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LIBRAS

Estágios de
interlíngua na
aprendizagem
da Libras
Priscilla Verona

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

> Definir a importância do estágio de interlíngua para a educação dos


surdos.
> Reconhecer a importância do bilinguismo na educação de surdos.
> Verificar as diferenças estruturais entre a língua portuguesa e a língua
de sinais.

Introdução
A língua de sinais é a língua que exprime os pensamentos, a visão de mundo
e os sentimentos das pessoas surdas. Ela se apresenta como um alicerce que
permite ao surdo estruturar suas formas de pensamento, aprender a se comuni-
car com aqueles que o cercam e, sobretudo, compreender o mundo à sua volta.
Portanto, a leitura de mundo é realizada pelo surdo por meio da sua língua
natural, que é a língua de sinais, e esta, por sua vez, pode ser adquirida pelo
surdo desde seus primeiros anos de vida, ou não, podendo acontecer anos
mais tarde, a depender do ambiente em que a criança esteve inserida durante
a infância. Nesse sentido, considerando a língua como o arcabouço que estru-
tura o pensamento, se torna fundamental refletir sobre os estágios naturais
2 Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras

da interlíngua e as complexidades que envolvem a aquisição tanto da língua


brasileira de sinais (Libras) como da língua portuguesa pelos surdos.
Neste capítulo, você vai estudar o que pode ser considerado como interlíngua,
seus estágios e sua importância para a educação dos surdos. A partir de então será
apresentada uma reflexão acerca do bilinguismo, no sentido de demonstrar como
esse conceito inova as possibilidades para a educação dos surdos, abrangendo
novos modos de conceber a surdez, além de propor a exposição à língua de sinais
desde os primeiros anos de vida. Assim, as distinções entre a língua portuguesa
e a língua de sinais devem ser observadas, pois há diferenças estruturais, bem
como características e modos de organização distintos.

A educação dos surdos e os estágios


da interlíngua
Ao longo da história da educação dos surdos no Brasil, podemos observar
muitas marcas de exclusão e preconceito. A marginalização dos sujeitos surdos
devido à ausência de uma língua falada permeia grande parte da história da
humanidade. Desde a Antiguidade, os surdos enfrentam uma trajetória de
privação de direitos, sendo inclusive considerados em alguns tempos históricos
como seres não pensantes, devido ao fato de não conseguirem se comunicar
de forma oralizada (GIAMMELARO; GESUELI; SILVA; 2013).
Durante o passar dos anos, muitos avanços aconteceram para que houvesse
em nossa sociedade a aceitação da língua de sinais como uma língua, bem
como a ampliação de uma noção de linguagem que não estivesse mais sob a
égide da fala oralizada, da leitura e da escrita. Sendo assim, a oficialização da
Libras aconteceu no Brasil em 24 abril de 2002 pela implementação da Lei nº
10.436. Entretanto, embora caminhos tenham sido abertos, muitas polêmicas
e tensões ainda persistem no que se refere ao tema da surdez, da educação
dos surdos e dos usos da Libras pela comunidade surda.
No Brasil, foi a partir dos anos 1980 que os estudos e as reflexões sobre
a surdez e a língua de sinais adquiriram um espaço significativo no campo
científico. A partir desse momento, ganharam espaço também os estudos
que se voltavam para o contexto escolar e destacavam a aquisição da língua
de sinais como algo fundamental para os processos de desenvolvimento
cognitivo, linguístico e social dos surdos (PEREIRA, 2011).
É fundamental lembrar que o aprendizado da leitura e da escrita pelas
pessoas surdas não segue os mesmos caminhos que o das pessoas ouvintes,
uma vez que a língua de sinais é de modalidade visual espacial, enquanto
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a língua portuguesa é auditiva e oral, determinando, portanto, canais de


