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RUSSO, Danilo. De como ser professor sem dar aulas na escola da infância.

In: FARIA, Ana Lúcia Goulart (org.). O coletivo infantil em creches e


pré-escolas: falares e saberes. São Paulo: Cortez, 2007, p. 67-93.

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Capítulo 4

De como ser professor sem dar aulas na escola da infância* (II)**

Danilo Russo

Tradução do original em italiano:


Fernanda Landucci Ortale e Ilse Paschoal Moreira

Revisão técnica:
Ana Lucia Goulart de Faria e Danilo Russo

A quem me traz os filhos e as filhas


Aos autos
A quem trabalha nesta escola da infância
E a quem mais interessar, para que tome ciência

Com o costumeiro atraso, com o ano letivo já bem avançado, sai este
texto, minha leitura de um dos deveres que me competem como professor
da escola pública. Como sempre, proponho aqui uma reflexão, que inclui
obrigatoriamente as presentes considerações, relacionadas ao ano em curso,
ao perfil da classe e ao modo como desenvolvo e
* A escola da infância, antes chamada de escola materna, equivale à nossa
pré-escola.

** Este texto faz parte de um conjunto de três deles, do mesmo autor,


sempre corno ser professor que não dá aula na escola da infância.

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aplico meu trabalho neste contexto. Mas reflito, em voz alta, também
em termos gerais (não renuncio a isto, é o meu modo de interpretar o
trabalho que faço) que, espero, expliquem por si só, para quem lê, por
que esta é uma reflexão na primeira pessoa e não uma lista de
objetivos.
No ano passado, saiu um texto "pesado", um pouco completo, um
pouco com a pretensão de sê-lo, no qual eu explicitamente encarava o
problema de uma "clientela" quase que totalmente renovada e a de
falar a muitos e muitas do modo mais completo possível. Sei que o
texto tomou-se disponível para parte dos interessados e interessadas
de hoje. Caso seja útil para completar este aqui, dentro dos limites de
sua inatualidade, encontra-se em minha posse e está também
arquivado nesta escola da infância. Aqui dou continuidade ao tema,
retomando-o, apenas em parte, de olho na atualidade que possuo
agora. Advirto, porém, que, além da situação na turma, faz parte da
atualidade deste ano, o fato de terem chegado do Ministério novas
Indicações nacionais para os que exercem a minha profissão, as quais
evocarei a seguir, e que constituem - digo aos pais e às mães de
meninos e meninas com quem trabalho um texto não muito longo
(menor do que este!), que pode ser facilmente encontrado, até mesmo
comigo, e que é de consulta útil para quem suporta o jargão.
Este ano, portanto, somos muitos e muitas, e não apenas no papel. E,
de novo, esta turma mudou de cara. Duas coisas me parecem
importantes a esse respeito: o seu "envelhecimento" e o re-equilíbrio
forte que se deu entre o componente masculino e o feminino. Começo
por aqui.
Hoje o número de meninas empata com o de meninos, 10 a 10. E o
atual equilíbrio de números redondos já evoca uma competição muito
sadia (contam-se sozinhos/as e os meninos, que, sabe-se lá por que,
tendem, até agora, a estarem mais presentes, berram "hoje nós somos
maioria"...). Considero tarefa pessoal, por um lado, manter sadia essa
competição, mas por outro, qualificá-la. O que quero dizer é que, à
medida que emergem a personalidade e os temas pessoais, reconhecer
as crianças como estilos individuais, mas, também masculinos e
femininos, e fazer disso um objeto de discurso, é um desejo que
sempre me impele. A propósito, este é um ponto que as Indicações
prescrevem expressa-

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mente, inclusive sob o título de objetivo específico de aprendizagem no


entanto, o fazem em termos que me parecem muito abertos, e com os
quais me encontro em sintonia, o que raramente acontece... Não me
interessam os estereótipos, que fique bem claro (odeio a idéia de
brincadeiras de meninos e de meninas, pelo menos na escola);
interessam-me justamente as variantes, o "como" cada menino e cada
menina interpreta a sua pertença ao gênero. Eu próprio, além do mais,
sei que dou à turma (à sala, antes de tudo) uma marca "masculina", se
chamarmos de "feminina" a que as colegas dão às suas salas. E também
deveria ser encorajada, mais cedo ou mais tarde, uma reflexão desse
tipo, sobre o gênero do ensinar, a qual tive a sorte de compartilhar, no
passado, com colegas igualmente atentas e conscientes disto. Do
contrário, não teria sentido o fato de que a denominação deste tipo de
escola, onde, há 25 anos, começou-se a contratar também professores,
tenha sido recentemente mudada, de escola "materna" para escola "da
infância".
Sei, por exemplo, que a escolha dos materiais que uso, que usamos nas
salas, mais o ferro do que a lã, mais a madeira do que o papel crepom,
longe de serem "masculinos" em si, têm, porém, a marca do perfil
"masculino" da minha memória, das brincadeiras e da destreza manual
que me foram ensinadas e que assimilei do meu modo. Provavelmente, a
mesma marca é impressa em coisas menos materiais do que os
materiais. Logicamente, por exemplo, a própria idéia de ordem/
desordem que faço valer hoje como professor está permeada de memória
masculina, assimilada e elaborada: o desleixo calculado, antiestético, de
dispor espaço e coisas apenas numa ordem de utilidade, e de maneira
alguma em ordem de beleza, é, provavelmente, um sucedâneo desta
memória, uma variante, a minha variante. Inevitavelmente, ainda, as
atividades que me vêem em mente, que sei propor melhor para os
meninos e as meninas, e, durante as quais, parece que me saio melhor
como professor, têm a ver com um repertório que é muito mais de vida,
e principalmente de vida infantil do que profissional e abstrato. E na
minha própria relação com meninos e meninas, por exemplo, no
equilíbrio que penso e escolho, entre o cuidado e outros aspectos dele,
percebo a mesma conotação de gênero.

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Por isso, sei bem, peço às meninas um percurso de envolvimento (e de


