero morar num lugar adequado onde tem
infraestrutura tal, 1.500 reais. E o que você vai fazer se você ganha 2.800, o que você
vai fazer com o resto? Comer! Você não vai pagar um benefício para você. Não tem
condições. Na minha idade uma assistência médica é mais de mil reais. Passou de 50
anos é mais de mil reais. Qualquer coisinha de assistência médica, qualquer um que
eu já fui atrás, uma Unimed da vida me cobrou 1.200. Uma Sulamérica me cobrou
dois mil. Meu eu só tenho 52, é mas é assim. Então você não faz nada com seu salário.
Professor ainda tem que tirar dinheiro do bolso para ajudar aluno. Que já aconteceu
comigo, então não tem valor nem financeiro nem moral. Não, não existe. (Professora
Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

A professora Ana acrescenta um dado importante a se pensar, sobre o porquê de muitos


professores ficarem na rede estadual: o acesso do IAMSPE aos familiares. Num contexto de
planos de saúde e assistência pública de saúde aos idosos muito caros ou precários, a assistência
médica, concedida ao professor, permite extensão aos familiares como usuários dependentes.

Na minha escola por exemplo a gente tem 40 alunos por sala de aula. Então é muito
cansativo, além de ser a tarde, certo de que posso mudar de período, mas pela minha
classificação sempre ficaria a tarde. A tarde é mais cansativa ainda, então eu não pretendo
ficar muitos anos nisso. Na verdade, eu queria ter exonerado há muito tempo, mas o
Iamspe me segura, principalmente o Iamspe pro meu pai que é o convenio médico.
Porque vontade de dar aula no Estado não tenho muita não. É uma questão financeira, é
uma questão pessoal. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

134
A nota técnica (2023) produzida pela GEPUD/REPU sobre os planos de carreira do magistério demonstram
que nenhum professor consegue chegar ao último nível da carreira: “Observe-se que o tempo de serviço deixou de
ser considerado na carreira, embora tenha sido mantido na forma de gratificação. Em 2009, esse plano passou por
uma mudança significativa ao prever como forma de progressão na carreira a avaliação de desempenho realizada
por meio de uma prova de verificação de mérito, o que incluiu 5 novas faixas além dos 5 níveis já existentes. Por
fim, em 2011, outra modificação ampliou a estrutura da carreira, que passou a ter 8 níveis e 8 faixas. Considerando
que o tempo mínimo exigido para avançar de um nível/faixa para outro variava de 4 a 6 anos, a carreira tem uma
amplitude muito grande, de forma que é impossível a(o) docente chegar ao final da carreira antes de sua
aposentadoria, o que é comprovado pelo número de professora(e)s por faixa/nível da carreira em maio de 2022
(último mês antes do início dos novos planos de carreira aprovados em 2022),” [Nota Técnica]. São Paulo:
GEPUD/REPU, 12 jun. 2023. Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e
www.repu.com.br/notas-tecnicas. Acesso: 12 de jun. de 2023.
209

Todas essas condições de trabalho e salário vão produzindo um efeito psíquico no


professor. O efeito mais importante é no próprio trabalho, na percepção das dificuldades
inerentes ao trabalho. Um sistema educacional de intensa desvalorização e desmentido do
sofrimento docente e de sua imagem narcísica como um intelectual, resulta na produção de
estratégias de defesa que afetam as possibilidades de relação com um mal-estar mais criativo.
Este, certamente, se perde no conjunto intenso de adversidades e humilhações pelas quais o
professor da rede estadual tem que dar conta.
A professora Ana relata uma situação sobre o que poderia significar tais possibilidades
de intervenção pedagógica, reflexiva. Apesar de ser uma experiência na rede municipal, está no
contexto do acúmulo da jornada de trabalho que ela realiza entre a rede estadual e a municipal,
vinculados em seu mal-estar pelo excesso de jornada de trabalho.

Ah teve uma vez uma coisa simples assim, foi na prefeitura, eu estava num sexto ano.
Foi 2019. É uma coisa simples assim, mas eu estava no sexto ano e tinha um menino
que demorava para entrar na sala, e eu entrei na sala ele não estava, eu comecei dar
aula, fechei a porta tranquei deixei ele para fora. Ai depois veio a diretora e falou
assim: “Cadê o fulano?” Eu falei não sei. Eu entrei na sala, ele viu que eu estava aqui
e ele não quis entrar e eu deixei ele para fora. Ela falou assim: isso mesmo professora,
é para deixar para fora mesmo. Aluno folgado a gente resolve lá embaixo. Eu achei
isso maravilhoso porque trabalhei em muitas escolas que você tem que resolver o
problema. (Professora Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

A professora se vê tão sozinha diante de 35, 40 estudantes que o amparo que pode ter é
a exclusão do estudante, do “aluno folgado”, por ela ou por outro. Essas situações de
indisciplina, de conflitos entre estudantes e professores são comuns nas escolas. São parte do
mal-estar docente, das relações transferenciais. Mas, diante de todo o contexto, resta à
professora produzir estratégias de defesa a todo tipo de mal-estar, porque ela não está isolada
de sua situação social como trabalhadora da educação.
Todos os fatos narrados pelos professores tratam do núcleo traumático do ambiente
escolar, que produz efeitos psíquicos e não podem ser tratados de modo contingencial. Estão
relacionados a dinâmicas econômicas e políticas do Estado de São Paulo e do Brasil, por
extensão, em sua relação com a educação pública.
O professor Fernando aponta que as políticas da atual gestão vão “moer” ainda mais os
professores. As entrevistas aconteceram no momento (outubro a dezembro de 2021) que o
governo Dória (PSDB) propôs a “Nova Carreira do Magistério”, na qual os professores
poderiam ganhar um aumento em forma de subsídio desde que perdessem direitos históricos
como sexta-parte, quinquênios etc. A nova carreira foi aprovada em março de 2022 na
Assembleia Legislativa de São Paulo.
210

(...) O que o Dória agora propôs é abdicar de todos os seus direitos como funcionário
público para começar ganhando 5 mil reais. Eu tenho certeza que muita gente vai fazer
isso. Que para muita gente direito não é nada. E quer dinheiro e precisa de dinheiro. Tudo
bem eu entendo, mas tem professor que está para aposentar lá que nunca vai ver a cor deste
dinheiro. Tem um professor que ele ganha 3.200 reais porque ele fez a provinha de mérito,
porque ele fez prova de não sei o que e ele ganha 3.200 reais. Falta 5 anos para ele se
aposentar. Isso é plano de carreira? Se é louco, isso é uma comédia, é uma tiração. Os
caras batem pesado no Estado. Aquilo lá é uma máquina de moer gente. Máquina de moer
gente, mói as crianças, mói os professores, deixa a gente só os farrapos. E de vez em
quando jogam uns negocinhos que quem pega se sente muito importante. Um carguinho
de direção, este o cara se sente muito importante porque está todo mundo tão moído, todo
mundo tão destruído. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A política do governo estadual é “moer os professores”, ora os dividindo em letras, ora os


dividindo em distinções de aumento de “prova do mérito”, agora de quem escolhe ou não entrar na
nova carreira135, quem tem ou não direitos, das diferenças de cargos, das prioridades na atribuição
de aula. São políticas de divisão e de quebra da perspectiva coletiva, de futuro da profissão, da
capacidade de simbolização e elaboração, que é difícil avaliar totalmente o tamanho do impacto no
psiquismo e no corpo dos professores de tantas políticas que acabam por desvalorizar ou, como diz
o professor Fernando, “moer, destruir” a categoria e o próprio espaço escolar.
Um agravante é que não parece haver perspectiva de evolução na carreira, cada vez mais
diluída nas bonificações e provas de mérito. A professora Vera diz que o professor “não evolui
na carreira, mas emburrece”. A professora Luana, por não ver perspectiva de evolução, pretende
mudar-se para a rede municipal que possui um plano de carreira mais estruturado.

Não tem evolução, é horrível. Por isto que eu te comentei, pensei em tentar a
prefeitura. Eu não sei falar da prefeitura porque eu ainda não me aprofundei, mas meu
colega que trabalha falou que lá tem. Inclusive ele exonerou os dois cargos que ele
tinha do Estado, para levar o tempo para lá, porque ele falou que lá tem carreira. A
gente no Estado não tem carreira. Por exemplo, o quinquênio, não sei te falar
exatamente como que é, mas acho que você conhece. Eu não faço parte do quinquênio,
é o nono ano que eu vou lecionar, daqui a pouco eu teria dois quinquênios, mas eu
não faço jus porque eu sou categoria O. A gente não tem aumento de salário. A gente
não tem plano de carreira... (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

O professor Fernando, que teve seu contrato encerrado durante dois anos porque teria
ultrapassado cinco faltas durante um ano letivo, relata sobre a precarização do contrato categoria O:

135
Como indica a nota técnica (2023) da GEPUD/REPU: “Ao fazer a opção pela nova carreira a(o)s profissionais
do magistério deixarão de receber adicional por tempo de serviço. Se analisarmos o número de professora(e)s na
rede com quinquênios e com sexta-parte e se considerarmos que o valor obtido por esses adicionais pode ser parte
importante da remuneração final, como mostram as simulações anteriormente citadas, podemos inferir o tamanho
da economia que a nova carreira poderá representar para o Estado de São Paulo a médio prazo e, também, o
tamanho das perdas para a(o)s professora(e)s. Vale destacar: a nova carreira vem para economizar recursos e não
para valorizar a(o)s trabalhadores dedicados à educação escolar. [Nota Técnica]. São Paulo: GEPUD/REPU, 12
jun. 2023. Disponível em: http://www.gepud.com.br/declaracoes.html e www.repu.com.br/notas-tecnicas.
Acesso: 12 de jun. de 2023.
211

Um contrato abusivo, um contrato que parece uma relação de escravidão. De senhor


e escravo porque ele não contempla o trabalhador em nada. Tem direito a 5 folgas
ano. Se você falta a sexta vez você perde o contrato, fica dois anos sem trabalho.
Diferente de uma empresa que quando você falta é descontado do salário. Acho que
ficaria difícil descontar de uma coisa que não existe. A gente não recebe salário, a
gente recebe auxílio comparado ao que é um salário de verdade. Então não tem para
onde correr. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A professora Vera corrobora com o professor Fernando e vai além, relatando que, na
atribuição de aula, devido ao desespero do desemprego, professores chegaram a falar que
poderiam tirar a própria vida – estavam pensando em suicídio.136

(...) o categoria O infelizmente vai ser o professor principal de qualquer escola


pública. Porque Dória e Rossieli que eles estão fazendo? Eles estão querendo acabar
com os efetivos. Então eles estão aposentando, eles estão mexendo com o emocional
do professor para que ele exonere nas condições dele mesmo, então está acontecendo
tudo ao contrário daquilo que nós pensamos. Oh eu quero efetivar e se aposentar numa
escola pública. Não é isso que vai acontecer, porque eu converso tanto com o F,
quanto com os A, com os O e esse bancos de talentos agora. O que eu vi na última
atribuição, que eu tive que ir lá. Porque tinha muitos amigos querendo tirar a vida. Se
pode falar assim, não imagina. Sim! Se você quiser eu até passo o nome deles, telefone
para você conversar com este povo. Eles ficaram numa situação tão ridícula que
disseram não adianta mais viver. Eu disse calma aí, peraí eu saí correndo e tive que
verificar realmente o que estava acontecendo com meus colegas de trabalho.
(Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

É isso que faz com que os professores busquem melhores condições de vida, às vezes
de salário somente para poder sobreviver. A falta de professores na rede estadual já é uma
questão estrutural. A saída de professores da rede é constante, inclusive para profissões que não
exigem ensino superior, mas que remuneram melhor. É o que a professora Vera pensa em fazer,
o que também gera sofrimento e um processo de luto pessoal a respeito de algo a que se dedicou
anos para se formar.

(...) eu não falei muita coisa positiva pra você porque eu estou cansada. Eu tenho
medo, medo bobo de que eu tenho que tratar, isso é tratamento. Medo de voltar para
o regular e não ser como eu queira que seja. Eu tenho medo de não desenvolver, mas
eu vou tentar. E se eu perceber logo no início que a coisa não vai virar, eu sou bem
capaz de abandonar sim e fazer outra coisa. Eu já estou pensando. Eu já estou
pensando numa segunda profissão. E já me deram um monte de ideias, mas aí vai sair
totalmente do acadêmico e a gente estudou tanto, tanto para não ser acadêmico e isso
é um sofrimento também para mim. E para um monte de professor. Eu vou te dar um
exemplo. Uma professora amiga minha cansou como eu, hoje ela trabalha vendendo

136
Em um modo de capitalismo em que o desemprego é cada vez mais estrutural, e produz um referencial às
condições de trabalho precarizadas e salários daqueles que estão empregados, analisar o destino e o sofrimento
daqueles que estão sem emprego somente de uma perspectiva isolada e individual é certamente produzir uma teoria
que corrobora com as ideologias dominantes liberais e produz desmentido social da dor dos trabalhadores. “Assim,
o desemprego é fundamental para o sistema capitalista, é estrutural, é parte do sistema, é necessário para a própria
existência e o bom funcionamento da máquina capitalista, evidentemente com índices flutuantes dependendo do
cenário produtivo a cada momento. E isso faz parte da elaboração necessária que cada trabalhador e sua família
precisam fazer diante do desemprego. De outra forma, a culpabilização do trabalhador e da trabalhadora pela sua
condição de desempregado torna-se mais uma das formas pelas quais ele é violentado e, quando a família culpabiliza,
ela no mais das vezes reproduz em seu interior a violência social.” (MANDELBAUM; RIBEIRO, 2017, p. 43).
212

produtos no mercado livre. Tá ganhando dinheiro? Mais que eu. Ela está feliz. Só que
é trabalhoso, ela se levanta de manhã fica em frente do computador. Como a empresa
dela cresceu, cresceu que ela também não tem muita paz mais. Ela só sai do
computador 20h da noite. Porque ela tem que atingir aquele objetivo porque é uma
meta do mercado livre porque senão ela sai fora, ela é cortada. Eu fui lá pessoalmente
ver, mas é uma opção. Trabalha ela, o computador e os produtos que ela vende. Mas
ela falou que prefere assim por mais que ela seja perturbada por aquele gestor que é o
mercado livre que também tem gestores. Mas pelo menos ali é cara a cara, não tem
alunos, não tem gestão escolar. É outros quinhentos. Então eu como professora eu tô
falando que estou observando e analisando outro contexto para eu mudar minha vida
de educadora. Porque agora professor virou educador. Isso é um erro também tá.
Professor ensina, o educador educa. E normalmente quem é o educador são os pais.
Não são os professores. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

O que a professora nos relata é um ideal econômico e cultural do mundo do trabalho,


marcado pelas metas e intensidade das jornadas de trabalho que vão se ampliando para todas as
áreas, o que, igualmente, inibe possibilidades de mudanças dos professores. O mundo do
trabalho passa por uma restruturação produtiva, que amplia a intensidade da exploração e do
adoecimento, coisa que variados estudos da sociologia do trabalho tem nos alertado.
(ANTUNES, 2005; 2018; ANTUNES; PINTO, 2017; STANDING, 2019).
No que pese aos limites da dissertação, e por não ser o objetivo aprofundar os autores
da sociologia do trabalho, chama atenção o título do livro de Ricardo Antunes, de 2018, O
privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital, que produz, naquele que
lê, o “estranho” (Das unheimliche), de que não estamos de forma alguma fora da dinâmica
familiar de desamparo marcada por um desemprego cada vez mais estrutural.
Poderíamos continuar trazendo trechos das falas dos professores sobre o mal-estar no
trabalho e nas relações de trabalho. Acreditamos, no entanto, que foram suficientes os relatos
apresentados para traçar um panorama dos efeitos que a precarização do trabalho produz na rede de
ensino estadual de São Paulo. Não estamos diante de um mal-estar qualquer, contingente ou apenas
individual. Parece que mesmo Freud pondera, quando se trata de um ponto de vista mais individual,
analisar “as satisfações secundárias do sintoma” de modo absoluto. “Pode-se também exagerar o
significado dessa adaptação secundária ao sintoma, dizendo que o Eu o adquire apenas para gozar
de suas vantagens. Isso equivaleria a sustentar que um veterano de guerra teve a perna amputada
para depois viver da aposentadoria, sem trabalhar.” (FREUD, 2014c, p. 30).
Este curioso exemplo de Freud do veterano de guerra em Inibição, sintoma e angústia, de
1926, obra na qual o eixo é analisar justamente os efeitos da angústia de castração, remonta-nos
ao Congresso de Budapeste, em 1918, no qual alguns psicanalistas se reuniram para debater as
neuroses de guerra. Sándor Ferenczi, Karl Abraham, Ernst Simmel e Ernest Jones produziram
comunicações para esse congresso. Além do alto nível dos debates que marca a particularidade de
213

cada psicanalista em pensar as conexões sociais e psíquicas, os textos apresentam um paradigma


para considerar a intensidade do social nos fenômenos de adoecimento psíquico.
A guerra, o neocolonialismo, o avanço da produtividade tecnológica revelam o que Lênin
(2005) denominava O imperialismo: fase superior do capitalismo137, no qual novas bases sociais e
econômicas ampliam demasiadamente a intensidade dos sofrimentos, portanto, exigem uma leitura
e uma escuta do social compatíveis com tal complexidade visto os novos paradigmas de relações
humanas e de experiências de vida e produção de adoecimentos. (FREUD, 2010l; 2015b;
BENJAMIN, 1994; FANNON, 2005). O que os textos do Congresso de Budapeste nos trazem,
apontam também às proposições das chamadas neuroses atuais. (RITTER; FERRAZ, 2022).
Se no Congresso de Budapeste vemos que o “fantasma”138 daquilo que é ou não psicanálise
ainda persiste, comparada às divergências de Freud e Adler (HANDELBAUER, 2005), no início
do século XX, parecem bem menores139. A psicanálise se aventurou nos belíssimos textos desse