comunicação distintos. A Libras é a estrutura que constrói e origina todos os
processos de significação da aprendizagem dos surdos, sendo constitutiva
de suas experiências e das relações que estabelecem consigo e com o outro.
Por ser uma língua visuoespacial, a língua de sinais é capaz de representar
por si mesma inúmeras possibilidades e traduzir as experiências dos sur-
dos no mundo. Ela é constitutiva do pensamento e possibilita, por meio de
processos não verbais, a construção da identidade do surdo (GIAMMELARO;
GESUELI; SILVA; 2013).
Os surdos aprendem a sinalizar naturalmente, eles “veem a língua que o
outro produz por meio do olhar, das mãos, das expressões faciais e do corpo.
É uma língua vista no outro” (QUADROS, 2017, p. 34). Os surdos são capazes
de adquirir a língua de sinais de forma espontânea, desde que tenham sido
inseridos em um ambiente em que estejam convivendo com outros surdos e
com a língua de sinais cotidianamente. Assim, podemos dizer que a aquisição
da Libras pelas crianças surdas acontecerá quando houver a inserção delas
em uma comunidade surda (QUADROS, 2017).
As crianças surdas crescem naturalmente em contato com duas línguas
diferentes, a sua língua natural e primeira língua — que é a língua de sinais —
e a sua segunda língua — a língua portuguesa, idioma falado em nosso país.
Durante o processo de aprendizado da segunda língua, os surdos elaboram
um sistema de comunicação que já não se caracteriza mais pela sua primeira
língua, a língua de sinais. No entanto, também ainda não são capazes de
representar a segunda língua naquela que é alvo, a língua pretendida, ou
seja, a língua portuguesa.
Esse movimento, denominado interlíngua, se caracteriza e se configura
por estágios dentro dos quais ainda não somos capazes de observar com
definição a estruturação de uma língua. Ou seja, ainda não é a L1, mas também
ainda não pode ser considerada a L2. Logo, pode-se dizer que esse movimento
contém elementos próprios das duas línguas, abarcando significados tanto
da língua natural como da língua-alvo, e então temos revelados os chamados
estágios de interlíngua (BROCHADO, 2006).

Interlíngua e seus estágios


Interlíngua é um termo criado por Larry Selinker em 1972 e pode ser definido
como o estágio intermediário de aquisição de uma segunda língua. Nesse
caso, podemos afirmar que os estágios de interlíngua na educação dos surdos
acabam por se constituir de modo singular, porque, de acordo com Valentini
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e Bisol (2011), esses estágios têm características de um sistema linguístico


idiossincrático, uma vez que não apresenta regras, nem composições do
português escrito ou da Libras. Isso explicaria o fato de que, em muitos casos,
ao nos depararmos com textos elaborados por pessoas surdas, percebemos
uma estrutura com regras próprias que tem como alvo o português escrito.
O termo interlíngua pode ser dividido em dois núcleos: “língua”, que seria
um sistema autônomo, e “inter”, que representa o desenvolvimento linguístico
do falante. Assim, essa definição capta elementos da L1, bem como da L2.
Conforme Ferreira (2016), entre as características da interlíngua podemos
destacar a presença de uma estrutura sintática que pareça inadequada às
características da língua-alvo e da língua do aprendiz, marcada muitas vezes
por sentenças incompletas ou pela troca na ordem das palavras, bem como
por usos do verbo de forma inadequada entre outros. Para Brochado (2006), a
interlíngua refere-se a um sistema que estruturalmente intermediaria a língua
que podemos chamar de nativa e a língua que seria a língua-alvo.
O aprendizado da língua-alvo é algo que acontece de modo processual,
e durante esse processo, a família, bem como a comunidade do aprendiz,
têm papel importante. De acordo com Quadros (2017), a comunidade possui
um papel linguístico muito importante na vida da pessoa surda e na vida da
pessoa ouvinte que é filha de pais surdos (Codas). O ambiente formado pela
comunidade surda configura o espaço privilegiado onde a língua de sinais
é utilizada cotidianamente e, portanto, é adequado para que aconteça a
interação com a língua de sinais.

Ser Coda: você sabe o que isso significa?

Os filhos ouvintes de pais surdos começaram a ser referidos como


“Codas” em razão da criação da organização internacional CODA (Children of Deaf
Adults). Segundo a linguista e Quadros (2017), Codas são crianças ou adultos
filhos de pais surdos. Esses sujeitos estão naturalmente expostos a dois mundos
diversos: o mundo dos surdos e o mundo dos ouvintes. Os Codas compartilham
a experiência de crescerem em famílias que utilizam uma língua de herança
em casa que é, muitas vezes, diferente daquela utilizada fora do ambiente
familiar, na maioria da sociedade. Podemos chamá-los de bilíngues, pois os
Codas transitam desde muito cedo nesses dois mundos e aprendem as línguas
desses dois ambientes linguísticos (PEREIRA, 2020).
Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras 5