imitação e de identificação quando é o caso) que, teoricamente, é mais
longo, ou mais tortuoso, do que o que meninos - também teoricamente -
realizam rumo a este indivíduo que os/as faz brincar com tubos e roldanas, e
rumo às novidades que podem esperar dele. Como, porém, isso acontece
sempre, como esse percurso é percorrido no final por todos e todas, e eu
hoje, neste ano, já sou figura de referência importante, compartilhada entre
meninos e meninas, o fato de que estas últimas tenham uma representação
forte, em quantidade e qualidade, em números e personalidades e
consciência(s) e vozes, ajuda muito e me conforta, quando desejo pensar
com eqüidade em como suscitar discussão sobre o tema, até fazer dele algo
em relação ao qual a consciência de meninos e meninas funcione depois no
automático.
No ano passado, esta turma tinha um centro de gravidade muito jovem; a
metade dela era de meninos e meninas que tinham acabado de entrar na
escola da infância, poucos eram os que estavam no trampolim para o Ensino
Fundamental. Neste ano, há tantos e tantas que têm 4 anos e alguns meses,
um grupo considerável formado pelos que nos deixam em junho, e apenas
duas meninas estão no início do percurso. As conseqüências são
estrondosas. O grau de autonomia do grupo todo (inclusive das duas
menores) foi, de imediato, muito elevado. Não apenas fazem sozinhos e
sozinhas tudo o que lhes compete, mas, por exemplo, se acontece de alguém
avisar que tem de ir ao banheiro para algo e que precise de ajuda,
imediatamente há entre eles quem se preocupe em chamar Daniela ou
Patrícia (e aprenderam a não abusar delas e o único motivo que lhes dei é o
verdadeiro: Daniela e Patrícia estão trabalhando). Do mesmo modo: não só
autogerenciam totalmente o lanche, mas também aprenderam a debochar
quando entôo minha ladainha por volta das 11 horas, uma fórmula sempre
igual para avisar que depois não deixo lanchar maaais. Posso ler os vários
sinais de participação dos indivíduos desta turma nas suas vivências, na
forma de brincadeira responsável. Muitos deles e delas assimilaram
livremente a própria lógica com que a conduzo e tentam repeti-la, ou, até
mesmo, ultrapassam-na para debochá-la, no âmbito do cuidado, mas não
apenas nele. Em todo caso, sempre me interessa - e com esta turma
parece-me fácil - a possibilidade

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de generalizar essa participação. Eles já me vêem muito como quem


manda, e isso reflete o excesso de diretividade que, evidentemente,
emano; e já surgiu a discussão sobre se tenho ou não tenho sempre razão
(eu apoiava a segunda posição, com exemplos e tudo...). E, mais ainda,
fazer disto uma conversa interessante, não tendo em vista uma conclusão,
mas a construção de um espaço de pesquisa e de reflexão infantil,
parece-me, apenas, a seqüência natural. Como adoro dizer, vou tentar
torná-lo provável. Já estou sempre prestando a atenção para que o que
meninos e meninas me vêem fazer seja sempre questionável, não
apenas por parte de curiosidades adultas, mas também, por parte dos
próprios meninos e meninas. Quando isso acontece, e percebo que por
quase um ano vou poder contar com o fato de que meninos e meninas,
para me imitar, para me substituir, para debochar de mim, para me
criticar ou para me elogiar, já se questionaram sobre como eu
funciono, não preciso mais me dar esta tarefa, ou seja, de fazer um
lembrete das minhas incumbências "didático-educativas", de tão
convencido estou de que aí esteja a melhor abertura para o
relacionamento entre adultos e meninos e meninas.
Quando o adulto procura entender as crianças e elas, por sua vez,
desistem de fazê-lo, sempre vejo uma limitação, um bloqueio dos
saberes muito fácil de se produzir e de ser produzido (e, tipicamente, na
escola, mas de maneira marcante, a escola da infância): e não gosto
quando percebo que sou protagonista disto. Se, por outro lado, tenho a
sorte de ter ao meu redor meninos e meninas que têm curiosidade, entre
outras coisas, também a meu respeito, dizer que é possível ensinar uma
relação adquire um sentido concreto: construir uma espécie de auto
quebra-cabeça, tomar claro, aos pouquinhos, para os participantes, a
completa postura adulta que você introduz, as suas razões, as suas
sutilezas, a sua arbitrariedade, a sua humanidade, a sua "verdade"
extremamente parcial. A princípio e teoricamente, sou eu o único
responsável pela relação com meninos e meninas, visto que essa é
caracterizada como relação de cuidado, de educação e de ensino. Na
prática e no fim das contas, penso que seria bom conseguir, tomar o fato
provável, que meninos e meninas se tomem responsáveis; não por
bajulação, nem para cair nas minhas graças (eu nem nomeio um chefe de
turma e desencorajo os

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dedo-durismos dizendo "você está me pedindo para dar uma bronca no seu
amigo?"), nem mesmo para imitar a minha autoridade; mas, ao contrário,
por ter entendido alguma coisa, para imitar de mim, as razões da
educação.
Dizer-lhes a verdade, colocar-se e manter-se em condições de poder
fazê-lo é, então, um estilo de trabalho necessário e que me parece também
suficiente. É, além disso, uma das práticas que gozam da rara condição de
poder ser, ao mesmo tempo, meio e fim: meio, cuja satisfação já está
apenas em reproduzir as condições necessárias para ser praticado.
A pouca renovação do grupo provavelmente evitou reações de isolamento,
de ciúmes, de primogenitura por parte de quem já o integrava. Quem
chegou este ano não precisou abrir caminho mas, em todo caso, tinha
bastante personalidade para fazê-lo (inclusive, de novo, as menores e sua
garra!). Muitas cartas relacionais se embaralharam, vários meninos e
meninas que no ano passado não se davam uns com os outros e outras, e
deles recebiam na mesma proporção, voltaram com uma verve e uma
disponibilidade totalmente diferentes. Deste ponto de vista, parece-me,
também, que tenho uma grande margem de manobra: as únicas tensões, se
assim podemos chamá-las, presentes no grupo são tensões de crescimento,
por exemplo, ligadas ao re-posicionamento das amizades e das escolhas
eletivas por parte de algumas crianças, o que deixa descoberto ou
descoberta quem dependia mais dos equilíbrios precedentes. Mas, em geral,
já há entre elas, a essa altura do ano, um tom difuso da comunicação que
está muito além da fase dos problemas: por exemplo, fazem ironias entre si
continuamente (muito mais do que brigam), habilmente não me poupam e
me permitem fazer o mesmo sem ter de temer birras ou isolamentos
melindrosos. Um estado de graça, se estivermos convencidos de que uma
piadinha pode explicar melhor do que uma explicação, uma imagem
paradoxal, melhor do que um conceito; se estivermos convencidos como eu,
de que fazer troça na relação de educação, não é um truque para ficarmos
todos e todas mais contentes e, por isso, mais prontos ao ter de fazer o que
quem ensina propõe. Fazer troça é em si mesmo algo que ensina e se
aprende, algo que meninos e

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meninas não possuem ao nascerem, algo que é cognitivo, e mais do que