137
Lenin aponta que o imperialismo representa o estágio avançado do capitalismo pelos seguintes fatores: “1.
Concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de desenvolvimento que criou os monopólios,
os quais desempenham um papel decisivo na vida econômica; 2. A fusão do capital bancário com o capital
industrial e a criação, baseada nesse capital financeiro da oligarquia financeira; 3. A exportação de capitais,
diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância particularmente grande; 4. A formação de
associações internacionais monopolistas de capitalistas, que partilham o mundo entre si, e 5. O termo da partilha
territorial do mundo entre as potências capitalistas mais importantes. O imperialismo é o capitalismo na fase de
desenvolvimento em que ganhou corpo a dominação dos monopólios e do capital financeiro, adquiriu marcada
importância a exportação de capitais, começou a partilha do mundo pelos trusts internacionais e terminou a partilha
de toda a terra entre os países capitalistas mais importantes.” (LENIN, 2005, p. 90).
138
Freud (2014h), em Introdução a psicanálise das neuroses de guerra, de 1919, comenta sobre o Congresso de
Budapeste (1918), e que há um receio de que os “adversários da psicanálise” aos quais teriam “aversão à
sexualidade” como categoria de análise dos sintomas, questionassem a partir das neuroses de guerra a própria
psicanálise – no que pese Freud discutir neste texto as formas de divisões do Eu que o indivíduo produz para dar
conta do fator externo atual relacionado a guerra. “Nas neuroses traumáticas e de guerra, o Eu do indivíduo se
defende de um perigo que o ameaça desde fora, ou que é corporificado numa postura do próprio Eu; nas neuroses
de transferência, o Eu toma sua própria libido como um inimigo, cujas reivindicações lhe parecem ameaçadoras.
Em ambos os casos o Eu teme ser ferido: neste último pela libido; naquele, pelos poderes externos.” (FREUD,
2014h, p. 387-8). Pensamos o quanto este “fantasma” do que é ou não psicanálise, constituiu uma forma de ser
dos psicanalistas e, em certo sentido, empobreceu a produção do saber psicanalítico. Ao longo da história do
movimento psicanalítico, percebemos como o ódio a quem está fora, a própria diferença, ligaram os grupos de
psicanalistas, naquilo que Freud denominou como “o narcisismo das pequenas diferenças”.
139
Interessante observar que Handlbauer aponta que, no que pese alguns equívocos de Adler nas divergências com
Freud, Adler antecipou, por outro lado, muitas questões que Freud iria tratar posteriormente. Adler conseguiu este
feito porque atendia pacientes distintos, de origem pobre, ao contrário de Freud neste momento de sua Clínica. “A
investigação de Wassermann acerca das histórias médicas e da classe social dos pacientes de Freud e Adler
(discutido na página 167) descobriu que 74% dos pacientes de Freud pertenciam à classe alta e 23% à classe média.
Por outro lado, para Adler mostrou que 25% eram da classe alta, 39% da classe média e 35% da classe pobre. Este
quadro corresponde com a minha própria pesquisa (vejam página 168). Durante esses anos, Adler ainda trabalhava
como clínico geral; ele tratava de uma clientela de classe média com predominantes sintomas físicos. Seus
pacientes também apresentavam desordens neuróticas, mas ele ainda não tinha competência para estes males. Isso
só ocorreu depois do rompimento com Freud. Conforme sugeri no capítulo 6, o perfil de seus pacientes levou
Adler a ficar mais próximo dos efeitos da miséria social do que Freud. Se ocasionalmente Freud tratasse de alguém
como a filha de um hoteleiro de uma pequena hospedaria de montanha nas campinas alpinas (Katharina), ele
também tinha entre os seus pacientes duas das mulheres mais ricas da Europa (Emmy von N. e Cacilia M.). Freud
era o responsável por neuroses e tratava de uma selecionada clientela da classe alta, em condições nas quais suas
214

Congresso e buscou as raízes dialéticas do sofrimento humano, aos quais a virada epistemológica
de Freud e seus textos denominados “sociais” deram algum prosseguimento.
Nosso objetivo aqui não é aprofundar sobre os textos do Congresso de Budapeste, mas
apenas fazer alusão a algumas questões colocadas por esses psicanalistas, que são muito
significativas para refletir sobre o estágio avançado do capitalismo atual ou como ele convoca
e quais os efeitos, inclusive nos “cenários de paz”, das dimensões mais destrutivas humanas.
Ferenczi, no Congresso de Budapeste, discute sobre o peso da relação da sexualidade
infantil e dos traumas externos na dinâmica psíquica dos indivíduos.

A psicanálise assume uma posição intermediária nesta questão, que, com frequência,
Freud precisou expressamente. Ele fala de uma “série etiológica” na qual
predisposição e causa traumática figuram como valores recíprocos. Uma baixa
predisposição e um forte abalo podem ter os mesmos efeitos que um trauma menor
com uma predisposição maior. (FERENCZI, 2023, p. 55)

Quando pensamos no caso do mal-estar dos professores, avaliamos que há variadas


predisposições individuais para a experiência de mal-estar escolar. Entretanto, quando o
sofrimento se torna comum, repetitivo como expressão de um fenômeno social, há algo para
além da predisposição individual, que se revela justamente na intensidade das contínuas e
variadas experiências traumáticas que os professores têm que dar conta no ambiente escolar.
Na comunicação de Karl Abraham há uma busca às causas do porquê determinadas pessoas
reagirem às mesmas experiências traumáticas de formas diferentes. A tese de Abraham é de que os
neuróticos de guerra já eram pessoas frágeis (“lábeis”), por isso se inclinariam ao sintoma.

O histórico dessas pessoas e sobretudo, obviamente, uma análise mais profunda nos
permitiriam entender por que uma pessoa permanece substancialmente saudável ainda
que sob os efeitos físicos e psíquicos mais severos da guerra, enquanto outra reage com
uma grave neurose a estímulos relativamente menores. Com frequência, os neuróticos
de guerra já eram, antes do trauma, pessoas lábeis – para usar um termo genérico –
especialmente no que concerne à sua sexualidade. (ABRAHAM, 2023, p. 69).

Refletimos, a partir do texto de Abraham, sobre se não há, mesmo nos indivíduos que
se apresentam “saudáveis” na guerra ou fora dela, aquilo que muitos autores apontaram

teorias da neurose podiam ser desenvolvidas sem consideração dos problemas sociais. (...) O que Freud não podia
enxergar era que Adler confrontou-se com pacientes com graves desordens em estágio inicial de desenvolvimento
e síndromes psicossomáticas para as quais sua situação profissional não era privilegiada e onde instintivamente
Adler agiu corretamente: nenhuma análise extensa que favorecia a regressão no divã. Em vez de trazer à tona
material inconsciente e interpretar sonhos e lapsos, ele se concentrou sobre medidas para fortalecer o ego, em
efetiva psicoterapia de suporte. Com seus conceitos de ‘sentimento de inferioridade’ e do ‘esforço por admiração’,
Adler descreveu muitos anos antes de Melanie Klein, Heinz Kohut ou Otto Kernberg, os conflitos narcisistas, ou
seja, as desordens pré-edipianas, e, desta forma, estudou um campo que Freud havia negligenciado. É notável a
forma como Adler intuiu mudanças de técnica e de cenário, necessários para o tratamento de pacientes com
desordens em estágios iniciais e que anteciparam algo do que é encontrado nas teorias psicanalíticas modernas a
respeito de conflitos narcisistas e desordens limítrofes (Borderline).” (HANDLBAUER, 2005, p. 193-4).
215

posteriormente e que não estava de forma clara caracterizado naquele momento, que são as
cisões e clivagens do Eu. O próprio Freud (2010h) observa sobre isso, em Introdução a
psicanálise das neuroses de guerra, texto de 1919. Isso é claramente um legado conceitual
deste período. Observamos, na construção da dissertação até aqui, que, mesmo indivíduos que
não apresentam formas de adoecimento drásticas ou paralisadoras, estão sob alguma forma de
adoecimento e respondem à realidade social cindidos, adaptados e funcionais.
Ernst Simmel, em sua comunicação no Congresso, assevera sobre o elemento da
autopreservação contido no adoecimento como um mecanismo psíquico de defesa de uma
realidade social intensa, traumática:

A configuração sintomática dos afetos e as representações da guerra têm, por outro


lado, uma certa relação interna com a sexualidade, na medida em que estão vinculadas
aos instintos mais primitivos do homem, os quais se ligam à pulsão de
autoconservação. Se o afeto sexual resulta em última instância do impulso voltado
para a preservação da espécie, então os afetos oriundos da guerra, a angústia, o terror,
a raiva etc., estão ligados ao ímpeto elementar de preservação do indivíduo, e não,
como acreditam aqueles que avaliam superficialmente, meramente ao propósito de
salvaguardar a existência corporal. Trata-se de preservar, acima de tudo, a existência
psíquica. (SIMMEL, 2023, p. 82-3).

Para Simmel não há um processo mais drástico de adoecimento (“psicoses”) porque, de


alguma forma, a neurose de guerra é acionada como forma de autopreservação. “O soldado
assim sobrecarregado com material psíquico não descarregado, é forçado a atender elevadas
demandas fora do normal. Um acidente ou mesmo um evento catastrófico faz com que a
personalidade represada colapse.” (SIMMEL, 2023, p. 83).
Esta é uma situação, como já apontamos no decorrer da dissertação, que também
observamos no caso dos professores, que produzem estratégias de defesa para autopreservação
psíquica de modo que se evitem expressões mais drásticas de adoecimento.
Um aspecto interessante da comunicação de Simmel no Congresso de Budapeste se dá
quando retoma a discussão sobre os direitos à pensão de guerra por acidentes. Este assunto é
muito significativo naquele momento histórico, tanto pelo que movimentava em termos de
ideais culturais e morais, quanto o que representava para os gastos que o Estado deveria ter com
aqueles que arriscaram a vida na guerra.

Acrescentaria ainda uma palavra sobre a doença mental da neurose de pensão genuína.
Também aqui a interpretação dos sonhos especialmente na hipnose, nos permite
conhecer se temos diante de nós uma psiconeurose de guerra real ou “representações de
cobiça” conscientes, muitas vezes falsamente acusadas. Descobri que a verdadeira
neurose de indenização ou pensão representa uma espécie de neurose de inferioridade.
O doente valoriza-se mais do que se sente valorizado por aqueles ao seu redor.
Geralmente, ele acredita ter conquistado algum feito militar especial. Ele acredita que
receberia, em algum momento, uma distinção ou, pelo menos, uma promoção. Mas
permanece privado delas. Uma doença ou ferida acaba por distingui-lo da massa geral
216

de desconhecidos, e a indenização se torna o substituto da Cruz de Ferro ou do primeiro


botão de condecoração não recebidos; um substituto por meio do qual o doente se
esforça para provar seu valor especial para o Estado. (SIMMEL, 2023, p. 95).

O ressentimento do soldado em não ser valorizado expresso em uma “neurose de


inferioridade” talvez seja exatamente proporcional àquilo que a cultura produz de ideal em uma
guerra. Aqueles que dela participam são os heróis que salvarão a nação de algum mal. A
unificação, neste ideal de bem e mal, até hoje é usada nas guerras e não somente nelas, como
nos lembra Freud, também nas formas de narcisismo das pequenas diferenças.
O trecho citado de Simmel, faz-nos pensar sobre um dado interessante que é presente
na construção do ideal cultural do professor. Há uma série de filmes na história do cinema que
constroem seu roteiro baseado em um personagem representado pelo professor em uma escola
extremamente precarizada e violenta, no qual o professor transforma aquele cenário e “salva”,
como um “herói”, todos os estudantes de seu destino inevitável140. Isso igualmente se dá pelas
propagandas do Estado que visam enaltecer a imagem do professor e representam a escola, e o
professor em particular, como o centro isolado das mudanças sociais.
Parece-nos evidente que a construção operada pela Indústria Cultural, ao pintar o
professor como “herói”, corrobora justamente sua fragilidade e precariedade nos limites objetivos
do seu trabalho. Todavia, a fala dos professores de não reconhecimento por parte da sociedade
ou do Estado nos revela uma ambiguidade que pode se expressar em um lugar ressentido da
virtude, uma superioridade moral pessoal como modo e estratégias de defesa e autopreservação.
Aqueles que continuam a trabalhar nesse cenário precarizado podem buscar, como estratégia
psíquica de autopreservação, ligar seu ofício ao discurso sociocultural da “missão”, na qual as
condições materiais precárias de existência o reafirmam como um “herói”, gratificação pela qual

140
O artigo de Fabris (2018), A pedagogia do herói sob as performaces das políticas contemporâneas, discute como
o Ocidente constrói a imagem do herói na cultura, mas também como o neoliberalismo se apropriou desta imagem e
transformou o “herói” no “empresário de si”. “A pedagogia do herói não circula apenas em filmes, como expressa a
epígrafe escolhida para iniciar este texto. Faz-se cada vez mais intensa, no momento atual na sociedade brasileira,
essa forma de exercer a docência e de se constituir professor ou professora a partir de diferentes, variadas e altas
performances. Em uma pesquisa publicada anteriormente por Fabris (1999), em que foram analisados filmes
hollywoodianos, identificou-se que a pedagogia do herói era a mais recorrente nessas películas. Hoje vejo que essa
pedagogia extrapola os filmes e que foi identificada e descrita também em outras pesquisas, como a de Oechsler e
Silva (2012), que analisaram a Revista Nova Escola, a de Vicentini e Alves (2012), na revista Veja, ou o estudo de
Fischman (2009), que considera os limites e as possibilidades das narrativas redentoras em educação. Esses estudos
são unânimes em mostrar o professor descrito como um herói. É notório que práticas docentes com essas marcas de
heroísmo e salvacionismo estão circulando na constituição do ser professor ou professora no Brasil, bem como em
outros países/regiões, e estão presentes nos diferentes artefatos da cultura contemporânea.” (FABRIS, 2018, p. 205).
217

sacrifica seu tempo e vida por uma causa.141 É um efeito colateral e sintomático da precarização
do trabalho e do declínio simbólico da profissão como experiência, como práxis.
Por fim, a comunicação de Ernest Jones, no Congresso de Budapeste, visa construir uma
relação mais dialética das causas internas e externas nos processos de adoecimento:

Freud considera que provavelmente sempre há três fatores na causa de qualquer


neurose: uma predisposição hereditária específica; em segundo lugar, um conflito
infantil não resolvido, o que significa que a pessoa não se desenvolveu
satisfatoriamente após um determinado estágio de evolução individual (em outras
palavras, que foi submetida ao que é chamado “fixação infantil” em um determinado
ponto do desenvolvimento); e, em terceiro lugar, a dificuldade atual. Existe uma
relação recíproca entre estes três fatores, de modo que, se algum deles for
especialmente pronunciado, os outros podem ser correspondentemente menos
importantes. Por exemplo, se o fator hereditário for muito pronunciado, então uma
pessoa pode se tornar neurótica a partir das experiências bastante comuns da infância
e da vida adulta, pois é incapaz de lidar adequadamente com elas. No caso das
neuroses de guerra, é evidente que o fator atual é da maior importância, sendo, de fato,
o único que até agora tem atraído atenção. (JONES, 2023, p. 114).

