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CONTAR HISTÓRIAS PARA ALUNOS SURDOS

Marieuza Endrissi Sander (Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual de


Maringá); Nerli Nonato Ribeiro Mori (Profa. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade
Estadual de Maringá); Cristina Cerezuela Jacobsen (Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação,
Universidade Estadual de Maringá).
marisander@gmail.com

Resumo
Como contar histórias para alunos surdos? Qual a importância desse tipo de atividade para o desenvolvimento da
criança surda? Com base na concepção de linguagem de Vygotsky buscou-se responder a esses questionamentos,
tendo como sujeitos da pesquisa alunos com idade entre 03 e 05 anos que freqüentam a Educação Infantil em
uma escola para surdos no noroeste do Paraná. Os resultados mostram que por meio das histórias infantis as
crianças adquirem vocabulários novos em Língua de Sinais, usam a imaginação e têm contatos prazerosos com
os livros de literatura e com a leitura.

Introdução
A criança surda usuária da LIBRAS - Língua Brasileira de Sinais - exibe uma condição singular que exige
recursos materiais especiais e recursos humanos especializados para a aquisição do conhecimento. Isso porque,
sua condição sensorial a impede de se apropriar espontaneamente das informações sonoras disponíveis no meio
dificultando suas tentativas de interação social.
Historicamente, a educação dos surdos esteve aprisionada ao oralismo por mais de um século. No contexto
educacional, as interações entre professor e aluno surdo se realizavam por intermédio da oralidade, o que
acarretou em lacunas profundas no desenvolvimento dos alunos surdos.
A história demonstra que a educação dos surdos tem sido marcada pela alternância da hegemonia entre a
filosofia oralista e a filosofia bilíngüe. No Brasil na década de 1990 iniciaram-se os estudos sobre o bilingüismo
para surdos, sendo que esses estudos já haviam sido retomados desde a década de 1960 nos Estados Unidos e em
alguns países europeus. Nessa filosofia, a língua de sinais aparece como primeira língua e a língua majoritária do
país, na modalidade oral ou escrita, assume o status de segunda língua.
O professor deve estar atento às condições especiais que o aluno surdo requer para aprender. Góes (2002, p.100),
baseando-se nas idéias de Vygotsky postula que “[...] é preciso criar formas culturais singulares, que permitam
mobilizar as forças compensatórias e caminhos alternativos de desenvolvimento que implicam o uso de recursos
especiais”.
Infelizmente a realidade brasileira ainda é precária, muitas vezes a língua de sinais é aprendida tardiamente.
Sendo assim, uma parcela expressiva de crianças surdas permanece por longos anos, sem possuir uma primeira
língua para aprender diferentes conceitos, formar suas idéias. Essa privação lingüística as impede de
compreenderem as experiências da vida cotidiana, interferindo decisivamente na formação de conceitos e na
estruturação do pensamento. A esse respeito Goldfeld (1997, p. 42) se manifesta:
A pior realidade é que grande parte dos surdos brasileiros e seus familiares nem
sequer conhecem a língua de sinais. Muitas crianças, adolescentes e até adultos
surdos não participam da comunidade surda, não utilizam a língua de sinais e
também não dominam a língua oral.

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Existe uma fase crítica para a aquisição da linguagem, bem como para o seu o desenvolvimento. Essa fase
compreende o período de zero aos três anos de idade. Ao nascer, a criança ouvinte está imersa em ambientes
comunicativos e é por meio das relações sociais, mediadas pela linguagem, que ela vai se apropriando do
conhecimento socialmente acumulado. Nas palavras de Goldfeld (1997, p. 34 e 35):
A história da educação de surdos nos mostra que a língua oral não dá conta de todas
as necessidades da comunidade surda. No momento em que a língua de sinais
passou a ser mais difundida, os surdos tiveram maiores condições de
desenvolvimento intelectual, profissional e social.