cognitivo. Brincar com as palavras é ver significados ocultos a partir da
linguagem e da ideação normais; é classificar as coisas de maneira diferente;
é, simplesmente, imaginar. Se meninos e meninas já conscientes de si e de
como se chamam, morrem de rir quando faço uma chamada de nomes
trocados (misturando os nossos nomes e sobrenomes), é porque num
cantinho da mente imaginaram esse estranho ser, que é metade como eles e
metade como o colega ou a colega do qual lhes atribuo o sobrenome: há
malícia, consciência e saber neste riso. E, se ao invés de uma repreensão
comum, digo a alguém que é o mais fedido do mundo ou a mais relaxada do
mundo, (parece-me que) o exagero conserva de alguma forma o conteúdo
transmitido, mas além disso, se transmite um efeito de distância que inclui
também imaginação e ironia. E se toda a comunicação entre mim e eles não
passasse, enfim, de uma variante qualquer de brincadeira verbal, não
acharia um sinal de decadência, mas de qualidade. Eu a persigo, de maneira
aleatória, mas decidida.
Há, em geral, um potencial lingüístico forte neste grupo. Muitas das
crianças puxam as outras para a pronúncia das palavras. São muito naturais
ao fazer uso delas; mas nota-se que lhes interessa, que se preocupam, e
alguém como eu deve admitir que isto tem relação com o bombardeamento
televisivo. Muitas palavras novas, ainda que estranhas, são lembradas por
causa da televisão, vêm do desenho animado (bem como, em geral, muito
conhecimento instantâneo e imagens de coisas, animais, gente). Não posso,
logicamente, deixar de lado nem uma coisa nem outra: nem a concreta
disposição para a palavra, nem a sua origem midiática do modo como é
vangloriada pelas próprias crianças.
No trabalho com as palavras, faço, em geral, vários tipos de operações. A
operação de nomeação, de enriquecimento lexical com base nas coisas e
nas ações que por acaso ocorram na turma, é a mais comum, e obrigatória
no meu papel. O resultado dessa operação - quando funciona - é um
vocabulário de palavras concretas (digamos: substantivos, verbos,
adjetivos), que se consolidam e se tomam hábitos lingüísticos à medida que
objetos e ações se tomam hábitos práticos. Depois, começo a nomear coisas
fora da sala, ou abstratas, e isso introduz a questão do

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significado, a exigência de explicar uma palavra, sem a possibilidade de


indicar com o dedo o objeto correspondente. Faço isso quando é possível e
não me interessa se tem só um me escutando ou 20. Preocupo-me, porém,
em colocar na ordem do dia para esta própria turma a pergunta "o que
significa". Nem sempre me interessa o rigor da resposta, nem sempre dou
a minha, freqüentemente bastam as respostas que vêm de uma das
crianças. Acho que é em torno disso que deveriam girar as perguntas que
fundamentam o trabalho docente, inclusive na universidade. Quanto vale a
voz que ensina? Ela merece sempre e em qualquer circunstância o máximo
de audiência? Tem sempre o direito de se impor a todos e todas, tanto ao
explicar as integrais, como ao dar instruções para colar a velinha para a
festa do dia dos pais? Em que condições tem esse direito? E se não fosse
assim, de que outra maneira poderia falar a minha voz para o grupo de
pessoas que ensino? Perdendo o quê? Ganhando o quê?
Para dizer que uma palavra "significa", dizemos também que ela "quer
dizer"; e um dia quando disseram a uma menina dessa turma para
responder a uma carta que ela havia recebido, ela respondeu: "Por quê? As
cartas não falam". Gostaria, pois, de entrar aqui dentro desta lógica, passar
a idéia, ou, se quisermos, a idéia fixa, de que quem "quer dizer", sempre,
algo não são as palavras, e sim a pessoa que as diz ou escreve. É para isso
que nós humanos inventamos as palavras. Anos atrás, uma colega me deu
de presente um jogo de cartas da filha grande; conservei apenas as cartas,
muitas centenas de palavras escritas em letras de forma: se, e quando, as
crianças maiores souberem ler, no final do ano, talvez possam se exercitar
com essas cartas. Agora, porém, aproveito, às vezes, o único momento em
que, no final do dia, consigo que todos e todas juntos me escutem, para,
além de contar alguma coisa, propor-lhes jogos de significado baseados
neste repertório (e hoje, já, muitas vozes se levantam para me pedir). Além
disso, sabem que se ouvem palavras ou expressões que não entendem,
podem propô-las. Ao contar, ou apenas ao falar, freqüentemente duplico as
palavras com seus sinônimos: sei que a associação permanece. Proponho,
às vezes, palavras estrangeiras, seja porque são muito semelhantes às
italianas
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correspondentes, seja porque são significativas: saber que seu adorado


Nemo era o modo como quem morava antes aqui em Roma dizia "ninguém";
ou me ouvir chamar alguém ou eu mesmo de "burro", que em italiano
significa manteiga, ao invés de "asino", ou fazer com eles a discussão
lingüístico-televisiva, se "witch" em inglês é bruxa ou fada, isto, claro, não
lhes ensina uma língua, mas talvez lhes dê uma idéia do que está em
jogo.
Outro modo pelo qual analiso o problema das palavras e da língua é pelo
ato de contar. No meu trabalho, uso o conto de dois modos, definidos de
acordo com a ocasião em que o uso. Conto anedotas, coisas da minha
infância, do meu trabalho no passado (outros meninos, outras meninas, com
o nome deles...), das minhas viagens, dos meus amigos; conto coisas que
sei, que fiquei sabendo apenas quando adulto, do passado ou de longe, por
exemplo; histórias curtas ou piadas. Faço essas coisas especificamente
quando o momento requer, quando estão relacionadas com a atividade na
qual um certo grupo de crianças ou mesmo só uma está envolvida perto de
mim. Nesse sentido, a coisa mais rara e mais interessante pode ser gasta
com um grupo muito pequeno, sem que nem mesmo se saiba se terá a
honra de uma outra oportunidade, de uma citação em conversas seguintes.
Acho que esse desperdício deve ser aceito na prática da minha profissão,
porque para essa perda de audiência o ganho é alto, e se encontra na
precisa construção de uma modalidade de discurso da qual o único
vínculo é, justamente, estar na pauta do dia. Meninos e meninas
freqüentemente contam sobre si, e isto é sempre bom. Mas que aprendam,
apenas com o exemplo adulto e na prática coloquial livre, a contar de
maneira oportuna, retomando o que fala o interlocutor, a contar para que ele
entenda, considero isto um exercício de inteligência, ao qual, sempre que
posso, dedico uma parte do meu tempo-escola. Além do mais, tenho tanto
respeito pelo ato de contar que ele constitui a única imposição coletiva diária
aos meninos e meninas com quem trabalho. É principalmente para contar
que reservo o último tempo do dia, e quero as crianças juntas, por volta de
meio-dia e meia, ao menos uma vez, sentadas e à mesma mesa. O que lhes
conto? Como o faço? Fábulas, por assim dizer,