As considerações de Jones são importantes no sentido de dar o destaque necessário para


“o fator atual” que, segundo o psicanalista, não é ignorado nem quando ele é o menos
importante na constituição do adoecimento. Assumir essas perspectivas é dar movimento para
psicanálise, colocá-la na história sob determinados contextos e dinâmicas sociais.
O próprio Freud em Inibição, sintoma e angústia, de 1926, avança sobre as dinâmicas
psíquicas, tornando-as mais complexas entre suas instâncias. Questiona aqueles psicanalistas
que traçam somente o determinismo do Id em relação ao Eu e não percebem as variáveis dos
fenômenos de repressão:

O Eu domina tanto o acesso à consciência como a passagem à ação no mundo exterior.


Na repressão ele exerce seu poder nas duas direções: o representante do instinto vem
a experimentar um lado de sua manifestação de poder, e o impulso instintual, o outro
lado. É o caso de nos perguntarmos, então, como o reconhecimento do poder do Eu
se harmoniza com a descrição da posição deste Eu que esboçamos em O Eu e o Id
(1923). Nele traçamos um quadro da dependência do Eu para com o Id e o Super-eu,
revelamos sua impotência e suscetibilidade à angústia perante os dois, sua arrogância

141
Enquanto escrevo esta dissertação tivemos a tragédia na Escola Estadual Thomazia Montoro, no dia 27 de
março de 2023, na qual um estudante da escola, armado com uma faca, invadiu a sala da professora Elizabeth
Tenreiro, 71 anos, e a esfaqueou, ocasionando sua morte. A professora, que já era aposentada em outro trabalho,
optou por fazer uma prova na rede estadual e lecionar. As câmeras da sala de aula registraram todo o ocorrido que
teve repercussão em mídias de muitos países. Uma senhora de 71 anos já aposentada continua trabalhando em um
ofício que exige demasiadamente psíquica e corporalmente, em uma escola com câmeras na sala de aula. Os
veículos de comunicação divulgaram que a professora continuava trabalhando porque tinha uma “missão”, lutava
por uma causa da educação. Segundo sua filha: “Ela era uma pessoa dedicada a lecionar, como propósito de vida.
Ela achava que ela tinha essa missão, em um país com tanta falta de educação, se ela pudesse mudar a trajetória
de um aluno, ela já ganhava com isso. Ela era muito querida por onde ela passou.” G1. “Professora que morreu
em ataque tinha 71 anos e lecionava ‘como propósito de vida’, diz filha”, 27 mar. 2023. Disponível em:
https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/03/27/professora-morre-vitima-de-ataque-em-escola-na-vila-
sonia.ghtml. Acesso em: 27 mar. 2023. Para além das inclinações pessoais e políticas da professora, a forma como
a mídia constrói sua imagem nos revela o grau de abstração de sua relação com o trabalho docente e a escola.
Resta a imagem da mártir que lutava por uma causa, uma missão.
218

penosamente mantida. Esse juízo encontrou forte eco na literatura psicanalítica.


Inúmeras vozes insistiram na fraqueza do Eu em relação ao Id, do elemento racional
em relação ao demoníaco em nós, e puseram-se a transformar essa afirmação num dos
pilares de uma “visão de mundo” psicanalítica. Mas a compreensão do modo de agir
da repressão não deveria impedir que justamente um analista adotasse partido tão
extremo? (FREUD, 2014c, p. 25-6).

Ficamos com Freud nesta pergunta, visto que é um tema presente nas discussões sobre
a atualidade do mal-estar. É o que equivale a dizer que o Id determina todas as variáveis
subjetivas do indivíduo, em que o contexto não só do Eu, mas das dinâmicas sociais e de
repressão seriam apenas secundárias. E a isso se faz uma “visão de mundo”!
Os estudos sobre o racismo têm nos revelado quantas formas de retraumatizações foram
feitas por terapias ou mesmo atitudes sociais que produziam desmentidos da dor dos indivíduos,
que tratavam suas questões do trauma real ou da realidade social como “fantasias
persecutórias”, “delírios” no “modo benefício secundário do sintoma”.142
Continuaremos a seguir, pontuando sobre as dinâmicas sociais e repressivas que
intensificam o mal-estar de caráter destrutivo nos professores. A temática sobre as
possibilidades de autonomia do trabalho docente e o modo administrado de funcionamento
escolar comporão nosso próximo tópico.

142
A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira, que recentemente lançou o livro A cor do inconsciente: significações
do corpo negro, relatou, em um evento do qual participei no Centro de Estudos Psicanalíticos, que, em umas de
suas primeiras terapias, quando trouxe episódios de racismo, foi-lhe sugerido que procurasse um psiquiatra por
estar com ideias, delírios persecutórios. Um desmentido da sua dor, que pode ser inclusive mais traumático do que
a própria experiência do racismo, caracterização que nos traz Ferenczi em sua teoria do trauma.
219

7. MAL-ESTAR, ADMINISTRAÇÃO E AUTONOMIA

( ...) mas como o aluno vê o professor primeiramente como um prestador


de serviços e depois como alguém que ele pode confiar.

Professor Pedro.

Refletir sobre a autonomia do professor frente a tantos atravessamentos das dinâmicas


sociais nos faz pensar, primeiramente, numa caracterização do mundo administrado pelo qual
a cultura é organizada e da qual a educação, como uma das dimensões da cultura, não escapa.
Em um texto denominado Cultura e Administração, em uma coletânea organizada sob
a temática da Indústria Cultural, Adorno (2020) reflete sobre as relações dialéticas que se
estabelecem entre a cultura e a administração. O filósofo discute como, a partir de determinadas
condições históricas e econômicas, se estabeleceu um modo de vida submetido à administração
que produz a subsunção da cultura e que afeta também a educação.

Entendida como mera forma de dominação, a tendência imanente à expansão e


independência da administração não explica por completo por que os aparatos
administrativos, no sentido mais antigo da palavra, transformaram-se nos aparatos do
mundo administrado, adentrando áreas até então não administradas. Responsável por
isso talvez seja a expansão das relações de troca sobre a totalidade da vida, com
crescente monopolização. Nesse sentido, pensar por equivalência produz, por si só,
um dos princípios afins à racionalidade administrativa, na medida em que assim se
estabelece a comensurabilidade de todos os objetos, sua subsunção à regra abstrata.
(...) Pela simples razão de sua desmedida abrangência, até mesmo instituições não
lucrativas como a educação e o rádio exigem práticas administrativas, seguindo as
demandas das várias camadas da organização. (ADORNO, 2020, p. 245-6).

Pensar por equivalência é justamente perder a particularidade da experiência das coisas.


As relações de equivalência são mediadas pelo valor de troca e não pelo valor de uso. Na
racionalidade administrada, as dimensões quantitativas, externas, passam a determinar o modo
de funcionamento das coisas a um fim, um cálculo. A subsunção 143 à regra abstrata é a

143
Em seu livro Marx e a Técnica, um estudo dos manuscritos de 1861-1863, Daniel Romero (2005) discute as
categorias subsunção formal e real: “A partir da análise da subsunção, Marx desenvolve os conceitos de subsunção
formal e subsunção real. O conceito de subsunção formal designa a relação de dominação e subordinação do trabalho
frente ao capital do período pré-industrial, particularmente a produção de base artesanal e/ou manufatureira. O
trabalhador está subsumido ao capital na medida em que não possui meios de produção e é obrigado a se tornar um
trabalhador assalariado. No entanto, esta subsunção é ‘apenas’ formal, pois, nesse momento, a produção ainda é feita
sem a introdução de máquinas. Nesse sentido, o trabalhador ainda tem um grande controle sobre o ritmo e sobre o
modo de se produzir, pois detém o monopólio do conhecimento (saber-fazer) do processo de trabalho. Com isso, o
aumento da exploração do trabalho, em geral, se dá pelo aumento da jornada de trabalho. O conceito de subsunção
real designa a relação de dominação e subordinação do trabalho frente ao capital do período industrial. Nesse
momento, o trabalhador passa por um processo de expropriação do seu saber-fazer e cristalização desse conhecimento
em um processo mecânico e objetivo (as máquinas-ferramentas). O trabalhador passa a não mais ter domínio
completo sobre o ritmo da produção e, principalmente, sobre o modo de se produzir – e isso passa a ser ditado pela
maquinaria, a qual subsume realmente o trabalhador. Com isso, o aumento da exploração do trabalho pode se dar
igualmente pela intensificação do trabalho.” (ROMERO, 2005, p. 19, nota 2).
220

incorporação a um modo de fazer uniforme e padronizado, que passa a determinar externamente


aquilo que é considerado útil ou inútil, com ou sem qualidade.
Em Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1985), analisam ao longo da
história do ocidente as raízes da razão que, transformada em um ente abstrato, lógico, sem
historicidade assumem um lugar mitológico.
O que aparece como triunfo da racionalidade objetiva, a submissão de todo ente ao
formalismo lógico, tem por preço a subordinação obediente da razão ao
imediatamente dado. Compreender o dado enquanto tal, descobrir nos dados não
apenas suas relações espaço-temporais abstratas, com as quais se possa então agarrá-
las, mas ao contrário pensá-las como a superfície, como aspectos mediatizados do
conceito, que só se realizam no desdobramento do seu sentido social, histórico,
humano – toda a pretensão do conhecimento é abandonada. (...) Quanto mais a
maquinaria do pensamento subjuga o que existe, tanto mais cegamente ela se contenta
com essa reprodução. Desse modo, o esclarecimento regride à mitologia da qual
jamais soube escapar. (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 34).

Sabemos que Freud atribui ao educar uma das “profissões impossíveis” sobre as quais
não pode haver um controle total, pois algo da ordem inconsciente, da pulsão, sempre escapa.
São exatamente tais possibilidades que abrem para a experiência singular e coletiva, tornando
o processo do educar criativo e único. A depender do modo de organização escolar, a riqueza
desse processo pode ser obstaculizada, pois o professor passa a ter seus modos de fazer e de
trabalho subsumidos pela racionalidade administrada.
Adorno (2020) não nega o papel que possa ter a administração no desenvolvimento
cultural. Reconhece, inclusive, que em determinados ramos da ciência ela é fundamental.
Pensamos que na educação, organizada por diretrizes nacionais, estaduais e municipais, um modo
de administração é necessário para atender e organizar minimamente as redes de ensino. Contudo,
notamos, pelos relatos dos professores, que o estado de abandono de algumas escolas em suas
demandas básicas, ou mesmo alguns processos que deveriam ser estabelecidos com normalidade,
como as atribuições de aula, por exemplo, refletem o precário modo de organização administrativa
do Estado na educação. Ou seja, a dimensão da administração que poderia existir para efetivar a
educação não é exercida; no entanto, a vida escolar é cada vez mais sufocantemente
administrada144. “Caberia desenvolver esse paradoxo da seguinte maneira: quando planejada e

144
Se depender do atual governo Tarcísio de Freitas essa prática tende a se aprofundar. Como noticiado na
imprensa (UOL, 09/08/2023: “SP repete Paraná e instala app sem autorização no celular de professores”) houve a
instalação de aplicativos nos celulares de professores e alunos sem autorização deles. “O governo Tarcísio de
Freitas (Republicanos) instalou um aplicativo em celulares de professores e alunos da rede estadual de São Paulo
sem autorização dos donos dos aparelhos. Educadores e estudantes da rede relataram que o aplicativo "Minha
Escola" foi instalado sem autorização em seus celulares pessoais desde terça-feira (8). O programa é usado para
alunos verificarem notas e faltas. A Seduc (Secretaria da Educação de São Paulo) disse, em nota enviada ao UOL,
que abriu um processo administrativo para apurar o caso. "A falha ocorreu durante um teste promovido pela área
técnica da pasta em dispositivos específicos da Seduc", afirmou. Professores ouvidos pela reportagem na condição
221

administrada, a cultura é danificada; quando relegada à sua sorte, entretanto, ela corre risco de
perder não apenas sua efetividade, mas também sua própria existência.” (ADORNO, 2020, p. 242).
O que Adorno traz nesta relação complexa entre administração e cultura, se analisarmos
de uma forma mais detida, é a expressão da condição do princípio de realidade, em que se
coloca a possibilidade do prazer relacionado às condições da realidade social. Esta relação é
muitas vezes de difícil equilíbrio e está sob determinantes históricos.
O professor João nos relata um pouco sobre essa relação conflituosa da autonomia do
professor diante das normas mais gerais, e sobre a própria estrutura material da escola. Relata
que a autonomia não pode ser apenas “o professor fazer o que ele quiser”. Há alguns processos
necessários quando se faz um trabalho educacional em uma escola, as quais passam pelo
esclarecimento do estudante sobre o que se está fazendo.

Eu consigo ter autonomia. Eu por exemplo nunca tive atritos ou problemas com meus
coordenadores. Passei por vários coordenadores pedagógicos efetivos, mas também
designados. Por algumas direções também, mas também por vários diretores. Tem
algumas escolas que a gente sabe que a gestão ela se posiciona de uma forma um pouco
complicada, mas no geral eu acredito que o professor tem autonomia sim. Ainda tem
pelo menos. Acho que há um projeto que visa tirar um pouco essa autonomia. É um
projeto que eu considero até sofisticado. Não acho que ele é simplesmente que o
professor vai ter que trabalhar com apostila ponto e acabou. Mas como eu falei eu nunca
trabalhei em escola particular, eu sei que a dinâmica nas particulares é diferente. Só que
também tem muito equívoco eu acho do que é a autonomia do professor. No geral eu
acho que os professores usam bem esta autonomia. Às vezes acontece um certo exagero
dessa autonomia. (...) Eu não entendo autonomia com o eu posso fazer o que eu quero
na sala de aula. Alguns colegas entendem que é possível fazer o que quiser no sentido
de que o cargo é meu, eu não devo satisfação para a sociedade. Eu acho que tem uma
relação de mão dupla aí, eu acho que autonomia tem que ser entendida com uma certa
liberdade do professor trabalhar sim só que de alguma maneira tem que ter
responsabilidade em relação ao que você vai entregar, tentar entregar para a sociedade
enquanto a isso. Mas enfim, sua pergunta de forma mais objetiva eu acho que tem
autonomia sim. Claro que nossa autonomia... por exemplo eu vou dar aula na escola
estadual, na prática o que eu tenho de apoio pedagógico de materiais para trabalhar? Na
prática eu tenho o livro didático do PNLD, não chegaram livros suficientes para os meus
três sextos anos, então nós montamos um kit que fica na sala de aula. E fora isso eu não
tenho acesso fácil a um projetor. Eu não tenho acesso fácil a imprimir atividades. Então
qualquer coisa que eu tente sair do livro didático ou da apostila, na prática não é somente
uma apostila como nós conhecemos na escola particular, mas um caderno de atividades
que é cheio de sugestões de QRs codes, links que às vezes o aluno não tem nem celular
(...). (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

No que pese o professor João indicar os determinantes materiais da autonomia e que se


trata também de considerar que “a autonomia não é fazer o que se quiser”, em que há uma

de anonimato dizem se sentir intimidados e assustados com a instalação sem autorização. Também afirmam que a
situação fere a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). A instalação de qualquer aplicativo sem o
consentimento do usuário pode ser considerada uma invasão de privacidade e uma violação de direitos, diz Ana
Paula Siqueira, advogada especialista em direito digital e LGPD.” Disponível em:
https://educacao.uol.com.br/noticias/2023/08/09/sp-instala-app-sem-autorizacao-celular professores.htm. Acesso
em 09/08/2023.
222

responsabilidade social para com ela, pensamos que a autonomia está conectada a dimensões
mais profundas de si, inconscientes, relacionadas aos processos de identificações 145 . Além
disso, igualmente consideramos o que Adorno, citando Kant, designava por “menoridade”, na
qual “para se evitar um resultado irracional é preciso pressupor a aptidão e a coragem de cada
um em servir de seu próprio entendimento.” (ADORNO, 2006e p. 169). Assim, diz o pensador:

Talvez se possa ver o problema da menoridade hoje ainda por um outro aspecto, talvez
pouco conhecido. De uma maneira geral afirma-se que a sociedade, segundo a
expressão de Riesman, é “dirigida de fora”, que ela é heterônoma, supondo nesses
termos simplesmente que, como também Kant o faz de um modo bem parecido no
texto referido, as pessoas aceitam com maior ou menor resistência aquilo que a
existência dominante apresenta à sua vista e ainda por cima lhes inculca à força, como
se aquilo que existe precisasse existir dessa forma. (ADORNO, 2006e, p. 178).