A língua de sinais como língua natural dos surdos não exige nenhum ambiente artificial ou estratégia específica
para que possa ser adquirida pelas crianças surdas, assim como acontece com as ouvintes, que são expostas
constantemente à oralidade. Para as crianças surdas basta um ambiente lingüístico favorável, isto é,
natural, em que sinalizadores fluentes em língua de sinais interajam com elas, para que adquiram naturalmente a
língua de sinais.
A criança surda que não desenvolve a linguagem falada precisa ser exposta precocemente à língua de sinais, pois
assim não sofrerá prejuízos nos diferentes aspectos de seu desenvolvimento. Com relação ao desenvolvimento
intelectual, a linguagem exerce um papel fundamental. Segundo Vygotsky (2001), a linguagem possui, além da
função comunicativa, a função de organização e formação do pensamento. Sacks (1998, p.52), por sua vez,
observa que “[...] um ser humano não é desprovido de mente ou mentalmente deficiente sem uma língua, porém
está gravemente restrito no alcance de seus pensamentos, confinado, de fato, a um mundo imediato, pequeno”.
As experiências que a criança surda têm são restritas, e muitas vezes estão atreladas a situações concretas.
Nessas circunstâncias, poucas interações sociais significativas lhe são oferecidas, e conforme Goldfeld (1997, p.
67) isso ocorre porque “[...] é bastante difícil conversar com crianças surdas em português sobre assuntos não
relacionados diretamente ao ambiente em que a criança e seu interlocutor se encontram”. As pessoas ouvintes
não fluentes na língua de sinais, diante da dificuldade lingüística, tentam interagir com a criança surda sem o
domínio da LIBRAS, reduzindo o diálogo a situações concretas que não levam à construção do pensamento
abstrato. Um grande entrave na educação da criança surda é a falta do desenvolvimento pleno da
linguagem. A maioria dos alunos surdos acaba adquirindo a língua de sinais no espaço da escola especial em
razão da comunidade surda usuária da LIBRAS ser numericamente restrita e existirem poucos espaços sociais
organizados para a convivência de sujeitos surdos. Nas associações de surdos é que acontecem as trocas
lingüísticas mais significativas, é o espaço em que as estruturas discursivas e narrativas trazem as tradições, as
experiências de linguagem tipicamente surdas.
A criança surda pode apresentar lacunas em seu desenvolvimento se não tiver adquirido uma língua que lhe
permita trocas significativas com o meio. Vygotsky (2001) assevera que a aprendizagem social e o
desenvolvimento das funções psicológicas superiores dependem da interação da criança com o seu meio e das
relações que ela mantém com o mundo.
Neste sentido, o trabalho de contação de histórias para as crianças surdas contribui para o desenvolvimento de
sua linguagem e de sua imaginação. Estimular a imaginação infantil é uma forma de criar para a criança novas
possibilidades de uso das funções psicológicas superiores. Corroborando Rubinstein (1973, p. 100):
A imaginação cria algo de novo. Transforma e modifica aquilo que nos é dado pela
percepção. Esta modificação, transformação e não identificação com o dado pode
exprimir-se, em primeiro lugar, pelo facto (sic) do indivíduo, que parte dos seus

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conhecimentos e experiências, formar uma idéia, isto é, imaginar algo que jamais
viu na realidade.

O projeto de contação de histórias é uma alternativa criada pela escola de surdos para enfrentar as dificuldades
dos alunos do Ensino Fundamental frente ao texto escrito. Os livros de literatura passam a fazer parte do dia-a-
dia das crianças da Educação Infantil e adquirem significados pela contadora de histórias, que faz o momento da
contação da história um período mágico em que a fantasia e a imaginação da criança surda a faz mergulhar no
mundo do faz-de-conta. A vida que a professora dá aos personagens, a caracterização de cada um desperta nas
crianças o desejo de ver a mesma história ser contada várias vezes, além de aguçar a vontade de folhear os livros
de literatura e de tentar a leitura das histórias.

Desenvolvimento
A pesquisa foi realizada em um grupo de cinco alunos surdos, com idades entre 3 (três) e 5 (cinco) anos que
freqüentam a Educação Infantil em uma escola para surdos no noroeste do Paraná. Essa escola desenvolve o
Projeto de Contação de Histórias para alunos da Educação Infantil e 1ª a 4ª séries, desde o ano de 2001.
Nos limites desse artigo, o trabalho relatado resulta das ações empreendidas para a apresentação da história “O
Leão e o Ratinho”. A professora contadora de história é surda e cursa o 3º ano do curso de Letras, com
habilitação em Língua Brasileira de Sinais LIBRAS, na Universidade Federal de Santa Catarina . Ela elaborou
um planejamento criterioso e detalhado do processo de contação de histórias.
Passos da preparação da história
A primeira etapa do trabalho é a escolha do livro. A seleção da história é feita de acordo com seu conteúdo e seu
nível de complexidade. A história é lida diversas vezes pela professora, para garantir a compreensão de todas as
palavras. No processo de leitura, ela utiliza dicionários, da LIBRAS e da Língua Portuguesa, e ainda pede a
ajuda de professores ouvintes para esclarecer expressões desconhecidas que aparecem na história.
Nessa preparação, a professora surda observa criteriosamente as imagens que o livro traz. As características
físicas e o comportamento de cada personagem são analisados e estudados por ela, e por meio de sucatas a
professora escolhe materiais diversos para caracterizar cada personagem e os constrói. Em geral, os personagens
e cenário são feitos de forma simples, com poucos detalhes.
Após a confecção dos materiais da história, a professora os espalha sobre uma mesa e dá início à etapa dos
ensaios. Nessa etapa, a professora filma a própria atuação, e em seguida assiste à filmagem, atenta aos detalhes
da expressão facial e corporal empregados no ensaio, comparando o texto original ao da filmagem. Essa
checagem tem o objetivo de garantir a fidedignidade da história contada, sem descaracterizar o texto.
Depois desse laboratório inicial, a professora prepara o ambiente onde a história será contada. No momento da
apresentação, aos alunos da história em questão, “O leão e o ratinho”, a professora dispôs em uma sala ampla
uma mesa e uma cadeira grande e organizou as cadeiras nas quais os alunos sentariam em semicírculo,
posicionadas em frente à mesa; aguardando os alunos sentada à mesa. Os objetos que utilizou para contar a
história foram guardados dentro de uma caixa fechada, colocada no chão. Dentro da caixa, além dos objetos,
estava o livro da história que foi contada.