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incluindo fragmentos de literatura não infantil (pode cair nas nossas mãos
Cortázar, Márquez, Wells, Marcos, Queneau, as conversas de Laing com os
filhos...). Histórias. Como o meu propósito é somente ter a atenção das
crianças, permito-me usar nestes momentos uma linguagem mais elegante
da que uso para gerir a classe, brincar ou comentar as brincadeiras. Quase
sempre leio os textos que conto, porque o meu repertório oral não é
suficiente para 200 encontros e também, porque os meninos e as meninas
sentem na história "de" livro um fascínio que gosto de lhes proporcionar.
Quase sempre "traduzo" os textos que leio: sou pouco fiel ao texto original, à
sua linguagem; sou mais fiel à linguagem que me interessa falar com meu
público. Principalmente quando escolho textos difíceis, surge a questão do
tipo de linguagem de criança, no sentido em que um programador falaria
de linguagem de máquina: linguagem de máquina é traduzir instruções
complicadas em uma série de 0 e de 1, a única que a máquina entende. Por
(vaga) analogia, chamo de linguagem de criança qualquer uso das palavras
que vise salvar conteúdos e tramas difíceis através de um funil lingüístico
que faz quem é pequeno ou pequena entendê-los (ou ainda: intuí-los): às
vezes mantém-se o difícil nas palavras (no léxico) e renuncia-se a ele na
forma do discurso; às vezes, faz-se o contrário; nos dois casos desafia-se e
solicita-se a compreensão. Aplicado ao conto de conteúdo fantástico, isso é
muito interessante: porque deve ser imediato, feito na hora; e porque se
mistura com a tentativa que sempre se quer fazer, de evocar paisagens,
cenários, situações muito particulares...
Junto com esta turma, estou procurando também fazer uma operação mais
complexa. As crianças estão acostumados de uma tal maneira com as
histórias, que comecei a alertá-las para olhar dentro delas: estou sempre
lhes dizendo quem as inventou (e, portanto, que são inventadas); que
algumas autoras as inventam conscientemente. E, por meio de uma amiga
minha, que um dia veio nos visitar, as crianças conheceram uma pessoa
adulta que tinha escrito uma história conhecida por elas. Então, um dia lhes
pedi para tentar ver se se pareciam com algo ("faz vocês lembrarem de
alguma coisa?" é a minha pergunta) e para dizer com o quê: não precisei
repetir duas vezes! Estou lendo para eles há um mês

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algumas das "Fábulas Italianas" escritas por Calvino (que é um texto que eu
também tinha um interesse pessoal em explorar): escolhemos todo dia de
acordo com o título, com a cidade de origem e com o tamanho. Essa
coletânea é muito útil para a busca de semelhanças. E mais: depois de um
tempo, foi observada a grande quantidade de reis, rainhas e princesas (e de
sangue, morte e prisões) que há nas histórias; e o fato de que existem
números especiais (o 3...) recorrentes; ou que em todas existem provas a
serem superadas... Percebo, dia após dia, que não se estragou o prazer do
imaginário, mas a ele se junta agora uma malícia nova, um desejo de
antecipar o que vem a seguir, que as crianças maiores exibem com prazer
diante das menores. Há um ano inteiro pela frente, no mínimo, e eu mesmo
não sei aonde chegaremos com esse desvelamento: onde quer que seja,
será bom para mim. Já lhes propus, e vou lhes propor, histórias em outras
línguas (as línguas que conheço são muito parecidas com o italiano): nesse
caso, não interessa tanto o significado de cada palavra, mas que agüentem
o som de uma outra língua, e, se for o caso, que extraiam a partir dele
(visto que primeiro ouviram a história em italiano e sabem o que esperar)
palavras reconhecíveis, ou maneiras parecidas, mas não iguais para
transmitir as coisas.
Faz parte da natureza da invenção das histórias (para crianças ou não) o
fato de serem extraídas de um ou mais temas, ou figuras, da vida real: acho
interessante percorrer este processo ao contrário quando, me referindo
ao que aprontamos na sala ou à atitude de alguma das crianças, "cito"
coisas e personagens de histórias contadas. Nesse caso, a tentativa é de
usar as histórias de conhecimento de todos como um pequeno mostruário,
até mesmo como uma pequena enciclopédia, de caracteres e de situações
reais. Com toda a ironia necessária.
Nunca lhes proponho desenhar o que ouvem: não gosto de misturar uma
sugestão a ser provocada/vivenciada com uma tarefa a ser feita/ executada.
Eu desenho o que conto, às vezes, para dar um exemplo, sugerir um modo.
Pode acontecer de me imitarem ou não.
Como também é necessário satisfazer a exigências estéticas, valorizo a
qualidade das imagens que meninos e meninas podem encontrar aqui na
escola. Reúno-as principalmente na forma de livro, que estão dispo-

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níveis o tempo todo (estão fisicamente ao alcance de suas mãos, e


descobrem logo que fico mais do que contente quando vão pegá-los, além
daqueles que todo dia coloco na vitrine). Tenho o pequeno orgulho de ter
nesta sala uma quantidade e uma rica variedade de livros e de modos de
ilustrá-los, que desafia salas e escolas com muito mais recursos do que a
nossa. A biblioteca da escola, saqueada quando necessário, faz o restante,
mesmo não sendo estruturada para meninos e meninas tão pequenos (ou,
talvez, justamente por isso...)
No que se refere ao trabalho com as imagens, o lote é ainda mais extenso
ou - deveríamos dizer - mais vasto. Esta escola que fazemos para meninos e
meninas que não lêem e não escrevem é escola de palavra falada e de
imagens. A experiência infantil moderna já é muito mais cheia de imagens
do que de palavra falada. Desde a idade da creche assistem a desenhos
animados, com as restrições que algumas famílias impõem atualmente.
Assistem aos mesmos desenhos animados, desenhos animados midiáticos
em senso estrito; e é uma parte importante do seu re-conhecer-se individual
e social o fato de terem visto os mesmos desenhos, e de falarem e repetirem
muitas vezes para si mesmos. Na escola, eu tento desemparelhar as
cartas: aqui não encontram imagens midiáticas. Aqui, cada um vai procurar
as suas imagens, e se é verdade que rapidamente estabelecem preferências,
é também verdade que, perseguindo as imagens preferidas, deparam com
surpresas, e começam a preferir as que disponibilizo. Temos, lado a lado,
histórias e livros de arte, ilustrações anatômicas e livros de fotos, quadrinhos
e dicionários ilustrados, figuras estilizadas e desenhos inanimados, atlas e
quadros com centenas de homenzinhos e mulherzinhas; temos livros para rir
e para entrar dentro deles, figuras e símbolos estilizados, fáceis de copiar, e
figuras para pensar sobre, imagens avulsas e outras que acompanham
histórias, figuras difíceis de entender e outras decididamente muito
estranhas, coloridas e em preto e branco... Não temos nada, ou quase nada,
que evoque personagens ou tramas muito conhecidas: desejo que a
novidade, a variedade, a surpresa sejam companheiras dos meninos e
meninas, se e contanto que decidam se aproximar das imagens que
encontram na escola. Acontece que o fazem com maior freqüência quando