É interessante observar se na expressão crítica de que “autonomia não é se fazer o que


quiser” não estariam já subsumidas as marcas da dominação. De fato, autonomia não é se fazer
o que se quiser, mesmo porque, sob o contexto heterônomo, o que estão colocados são
condicionantes, dados e estabelecidos externamente. A “autonomia”, no geral, é produzida
como “escolher o melhor prato em um cardápio já pronto”, e com um agravante: reivindicado
como a máxima liberdade que um indivíduo pode ter. De tal forma, “pratos, candidatos, roupas
e namorados” estão todos no mesmo contexto.
Para o princípio de realidade há uma forma de adaptação também necessária. Entretanto,
uma educação marcada pela racionalidade administrada pode tornar a adaptação seu objetivo
final e único, o que faz com que o conflito constitucional da experiência, do irreconciliável mal-
estar da condição humana, seja obnubilado.

A educação seria importante e ideológica se ignorasse o objetivo de adaptação e não


preparasse os homens para se orientarem no mundo. Porém ela seria igualmente
questionável se ficasse nisto, produzindo nada além de well adjusted people, pessoas bem
ajustadas, em consequência do que a situação existente se impõe precisamente no que
tem de pior. Nestes termos, desde o início existe no conceito de educação para a
consciência e para a racionalidade uma ambiguidade. Talvez não seja possível superá-la
no existente, mas certamente não podemos nos desviar dela. (ADORNO, 2006f, p. 144).

Os determinantes históricos que fazem do modo administrado uma forma de controle total
em todas as áreas da economia e da sociedade interferem também no processo educacional, de
modo a tornar a experiência no espaço escolar padronizada, abstrata.

145
Segundo Adorno (2006e, p. 176-7), “o modo pelo qual – falando psicologicamente – nos convertemos em um ser
autônomo, e, portanto, emancipado, não reside simplesmente no protesto contra qualquer tipo de autoridade. (...) É o
processo – que Freud denominou como o desenvolvimento normal – pelo qual as crianças em geral se identificam
com uma figura de pai, portanto, com uma autoridade, interiorizando-a, apropriando-a, para então ficar sabendo, por
um processo sempre muito doloroso e marcante, que o pai, a figura paterna, não corresponde ao eu ideal que
aprenderam dele, libertando-se assim do mesmo e tornando-se, precisamente por essa via, pessoas emancipadas.”
223

A necessária marca da individualidade de professores e estudantes no processo educativo


é objeto das mais perversas vigilâncias, de forma que as particularidades dessas relações não
possam se estabelecer de maneira mais espontânea. A autonomia, como ato mais caro à liberdade
do educar, torna-se uma categoria externa à própria experiência, definida de antemão.

Em concordância com Robert Michels, ele percebeu tendências análogas no sistema


partidário e notou que elas já afetavam também o setor de educação e pedagogia. Desde
então, essa tendência ampliou-se, abarcando completamente essas e outras áreas; ela fez-
se total, sem deter-se de modo algum no mero âmbito do monopólio econômico. O
aumento na quantidade de aparatos administrativos gerou uma nova qualidade. Estruturas
concebidas segundo o modelo liberal já não buscam a cobertura da administração nem se
deixam infiltrar por ela; em vez disso, adquiriram tal peso sobre o campo da liberdade, que
esta só aparece agora como um resto ainda tolerado. (ADORNO, 2020, p. 246).

É o que nos coloca o professor Fernando sobre as instalações de câmeras na sala de aula,
e sobre o processo de informatização nas escolas, que ganhou mais intensidade após o término
do isolamento social decorrente da pandemia, e produz um ritual próprio de cobranças e
trabalho externo à experiência do professor. A relação desses aparatos administrativos só pode
produzir uma sensação de persecutoriedade e desconfiança, de estar sendo vigiado 24 horas.

(...) Agora com essa informatização inteira, por exemplo, a gente tem que trabalhar o
dobro. E agora a gente trabalha sob vigilância. Esse ano colocaram câmera dentro da sala
de aula. Juro por Deus no Estado tem uma câmera dentro da sala de aula. Eu falei não,
onde eu estou? Esse ano eu passei mal. Passei mal! Vigiado, punido 24 horas dentro de
casa tendo que fazer live. Minha casa sendo filmada. Minha sala de aula sendo filmada.
Minhas aulas sendo assistidas por pais. Isso eu achei legal, porque todo mundo queria, “ah
vamos ver o maloqueiro vai dar aulas para os pais e vai se fuder e tal”. E os pais adoraram
as aulas, óbvio. Mas ainda assim é muito constrangedor. Porque o pai não está sentado ali
olhando para você. Ele está atrás da câmera. Sei lá Deus fazendo o que, se anotando, se
gravando, entende. É uma exposição sem fim. Além disso diário online. “Oh professor o
senhor não preencheu o dia tal, to vendo aqui”. Tudo virou “gameficação”, o burocrata
fica atrás do computador só jogando Playstation nas bolinhas vermelhas, amarelas. Ah
faltou um vermelhinho, pega um vermelhinho ali, fode o professor. Uma “gameficação”
para fuder a educação. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

O cenário descrito pelo professor parece, igualmente, dar o tom da sensação que os
professores têm em reuniões de formação ou pedagógicas, nas quais os profissionais que ali estão
para coordenar ou administrar só cobram burocracias, resultados ou metas quantitativas. A
impressão aparente é a de que esses profissionais não estão capacitados para uma discussão das
questões mais fundamentais da aprendizagem. A engrenagem do mundo administrado, que
certamente não começa na escola, mas numa série de cobranças e diretrizes nas várias camadas
da organização do Estado, torna os profissionais das gestões e coordenações pedagógicas como
executores das extensas atribuições burocráticas, meras peças dessa engrenagem, onde o centro
do seu trabalho é dar conta dessas tarefas como fim. “Os especialistas precisam exercer autoridade
sobre campos para os quais não poderiam ser profissionalmente qualificados, ao passo que sua
224

particular habilidade em assuntos técnicos-administrativos abstratos é necessária a fim de que a


organização funcione e mantenha-se em funcionamento.” (ADORNO, 2020, p. 248).
A professora Luana nos fala sobre sua experiência de cobranças em seu trabalho e como
interferem em seu modo de fazer educacional. Como expressão do modo administrado, a
informatização torna cada vez mais impessoal a cobrança, determinando o tipo de padrão de
trabalho que a professora pode ter com os estudantes.

O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter autonomia
no seu trabalho como professora?
Eu acho que autonomia seria pelo tipo de aula que você vai lecionar. Então os recursos
que você vai utilizar, trazer o aluno como protagonista. Esse tipo de coisa. Não muito mais,
porque o Estado está bem em cima agora com este negócio do desenvolvimento do aluno.
Por exemplo, se um aluno não atinge o suficiente você tem que justificar demais o que
utilizou para ele não ter atingido. Então eu penso que autonomia é assim, os recursos que
você vai utilizar. Se vai usar tecnologia, se vai fazer uma roda. Se você avaliar... sair um
pouco da prova, do papel, avaliar o aluno ali no dia a dia. Esse tipo de coisa.
Você acha que você consegue desenvolver autonomia?
Neste tipo que estou te falando de preparar minha aula. Não ser aquela aula quadrada,
livros, lousa e caderno. Eu penso que eu tenho esta autonomia.
Mas você está dizendo que também tem as normatizações do Estado, também
tem um controle?
Isso também tem o controle. Agora com este diário digital a gente está bem
supervisionado. Agora é tudo na secretaria escolar digital. Diário, nota, falta, não tem
mais o diário de papel. Então está tudo ali, você tem que seguir as habilidades e
competências. Então estou falando, dentro do que é exigido, é estabelecido. Eu não
posso chegar lá e falar, olha hoje a gente vai fazer aula sobre ligação biônica, mas não
é daquela competência, não é daquela habilidade eu não posso. Eu tenho que seguir
dentro das habilidades e competências que está no cronograma.
Eu fico pensando que a realidade da sala de aula é muito diversa, as necessidades,
e aí já vir com alguma coisa determinada deve atrapalhar um pouco...
É você tem que seguir conforme a sala, fazer a sondagem, e ver como eles funcionam
melhor. Às vezes o que você preparou para um 1 A não funciona para o 1B, depende
dos alunos que você tem então é um pouco complicado você chegar, demora um pouco
para você ajeitar o seu jeito de trabalho.
E no fim você vai ser cobrada independente dessas particularidades...
Vou ser cobrada, o que você fez por aquele aluno, então é bem trabalhoso. Você tem
que ter diversas formas, porque às vezes funciona com um aluno e com outro não
acontece. (Professora Luana, categoria O, oito anos de magistério).

O que vemos é a autonomia se limitando a quais recursos na forma de aula o professor


utilizará para padronizar o resultado do ensino em sala, com experiências de aprendizagem às
vezes completamente diferentes. Afinal, a professora será cobrada pelo resultado geral medido
por provas externas à escola. Portanto, se reside ainda algum traço de autonomia do professor
em seu trabalho, esta parece ser utilizada visando obter uma padronização dos resultados.
O papel importante que possa ter a administração na organização escolar, num projeto
de escola conectado às demandas escolares, na formação a partir das necessidades produzidas
pelas experiências dos professores, na organização da comunidade escolar, na facilitação das
burocracias pelas quais o trabalho de sala de aula do professor possa se realizar, pende, na
225

verdade, para tornar esse trabalho mais cansativo ao demandar uma forma de fazer na qual a
administração torna-se externa ao administrado.

A dialética entre cultura e administração exprime não tanto a sacrossanta


irracionalidade da cultura – algo que parece sumamente irracional para os que têm
contato com ela –, quanto o fato de que a administração, seja por suas categorias
objetivas, seja por sua configuração pessoal, aliena-se cada vez mais da cultura. A
administração é externa ao administrado, subsume-o em vez de apreendê-lo. É isso
justamente o que está na essência da própria racionalidade administrativa, que apenas
enreda e ordena. (ADORNO, 2020, p. 248).

A professora Vera, que trabalhou em um PEI, relata que o controle se dá pela observação
das aulas, pela construção de uma dinâmica perversa de controle entre a própria comunidade
escolar. E isso se intensificou na conjuntura política aos professores de “ciências humanas”.

Os diretores eles começaram observar mais o professor. Eles começaram a andar mais
ali nos corredores. Então quando ele ouvia alguma coisa ele entrava. Dá licença, batia
na porta lógico toda educação. Posso assistir sua aula? Que você vai pensar na hora?
Caramba, o que ela quer, o que ele quer? O que ele ouviu. E você sabe que era uma
perseguição. Porque depois eles vinham para conversar com você com muita
autoridade. E isso aconteceu não só comigo. Mas eu acho assim... principalmente os
professores de humanas. Nós fomos muito perseguidos. E somos até hoje. (Professora
Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

Independente do papel, inclusive significativo, que possa ter um gestor de acompanhar


uma aula de um professor e contribuir com a melhora dessa aula, os dados de pesquisa que
obtivemos apresentam um contexto de desconfiança, de persecutoriedade determinada por uma
série de relações no modo administrado da escola funcionar; determinados, também, como já
mencionado, pelos contratos de trabalho diferenciados.146

146
O que parecia uma política na qual as escolas PEI tem feito uma prática, com a publicação da portaria (DOE –
Seção I – 28/07/2023 – Pág.36), pelo atual governo do Estado de São Paulo, de Tarcísio de Freitas (2023-2026),
passa a ser uma política deliberada do Estado de controle das aulas dos professores. Segundo divulgado pela
imprensa: “Uma portaria estabelecendo a nova atribuição aos diretores foi publicada no Diário Oficial na última
sexta-feira (28). Segundo o documento, eles terão que produzir um relatório, com o que observarem das práticas
pedagógicas dos professores e encaminhar para a diretoria de ensino da região. A portaria não explica o que as
diretorias de ensino farão com os relatórios —se elas vão analisar as observações feitas a cada professor ou se
haverá algum tipo de penalização para quem não receber bons comentários da direção. Os diretores receberam
uma ficha em que devem preencher os "pontos positivos", "pontos de melhoria" e "combinados e próximos passos"
de cada aula assistida. Eles devem observar a interação dos estudantes com a atividade proposta, gestão do tempo,
metodologia e recursos usados, forma de comunicação e o clima da sala de aula. (...) A diretora de uma escola
estadual na zona leste da capital contou ter 130 professores em sua unidade. Para conseguir observar todos os
docentes, ela terá que gastar mais de 30 horas da semana acompanhando as aulas, sem contar o tempo gasto para
elaborar o relatório. Para ela, a nova determinação desconsidera a realidade e o tipo de trabalho desenvolvido pelos
diretores. Ela conta que dá suporte pedagógico e assiste às aulas de professores que estão com dificuldade ou
pedem ajuda, mas diz ser desnecessário observar a aula de todo o quadro. Márcia Jacomini, professora do
Departamento de Educação da Unifesp, diz que a medida impõe uma lógica de "administração de empresas" dentro
da escola e retira a autonomia tanto dos diretores como dos professores. "Não há nenhum problema do diretor
acompanhar as aulas dos professores, inclusive, isso é incentivado e já feito em muitas escolas. O problema é
tornar isso uma regra, com uma periodicidade que desconsidera as atividades do diretor, e ainda exigir um relatório
sem explicar o que vai ser feito com ele." "O que poderia ser um apoio pedagógico acaba virando mais uma
226

Uma das formas desta racionalidade se realizar de maneira mais efetiva é associá-la à
remuneração que, por sua vez, está atrelada às avaliações que o professor recebe. A professora
Vera disse que foi prejudicada em uma dessas avaliações e acabou não recebendo a bonificação
por resultados. Ela comenta que teve faltas relacionadas a problemas de saúde, atestados por
médicos, o que torna a relação de bonificações e adoecimento ainda mais prejudicial ao
professor.

Ele está relacionado a uma avaliação da escola sobre você?


Tá, o PEI está.
E você não foi bem avaliada e não recebeu o abono...
Isso. Porque tem avaliação 360. Você já ouviu falar?
Não. Como é?
Dentro da PEI você põe o pé na PEI no primeiro dia você já é avaliado como você
conversa, o que você fala, a tua roupa, teu sapato, teu cabelo. Você é chamado lá no
cantinho toda a semana para você saber o que está acontecendo com você. Oh seguinte,
tem professor aqui dizendo que você está gritando na sala. Todo mundo observa todo
mundo. Oh tem professor aqui que disse que você, não é o meu caso que eu não sou
fumante, que você foi no banheiro, foi dar uma tragada lá para se acalmar. Desse jeito.
Não é o meu caso que eu não sou fumante, mas eu entrei no banheiro, larguei o 1A lá e
fui ao banheiro porque eu estava com dor de barriga mesmo. E eu vi que entrou uma
pessoa, só que eu não vi quem era, eu não vou abrir a porta. Escutei barulho e saiu. Não
demorou muito na mesma semana, quase final de semana eu fui chamada porque não
tinha que largar o 1A e deixar eles sozinhos para ir ao banheiro. Só que assim a escola
pela carência de funcionários não tinha ninguém para eu deixar. Então falei gente posso
sair um pouquinho? O negócio está pegando aqui. Até brinquei com eles, acho que foi
o almoço. “Vai lá professora, que nada”. “A gente está aqui de boa”. Eu falei 5 minutos
hein, 5 minutos. Eu voltei estava tudo em paz, porque eu faço a cabeça do meu aluno
também para me respeitar. Eu em primeiro lugar e a escola. Então não há necessidade
de chamar fulano e ciclano para ficar com eles. Eu fui advertida. Muitas advertências eu
tive durante o ano. E isso no presencial e no online também. Porque fiquei online até
agosto depois eu retornei. E na minha avaliação foi péssima. Ai eu não recebi o abono.
Não é só por causa das faltas. E nesse ano de 2021 eu tive dois afastamentos de 10 dias
cada um. Então devido este afastamento dá 20 faltas que não dá direito de você receber
o abono. Eu não recebi. Tá lá na sede, vai na sede, abre recursos humanos, vê lá abono
aí está escrito assim, tem tudo descriminado. É tudo papelada, mas agora é papelada
digital. Tá escrito o que tinha para receber, as minhas faltas, a minha avaliação, e no fim
do status está escrito “sem tempo para receber”, é isso que eles colocam. Sem tempo
para receber. Mas este sem tempo para receber não é só faltas, é nossa avaliação. E eu
fui mal avaliada. (Professora Vera, categoria O, 13 anos magistério).