Assim, é possível afirmar que o processo de transmissão da língua de sinais


é garantido nos espaços em que os surdos se encontram, ao passo que, ao
vivenciar um ambiente amplamente oralizado, a criança surda acaba sendo
privada do contato com a sua língua natural.
A criança surda formula seus pensamentos por meio da língua de sinais e
estabelece suas relações com falantes interlocutores da Libras; entretanto,
segundo Freitas (2020, p. 11), “A criança surda pensa em Libras, estabelece
suas relações face a face em Libras com interlocutores falantes da Libras,
mas na hora de escrever são instruídas a fazê-lo em língua portuguesa”.
Esse processo gera o que o autor chamou de descontinuidade comunicativa
durante o processo de alfabetização dos surdos, o que reverbera em textos
escritos por surdos que apresentam diferentes estágios de interlíngua, ou
seja, mantendo-se sempre em uma língua de fronteira, não podendo alcançar
o português em sua epistemologia correta como fazem os ouvintes.
O aprendizado da língua portuguesa como segunda língua pelo surdo
caracteriza-se, conforme Brochado (2006), por um processo contínuo que se
formula por etapas em que o ponto de partida é a língua de sinais. As etapas
de aprendizagem seriam o que constitui a interlíngua, e os estágios revelam
que a linguagem daqueles que estão aprendendo variam. Isso demonstra
que não se aprende uma língua mecanicamente; pelo contrário, durante o
aprendizado são utilizadas estratégias de transferências da língua materna
que podem auxiliar e simplificar esse processo (BROCHADO, 2006). A seguir
poderemos compreender um pouco mais sobre os diferentes estágios de
interlíngua aos quais nos referimos no decorrer desta seção. Observe, no
Quadro 1, os estágios específicos de organização gramatical, conforme o
agrupamento elaborado por Brochado (2006).

Quadro 1. Estágios de interlíngua

Interlíngua I Interlíngua II Interlíngua III

Durante o estágio I, Durante o estágio II, Observa-se, na


é possível observar é possível observar escrita, o emprego
estratégias empregadas intensa alternância predominante da
na transferência da em que se observa gramática da língua
língua de sinais (L1) em estruturas linguísticas portuguesa (L2) em
direção à língua-alvo, da Libras (L1) e da língua todos os níveis, com
neste caso, a língua portuguesa (L2). estruturas mais
portuguesa (L2). complexas.

(Continua)
6 Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras

(Continuação)

Interlíngua I Interlíngua II Interlíngua III

1) Estrutura de frase 6) Justaposição intensa 10) Predomínio de


apresentando entre a L1 e L2 estruturas mais
poucas 7) Uso de verbos no frasais
características do infinitivo e de verbos 11) Emprego de artigos,
português flexionados preposição e
2) Predomínio de 8) Uso de artigos conjunção
substantivo, adjetivo concordando com os 12) Flexões verbais
e verbo nomes adequadas
3) Uso de verbos no 9) Inserção de muitos 13) Ocorrência de
infinitivo e pouca elementos do estruturas frasais
flexão verbal português complexas
4) Uso de artigos
inadequados
5) Possui alguma
semântica

Fonte: Adaptado de Brochado (2006).

De acordo com estágios de interlíngua observados por Brochado (2006),


no estágio I, a escrita apresentada é considerada mais próxima da língua de
sinais, apresentando uma inadequação aos parâmetros do português. Já no
estágio II, a estrutura das frases em geral se apresenta ora com caracterís-
ticas da língua de sinais, ora com características gramaticais do português,
sendo, então, esse estágio de interlíngua uma espécie de mescla das duas
línguas. No estágio III é possível, conforme Brochado (2006), observar um
amadurecimento da língua-alvo, havendo, portanto, um emprego maior e
mais adequado de normas gramaticais condizentes com a língua portuguesa.
Nesta seção, buscamos apresentar alguns aspectos que envolvem a te-
mática da educação dos surdos, e alguns avanços e considerações acerca
do aprendizado da língua portuguesa enquanto uma segunda língua. Apre-
sentamos o conceito de interlíngua, bem como as nuances e os estágios que
atravessam esse processo de aprendizado quando vivenciado pelos surdos.
Na próxima seção, você aprenderá sobre o bilinguismo e a importância deste
conceito para a comunidade surda, bem como aspectos da educação bilíngue.
Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras 7