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estou por lá ou se têm um livro em comum com seu amigo ou amiga;


acontece de um livro ter a palavra e outro o complemento que permitem
entender e saborear determinada piada; acontece que em alguns livros
existe a imagem de qualquer coisa de que possamos vir a falar, para
encontrá-la e ter dela uma referência; acontece que, às vezes, é possível
comentar que dois ou mais livros contenham a mesma história, mas com
imagens totalmente diferentes; acontece que existem livros que é melhor
olhar com a lente de aumento ou que é possível olhar ao episcópio; acontece
que com certos livros é possível sentir-se desafiado a encontrar algo
pequeno num emaranhado de imagens; acontece que no livro do Senhor
Magritte há uma maçã grande como aquela que eu desenhei, ocupando a
folha inteira; pode acontecer que uma criança, ao chegar antes que eu tenha
arrumado os livros que serão propostos para aquele dia, queira ela fazê-lo
"porque X gosta deste, este é para Y..." (!)
Dentro de um ano ou três, creio que também acontecerá uma outra coisa:
que meninos e meninas encontrarão lugar, em suas memória de imagens,
para algumas daquelas que conheceram aqui; e que, em geral, irão se
lembrar de vários tipos de prazer estético que encontraram por meio
delas. Não me interessa se isso prevalecerá, para mim basta que se lembrem
por muito tempo dos nossos livros como uma madaleine e tanto quanto dos
desenhos de Disney ou do Harry Potter: que os nossos livros entrem no
determinismo de seus gostos. Sei que está no nível do possível e isso me
basta.
Poucas vezes no ano (pouco mais do que 5), proponho-lhes vídeos na sala
e com o critério de que sejam coisas que dificilmente vejam em outro lugar.
Da televisão, pelo menos uma vez, proponho-lhes um uso ativo, com o
circuito fechado e - quando dá certo - a possibilidade de construir alguns
"truques": para ajudar a entender como as imagens e a TV são fabricadas.
Não trabalho, em geral, com ou no computador, mas se acontecer será
unicamente com paint: explorando as suas potencialidades.
Mas é, obviamente, sobretudo para fazer algo que meninos e meninas
vêm aqui, já que assumem que vêm aqui com prazer. Sempre, desde o
início, eu frustro as expectativas de quem gostaria que eu esco-

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lhesse para eles, que lhes dissesse o que fazer, com quem e como. É,
quando muito, do como que me ocupo: por um lado, de forma comum, para
que os brinquedos e materiais não acabem destruídos ou desperdiçados;
mas, por outro lado, porque no como brincam (ou não brincam) com as
coisas há muito do que me oferecem para me relacionar com eles.
Documentos escolares de orientação sugerem a nós, professores, para usar
a estratégia da brincadeira e não sei se entendo. Não me parece que uso
nenhuma estratégia. As palavras são importantes. Se estratégia da
brincadeira "quiser dizer" mandar meninos e meninas fazerem
"brincadeiras", que se chamam assim apesar de ser o professor quem decide
a brincadeira (a "planeja") e, depois, meninos e meninas a executam, para
que, depois ainda, o professor (d)escreva na ficha ou no portfólio a conduta
de quem "brincou", estas não seriam "brincadeiras", são provas. E se tem de
haver uma estratégia a esse respeito, seria "cientificamente" honesto falar
em estratégia de avaliação. E há ainda o pequeno problema, pedagógico
nesse caso, do que foi dito a meninos e meninas: vamos brincar ou posso
fazer um teste com você? Colocamo-nos como quem os enrola ou como
quem lhes diz a verdade? Como se pretende ou se pretenderia ser visto por
eles? Eu prefiro, sem dúvida, dizer-lhes vamos brincar. Só que, para afastar
más-fés, não lhes proponho uma brincadeira de cada vez. Prefiro ouvir dizer
"Daniiilo, não sei do que brincar" a enfrentar distrações, desculpas, tiques,
xixis urgentes que meninos e meninas alegam quando mandamos que façam
algo de que não gostam, ou então, quando a sua vez chega somente depois
'de outras 20: sei como responder às lamúrias; o restante são problemas (ou
falhas) de estratégia que gostaria de me abster de pensar. Digo para
meninos e meninas, com as mesmas palavras que uso aqui, que
brincadeira é o que alguém faz porque deseja, é atividade livre, ou
então, não é brincadeira; e trabalho (ou lição de casa ou prova ou
afazeres) é o que alguém faz porque precisa. Conto-lhes sempre, a esse
respeito, a historinha de Tom Sawyer que precisava pintar a cerca e,
espertamente, consegue que os amigos pintem de bom grado no seu lugar, e
cuja moral é: a mesma coisa pode ser trabalho ou brincadeira (mas
também: prestem atenção ao que lhes mando fazer...). Procuro evitar
eu mesmo de fazer confusão: digo-lhes vamos brincar ou tentem isso (ou
ainda, não lhes digo nada), apenas se

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isso lhes deixa livres para fazê-la e livres para parar. Nesse sentido,
proponho-lhes apenas brincadeiras, sendo o único trabalho comum
o de recolher os materiais ao meio-dia.
Ao privilegiar a escolha, ao lado da autoridade de professor, que não
posso deixar de lado nem na realidade, mim aos seus olhos, consigo
colocar a busca por um ascendente: ou seja, procuro ser e ser visto
como aquele que, embora proíba algumas atividades livres, alguns
modos de fazê-las, inventa muitas outras e bem mais interessantes.
Nesta busca não há uma direção única, porque meninos e meninas não
são objetos nem de estratégias, nem de aprendizagens: por um lado eu
tento me tornar interessante à medida que proponho brincadeiras
interessantes, por outro, as brincadeiras que proponho são acolhidas
como interessantes ou não, dependendo de como eles me vêem.
Acontece também, entre nós, adultos (e, em certo sentido, é a
advertência de quem escreve para quem lê, para criticar os próprios
pré-conceitos, principal mente os positivos...).
Muitos anos atrás, estudantes de psicologia da Universidade La
Sapienza, de Roma, gostavam de contar a historinha de dois cientistas,
bem contentes porque haviam ensinado duas cobaias a pressionar uma
alavanca quando queriam que eles lhes dessem determinada ração; por
outro lado, as duas cobaias também estavam contentes por terem
ensinado os dois cientistas a dar-lhes uma ração quando quisessem que
elas pressionassem determinada alavanca. Acho genial, brilhante, essa
idéia de duplo movimento, "simétrico", apesar de tudo: até mesmo as
cobaias - é o veneno da historinha - preparam uma estratégia. Tendo de
lidar com meninos e meninas, como professores ou como pais, somos
sujeitos fortes, mas também somos fortemente objetos: qualquer um
que saiba o que é um capricho, uma birra, pode ter uma simples e
imediata idéia do que quero dizer. O problema não é este, não é criar a
presunção dos dois cientistas, convencidos de que são os únicos a
determinar as coisas porque têm as chaves de uma gaiola, ou de uma
sala; isso não é, com certeza, um problema para mim. O problema -
parece-me – é qualificar a natureza da troca: no lugar de alavancas
e rações, o quê? O que há "de melhor" em jogo, o que nós, adultos,
empregamos? Rações