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Cabe registrar que a professora da Educação Infantil acompanhou os alunos até o espaço de contação de histórias
e permaneceu com o grupo durante a apresentação.
Contando a história
A professora iniciou a contação da história anunciado em Língua de Sinais seu tema. Fez a apresentação de
todos os personagens e atribuiu um sinal para cada um deles. Na Língua de Sinais, os nomes são representados
visualmente e são escolhidos a partir de uma característica física do personagem.

Personagens Sinal correspondente em LIBRAS

Caçador

Leão

Rato

Objetos Sinal em LIBRAS


Armadilha

Árvores

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Todos os materiais e personagens que compõem a história foram guardados em uma caixa. À medida que a
história foi sendo contada, a professora foi tirando da caixa os personagens e os objetos, conforme a seqüência
em que apareciam na história. Cada um deles foi depositado na mesa. O diálogo entre eles foi representado com
riqueza de expressões faciais e corporais, dramatização e uso da Língua de Sinais.
Durante a narrativa, as crianças ficaram atentas e em alguns momentos interagiram com a contadora como se
entrassem na história, vivendo as emoções, o sentimento de medo do ratinho diante do leão feroz que queria
devorá-lo.
Concluindo o trabalho de contação de história
Ao final, a professora conversou com os alunos a respeito da história, fazendo as seguintes indagações: Quem
são os personagens que aparecem na história? Qual é o sinal de cada um deles? Quem dormia na floresta? O
ratinho ficou com medo do leão? O que aconteceu ao final da história? As crianças responderam as questões
com facilidade, demonstrando que haviam compreendido o enredo.
As crianças brincaram com os personagens e objetos e recontaram a história. No final da brincadeira, receberam
o livro da história. Eles o manusearam e fizeram tentativas espontâneas de leitura das imagens, associando-as ao
que tinham visto na história.

Conclusão
Para as crianças ouvintes as histórias infantis lhes são acessíveis desde o nascimento pela via sonora. A forma
como a história é contada, o tom da voz do contador dão vida aos personagens e convidam a criança a entrar na
história e soltar a imaginação, a fantasia, o faz-de-conta. As crianças surdas, na maioria das vezes, são privadas
desses contatos prazerosos com a literatura. Por não ouvirem, precisam que as histórias lhes sejam contadas de
outra maneira, usando a Língua de Sinais, a dramatização, a mímica. É imprescindível que a criança surda
participe de eventos de leitura. O contato com os livros ricos em ilustrações e a participação da contação de
histórias, possibilitam à criança surda entrar no mundo da leitura.
È importante que a língua de sinais garanta a acessibilidade aos conteúdos, mas só a acessibilidade comunicativa
não basta para o desenvolvimento e a aprendizagem dos conteúdos. É preciso discutir a educação das crianças
surdas dentro da perspectiva da educação e não somente da lingüística. Ao tomar apenas a língua de sinais como
sendo a redentora de todos os problemas de ensino e aprendizagem dos alunos surdos, reduzimos o ensino a
questões puramente lingüísticas e inferimos que a criança ouvinte que tem a língua portuguesa oral adquirida,
não apresenta problemas de aprendizagem, o que não corresponde à verdade. Nesse sentido iniciativas
pedagógicas como o Projeto de Contação de Histórias para as crianças surdas da educação infantil pode ser
considerado como uma ação altamente relevante.
A aquisição pelos surdos da língua majoritária de seu país como segunda língua prioritariamente na modalidade
escrita é um desafio ainda não alcançado pelos educadores de surdos. O acesso e a sistematização do
conhecimento dependem, em grande parte, das possibilidades de uso da escrita. É possível que as dificuldades
mais relevantes da educação de alunos surdos se relacionem a esse aspecto ainda não resolvido. Com efeito, a
prática de “ouvir” e contar histórias constitui-se em um momento importante no dia-a-dia da criança surda,
colocando-a em sintonia com a leitura e a literatura.

Referências

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Anais, 2008
GÓES, M. C. R. Relações entre desenvolvimento humano, deficiência e educação: contribuições da abordagem
histórico-cultural. In: OLIVEIRA, M. K.; SOUZA, D. T. R.; REGO, T. C. (Org.). Psicologia, educação e as
temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna, 2002.

GOLDFELD, M. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sócio-interacionista. São Paulo: Plexus,
1997.

RUBINSTEIN, S.L. Princípios da psicologia geral. Lisboa: Editorial Estampa, 1973

SACKS, O. Vendo Vozes - Uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

VYGOTSKY, L. S. A construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins


Fontes, 2001.

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