Bilinguismo: ensino e aprendizagem


mediados pela língua de sinais
O bilinguismo, ou a educação bilíngue, é quando acontece a existência e/ou
aprendizado de duas línguas no mesmo espaço.
No contexto da comunidade surda, é uma proposta de educação que visa
a possibilitar ao aluno surdo a aquisição da língua de sinais por meio de um
trabalho educacional bilíngue que considera e respeita as particularidades da
criança surda. Desse modo, o acesso à língua oral, bem como aos conhecimen-
tos e conteúdos sistematizados, deve acontecer partindo inicialmente da língua
de sinais. Esta proposta surge na década de 1980 e prioriza o aprendizado e o
uso da língua de sinais pelos sujeitos surdos em seus primeiros anos de vida,
antecedendo o aprendizado da língua portuguesa. A primeira língua, a língua
de sinais, ofereceria assim todo o arcabouço para o aprendizado da segunda
língua, a língua portuguesa. Desse modo, o bilinguismo defende que é por meio
da Libras, ou seja, a primeira língua dos surdos, que eles podem e devem não
somente aprender sua segunda língua, o português, mas também desenvolver
a compreensão do mundo que acontece a sua volta (DIZEU; CAPORALI, 2005).
Podemos afirmar que com o aprendizado a libras nos primeiros anos de
vida, a:

[...] criança passa a construir sua subjetividade, pois ela terá recursos para sua
inserção no processo dialógico de sua comunidade, trocando ideias, sentimentos,
compreendendo o que se passa em seu meio e adquirindo, então, novas concepções
de mundo (DIZEU; CAPORALI, 2005, p. 587).

A educação dos surdos na proposta bilíngue defende fundamentalmente


o acesso aos saberes por meio da língua de sinais, bem como o convívio dos
surdos com a comunidade surda desde seus primeiros anos de vida, pois
somente assim seria possível a construção de uma cultura e identidade surda.
Historicamente, em decorrência de uma busca pela padronização dos
surdos dentro dos preceitos das línguas orais, o uso da língua de sinais foi
proibido por muitas décadas. No passado, podemos dizer que grande parte
dos estudos que se dedicaram a pensar a educação dos surdos o fizeram
seguindo uma perspectiva da oralização, e assim, após inúmeros insucessos
na educação dos surdos — que se concentrava em ensiná-los por meio da
língua oral —, começaram a ser debatidas novas modalidades para a educação
dos surdos.
8 Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras

O que é oralismo?

É a vertente que defende que a comunicação aconteça exclusivamente


pela fala. De acordo com Skliar (1998), o oralismo é quando acontece uma impo-
sição social de uma maioria linguística sobre uma minoria linguística, ou seja, no
que se refere à educação dos surdos, considera-se que os gestos e sinais devem
ser evitados. Acredita-se que o desenvolvimento do pensamento seja possível
apenas por meio da língua oral, dependendo única e exclusivamente dela para
ser formulado. Assim, exercendo uma ideologia dominante dentro da educação
dos surdos, o oralismo fundamenta os modelos e as instituições ouvintes.

Estudos recentes vêm demonstrando que a aquisição da escrita por crian-


ças surdas deve acontecer por meio do uso de recursos de sua primeira
língua, que é a língua de sinais, ou seja, o ideal seria que as crianças surdas
chegassem à escrita alfabética, alcançando o aprendizado da segunda língua,
o português, por meio da sua relação com a visão, bem como, por meio das
estruturas presentes da língua de sinais.
As crianças surdas, quando são expostas desde muito cedo à língua de
sinais, são capazes de adquiri-la de maneira natural, assim como acontece
com qualquer idioma. Colocar a linguagem de sinais ao alcance dos surdos,
de preferência desde os primeiros anos de vida, é o que pode tornar possível
um projeto educacional mais amplo, bilíngue (SKLIAR, 1998). Isto porque a
modalidade visuogestual é o que permeia não apenas os processos linguís-
ticos dos surdos, mas também, e principalmente, todos os seus processos e
mecanismos cognitivos de construção e assimilação da realidade — ou seja,
envolve os aprendizados e a compreensão do mundo que os cerca. Observe,
na Figura 1, um exemplo de uso da língua de sinais durante o processo de
alfabetização de um bebê surdo.