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de "muito bem", e não de comida, em troca de alavancas mais complicadas


de serem pressionadas? E se, ao contrário, meninos e meninas achas sem
por si só interessantíssimo pressionar as alavancas que fazem com que
aprendam coisas, a ponto de não ser mais necessário nenhuma ração,
estaríamos ainda dentro da historinha de cobaias e cientistas, com intenções
em cobaiês e em inglês (os da historinha eram typicals scientist's) que não
comunicam realmente? Se os cientistas não tivessem estratégias
experimentais, nem uma astuta fome de ração afligisse as cobaias, as
famosas alavancas não acabariam por ser igualmente pressionadas? Em que
condições? E o que restaria, então, aos cientistas (ou a alguém no lugar
deles) fazer se não revender o estoque de ração? A minha resposta é que é
preciso tirar o jaleco, ser pessoa, trocar (nada mais do que isso) o próprio
interesse, mas real, pelo interesse dos meninos e das meninas que
queremos estimular: a partir de então, provavelmente, a relação entre as
pessoas e as interações com as coisas se confundem e, se ambas são
boas, se alimentam, crescem. Há quem fale a propósito disto em
pedagogia da relação; para mim é, simplesmente, uma prática de educação
entre outras possíveis.
Para não errar, para não reproduzir, nem de forma involuntária, a cena
artificial de meninos e meninas tentando fazer a mesma coisa
como-o-seu-mestre-mandar, as atividades que escolho, proponho, invento,
são, em geral, excludentes: são para poucos e poucas de cada vez, pode ser
que tenham de esperar para fazê-las, não que precisem esperar a permissão
para saírem delas.
Existem pelo menos 9 mesas de brincadeiras separadas, em determinadas
condições é admitido que brinquem no chão e também lá fora, e cada canto,
cada aquecedor, cada janela, cada buraco da parede, pode vir a ser, aos
poucos, aproveitado ludicamente: é isso que meninos e meninas
encontram todo dia quando entram, desde o primeiro dia. Não temos todos
os brinquedos do mundo; e em 35 m2 o que faríamos com eles? Mas há
muitas coisas adaptadas para esse fim: muito material temático, muito
material em geral. Há, particularmente, uma espécie de bazar de fios, pós,
papéis, papelões, colas, tintas, madeiras, cordas, tubos, pinças, bolinhas,
homenzinhos e mulherzinhas, dados, uma profu-

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são de coisas (botões, moedas, tecidos, elásticos), motorzinhos, coisas


transparentes, objetos estranhos ou que têm propriedades: tudo coisas cuja
combinação, cuja mudança de uso, cuja re-invenção como material de
brincadeira, ditam, literalmente, a quem as usa, a forma das atividades
possíveis de serem realizadas com elas. Surge, assim, um tipo de
atividade de que gosto muito, seja quando já faz parte do meu repertório,
seja quando, às vezes, tenho uma intuição nova com objetos que uso há
muitos anos, o que parece incrível para mim mesmo! Parece-me que isso
pode vir a corrigir uma rigidez típica de meninos e meninas: rigidez no
sentido de que, se um dia lhes proponho uma "dama", usando como
pedrinhas as peças - suponhamos - amarelas e verdes de um jogo de
construção, é possível apostar que, da próxima vez, vão procurar as mesmas
peças amarelas e verdes. Não sei se isso se deve mais à idade das crianças
ou à experiência metropolitana com brinquedos pré-confeccionados. Sinto
que, me colocar no lugar das crianças e fazer a pergunta "e o que é que eu
faço com isto?", muitas vezes, e com muitos "isto", com o único objetivo de
extrair daí um prazer lúdico, substitui, com o passar do tempo, a rigidez por
algo da família dos pensamentos criativos. E acho que isso vale a pena.
Essa sala, essa turma, se apresenta, então, como uma ludoteca com
professor incorporado. Todos os dias, quando as crianças chegam, nas
mesas, como propostas, estão alguns esboços de possíveis brinquedos (uma
mesa + materiais + instrumentos), alguns poucos brinquedos propriamente
ditos, algumas atrações. Mas para 20 meninos e meninas que fazem coisas
livremente durante 4 horas isso é apenas um ponto de partida: depois de
meia hora a paisagem é outra, e é assim que deve ser. Entre mim e eles,
desde o início, há um entendimento em relação às regras de uso das coisas,
as regras que estabeleço para preservar o estado dos materiais e as que
estabeleço para defender a iniciativa de quem as está usando (as coisas são
de quem usa); quem não estiver interessado ou interessada em respeitar as
regras está livre... mas para fazer outra coisa: a sanção é renunciar àquele
brinquedo, naquele momento. Neste final de novembro, também devido às
características já descritas dessa turma, tudo isso já está substancialmente
adquirido: os movimentos e
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barulhos que fazem brincando, circulando entre colegas, já são os de quem
não precisa brigar nem fazer estragos horríveis para se divertir, e se dá
conta disso. A ludoteca já é quase autogerenciada e o professor incorporado
já tem muito pouco para fazer a não ser, corno um bravo maître (mas de
sala...), passar entre as mesas para ver se os clientes acham que está tudo a
seu gosto; para lhes apontar alguma dificuldade interessante que não
notariam por si só, para explicar as regras de uso e as possibilidades de
usufruto de um material ou de um brinquedo novo; para mostrar urna
variante do que estão fazendo; para lançar urna idéia, e ensiná-los a
reconhecê-la e chamá-la assim. Mas não faço uma supervisão: com a
consciência de um corpanzil e de um papel invasores, sento e começo a
participar. No exemplo, no critério, na forma como as minhas mãos, a
minha cabeça e a minha voz sabem oferecer àqueles que me aceitam para
brincar junto, coloco urna parte do saber que tenho e eles não, mas que é
possível ensinar. Na conversa, no papo que surge em torno de alguma coisa
que se faz junto, enquanto se faz junto alguma coisa, coloco urna outra
parte do meu saber. É estratégia da brincadeira? Não sei, "cientificamente",
não me parece. Acho que se eu e os meninos e as meninas estamos juntos
algumas horas por dia, porque eu sou pago para ser o seu professor, a coisa
mais inteligente (mais "pedagógica") que pode acontecer a mim/ a nós é
aprender a nos falar, dar início a uma comunicação que se alimenta por
si só, independentemente de qualquer estratégia. Dentro dessa idéia, acho
que SE a forma de comunicação entre as pessoas (e, portanto, também
entre crianças e seu professor) for o máximo possível assim, de modo que
cada um possa aderir a ela ou subtrair-se dela, isso as torna melhores, isso é
melhor do que SE fosse de outro modo; é intrinsecamente melhor, sem ter
de postular um fim estratégico, externo, para justificar. Não me sinto
diminuído corno professor, não me sinto infantilizado corno pessoa, quando
passo o máximo possível do meu tempo de trabalho brincando, já que
tenho a sorte de que o meu trabalho seja com crianças. Nesse sentido,
quanto mais me proporciono a possibilidade de comunicar livremente com
eles, fazendo, ao mesmo tempo, atividades que são livres para todos, mais
parece que estou fazendo algo inteligente em relação à parte que me
compete. E,