A simples experiência de ir ao banheiro pelas necessidades fisiológicas passa a ser objeto


de controle, e a professora foi advertida. Ou seja, algo do acordo entre a professora e os estudantes,
conversado, a relação de ausência e presença do professor, que constituem a construção de uma
relação de autonomia do estudante, é produto de intervenção externa ao trabalho, o que mostra que
a racionalidade administrada penetra em todas as camadas da organização escolar e do trabalho e

obrigação para o diretor e mais um motivo de apreensão para o professor. A regra passa a impressão de vigilância
em sala de aula, o que não é bom para ninguém", diz Márcia.”
Fonte: Folha de SP, 02/08/2023. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2023/08/gestao-
tarcisio-determina-que-diretores-observem-aulas-dos-professores.shtml. Acesso em 04/08/2023.
227

torna os inspetores de escola vigilantes do professor e não profissionais de educação, com


atribuições, também, no campo de formação do espaço escolar.
É evidente que essa forma histórica de realizar a razão, de modo “mitológico”, produz
uma irracionalidade nas formas de relações, e “educa” os professores a agirem da mesma forma
com os estudantes. Qualquer conflito passa a ser pensado a partir de um padrão de conduta
definido externamente e punitivo.
A professora Vera relata outra experiência relacionada à invasão desta forma de
racionalidade em sua sala de aula.

Porque diretor, olha eu tive bons diretores, diretor ele sabe conversar. Então a gestão
que eu tive só sabe gritar e fala que é para professor não gritar na sala. Só que eles
gritam com a gente. Então assim chega na sala, você está com a porta aberta. Porque
agora tem que deixar a porta aberta. Não pode mais fechar a porta. “Professora você
não está vendo que o fulano está de boné ali atrás, você está deixando!? Não pode
ficar com boné!” Mas isso é jeito de falar comigo? De repente foi um minuto que eu
virei as costas o cara pôs o boné, não deu nem tempo de eu falar, mas ela viu. Em vez
de me chamar em particular ela grita na frente dos alunos. Aí minha aula acabou.
“Professora você deixa a fulana falar assim com você?” Ela é diretora. “E daí você
não vai fazer nada?” Gente, vamos continuar, “o aluno tira o boné vai.” Mas aí você
já acabou, acabou para você. Você não vê a hora que passa para você ir para outra
sala ou acabar o período. Então isso aconteceu várias vezes e é como eu te falei me
senti perseguida. Eu acho que quem elas gostavam mais talvez não teriam passado
por isso. Mas eu passei. Eu acabei saindo da PEI. Por isso que aquele dia eu não podia
te atender. Eu tinha que conseguir aula novamente no regular para meu contrato
continuar ativo. (Professora Vera, categoria O, 13 anos de magistério).

A desautorização externa de sua autonomia como professora, que reflete diretamente


em como os estudantes observaram essa cena, talvez com uma certa ambiguidade, ao mesmo
tempo indignados com a forma com que a diretora se posicionou e, também, considerando que
a autoridade da professora se forma num contexto social, ela passa a ser frágil para eles, o que
implica toda ordem de desdobramentos. Como nos coloca Adorno (2020), são as normas gerais
que se impõem a toda forma de particularidade no modo de organização administrado, por isso
o efeito distorcido das relações, incompatível das ações. Mais importante que a experiência em
si, a norma geral se absolutiza. Podemos ver qual o efeito dessa violência nas formas de relações
entre professores e gestão, a partir dos relatos da professora Vera.

Administração, contudo, significa necessariamente, sem culpa subjetiva ou


deliberação individual, o antagonismo do geral contra toda forma de particularidade.
Por isso, na relação entre administração e cultura, persiste o sentimento do tortuoso,
do incongruente. Ele atesta o caráter crescentemente unificador. A demanda que a
administração dirige à cultura é, por essência, heteronômica: a de adequar os assuntos
culturais, não importa quais sejam, a normas que lhe são extrínsecas, que nada têm a
ver com a qualidade do objeto, e sim apenas com uma medida abstrata qualquer,
trazida de fora: ao passo que, por sua própria natureza e prescrição, a administração
deve recusar-se a inquirir o administrado sobre a verdade da coisa mesma, sua
qualidade imanente, suas razões objetivas. (ADORNO, 2020, p. 250).
228

A professora Ana diz que um fator importante para que se tenha autonomia é um grupo
de professores forte e organizado que consiga impor um modo mais autônomo de trabalhar,
visto que há direções que ora gritam com o professor para se impor, ora advertem formalmente,
ou mesmo fazem da “vida funcional do professor um inferno”.

O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter autonomia
no seu trabalho como professora?
Eu acho que sim, eu consigo, mas não são todas as escolas que a gente pode ter
autonomia. Essa escola que trabalhei perto de casa não tinha, outra que trabalhei na
prefeitura perto da minha casa também não tinha. Eu acho que autonomia quando o
professor tem liberdade, consegue desenvolver os projetos ou a sua aula sem
interferência, e com liberdade. Nessas escolas eu consigo, porque tem um grupo de
professores que é forte assim, nas duas escolas, que se impõe, e a direção também
respeita. Não tenho direções que são autoritárias, mas eu acho que em escolas em que
a direção é autoritária é bem complicado.
As interferências que você está falando são basicamente da direção?
Sim, têm que ter um padrão muito rígido. Ou seguir certas coisas, que eu acho que
atrapalha o andamento do trabalho do professor. Ou quando eles interferem diretamente.
Diretamente?
No meu caso nunca aconteceu, mas eu trabalho numa escola da prefeitura, não sei se
cabe na pesquisa, mas eu trabalhei em escola em que a direção dava advertência para
professor, porque sei lá o professor não conseguiu deixar a sala do que jeito que a
direção queria, que era organizada. O professor teve dificuldade com a indisciplina e
a professora foi advertida. Então quando você vê o colega sendo advertido por causa
disso, você fica receoso, fica tenso.
Você acha que no Estado isso também acontece?
Sim, eu acho que acontece, mas acho que as represálias eram outras, não eram
necessariamente uma advertência. Essa escola do Estado que trabalhei por exemplo,
eu sabia que a diretora ficava gritando com o professor. Fazer da vida funcional do
professor um inferno, então eles acabavam indo embora. (Professora Ana, categoria
A, 15 anos de magistério).

A tensão entre uma racionalidade administrada e os professores pode produzir um


processo de organização coletiva dos docentes. Como a professora Ana nos coloca, a
organização dos professores é necessária para garantir bases mais autônomas de seus trabalhos.
Por outro lado, vemos processos de adaptação e cisões do Eu de modo que os
professores fiquem bem ajustados às demandas heterônomas, seja individualmente ou em
grupo, empobrecendo sua capacidade intelectual e crítica. Perde-se, portanto, no âmbito da
cultura educacional, a autonomia, a espontaneidade e a crítica, características fundamentais de
um trabalho de formação educacional em uma escola.

Prepara-se assim a própria negação do conceito de cultura. Autonomia, espontaneidade


e crítica, os conceitos associados à cultura, estão sendo usurpados. A autonomia, porque
o sujeito, em vez de fazer escolhas conscientemente, precisa se enquadrar no
preordenado; e assim o deseja, pois o espírito, sem poder estabelecer suas próprias
regras como sugere o tradicional conceito de cultura, experimenta a cada instante sua
impotência diante das exorbitantes demandas da simples existência. A espontaneidade
desaparece, já que o preordenamento do todo subordina os impulsos individuais,
predetermina-os, reduzindo-os à mera aparência, deixando de tolerar o jogo de forças
que se espera de uma totalidade livre. Finalmente a crítica perece porque, nesse
processo, que abandona cada vez mais o modelo do cultural, o espírito crítico cria
229

perturbações, como areia nas engrenagens da maquinaria; ele aparece como armchair
thinking, algo antiquado, irresponsável e sem necessidade. (ADORNO, 2020, p. 263).

O professor Pedro, categoria A, com 21 anos de rede de ensino estadual, fala sobre a perda
da espontaneidade em sala de aula, das possibilidades mais abertas de relações com os estudantes.
Para o professor, a lógica das relações com os estudantes é a do prestador de serviço, do
funcionário público que segue um determinado padrão e será cobrado de alguma forma por isso.

Com os alunos especificamente teria uma dificuldade maior assim, ou está dentro
deste contexto também?
Não, na sala de aula não. Na sala de aula eu sinto ainda principalmente nesta volta de
pandemia, eu sinto ainda uma espécie de um carinho deles. Mas é diferente há 10 anos
atrás eu tinha mais segurança de entrar numa sala de aula. Você lembra meu jeito eu era
mais irreverente com os alunos. Me aproximava mais dos alunos. Conversava assuntos
aleatórios, eles entendiam ironia, eles entendiam brincadeira. Era uma espécie de um
carinho diferente. Era um carinho baseado na admiração. Hoje os alunos eles são
carinhosos, mas eu sinto que você não dá para você confiar muito, essa relação fraternal
se é que eu posso dizer assim, ela hoje em dia ela existe, mas como o aluno vê o
professor, primeiramente como um prestador de serviços e depois como alguém que ele
pode confiar, alguém que ele pode conversar, trocar ideia. Eu sinto isso na sala de aula
em menor escala do que socialmente falando. Como eu falei a 10, 12 anos atrás era o
contrário. O aluno via a gente como o professor, depois o funcionário público. Agora
não, primeiro é o funcionário público, então você tem que ter esta postura, você não
pode fazer isso, você não pode fazer aquilo porque você é um funcionário público, então
isso acaba criando uma espécie de uma relação afetuosa, mas até a página 2. É o que eu
tenho sentido nesses anos para cá. (Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

O que o professor Pedro relata nos parece ser a base em um processo educacional, que
são as possibilidades das relações, de experiências entre professores e estudantes que não estejam
marcadas por demandas externas ao processo em si. O espírito mais espontâneo vai se perdendo
no professor e, com isso, seria interessante observar o quanto afeta sua individualidade, na medida
em que o outro não mais lhe diz sobre uma experiência pessoal, singular de retorno, em frustração
ou gratificação psíquica, mas sobre uma espécie de relação de “consumo” daquilo que o professor
possa entregar como prestador público desse serviço.
Segundo Adorno (2006f), isso produz um rancor com a cultura, já que a promessa de
autonomia tem cada vez mais dificuldade de se realizar. Aquilo que não se consegue realizar
passa então a ser o verdadeiro problema, e formações reativas tornam-se maneiras dessas
relações se estabelecerem.

A constituição da aptidão à experiência consistiria essencialmente na conscientização


e, desta forma, na dissolução desses mecanismos de repressão e dessas formações
reativas que deformam nas próprias pessoas sua aptidão à experiência. Não se trata,
portanto, apenas da ausência de formação, mas da hostilidade frente à mesma, do
rancor frente àquilo de que são privadas. Este teria de ser dissolvido, conduzindo-se
as pessoas àquilo que no íntimo todas desejam. (ADORNO, 2006f, p. 150).
230

O professor Luiz diz que acredita que ainda há alguma autonomia do professor, mesmo
sobre o peso de normas e resoluções que são empurradas de cima para baixo. É interessante
pensar se, para o professor, a sala de aula não seria a “última trincheira”, com o “cerco se
fechando” de possibilidades de alguma autonomia diante de adversidades de todas as ordens.
Quando se “fecha a porta da sala de aula” o professor pode ser um pouco mais ele na
capacidade de resistir em sua atividade de trabalho, de ser mais criativo e espontâneo. A
informatização, as câmeras em sala de aula, as resoluções e normas, “o deixar a porta aberta”
invadem o espaço escolar e da sala de aula, minando qualquer possibilidade mais autônoma do
professor.

Se eu disser que sim, ainda mais com as várias resoluções empurradas de cima para
baixo - você falar de autonomia docente está ficando mais difícil. Eu ainda tenho
autonomia para preparar minhas aulas por exemplo, para escolher os materiais. Pegar
um livro paradidático, coisa do tipo, mas como eu falei o cerco está se fechando. Por
exemplo, o cerco está se fechando, tem muita fala sobre empreendedorismo, se você
pegar os materiais de alguns itinerários formativos, eu estava até dando uma lida.
Então sim nós temos autonomia, nós temos liberdade de cátedra, só que se tem que
ponderar também. Inclusive qual a gestão você está enfrentando. Qual é o projeto
político pedagógico da escola. Como que essa gestão ela trata a própria comunidade
escolar e dentro dessa comunidade escolar, como se dá a autonomia do professor. Para
você produzir conhecimento, para você estudar mais. E assim por diante. (Professor
Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

É certo que qualquer gestão, numa escola, está sob o efeito da racionalidade administrada
que surge de esferas superiores e mais poderosas que o próprio funcionamento da escola. É
importante lembrar, também, que um gestor, geralmente, é ou foi professor, e que tem as marcas
dessas experiências de mal-estar em seus psiquismo e corpo. Como diz Adorno (2020, p. 257):

Nesse caso não se trata daquela crítica barata ao crescimento desmedido de um


gerenciamento tornado selvagem. No mundo administrado, os gerentes não são menos
bodes expiatórios que os burocratas; o deslocamento de funções objetivas e de condições
de culpabilidade para o plano pessoal é, ele mesmo, parte da ideologia dominante.

No entanto, na base do funcionamento da escola um grupo de professores organizados,


sob uma perspectiva autônoma com uma consciência crítica de modos de funcionamento
regressivo das gestões, e não sob sintoma das cisões do Eu e da introjeção do ambiente agressor,
pode produzir algum nível de resistência de modo que as possibilidades de experiências
educacionais sejam mais críticas, espontâneas e autônomas.
Seria interessante deixarmos como questão a particularidade do mal-estar das gestões
(tanto a direção e seus auxiliares, como a coordenação pedagógica numa escola da rede de
ensino estadual de São Paulo), para refletir até que ponto as premissas colocadas por Adorno
(2020), sobre o senso de criticidade, ser uma variável possível ou se está sob demandas muito
mais intensas, por exemplo, que os próprios professores.
231

A cultura tem sua ratio apenas no desvio em relação à racionalidade dominante.


Infelizmente, tais esperanças dependem de um estado de consciência da administração
que, para todos os efeitos, não se pode supor como certo: sua independência crítica com
relação ao poder e ao espírito daquela sociedade de consumo que é idêntica ao mundo
administrado. (...) Por mais reificadas que ambas as categorias sejam na realidade, ambas
não os são totalmente; tal como ainda a mais venturosa maquinaria cibernética, ambas
remetem a sujeitos vivos. Por ora, na ordem democrática-liberal, mas também nas
instituições e com seu auxílio, o indivíduo ainda tem espaço suficiente para contribuir um
pouco para sua correção. Quem quer que opere os meios administrativos e as instituições
com imperturbável senso crítico pode ainda realizar algo mais que a pura cultura
administrada. As mínimas diferenças no sempre igual, que lhes permanecem abertas,
representam, ainda que frágeis, uma possibilidade de diferença em relação ao todo; na
própria diferença, na divergência, se concentra a esperança. (ADORNO, 2020, p. 273).

É o que veremos no próximo tópico da pesquisa sobre as possibilidades de experiência


e prazer; sobre o “trabalho de elaboração” do professor em seu modo de fazer, assim como as
dinâmicas sociais que obstaculizam essas formas de ser.
232

8. MAL-ESTAR, PRAZER E ELABORAÇÃO

Quando eu consigo ter tempo, nossa eu vou


assistir o vídeo, vou ver este filme, eu vou até fazer
algumas anotações. Eu separo um material, eu vou
preparar aula com calma. Isso é uma coisa que
me dá prazer. Eu sei que numa sala de professores é esquisito.

Professor João

Em O mal-estar na civilização, Freud situa a possibilidade da felicidade e da satisfação


como “um fenômeno episódico”, no qual se estabeleceria “um morno bem estar.” (FREUD,
2010a). Em uma de suas ironias, cita Goethe: “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de
dias belos”, e logo acrescenta: “Mas isso pode ser um exagero” (FREUD, 2010a, p. 31, nota 7).

Aquilo a que chamamos “felicidade”, no sentido mais estrito, vem da satisfação repentina
de necessidades altamente represadas, e por sua natureza é possível apenas como
fenômeno episódico. Quando uma situação desejada pelo princípio do prazer tem
prosseguimento, isto resulta apenas em um morno bem-estar; somos feitos de modo a
poder fruir intensamente só o contraste, muito pouco o estado. Logo, nossas possibilidades
de felicidade são restringidas por nossa constituição. (FREUD, 2010a, p. 31).