Figura 1. Uso da língua de sinais na alfabetização de bebê surdo.


Fonte: AEE UFC (2014, documento on-line).
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O ensino e a aprendizagem dos surdos, segundo a perspectiva bilíngue,


devem ser mediados pela língua de sinais. A educação bilíngue deveria propor
a noção de identidade dos surdos como eixo estruturante e fundamental
integrando os processos educativos. Além disso, é muito importante que
durante esse processo aconteça a construção de uma prática pedagógica
capaz de promover o uso da primeira língua — a língua de sinais — em todos
os níveis escolares, bem como de dar significado ao papel da segunda língua
— a língua portuguesa — na educação dos surdos (SKLIAR, 1998).
Nesse sentido, é importante que a educação bilíngue contribua para o
acesso a informação por parte dos surdos, bem como para a veiculação da
cultura dos surdos para além dos muros da escola. Conforme Quadros (2017),
os meios de comunicação hoje em dia e, principalmente, as instituições esco-
lares, embora estejam traçando o percurso de aderir às propostas bilíngues,
têm se mostrado ferramentas linguísticas que continuam favorecendo o
oralismo, uma vez que tendem à homogeneização linguística e priorizam o
uso do português.
A educação bilíngue para os surdos no Brasil, além de ser recomendada
pelo Ministério da Educação (MEC), é amparada pela Legislação na forma do
Decreto nº 5.626/2005, em seu capítulo VII, artigo 22, o qual determina que a
inclusão escolar seja organizada em classes de educação bilíngue abertas a
alunos surdos e ouvintes. Além disso, esse mesmo artigo define classe bilín-
gue: “§ 1º São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas
em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas
de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo”
(BRASIL, 2005, documento on-line). Em 2021, conforme a Lei nº 14.191, a edu-
cação bilíngue de surdos foi inserida na Lei Brasileira de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional enquanto uma modalidade de ensino independente,
ou seja, não mais como parte da educação especial. A lei sanciona que a
educação bilíngue deverá ser aplicada em escolas bilíngues de surdos, ou
classes bilíngues de surdos, e toda a educação deve ser oferecida em língua
de sinais, devendo, então, iniciar na educação infantil e se estender ao longo
da vida dos surdos (BRASIL, 2021).
10 Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras

Você já ouviu falar de cultura surda?

A cultura surda é a maneira que o sujeito surdo tem de entender


o mundo e de modificá-lo a fim de torná-lo acessível e habitável, ajustando
elementos das suas percepções visuais que contribuem para a definição do
que são as identidades surdas. Seriam como as almas das comunidades surdas.
Portanto, conforme Strobel (2008), a cultura surda abrange para além da língua,
incluindo então as ideias, as crenças, os costumes, os hábitos e a visão de mundo
do povo surdo. Quando nos aproximamos da cultura surda, percebemos que
ela é constituída por um rico e complexo conjunto de referências e elementos
culturais vindos da comunidade surda. A literatura surda, o teatro surdo e as
artes plásticas, os aplicativos voltados para surdos, ou mesmo associações
integram, por exemplo, o universo da cultura surda. Na Figura 2 apresentamos
um exemplo deste universo que abrange produções elaboradas por e para a
comunidade surda.

Figura 2. Tirinha “ThatDeaf Guy”.


Fonte: Daigle e Daigle (2012, documento on-line).