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quanto mais me divirto, menos me pesa a função. Desse modo, a explicação


das brincadeiras quando novas ou difíceis; a sua exploração, no sentido de
modos de fazê-las que não são os dogmáticos ou já conhecidos; a sua
organização, "assim, da próxima vez vocês saberão como fazer", são
modalidades naturais, contidas na situação e, ao mesmo tempo,
interessantes e úteis para todos os participantes, nas situações em que um
adulto e meninos e meninas podem brincar juntos: se e na medida em que
quiserem. Nesses casos, eu administro um repertório, de brincadeiras, das
suas regras, de truques: de experiência e de saber. Além disso, sou eu -
como eles bem sabem - quem escolheu os brinquedos (viram um a um,
objetos e brinquedos enquanto eu escolhia de um catálogo, houve
negociação para algumas aquisições; e o momento em que surge a
necessidade de que eu compre, com o dinheiro das famílias, certas pilhas, o
fubá, o plugue do teclado, um saquinho de elásticos, a cola de polivinil, é
sempre um momento evidente da vida da turma...).
É óbvio que não há simetria possível, em nenhum plano possível, no ato de
nos dispormos, eu e meninos e meninas, a brincar juntos: mas isso não
suprime, na minha opinião, a oportunidade de que ocorra, através desta
prática, multiplicada, toda, ou quase toda, a transmissão de conhecimento,
saberes, competências (como as Indicações ministeriais querem que
façamos) entre mim e eles.
Além disso, não há simetria possível, em nenhum plano possível; também
nas percepções que o ato de brincar juntos, eu e meninos e meninas,
produz em nós. É óbvio que as minhas percepções, adultas, conscientes e
mestras, mesmo querendo, não conseguem se negar ao juízo. Eu
percebo, imediatamente, se um deles ou delas não sabe fazer algo, se tem
uma dificuldade e de que tipo, se a sua abordagem, o seu ímpeto ou o seu
estilo estão impedindo que brinque melhor, que entenda onde está o
problema, que se divirta mais; eles, por outro lado, percebem,
imediatamente, que um colega de brincadeiras como eu tem
particularidades, entre as quais, capacidade, atitude, faculdade de
exprimir juízos. Quando me aceitam e/ou me chamam como colega de
brincadeiras, é também por isso (ou apesar disso!). Nesse ponto é (e, ao
mesmo tempo, parece) natural que eu o faça: está na verdade das coisas. E
eu assim faço.

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Encho seu portafoglio [nota: 1] também com os meus juízos,


imediatamente, no momento em que me vêem em mente, ou logo, juízos, já
que é também na forma de juízos que percebo o que fazem e eles mesmos
como pessoas. Gosto de dizer que lhes devolvo os juízos: se compreendo
alguma coisa a seu respeito, principalmente enquanto você faz algo que não
impus (mas, de alguma forma, lhe propus), é justo que eu o diga - caso
contrário, tudo se parece, mais uma vez, com um teste. Eu disse: estou
enchendo seu portafoglio não para usar uma imagem qualquer, que além de
tudo não é muito bonita. É que indico algo (neste caso, juízos) que
permanece com eles, nos bolsos da sua memória; algo que, se não entrar
por um ouvido e sair pelo outro, torna-se deles. O termo inglês (mas de clara
origem latina) portfolio, que está na moda na escola italiana a partir deste
ano, indica algo diferente: portfolio é geralmente uma pasta de documentos,
que, nesse caso, acompanha toda a carreira escolar de cada menino ou
menina dos 3 aos 18 anos (até poder ser - é bom que se esclareça -
"instrumento a ser utilizado para a procura de trabalho, a reciclagem
profissional e a formação continuada"), e pertence à escola, é documento.
Documento que contém, entre outras coisas, "indicações de orientação
baseadas nos recursos, modos e tempos da aprendizagem, os interesses, as
atitudes e as aspirações pessoais das crianças". Meninos e meninas não
possuem o próprio "portfólio das competências" no bolso, muito sobre eles
permanece transcrito naquele "bolso". Quem deverá preenchê-lo, o tutor
responsável na elaboração do mais completo curriculum vitae possível, que a
escola, pública ou não, por dever de ofício, concede a todo indivíduo que a
freqüenta, para que as suas competências e os problemas que teve para
adquiri-las, o acompanhem com a assinatura de seus tutors até as
entrevistas para conseguir trabalho. Fico pensando: isso não vai funcionar,
não será confiável, nem considerado como tal: mas, então, por que se
pensou em fazê-lo, já que parece ter tão pouco peso na sociedade? Ou
então, vai funcionar e será considerado um instrumento confiável,
documento de uma enorme avaliação administrada continuamente,
prontuário médico para

Nota 1 – Página 86. Em italiano, quer dizer carteira de bolso para colocar
dinheiro fazendo trocadilho com preencher o portfólio (N. da R.).

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uma perfusão de 15 anos de avaliação racional, certificada by tutors de todas


as ordens e graus: mas, então, trabalhamos para os psicólogos e psicólogas
das empresas (ou para o antiterrorismo), trabalhamos para deixar pronta
uma anamnese psicocomportamental precoce e completa dos indivíduos. A
novidade do portfolio faz parte de uma reforma que tem na sua lógica
declarada dar às famílias mais escolha(s) acerca da instrução dos filhos e
filhas. Surpreendo alguns, talvez, se disser que, em termos gerais, me
parece justo e que, por exemplo, é justo que 8 horas de escola permaneçam
um direito gratuito, mas não que sejam defendidas como uma espécie de
dever infantil a-histórico. Mas me espanta, mais como cidadão do que como
professor, o fato de que, ao mesmo tempo, se atribua à escola pública (e
particular) um poder de arquivo sobre cidadãos e cidadãs que dela se
servem em idade jovem, mas dela sairão adultos e adultas, poder que nós,
adultos, problematizamos muito mais para nós mesmos (tanto é que, entre
os adultos, não se deu a ninguém ou a nenhuma Instituição, direito e
procuração civil para, durante 15 anos, coletar e conservar em dossiê
observações relativas à nossa capacidade ou aos nossos "interesses, atitudes
e aspirações pessoais"). E acho que essa problemática está muito
sub-avaliada, muito no escuro, muito dada como certa, na ampla discussão
civil entre defensores e detratores que está acompanhando a concretização
da reforma.
Visto que meninos e meninas na pré-escola não escrevem, qualquer
documentação de seus "produtos" deve ser essencialmente gráfica: o
primeiro rabisco significativo, o primeiro sol, o primeiro homenzinho e assim
por diante. Na verdade, isso já era feito: esta pré-escola, desde quando era
escola materna e até mesmo quando era a creche, sempre fez "pastinhas"
com os trabalhos de meninos e meninas, para entregá-los, no final do ano,
às famílias. Pessoalmente, essa idéia dos trabalhos sempre me deu alergia -
dá para perceber lendo. Na minha experiência, sempre constatei que
meninos e meninas têm posturas muito diferentes em relação ao desenho
(não são todas as crianças que estão disponíveis até mesmo para bagunçar
com tintas e pincéis, com as mãos etc.!). O desenho como atividade
espontânea (e, portanto, livre) "predileta" de meninos e meninas sempre me
pareceu um mito, para favorecer uma operação de documentação que a
velha escola materna e a nova
Página 88