Sabemos como o princípio do prazer norteia a finalidade da vida, para Freud. Contudo,
não pode ser realizado de modo absoluto. Do instante do primeiro objeto sexual na época do
aleitamento, na qual a criança, ao mamar no seio da mãe, tornou este o modelo de toda relação
amorosa, a partir dele, assim, a “descoberta do objeto é, na verdade, uma redescoberta”
(FREUD, 2016, p. 143).
De alguma forma, buscamos ao menos algum resto desse prazer perdido, e esse resto
constitui uma individualidade, uma experiência singular com o mundo. Esta experiência
fundante nos movimenta não só através do desamparo e da frustração, antes, na busca do prazer,
nem que seja “episódico”, apenas “o contraste”.

Mas mesmo depois que a atividade sexual se desprende da ingestão de alimento, resta
um elemento importante desse primeiro e mais relevante de todos os vínculos sexuais,
que ajuda a preparar a escolha de objeto, ou seja, a restabelecer a felicidade perdida. Ao
longo de todo o período de latência, a criança aprende a amar outras pessoas – que a
ajudam em seu desamparo e satisfazem suas necessidades. (FREUD, 2016, p. 143).

A busca da felicidade, da satisfação, do prazer, é limitada pelos nossos alcances


psíquicos e corporais, além de o sofrimento comum que a realidade exterior pode produzir,
como Freud assevera sobre uma “aversão ao trabalho” imposto como necessidade externa.
Não obstante, há que se considerar que os professores lutam por algum grau de satisfação
e prazer, empreendem uma energia libidinal decisiva em seu trabalho e, talvez por isso, o retorno
233

da dureza das condições da realidade social vem na mesma medida e são extenuantes. É como
nos revela o professor Luiz ao caminharmos para o fim de nossa entrevista:

Eu acho que foi assim, num primeiro momento eu fiquei meio preocupado, ainda mais
que toquei em questões de saúde mental, porque como eu me vejo neste processo... me
vejo não, eu estou neste processo. Pensei só falta eu começar meio que instável aqui.
Mas foi bom até porque tem pontos que você abordou nas perguntas que precisava
pensar também, repensar. Inclusive a minha abordagem dessa questão da criticidade
com relação a carreira, inclusive eu tenho percebido que ficar batendo boca com alguns
colegas de trabalho, o cara vai repousar, vai dormir tranquilo. E você parece que está
dormindo numa cama tipo de pregos às vezes. Você passa raiva, passa nervoso. Outros
tópicos que costuraram também como a questão do racismo. Eu tenho evitado abrir
certos tipos de conteúdo ainda mais quando mostram cenas de violência policial, por
exemplo. Ou de pessoas sendo perseguidas em certos lugares. Eu já passei por isso,
então não é uma coisa bacana também. Eu quero evitar tais conteúdos nesse sentido. E
o que eu tenho dito para mim mesmo, aprendido, reaprendido na verdade é fazer o que
dá para fazer. Faz o que é possível, sem ficar martirizando. Nossa eu tinha que ter feito
isso eu tinha que ter feito aquilo outro. A gente está num contexto bastante complicado,
pandemia, todo mundo com a cabeça a mil por hora. Faz o que dá para fazer, e faça
bem-feito. (Professor Luiz, categoria F, 15 anos de magistério).

O que percebemos, no percurso da entrevista, diante do convite de refletir sobre o mal-estar


de sua profissão, é que os professores demonstram a capacidade de realizar processos de
elaboração 147 . As tentativas de depurar as variadas experiências que lhe convocam externa ou
internamente são uma constante no trabalho docente. O professor Luiz neste trecho nos coloca sob
sua perspectiva pessoal de elaboração e reflexão, em torno dos conflitos a partir das relações de
trabalho associados ao racismo em sua vida cotidiana, o que nos faz pensar o quanto o corpo do
professor, sua imagem e história, são no espaço escolar uma experiência de resistência política.
Através das narrativas dos professores tivemos acesso às variadas dimensões do mal-
estar. Foi através dessas falas que percebemos que os professores, com os seus recursos
psíquicos, organizam um percurso de elaboração, trabalho pessoal muito intenso e importante
da constituição do ser professor, mesmo sob a pressão da racionalidade administrada, como nos
coloca o professor João ao fim da entrevista:

Gostei da experiência. É algo interessante de fazer. Tendo tempo eu acho que coisas assim
deveriam ser mais feitas com os professores, sabe. Mas quando eu falo tendo tempo,
conhecendo a classe à qual eu pertenço é o tipo de atividade que a galera só aceita fazer
quando está dentro da jornada de trabalho. Para não tomar ainda mais tempo. Que eu acho
uma dificuldade dos pesquisadores de educação, achar a galera disposta a participar das
pesquisas. Ter tempo disponível. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

147
Acompanhando o Vocabulário da Psicanálise, o processo de elaboração é entendido nesta dissertação como:
“Expressão utilizada por Freud para designar, em diversos contextos, o trabalho realizado pelo aparelho psíquico com o
fim de dominar as excitações que chegam até ele e cuja acumulação corre o risco de ser patogênica. Este trabalho consiste
em integrar as excitações no psiquismo e em estabelecer entre elas as conexões associativas.” (LAPLACHE;
PONTALIS, 2001, p. 143).
234

A qualidade das entrevistas, o rico conteúdo que elas revelam, mostra a capacidade reflexiva
dos professores, fundamental na busca por saúde psíquica, na medida em que se percebem em um
determinado contexto social que é atravessado por inúmeras variáveis e determinações.
O trabalho de elaboração necessita de tempo. É um processo muito profundo e pessoal,
que também se dá a partir da relação com os outros, sejam professores ou outros profissionais
de educação, assim como a rede de pessoas próximas e familiares e, evidentemente, com os
estudantes. É da ordem dessa elaboração que se constitui o ser do professor, em sua função, seu
estilo e seu modo de fazer, que não se encontram prontos e acabados a partir de alguma
certificação ou diploma; antes, incompletos, em movimento.
O professor se constitui por essa elaboração a partir das fundamentais experiências de
prazer, de gratificação psíquica e reconhecimento narcísico. Mesmo cada vez mais restritas
pelas dinâmicas sociais, o encontro com o estudante, mediado pelo trabalho do professor,
produz um espelho das possibilidades desse professor se enxergar em sua experiência de ofício
e constituir uma identidade docente.
Sem essas formas de prazer, acreditamos que fique cada vez mais difícil o professor dar
conta da intensidade do sofrimento – que nomeamos como sendo um mal-estar destrutivo
presente nos profissionais da educação. Alguma ordem de prazer equilibra o psiquismo e
permite que ele sustente com mais confiança seu mundo interno e sua imagem enquanto
professor, autoridade que se constitui psiquicamente e sob determinado contexto social.
É a possibilidade de obter experiências de prazer148 que quebram as repetições comuns
ou compulsivas do espaço escolar. São dessas experiências de prazer que se formam memórias

148
Utilizaremos uma passagem do trabalho de Manfré (2014) para diferenciar as categorias “vivência” e
“experiência” em Benjamin. Na categoria de “experiência”, Benjamin aproxima-se mais das concepções de Freud,
ao passo que a categoria “vivência” torna-se uma expressão das marcas da modernidade e do modo de organização
social do capitalismo baseados em choques e com um núcleo traumático. Importante destacar que o espaço de disputa
social em torno da autonomia docente se dá também pela capacidade de poder fazer “experiências” e o quanto isso
tem sido obstruído pelos diversos atravessamentos econômicos, sociais, psíquicos e culturais que temos trazido na
pesquisa até aqui. “A passagem da oposição entre memória e consciência para a oposição entre experiência e vivência
é feita por Benjamin utilizando a concepção de memória involuntária de Proust. A memória de Freud, aquele
reservatório que guarda vestígios mnemônicos dos estímulos externos, é equiparada por Benjamin à memória
involuntária de Proust. Por esse prisma, os estímulos, quando aparados pelo consciente, não são armazenados no
inconsciente e, consequentemente, não podem ser posteriormente recuperados pela memória involuntária e integrados
à experiência.(...) Disso resultam, para Proust, as lembranças conscientes que nada guardam do verdadeiro passado e
são, portanto, estéreis para a constituição da experiência em sentido estrito. O que sucede ao indivíduo nesse contexto
é apenas a vivência. Dito de outro modo, são fatos e lembranças isolados que a proteção contra os choques assimila
imediatamente, impedindo que sejam depositados no reservatório de sua memória e, posteriormente, recuperados
para construção do que Benjamin (1989, p. 106) chama de ‘uma imagem de si’, ou seja, para a estruturação da
experiência a partir do contato com o passado propiciado pela memória.(...) É necessário esclarecermos que o ensaio
benjaminiano não se mostra, porém, na demonstração de que a memória e, consequentemente, a experiência, mantém
uma estreita relação com a proteção contra os choques do mundo exterior. É importante compreender que isso não
representaria em si uma ameaça à constituição da experiência. O que provoca o seu empobrecimento é a frequência
235

individuais ou coletivas que fazem o ofício docente valer a pena e, por isso, evitam que o
professor atue149 no espaço escolar por dimensões mal elaboradas e traumáticas de seu trabalho.
O prazer no trabalho estabelece a diferença consigo e com o outro, fundamental para demarcar
as particularidades da experiência como não repetitiva, porém únicas no encontro com o outro,
e na relação de transformação de si no autorizar-se a ser professor.
O professor João nos revela que tem prazer em preparar aulas. Acreditamos que isso já
faça parte da elaboração psíquica mediada pelo trabalho. Preparar suas aulas e com ela construir
o seu estilo pessoal, o seu saber, a sua forma naquilo que será proposto e discutido com os
estudantes, mas, acima de tudo, preparar aula sem aquele “compromisso” da imposição
administrada do trabalho. Poder ter “tempo”, “associar livremente” sobre os materiais que
podem servir de apoio nessa preparação.

O que te dá prazer no trabalho como professor?


É uma boa pergunta... No trabalho como professor, se eu falasse isso numa sala de
professores eu seria motivo de brincadeira. Se falar aqui para minha esposa ela vai
brincar comigo. Preparar aula, não com aquele compromisso, se eu não tiver aula
preparada para amanhã cedo eu vou ter problema de lidar com os alunos. Quando eu
consigo ter tempo, nossa eu vou assistir o vídeo, vou ver este filme, eu vou até fazer
algumas anotações. Eu separo um material, eu vou preparar aula com calma. Isso é
uma coisa que me dá prazer. Eu sei que numa sala de professores é esquisito.
Mas por que numa sala de professores é esquisito?
Eu acho que uma forma de lidar com esta precariedade, a gente tira sarro dos colegas,
aquele colega que não prepara mais aula por “n” motivos. Ele olha para você e fala
“oh você tem até cabelo branco, você parece jovem ainda tá preparando aula”.
Infelizmente nem sempre eu consigo preparar uma aula. Às vezes a gente que já tem
assim um certo traquejo, 10, 15 anos dando aula você já tem lá uma certa prática do
trabalho. Mas quando eu consigo parar, às vezes eu gasto tempo que eu nem tenho
disponível lendo um material, mesmo que seja um material didático sabe. Às vezes
eu pego um material, nossa isso aqui parece interessante, deixa eu dar uma olhada,
uma lida, deixa eu pensar sobre esta proposta que está no livro didático. E tá neste site
dessa professora que escreve livro didático, tem uma professora que escreve livro
didático e tem site voltado para professores com livros de História. Aí eu penso deixa
eu dar uma lida nisso, parece interessante. Isso é um exemplo de coisa que me dá
prazer. Outra coisa que me dá prazer na profissão, e são momentos raros, sem querer
ser a Poliana, são momentos que eu considero um pouco de magia quando às vezes
você está ali dando aquela aula e de repente um aluno para, você vê que deu o estalo
nele, é visível. E ele levanta a mão “e então professor”, ele interage. Claro interage
como uma criança de 11, 12, 13 anos. Isso é uma coisa que me dá prazer. É esquisito
falar isso eu sei, mas... (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

crescente, na vida diária, de situações em que a percepção é exposta ao choque. É esse o alcance do texto de Benjamin,
afirma Gagnebin (1994). Ele compreende um momento em que a memória e a experiência se enfraquecem em face
da transformação da percepção cotidiana, isto é, no momento em que o choque passa a ser a forma dominante pela
qual os eventos externos atingem a percepção dos indivíduos. A investigação benjaminiana se ocupa, no treinamento
do consciente à percepção descontínua do choque, com a emergência de uma temporalidade empobrecida, própria à
vida urbana e à busca incessante do novo, que, por estar inteiramente permeada pela instantaneidade do choque,
representa uma ameaça à experiência.” (MANFRÉ, 2014, p. 156-7).
149
Freud, no texto Repetir, recordar e elaborar, trata da atuação dos seus pacientes quando não recordam o que
foi esquecido. “Se nos detemos nesse último tipo para caracterizar a diferença, é lícito afirmar que o analisando
não recorda absolutamente o que foi esquecido e reprimido, mas sim o atua. Ele não o reproduz como lembrança,
mas como ato, ele o repete, naturalmente sem saber que o faz.” (FREUD, 2010p, p. 199).
236

Ao preparar aula, o professor parece estabelecer uma diferença com os demais colegas
na sala dos professores, a diferença da particularidade do seu trabalho, da elaboração do
trabalho, da sua própria individualidade. Talvez por isso o ambiente ali reaja avaliando esquisito
não se adequar, não se adaptar a uma forma de repetição no modo de ser docente, afinal “você
já está com cabelos brancos” e precisa preparar aula?
Ao mesmo tempo, relata os momentos raros, os “fenômenos episódicos” de felicidade, que
diz ser “algo mágico”. A dureza do mal-estar docente o faz associar à figura da “Poliana”, como se
o professor não tivesse o direito a momentos de prazer, de felicidade e agradáveis, e poder
compartilhar tais experiências. O sofrimento destrutivo associado a dinâmica capitalista mais ampla
marca a sociabilidade docente, de tal forma que revelar algo que lhe produz satisfação e prazer no
trabalho com os estudantes só pode ocupar o lugar de “Poliana”, de um ser ingênuo. O professor
Joao prossegue:

Esquisito... por que esquisito?


Ah sei lá. Uma sociedade que parece que só o que dá prazer é ganhar dinheiro... Se
bem que isso também é uma forma de reconhecimento. A gente acaba mesmo se
vendo reconhecido quando aquele aluno, você percebe que ele está aprendendo.
Aquela aula que você... quer ver um exemplo prático, já tem uns 3 ou 4 anos... Eu tinha
selecionado um pedaço do livro didático, não foi nada de outro mundo. Um livro
didático do Gilberto Cotrim, que foi um autor clássico. E o conteúdo era Grécia Antiga,
e no livro tinha um box falando sobre a educação dos meninos e das meninas na Grécia
Antiga. Aí eu planejei a aula mais ou menos. Falei bom eu vou fazer uma leitura com
eles. Era um texto pequeninho e aí sem tentar fazer aquela coisa de militante sabe, vou
tentar fazer só uma leitura e ver se com um comentário leve ou outro eles conseguem
fazer as conexões entre direitos entre meninos e meninas. E o texto falava que a
educação das meninas na Grécia Antiga era de uma forma e os meninos tinham direitos
políticos e tal. E tinha umas meninas bem participativas. Era um sexto ano. Mal acabei
de ler eu já percebi que as meninas estavam incomodadas. E bastou tipo uma pergunta,
e aí o que vocês acham? E hoje em dia? E as meninas foram, sexto ano, e começaram a
dar opiniões sabe. Se este pessoal da “escola sem partido” estivesse assistindo a aula ia
achar que eu ia estar vomitando ideias na cabeça dessas alunas e foi uma aula bacana.
Os meninos tentaram reagir, coitados né... O machismo que eles também vivem na casa
e tal. E as meninas foram e descarregaram em cima deles... Sexto ano, é um exemplo de
uma situação que é rara, não acontece com frequência, mas que também dá prazer. Eu
acho para não me estender muito que seriam basicamente estes dois exemplos. Ler e
preparar aula e às vezes estes momentos na sala de aula que a minha proposta
minimamente funcionou sabe. (Professor João, categoria A, 13 anos de magistério).