O bilinguismo é o que possibilita ao surdo adquirir e aprender a sua língua


natural, bem como adentrar a comunidade surda e a cultura surda. A educa-
ção bilíngue deve respeitar as particularidades dos surdos, priorizando que
a educação e a aquisição de conteúdos escolares sejam feitos por meio da
primeira língua, a língua de sinais, para em seguida acontecer a aquisição da
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segunda língua, no caso o português oral ou escrito. Skliar (1998) afirma que
a inclusão não respeita a identidade dos surdos e não é capaz de abarcar a
cultura surda como um todo em toda sua potencialidade, portanto, não basta
que o professor utilize a língua de sinais no ambiente escolar que integra
os surdos. Para além disso, é necessário que dentro do processo educativo
sejam implementadas ações que possuam sentido para o aluno surdo e que
estejam condizentes com o universo de sua cultura. É por meio da cultura
surda que os sujeitos surdos expressam suas próprias condutas linguísticas
e seus valores culturais (PEREIRA, 2011).
Pensar um projeto de educação bilíngue para os surdos é também aceitar a
surdez e o modo de vida dos sujeitos surdos, respeitando-os sem a pretensão
de “transformações culturais” ou de identificação do sujeito surdo com a
cultura ouvinte (DIZEU; CAPORALI, 2005, p. 592).
Nesta seção abordamos o conceito de bilinguismo e buscamos trazer
informações que revelam a importância de uma educação bilíngue para a
comunidade surda e para seu processo de aprendizagem. A concepção bilíngue
defende que os surdos tenham direito de adquirir a Libras desde muito cedo,
pois é por meio da língua de sinais que ele conseguirá a sua integração real
na sociedade em que vivemos. Portanto, cabe ao sujeito surdo aprender a
Libras, vivenciar e se identificar com a sua cultura plenamente, mas cabe a
nós ouvintes apoiarmos e reconhecermos a importância de uma educação
que valorize o aprendizado por meio da língua de sinais. Na próxima seção,
vamos apresentar algumas das principais distinções que existem entre a
Língua portuguesa e língua de sinais.

Para complementar seus conhecimentos, assista à interessante en-


trevista com a professora Doutora Veridiane Ribeiro intitulada “Libras
e educação bilíngue para surdos”, disponível no Canal do YouTube “Educação
e Acessibilidade”.

Língua portuguesa e língua de sinais:


estabelecendo distinções
A língua de sinais, assim como a língua portuguesa, tem o status de língua
pois é composta pelos diversos níveis linguísticos, entre eles o fonológico,
morfológico, sintático e semântico, os quais permeiam e confluem para a
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estrutura própria dessa língua. Diferentemente do que muitos pensam, a


língua de sinais não é uma versão sinalizada do português, ao contrário, ela
tem léxico e gramática próprias.
As línguas de sinais guardam uma série de particularidades, e são distintas
das línguas orais porque utilizam o canal visuoespacial ao invés do canal
oral-auditivo e, portanto, são denominadas línguas de modalidade gestual-
-visual. Podemos, então, dizer que “a informação linguística é recebida pelos
olhos e produzida no espaço, pelas mãos, pelo movimento do corpo e pela
expressão facial” (PEREIRA, 2011, p. 5).
Embora as línguas de sinais e as línguas orais sejam diferentes, é preciso
destacar que ambas se baseiam no fato de que possuem um léxico. Enquanto
nas línguas orais a palavra é o que representa o item lexical, na língua de
sinais o próprio sinal representa e demarca a sua modalidade visuoespacial.

Léxico é um conjunto de símbolos convencionais, um acervo de pala-


vras de uma língua, podendo ser categorizado como uma gramática
ou um conjunto de regras que direciona os usos e a combinação de símbolos
em unidades maiores (PEREIRA, 2011).

A língua de sinais se difere da língua portuguesa em muitos aspectos;


de um modo geral, a primeira não apresenta o uso de preposições, arti-
gos e flexões verbais, enquanto a segunda faz uso constante de tais recur-
sos, que acabam sendo estruturantes. Entretanto, a língua de sinais não
pode ser considerada uma língua com falhas ou empobrecida. Ao contrário,
nos esclarece Pereira (2011, p. 11), as línguas de sinais são capazes de comunicar
e expressar quaisquer conceitos, assim como as línguas orais, porque são
únicas, “elas expressam com outros recursos as mesmas ideias”.
Como a língua de sinais é produzida com as mãos, os parâmetros linguís-
ticos são diferentes da língua portuguesa. A seguir veremos alguns exemplos.

Os sinais
Os sinais são formados pelas expressões manuais e não manuais, ou seja,
a configuração das mãos, juntamente com a direção empregada em seus mo-
vimentos, o uso dos pontos de articulação que dão movimentos a esses sinais,
Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras 13

e principalmente pelas expressões faciais e corporais que o falante da língua


de sinais apresenta no momento da fala (BROCHADO, 2006; PEREIRA, 2011).

O léxico
No que se refere ao léxico da língua de sinais, podemos dizer que apresenta
estrutura complexa e se constitui por propriedades que, em sua maioria, não
são encontradas nas línguas orais (BRITO, 1997). Exemplos:

„ o uso de grafias em letras maiúsculas — EU QUERER DORMIR;


„ o uso da datilologia, para designar ortografia — C- A – S – A;
„ o uso de verbos que estejam no infinitivo — EU GOSTAR GATO;
„ os pronomes são representados por meio de apontações, uma vez que
apontar com os dedos é aceito culturalmente no universo dos surdos.

O Quadro 2 apresenta alguns comparativos, no sentido de auxiliar a com-


preensão de algumas distinções singulares entre as duas línguas.

Quadro 2. Algumas distinções entre a língua portuguesa e a língua de sinais

Língua portuguesa Língua de sinais

Sentenças estruturadas Sentenças que seguem a gramática


própria
Exemplo: O pai encontrou o filho.
Exemplo: ENCONTRAR FILHO ONTEM
HOMEM
Ou
PAI ENCONTRAR FILHO ONTEM

Uso de intensificadores, é Para trazer a ideia de intensidade, usa-se


comum o uso da palavra muito a repetição do sinal, ou alongamento
nos movimentos de sinais, ritmo para os
Exemplo: A casa é muito pequena parâmetros de configuração da mão ou
e muito longe. intensidade nas expressões faciais.

Uso de tempos verbais diversos A maioria dos verbos não são conjugados.
e flexões do verbo que podem Não possui formas verbais que demarcam
variar em número e pessoa o tempo como o português, pois quando
o verbo se refere ao passado, futuro ou
presente serão usados sinais como ontem,
amanhã ou hoje para demarcar.

(Continua)
14 Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras

(Continuação)

Língua portuguesa Língua de sinais

Faz uso frequente de artigos e Não há uso de artigos ou preposições, e os


preposições pronomes são geralmente apresentados
por meio do sistema de apontação.

Uso de pontos de exclamação, Interrogativas e exclamativas são


interrogação e frases negativas. demarcadas pela expressão facial.
Exemplo: sobrancelhas franzidas e ligeiro
movimento da cabeça inclinando para
cima.

Fonte: Adaptado de Brito (1997).

O Quadro 2 nos oferece um breve panorama comparativo acerca das dis-


tinções estruturais e gramaticais que existem entre a língua de sinais e a
língua portuguesa. A língua de sinais apresenta-se na modalidade visual e
espacial e, diferentemente da língua portuguesa, que possui modalidade
oral e auditiva, se realiza por meio da visão e da utilização do espaço. Seus
canais de comunicação não se estabelecem pelos sons, nos canais auditivos,
mas nos movimentos gestuais e nas expressões faciais que são percebidos
pela visão. Entretanto, vale lembrar que suas diferenças não se encontram
apenas nos canais de comunicação, mas também nas estruturas gramaticais
que são distintas e próprias de cada língua.
Portanto, buscamos com esta seção apresentar ao leitor distinções fun-
damentais entre a língua de sinais e a língua portuguesa, no sentido de
evidenciar que, apesar das diferenças peculiares entre cada uma das línguas,
podemos afirmar que ambas possuem semelhanças. A partir do momento em
que são estruturadas em unidades mínimas, estas se organizam e compõem
estruturas e unidades cada vez mais complexas. Ambas possuem, portanto, os
níveis linguísticos fonológico, sintático, morfológico, semântico e pragmático.

Referências
AEE UFC. Oralismo, comunicação total e bilinguismo. [S. l.]: AEE UFC, 2014. Disponível em:
http://aeeufc-2013.blogspot.com/2014/03/oralismiocomunicacao-total-e-bilinguismo.
html. Acesso em: 1 out. 2022.
BRASIL. Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta a Lei nº 10.436, de
24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais - Libras, e o art. 18
da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Brasília: Presidência da República, 2005.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/
d5626.htm. Acesso em: 30 set. 2022.
Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras 15

BRASIL. Lei nº 14.191, de 3 de agosto de 2021. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de


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Leitura recomendada
LIBRAS e educação bilíngue para surdos. [S. l.: s. n.], 2019. 1 vídeo (9 min 21 seg). Dis-
ponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LtXs1MpTM3U. Acesso em: 1 out. 2022.
16 Estágios de interlíngua na aprendizagem da Libras

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