A capacidade de fazer experiências por si parece tornar-se esquisita nos tempos em que
vivemos. O professor organizou uma proposta de aula que mobilizou a reflexão dos estudantes.
Se viu na condição criativa que, em sua proposta de trabalho, seu modo de fazer docente lhe
retornou positivamente pelo efeito nos estudantes. Assim, uma aposta nas possibilidades de
gratificações e frustrações no trabalho. O retorno produz reconhecimento narcísico a partir
desse encontro com o outro e consigo e, sobretudo, memória afetiva dessa experiência singular.
237

Entretanto, é importante observar tanto a reação dos colegas professores quanto as dúvidas
que vão aparecendo no professor João a respeito da experiência: “a Poliana”, “o sarro dos colegas
professores e da esposa”, “os cabelos brancos”, “o prazer associado somente a dinheiro” que
revelam um modo de organização social no qual o tempo da experiência não só perde sua força e
sentido, mas é, sob variadas formas, mesmo que através do humor, recusado, desmentido. Não está
sob o cálculo de uma determinada racionalidade. É como nos revela Adorno (2006d, p. 33):

A sociedade burguesa encontra-se subordinada de um modo universal à lei da troca, do


“igual por igual” de cálculos que, por darem certo, não deixam resto algum. Conforme
sua própria essência, a troca é atemporal, tal como a própria razão, assim como, de
acordo com sua forma pura, as operações da matemática excluem o momento temporal.
Nestes termos, o tempo concreto também desapareceria da produção industrial. (...) O
que é o mesmo que dizer que a memória, o tempo e a lembrança são liquidados pela
própria sociedade burguesa e seu desenvolvimento, como se fossem uma espécie de
resto irracional, do mesmo modo como a racionalização progressiva dos procedimentos
da produção industrial elimina junto aos outros restos da atividade artesanal também
categorias como a da aprendizagem, ou seja, do tempo de aquisição da experiência do
ofício. Quando a humanidade se aliena da memória, esgotando-se sem fôlego na
adaptação ao existente, nisto reflete-se uma lei objetiva de desenvolvimento.

O que Adorno (2006d) e as falas do professor João nos revelam é que essa forma de
organização social marcada pela sociedade burguesa não só elimina a capacidade de
experiência, de relação mais profunda que um professor ou um trabalhador possa fazer com
aquilo que faz ou produz, mas, também, constitui o indivíduo em modo de ser e olhar o mundo,
olhar inclusive o outro, recusar ou mesmo desmentir quando essas possibilidades se colocam,
de caráter mínimo que seja.
A “lei universal da troca” se dá entre pessoas que também ocupam o valor de troca como
posição subjetiva. Se não há diferença, não há experiência singular, temporal, que deixe um
resto de memória. Parece que o professor João, ao apontar uma particularidade, um “valor de
uso” de sua experiência como professor, produz um certo incômodo, uma recusa, um
desmentido dos demais em dar valor à sua experiência, porque, parece-nos, que a diferença se
estabelecerá como um espelho. Talvez seja doloroso aos professores, nesse contexto de
desumanização, se ver pela diferença. Retomamos os processos relacionados “à identificação
ao agressor” (ADORNO, 2006f) que atravessa, neste caso, o que Adorno aponta dos processos
de adaptação que já se realizam de modo bem inicial, desde a infância na vida de todos. É
importante destacar os efeitos persecutórios reais ou imaginários como formas sintomáticas de
sociabilidade que este tipo de organização social pode produzir nos indivíduos quando estes
marcam alguma forma de diferença.
O professor Pedro nos revela que sabe que está na profissão certa porque os domingos à
noite não lhe deprimem mais, “a música do fantástico” indica que a segunda-feira está chegando.
238

Interessante observar esta marca da Indústria Cultural também numa certa rotina repetitiva de
programação televisiva a qual norteia um modo de se relacionar com o mundo do trabalho.

O que te dá prazer no trabalho como professor?


Quando o aluno chega para mim e fala: “nossa, professor já bateu o sinal? Já acabou
a sua aula? Nossa é fácil, nunca gostei de inglês, mas agora eu estou entendendo”. “Se
você fosse meu professor de português desde tal época eu teria aprendido mais”. Eu
acho que é isso. No que se resume para mim é isso. O aluno que chega para você e
você percebe que ele gostou de ter aprendido ou ele sentiu que aprendeu. O que me
dá prazer realmente é isso. Eu costumo brincar porque eu sei que eu to fazendo o que
eu gosto, por causa da... agora não mais porque antigamente minha sogra era viva ela
assistia fantástico, a musiquinha do fantástico, eu costumo dizer para as pessoas que
estou na profissão certa porque a musiquinha do fantástico não deprime mais. Nos
outros empregos que eu tive eu ouvia a musiquinha do fantástico e pensava: “nossa
meu Deus, amanhã já é segunda feira, eu tenho que estar lá”. Eu sei que estou na
profissão certa porque sem nenhuma hipocrisia este apavoramento de domingo à noite
eu não tenho. Não tenho mesmo, então eu sei eu tô na profissão correta por isso.
(Professor Pedro, categoria A, 21 anos de magistério).

Ao mesmo tempo, o professor encontra uma satisfação, um prazer no reconhecimento


do estudante de que seu trabalho tem sido efetivo. “Nossa professor, já bateu o sinal?, “Já
acabou a aula?” Apesar do sinal, a fala do estudante indica que o tempo cronológico não foi o
norteador; ao contrário, a relação dele, em sua experiência com o trabalho do professor,
produziu uma rede de significados em que “não se viu o tempo passar”. É como se o tempo
estivesse integrado à experiência e não separado, alienado.
O trabalho educacional é processual e as gratificações não são fáceis de mensurar porque
se estabelecem em vínculos com o outro. Não estamos falando de objetos concretos e exatos,
coisas, mas de pessoas, crianças e adolescentes em formação e todas as condições e
contradições em que esse desenvolvimento se desdobra na relação com o professor.
A professora Ana igualmente verifica essa relação dos estudantes com a aprendizagem,
de evolução como uma das formas de gratificações narcísicas do professor, do seu investimento
libidinal. Quando essas possibilidades de encontros criativos, reflexivos, profundos, aparecem,
entre estudantes e professores, temos uma dimensão do que Freud denominava sublimação, a
capacidade de, através do trabalho, dar um destino e ter um retorno dos impulsos agressivos,
eróticos, narcísicos.

O que te dá prazer no trabalho como professora?


É eu acho que quando aluno aprende. Quando o aluno aprende, quando ele traz alguma
coisa que você já ensinou, faz uma correlação, por exemplo. Um assunto, “eu acho
isso” é a parte mais gratificante, surtir algum efeito. Eu acho que é isso, vem do aluno,
a relação com eles, quando a sala... eu tenho um sétimo ano ali na escola que é muito
bom. Eles participam e tal, a aula flui bem, eu não preciso ficar chamando atenção. E
é uma sala que tem 40 alunos. Eu gosto de dar aula nessa sala. A minha aula é melhor
nessas do que nas outras por exemplo. Então a parte gratificante acho que é essa,
quando a aula flui bem e quando os alunos conseguem entender e demonstram para
você de uma forma assim não forçada, de uma forma mais livre que eles aprenderam.
239

E está contribuindo para alguma coisa na vida deles essa aprendizagem. (Professora
Ana, categoria A, 15 anos de magistério).

Os estudantes retornam de uma forma “não forçada”, “mais livre”, podemos dizer
espontânea, através do vínculo que a professora mobilizou a partir do seu trabalho e seu modo
de fazer docente. O professor Luiz também sente falta da possibilidade de trocar com os
estudantes “sem uma rigidez”, “daquelas fileiras” da racionalidade administrada. Pensar outras
formas mais livres de relação são a possibilidade de o professor demarcar seu modo de ser
docente, através do conteúdo ao qual se sente, como diz Freud (2014d), na “plenitude da
realização do Eu”, ao agir de modo consciente sobre a realidade exterior.

O que te dá prazer no trabalho como professor?


Quando eu consigo o engajamento dos alunos. Principalmente em temas que são
considerados polêmicos. Quando eu puxo os alunos para eles exporem a opinião deles
sobre determinado assunto eu percebo que a pessoa está se esforçando para conversar
sobre isso. Por exemplo, pode ser mesmo que o Bolsonaro, pode ser em relação ao
racismo ou outras questões de xenofobia, fascismo, estas questões que a gente já
puxou sobre esquerda e direita. E estes estereótipos sobre Cuba, Venezuela, Coréia
do Norte, China e enfim. Uma série de questões. Quando eu percebo que eles estão
motivados para trocar ideia, para bater papo, para sair daquela rigidez, daquelas
fileiras todas, isso me deixa feliz. (Professor Luiz, categoria F, 13 anos de magistério).

Além da realização do Eu na possibilidade de alterar e mudar a realidade exterior, parece


que Freud tem um modo bastante particular de pensar a saúde psíquica. Em seu texto A perda
da realidade na neurose e na psicose, de 1924, combina as duas “patologias”, neurose e
psicose, como uma saída, um caminho para um modo de ser humano.

Ou, de outra maneira ainda: a neurose não nega a realidade, apenas não quer saber
dela; a psicose a nega e busca substituí-la. Chamamos de normal ou “sadio” o
comportamento que une certos traços de ambas as reações, que nega a realidade tão
pouco como a neurose, mas se empenha em alterá-la como a psicose. Essa conduta
adequada aos fins, normal, leva naturalmente a um trabalho efetuado no mundo
exterior, e não se limita, como na psicose, a mudanças internas; já não é autoplástica,
mas aloplástica. (FREUD, 2011f, p. 218).

O que podemos perceber é que, para Freud, saúde psíquica é atuar sobre a realidade
exterior (aloplástica) com a capacidade imaginativa que movimenta os traços neuróticos e
psicóticos. Essa construção do pensamento freudiano revela um olhar sobre a condição humana
e os sintomas que ainda estão em aberto para serem pensados na contemporaneidade.
O professor Fernando, que carrega a marca psíquica do espaço social das periferias de
São Paulo, em que nasceu e viveu, traz esse engajamento, seu modo de ser e fazer docente está
conectado com o agir sobre essa determinada realidade social que lhe produz “a realização da
plenitude do seu Eu.” (FREUD, 2014d).

O que te dá prazer no trabalho como professor?


240

É poder ver que todos aqueles que foram largados para serem tratados como lixo
florescem. E conseguir mostrar para os pais, para comunidade, conseguir mostrar para fora
do seu bairro o potencial artístico, intelectual, a força consciente de trabalho... Isso daí é o
que faz eu dormir a noite e acordar de manhã cedo com vontade de viver. É ver os
moleques ir além do que o pai deles foram, onde eles imaginaram que poderiam ir. Mesmo
estando dentro da favela, indo além e sem sair do bairro. Fazendo melhorias para eles
próprios, para todos nós. Conseguir se entender, conseguindo entender de onde vem as
coisas que causam mal a eles. A melhor coisa do mundo, eu dava aula para o EJA a noite
então eu trabalhava com os filhos deles de manhã e com eles a noite. Eu achava aquilo o
ideal porque não tinha um choque educacional de cultura. Todo mundo estava trabalhando
a mesma ideia. O velho, o novo, isso era legal para caramba. Mas isso também não é
valorizado, não é valorizado. (Professor Fernando, categoria O, 12 anos de magistério).

A professora Luana também demarca esse resgate dos estudantes, a possibilidade de dar
oportunidade para que eles se desenvolvam psíquica e socialmente.

O que te dá prazer no trabalho como professora?


São aqueles alunos que você consegue resgatar. Eu penso que é por eles, eu preparo
as aulas pensando as aulas naqueles. Quando você vê que eles estão interagindo,
quando você vê aquela dificuldade que um aluno tinha de ser transpassada. Isso me
motiva, quando o aluno vem e fala “professora obrigado por essa aula”. Por exemplo,
teve um aluno que falou esse dia, “prô não imaginava que Química era tão legal”,
“professora tem um jogo que é isso que a senhora explicou, vai fazer eu passar de
fase”, então por mais que sejam poucos já basta. Já ganhei aquela aula que eu dei, já
me motiva a preparar a próxima. São por eles mesmo, não tem outro motivo.
(Professora Luana, categoria O, 12 anos de magistério).

Tanto o professor Luiz como a professora Luana, assim como praticamente todos os
professores entrevistados, são de origem pobre, popular, de famílias dos interiores do Brasil,
zona rural, das periferias de São Paulo, da classe trabalhadora, e conseguiram, de algum modo,
ascender socialmente como professores, o que implica uma série de relações simbólicas e
concretas, contraditórias com os espaços sociais e seus ideais próprios.
Diante de tantas adversidades em sua profissão, de um mal-estar destrutivo, “resgatar”
esses estudantes pode representar o resgate de sua própria condição como professores, do
infantil criativo, onipotente, que carregam dentro de si e que não querem ceder psiquicamente
ao adoecimento, à introjeção do ambiente agressor ou à impotência.
É claro, também, que essa posição pode produzir uma tensão no próprio lugar
imaginário que o professor pode ocupar com relação a ser um “salvador”. Assim, em uma
onipotência que, ao invés de movimentar, possa ser destrutiva, tanto no impossível de ocupar
tal lugar, quanto na relação com o outro como aquele que precisa ser “resgatado”. Essas,
certamente, são questões que combinam tensões de toda ordem, psíquicas mais profundas, das
dinâmicas sociais, econômicas, culturais e mesmo históricas.
241

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos ao fim do nosso percurso de trabalho que buscou desdobrar em muitas


perspectivas do mal-estar docente. Esta, certamente, é nossa primeira consideração: a
complexidade de nosso objeto de estudo exigiu que fizéssemos este caminho, porque
acreditamos que esse mal-estar envolve muitas particularidades relacionadas a dimensões
concretas gerais (o modo de organização social, econômico e cultural) e específicas da rede de
ensino em que o professor trabalha, das escolas, seu bairro, mas, também subjetivas, familiares,
geracionais, dos próprios ideais dos professores.
Percebemos a complexidade da dinâmica social que penetra e constitui de variadas
formas a subjetividade do professor. Esta dinâmica social não pode ser colocada à margem na
análise do mal-estar docente. Compreendemos, portanto, nesta dissertação suas
particularidades, suas formas de sobredeterminação que interferem diretamente no modo
específico de adoecimento docente.
Para além de compreender o mal-estar docente como uma questão isolada e individual,
nosso objetivo foi compreender as dinâmicas sociais regressivas no trabalho do professor e
como elas afetam a sociabilidade no interior da escola. Constatamos não só que essas dinâmicas
existem, mas como elas produzem uma série de adoecimentos que se manifestam
individualmente ou em grupos.
Consideramos, igualmente, que as dinâmicas sociais relacionadas ao ofício docente têm
um peso decisivo na construção de sua individualidade, nas formas de adoecimento, adaptação,
resistência (atividade) ou mesmo prazer e elaboração. Assim como a individualidade tem peso
importante nas formas de ser professor e “administrar” o mal-estar proveniente da profissão.
Utilizamos interpretações e análises que nos fizeram refletir sobre os fundamentos da
sociabilidade e da modernidade partindo de autores como Freud, Ferenczi, Adorno e outros,
que balizaram a pesquisa e nos permitiram ampliar nosso olhar sobre o mal-estar do professor.
Estudamos aspectos centrais que constituem o modo de ser docente na rede de ensino
estadual de São Paulo, mobilizadas por dimensões de seu desamparo, que, apesar de
mobilizadores de possibilidades de criação através do “não-saber”, inerente ao ofício docente,
intensificados pela precarização do trabalho, como nos relataram os professores, afetam uma
leitura da realidade e convocam no ambiente escolar um tempo idealizado e nostálgico
desconectado da realidade social aonde o professor teria por ventura mais “autoridade”.
Refletimos também os aspectos de deslocamentos de sua agressividade e libido que,
obstaculizadas, produzem processos de adoecimento e sociabilidades regressivas no interior do
242

espaço escolar, os quais afetam inclusive lógicas de poder que tem o lugar de sentar-se na mesa
da sala dos professores como símbolo de distinções. Percebemos como os efeitos
psicossomáticos são uma expressão destes deslocamentos através de gastrite (professor
Fernando), hérnia de disco (professor Pedro), paralisação das pernas (professora Vera) etc., ou
mesmo processos de adoecimento como modo de autopreservação que podem culminar muitas
vezes em readaptação para outras funções na escola que não a docência.
Observamos como as dinâmicas sociais precarizadas de trabalho interferem na própria
constituição do Superego e na transmissão geracional como nos aponta a professora Luana que
diz que “apesar de gostar de ser professora, não gostaria que seu filho fosse” pela desvalorização
da profissão. O que marca na transmissão geracional e na cultura uma intensa ambivalência no
contexto das “aversões ao magistério”.
No que toca a formação, analisamos que a inserção do professor no ambiente escolar se
dá muitas vezes por um “choque de realidade” e é por vezes traumática, ocasionada pela
precarização do trabalho. Além disso, analisamos aquilo que o professor pode oferecer de
singular na criação de um modo de ser docente, seja em sua relação transferencial com os alunos
e com os colegas de trabalho, ou na própria constituição de uma perspectiva pessoal de
autoridade, em um cenário de formação com determinações externas e que não favorece a
simbolização coletiva do mal-estar, mas justamente a padronização dos modos de ser docente
aos quais elevam a intensidade deste mal-estar.
Todas essas são questões relacionadas à particularidade desse ofício, mediadas pelas
relações de trabalho na maior rede de ensino do Brasil. Neste sentido a intensidade pela qual as
formações sociais destrutivas se realizam na atualidade não só constitui os indivíduos como
também convoca neles aspectos autodestrutivos, estabelecendo cisões e ressentimentos,
fenômenos psicossociais relacionados ao cinismo e sintomas das chamadas neuroses atuais,
além de sociabilidades na qual há formas de desfusão da pulsão de vida e da pulsão de morte
hegemonizadas pela última.
Em que pesem as particularidades, inclinações e disposições que os professores possam
ter, as quais inclusive foi um dos nossos objetivos não apagar, mas justamente valorizar através
da escuta destas singularidades, analisamos que há um sofrimento comum e intenso decorrente
do processo de “evolução cultural”, que não ajuda – como nos lembra Freud – a dirimir as
perturbações psíquicas profundas dos indivíduos, ao contrário, justamente as tensionam mais,
criando formas de adaptação e cisões do Eu, assim como desmentidos sociais que elevam a dor
docente, isolando e traumatizando-o.
243

Vimos que o professor vive situações muitas vezes humilhantes, seja nas atribuições de
aula, seja no modo que estabelece o seu contrato de trabalho extremamente precarizado, como nas
categorias O e V, que marcam inclusive um modo regressivo de identidade docente, seja pela
dinâmica de grupo que se estabelece, a partir das sociabilidades contratuais, pelas relações sádicas
e hierárquicas no local de trabalho com gestores ou mesmo na divisão social de seu trabalho
intelectual e manual pelas diretrizes externas, heterônomas da formação, das condições de trabalho
e salário. E, não menos importante, a difícil tarefa de sustentar o próprio mal-estar inerente à
profissão em um país com toda a precariedade social que a população e os estudantes atravessam.
A educação no Brasil é tratada essencialmente como custo e a prática dos governos tem sido a de
abandono e negligência de demandas básicas para o funcionamento escolar.
São tantas formas que se expressam o mal-estar social que o professor sustenta com seu
psiquismo e corpo, que avaliamos e caracterizamos processos de adoecimento de ordens
variadas, muitas vezes com o objetivo de se autopreservar psiquicamente para não entrar em
um adoecimento mais drástico e paralisador. É evidente que isso produz um custo psíquico e
social, visto que o ofício e o trabalho são necessidades internas narcísicas, necessidades
externas de sobrevivência; portanto, são diárias e constantes. Some-se a isso que o trabalho
específico do professor de educação básica responde a uma necessidade da sociedade e não
apenas do próprio professor.
Avaliamos que este professor também luta por prazer e consegue, na medida dos seus
recursos psíquicos e em um determinado contexto social, elaborar situações bastantes intensas.
Tais formas são capazes de reafirmar sua individualidade numa dinâmica social cada vez mais
perturbadora, instável e precária. Como nos lembra o professor Pedro, resistir, como atividade,
é “deixar sua intelectualidade aflorar”, marcando a dimensão da sexualidade no sentido amplo
que Freud nos elabora.
Entre os aspectos estritamente clínicos ou estritamente econômicos, nossa dissertação
buscou as mediações da individualidade e dos aspectos sociais, e como elas se influenciam
produzindo um modo muito particular de mal-estar do professor. Essa forma de análise torna a
escuta mais complexa porque está na ordem do irreconciliável da relação entre o indivíduo e a
sociedade, do princípio do prazer e do princípio de realidade. Mesmo assim, visamos
compreender essa tensão dialética para evitar processos de dissociações ao analisar as questões
ora por determinismos econômicos, ora por determinismos psíquicos isolados. Nossa reflexão
quis evitar o que aponta Adorno (1992, p.43) sobre a falência da cultura através da própria
falência da capacidade de reflexão e crítica. “O que quer que ocorra a alguém, é bom o
244

suficiente para permitir que especialistas decidam se quem produziu tal pensamento é um
caráter compulsivo, um tipo oral ou um histérico.”
Concluímos, através da análise dos dados de pesquisa, que a precarização do trabalho
na rede de ensino estadual de São Paulo não produz um mal-estar qualquer, contingente ou
apenas individual. Vimos, inclusive, diferenças de mal-estar docente entre as redes de ensino
de São Paulo, municipal e estadual. Os professores da rede municipal com mais condições de
organização sindical, por serem uma categoria menos dividida pelas políticas dos governos,
fizeram uma “greve pela vida” por mais de 100 dias em momento agudo da pandemia, ao qual
os professores da rede estadual na prática não acompanharam plenamente. É possível dizer,
portanto, que os professores da rede estadual correram mais riscos de vida, sem nenhum uso
retórico da expressão, resultados dos efeitos de sua precarização do trabalho.
Este mal-estar produz implicações também nas dinâmicas narcísicas e no
empobrecimento da concepção de autonomia docente, naquilo que marca a própria identidade
do professor, o seu nome, rede de significados daquilo que o sujeito é ou mesmo dos efeitos
psíquicos na própria capacidade de sonhar do professor, dimensão fundamental de descanso,
reparação, criação e elaboração do psiquismo. O perturbador esquecimento do próprio nome
como nos relatou o professor Luiz, assim como as dificuldades de sonhar do professor João,
são a inquietante evidência de um sofrimento destrutivo dos professores da rede de ensino
estadual de São Paulo, os quais avaliamos penetram profundamente no corpo e no psiquismo.
Através do conjunto dos textos de Freud, avaliamos suas preocupações em não analisar
“as satisfações secundárias do sintoma” de modo absoluto, assim como perceber os aspectos
relacionados à cultura e à determinada dinâmica social destrutiva, hegemonizadas por
Thanatos, no agravamento das perturbações psíquicas individuais.
Os limites de uma dissertação de mestrado nos impedem de ampliar as questões que
surgiram no decorrer do trabalho de pesquisa. Contudo, consideramos que há uma
particularidade da intensidade do mal-estar destrutivo docente com a categoria trabalho que
abre para a ampliação da investigação, no sentido de compreender, do ponto de vista do capital,
como essa apropriação do trabalho do professor em sua especificidade se dá, assim como afeta
as próprias dimensões e possibilidades criativas do mal-estar. Além disso, a particularidade
histórica do capitalismo brasileiro e sua relação com o mal-estar do professor nos abrem
possibilidades de reflexões e questões para futuras pesquisas.
Para finalizar, faço alusão a um pequeno texto de Freud, de 1910, intitulado Introdução
e conclusão de um debate sobre o suicídio, no qual ele comenta o papel fundamental da escola
em produzir no estudante “a vontade de viver”, assim como “o apoio e esteio numa fase da vida
245

em que, pelas próprias condições de seu desenvolvimento, veem-se obrigados a afrouxar os


vínculos com a casa paterna e a família.” (FREUD, 2013a, p. 389).
É justamente porque a escola tem esta importância social que Freud lhe atribui, em
especial em um país com as características do Brasil, que esta pesquisa buscou compreender as
dinâmicas sociais no interior da escola, de um mal-estar do professor intensificado em uma
forma de sofrimento destrutivo. Assim, não há como pensar uma escola de ensino básico que
produza “desejo de viver” no estudante sem que o professor saboreie esta experiência de vida,
de Eros, nele mesmo.
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256

___. Em defesa do marxismo. Trad. Luís Carlos Leiria; Elisabeth Marie. São Paulo: Ed.
Proposta Editorial Ltda, 1942.

UCHITEL, M. Em busca de uma clínica para o traumático. In: FUKS, L. B.; FERRAZ, F. C.
(Orgs.). A clínica conta histórias. São Paulo: Escuta, 2000.

___. Neurose traumática: uma revisão crítica do conceito de trauma. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2011.

VENCO, S. Uberização do trabalho: um fenômeno de tipo novo entre os docentes de São Paulo,
Brasil? Cad. Saúde Pública, 35, sup. 1, 2019.

VOLTAIRE. Candido, O Otimista. São Paulo: Nova Cultural, 2002.

ZAFALÃO, J. Do que adoecem os professores e as professoras? São Paulo: Ed. Usina


Editorial, 2021.
257

ANEXO 1

ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA


Dados de identificação
Nome: Idade:
1- Qual a sua formação?
2 – Quanto tempo você trabalha como professor da rede estadual de ensino? Acumula com
outras redes de ensino ou trabalhos? Pretende se aposentar na educação?
3 – Na rede estadual qual é seu contrato de trabalho? Como avalia este contrato?
4 – Por que você escolheu a educação como caminho profissional?
5- Qual a história profissional e educacional dos seus pais e avós? Você teve incentivos
familiares para ser professor?
6 - Com sua experiência no trabalho como professor hoje, você escolheria novamente ser
professor se estivesse iniciando os estudos? Por quê?
7 – O que você considera que seja o seu papel social como professor?
8 – Quais são na sua avaliação as maiores dificuldades no seu trabalho?
9- O que você entende por autonomia no trabalho? Você consegue ter autonomia no seu
trabalho como professor?
10 – Como você avalia a afirmação: “o professor não tem mais autoridade em sala de aula”
11 – Como você avalia sua formação para o trabalho docente? Há espaços de formação
significativos na escola?
12 - Você vivenciou algum atrito referente ao trabalho seja com alunos, professores ou gestão
ou de algum outro tipo? Como se deu? Como foi solucionado? Qual foi o papel da gestão nesse
episódio?
13 - Na sua avaliação há divisões de grupos na escola entre professores, seja na perspectiva
geracional, por contrato de trabalho, por modos de trabalhar ou por outra questão? Como se
manifesta isso?
14 - Você avalia que é valorizado socialmente como professor? Por quê?
15 - Como você avalia suas condições de trabalho e salário?
16- Como você avalia o processo de evolução na carreira do professor do estado?
17 - Você acha que há sofrimento decorrente do trabalho de professor? Como ele se manifesta?
18 - Você já teve algum problema de saúde que avalia ser resultado do seu trabalho como
professor?
19 - Você já sofreu algum tipo de violência física, verbal, psicológica decorrente de sua
profissão? Qual foi o encaminhamento dessa situação? Quem te ajudou?
20 – Você viveu situações em seu trabalho em que sentiu não ter amparo da gestão? E viveu
situações em que se sentiu amparado pela gestão? Poderia contar?
21 – O que você acha da afirmação: “houve um tempo em que o professor era mais respeitado
pelo seu trabalho.
22-Você acha que há um processo de adaptação do professor. Que com o tempo ele vai
perdendo sua capacidade crítica e de reflexão sobre o espaço do seu trabalho?
23 - O que te dá prazer no trabalho como professor?
24 – Você avalia que o sofrimento do professor pode ser uma possibilidade de pensar novas
formas de lidar com o trabalho? E mesmo de ser professor? Você avalia que há alguma
possibilidade criativa no sofrimento do professor? Como se daria isso para você?
25- Gostaria de comentar mais alguma coisa?
Muito obrigado!
258

ANEXO 2

REGISTRO DE CONSENTIMENTO PARA PROFESSORES/AS


Convidamos você a participar da pesquisa intitulada “Perspectivas do mal-estar docente: um
estudo do sofrimento do professor da rede estadual de São Paulo”. Esta pesquisa tem como
objetivo refletir sobre se há sofrimento do professor da rede estadual de São Paulo e como ele
se manifesta. Neste sentido a pesquisa investigará também a forma como você pensa sua
profissão e como chegou à escolha dela, assim como questões relacionadas a sua vida pessoal,
familiar e de trabalho.
Sua participação, caso concorde, será sob a forma de entrevistas individuais em local e horário
que considerar mais adequado e que seja possível resguardar a sua privacidade, em que o
pesquisador fará perguntas (cerca de 24) sobre o tema e gravará para transcrição. O tempo dessa
entrevista costuma ser entre 1h a 1h30, o que talvez possa ser um pouco cansativo. Há também
os riscos característicos do ambiente virtual, meios eletrônicos e de atividades não presenciais,
em função das limitações das tecnologias utilizadas, o que, eventualmente, pode interferir na
confidencialidade e potencial risco de sua violação. O áudio será armazenado em um
computador sob a responsabilidade do pesquisador com todos os cuidados para garantir o sigilo
a fim de que possa ser transcrito e, assim, analisar melhor suas respostas. Alguns dias após a
entrevista, o pesquisador enviará a você uma transcrição da entrevista para que leia e verifique
se está de acordo. A transcrição ficará guardada em papel em local seguro sob a
responsabilidade do pesquisador. O áudio ficará armazenado até a defesa da dissertação de
mestrado e posteriormente será apagado do computador em que ficou armazenado.
Sua participação na pesquisa é absolutamente voluntária, sendo que você pode decidir por se
retirar dela a qualquer momento, não acarretando qualquer consequência, penalizações ou
prejuízos. É garantido a você bem como a todos os participantes absoluto sigilo quanto a suas
identidades.
Muito provavelmente os dados obtidos nesta pesquisa serão utilizados em futuras publicações
científicas, ficando garantido, também nesses casos, o mais absoluto sigilo quanto à identidade
dos participantes. Os benefícios em participar da pesquisa são indiretos, pois ela visa contribuir
para um maior aprofundamento e compreensão do trabalho do professor através da escuta do
entrevistado sobre sua condição docente, buscando elucidar questões e temas importantes para
o avanço no conhecimento na área da formação de professores.
Você pode pedir esclarecimentos aos pesquisadores em qualquer momento da pesquisa, pode
também não responder a alguma questão que julgue incômoda sem precisar se justificar. Pode
também pedir esclarecimentos em momentos posteriores a sua aplicação. Se quiser mudar de
ideia sobre a participação após responder às perguntas, entre em contato com a pesquisadora
principal pelo telefone abaixo. Também indicamos guardar uma via deste documento em seu
computador. Caso a pesquisa resulte em dano pessoal, o ressarcimento e indenizações previstos
em lei poderão ser requeridos pelo participante. Caso tenha interesse, o pesquisador poderá
contar para você os resultados da pesquisa quando ela terminar.
Se houver qualquer dúvida sobre a pesquisa, o/a Sr./Sra. poderá entrar em contato com a
pesquisadora responsável Profa. Dra. Marian Ávila de Lima e Dias, do Departamento de
Educação da Unifesp pelo e-mail marian.dias@unifesp.com ou pelo telefone (11) 982442252.
Caso tenha alguma consideração ou dúvida sobre a ética da pesquisa, entre em contato com o
Comitê de Ética em Pesquisa / UNIFESP Rua Botucatu, 740, CEP 04023-900 – Vila
Clementino, São Paulo/SP, telefones (11) 5571-1062 ou (11) 5539-7162, às segundas, terças,
quintas e sextas, das 09:00 às 12:00hs ou pelo e-mail: cep@unifesp.br
Ao assinalar abaixo “Concordo”, você declara ter sido suficientemente informada/o a respeito
das informações descrevendo o estudo “Perspectivas do mal-estar docente: um estudo sobre o
259

sofrimento do professor da rede estadual de São Paulo”, que ficaram claros quais são os
propósitos, os procedimentos a serem realizados, as garantias de confidencialidade e de
esclarecimentos permanentes. Ficou claro, também, que a sua participação é isenta de despesas
e que você concorda voluntariamente com a participação deste estudo e que pode retirar o
consentimento a qualquer momento, antes ou durante o mesmo, sem penalidades ou prejuízo.
Nome: ________________________________________________________-
Local: _________________________________________________________
Data: ______/______/______.
( ) Concordo
Assinatura: _______________________________________________________

Eu, Marian Ávila de Lima e Dias, declaro que obtive de forma apropriada e voluntária o
consentimento deste participante – ou representante legal – para a participação neste estudo.
Declaro ainda que me comprometo a cumprir com todos os termos aqui descritos.

Profa. Dra. Marian Ávila de Lima e Dias


UNIFESP – Estrada do Caminho Velho, n. 333 – Jd. Nova Cidade – Guarulhos – SP – CEP
07252-312, telefones: (11) 5576-4848 R.6011 e (11) 982442252, e-mail:
marian.dias@unifesp.br
Comitê de Ética em Pesquisa / UNIFESP
Rua Botucatu, 740, CEP 04023-900 – Vila Clementino, São Paulo/SP, telefones (11) 5571-
1062 ou (11) 5539-7162, às segundas, terças, quintas e sextas, das 09:00 às 12:00hs ou pelo e-
mail: cep@unifesp.br

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