escola da infância, sempre fizeram através dele. O preço, ou somente o


risco, parece-me sempre ser urna distorção artificial da atividade com
meninos e meninas, a ideação de urna espécie de funil educativo único,
pelo qual qualquer narração, qualquer experiência, qualquer coisa bonita,
qualquer aprendizagem que se considere saber produzir, tudo deve ter um
correlato gráfico, se não é possível ter um escrito em letras e números; ergo,
nos empenhamos em produzi-lo, ou seja, em dar-um-jeito-para-que meninos
e meninas produzam esse correlato gráfico, "bonito", para o qual se possa
olhar. Dizemos, com todas as letras, para meninos e meninas: "eu sou para
vocês aquele ou aquela da pastinha". Por muito tempo a minha reação a
esse padrão foi fortíssima: nada de "pastinhas" feitas de trabalhinhos; mas
também, por outro lado, tenho urna cautela exagerada para não interferir
nas produções espontâneas que, de qualquer forma, muitos meninos e
meninas presenteiam (com a sua qualidade). Há alguns anos desenvolvo
urna reflexão crítica sobre isso: sobre corno é possível assumir a tarefa de
guiar o desenho de meninos e meninas para que se tomem visivelmente
melhores, mais ricos, mais completos, até mesmo mais coloridos, sem
precisar ditar-lhes o momento em que devem fazê-lo, o momento de
considerá-lo terminado e o conteúdo dele. Este ano, o problema retomou à
minha mente, pois vieram para nossa sala 3 meninos e meninas de urna
outra classe, todos exibindo uma competência para o desenho que a média
de seus colegas de mesma idade da turma original não têm. Atitudes
individuais? Pode ser, mas não só. Dentro do meu estilo, a primeira coisa
que fiz foi mostrar isso para todas as crianças, dizendo-lhes que
evidentemente sou um pouco "burro" corno professor de desenho, e que vou
tentar melhorar. Peço tempo e paciência para quem lê, como pedi para eles.
Também considero um problema se um menino ou urna menina que deixo
livre para escolher entre muitas coisas interessantes, entre muitos objetos
que despertam curiosidades, recolhe-se ou se aproveita muito timidamente a
ocasião, escolhe sistematicamente entre os fáceis e isola-se dos outros ou
evita qualquer idéia de obrigação. Principalmente se tiver 5 anos e que no
ano seguinte vai para a primeira série. O meu modo de enfrentar isso é,
primeiramente, traduzir o que é um problema meu em termos de escolhas e
de estilos infantis: nunca penso "não é

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capaz", penso "quer exatamente isso; por que será, qual o motivo para
que seja assim?"; e dizer-lhes isso em algumas ocasiões significativas.
Quando as coisas não se resolvem sozinhas, penso em ações dirigidas,
comunicando às famílias se forem duradouras: colocar essa criança diante
da tarefa, do dever, do difícil, especificamente diante do que foge. Fazendo
isto. violo a minha regra de ouro da atividade livre: imponho um trabalho,
uma tarefa, em lugar de propor uma brincadeira. Faço isso raramente e com
muito custo, pensando justamente na carreira escolar daquela criança: que
eu sei que possui outras qualidades; mas que na escola, depois de passar
por mim, será avaliada principalmente, se não essencialmente, com base em
tarefas; ou seja, com base naquela disponibilidade para cumprir tarefas, que
continuo me recusando até mesmo a conceber como um "objetivo" a ser
listado entre outros. Salvo, porém, a outra regra de ouro: quando faço isso,
digo-lhes o que estou fazendo e o motivo pelo qual considero importante ter
este "poder" sobre ele ou ela, que, em geral, não me vê exercê-lo (é uma
questão de verdade na relação e que não dispenso).
E continuo em condições de manter minha objeção, neste último ano de
limbo pré-portfolio: uma coisa é fazer uma avaliação de meninos e meninas
no ato que se pratica com eles próprios, que se comunica às famílias e, em
raros casos, pode ser útil socializar com quem se encarrega deles
posteriormente, em determinadas condições; coisa bem diferente é
estruturar toda uma prática educativa rumo à compilação de um objeto
abstrato, documento com validade ilimitada das competências e das
incompetências e "das atitudes e das aspirações pessoais" e dos estilos
precoces de meninos e meninas depois dos 3 anos. A reforma nos diz
respeito também por outro ângulo. Ainda não acolhemos na classe crianças
de 2 anos e meio, ainda não está claro em que condições isso poderá
acontecer. Mas já transferimos para a primeira série meninos e meninas de
5 anos e meio. Estão, por este caminho, nos rejuvenescendo como escola.
Com a exceção significativa do portfolio, de fato, pedem-nos menos, e
pedem-nos para pedir menos às crianças, diferentemente do que faziam as
velhas "Novas Orientações". Não se pode deixar de notar, por exem-

Página 90

plo, o fato de que os "objetivos específicos de aprendizagem", que são 33,


nas Indicações ministeriais são formulados como verbos (perceber, tocar,
ouvir, controlar...), como as práticas de um fazer, em vez de serem
formuladas em termos de capacidade de. Se as palavras são importantes, as
sutilezas são importantes: se estou entendendo direito, a pedagogia
doméstica, um pouco católica, sempre humanista, marcou um gol sobre a
anglo-saxã da performance. Parabenizo.
Resta-nos uma problemática nova: no meio do ano escolar, algumas
famílias podem escolher se para o ano seguinte tentarão o caminho da
antecipação escolar para seus filhos e filhas. Isso traz uma margem de
incerteza na atividade, na própria percepção da turma; por outro lado, para
nós sempre foi problemático dar às crianças consciência de quantos anos
têm: não o numerozinho, mostrado talvez com dedos; mas a delicada
questão do suceder-se dos aniversários, que divide por um período meninos
ou meninas que se consideravam e se sentiam iguais. É bom que nos
acostumemos todos a considerar isso saudável. Para mim, o que vale são as
palavras da lei: as famílias escolhem (como minha família escolheu para
mim: com 5 anos fui para a primeira série de uma escola particular).
Sempre gostei de trabalhar numa escola que não tem a faculdade de
reprovar; e estou, felizmente, consciente de que não me é dada agora a
estranha faculdade de reprovar a antecipação, nem mesmo disfarçado de
tutor. A escolha pela antecipação, a partir do momento em que acontecer e
eu tomar conhecimento, trará para mim apenas o problema de re-posicionar
a criança em questão na turma quanto à sua percepção de si. Ela
continuará a mesma, é claro; mas, ao mesmo tempo, não: como após o
dia do aniversário, porque aqui na escola, não sei fora, meninos e menina
são muito sensíveis a esse critério de quem vai para a 1ª série, e a partir
deste ano esse critério estará disponível até o fim de janeiro. Vamos ver. Em
todo caso, procurarei manter as duas atenções pré-escolares (e de caráter
um pouco precoce, diriam as Indicações) que lhes dedico normalmente.
Consegue-se, em geral, facilmente e sem esforço, que as crianças saibam
contar, até de cabeça, calcular e comparar: são tantas as oportu-

Página 91

nidades que têm de fazê-lo aqui na escola ou fora dela. Dizer que vão
aprender isso na 1ª série sempre me pareceu uma ficção. Por outro lado,
todo final de ano, me empenho com quem vai para a 1ª série numa velha
operação com as palavras, que com a nossa língua ainda dá muito certo:
"essas são as letras do alfabeto, que você já reconhece, se não reconhece,
estão aqui na parede; este é o som, curto, que lhe damos; tenta dizer esses
sons como você vê escritos, cada vez mais rápido..., e veja se não reconhece
a palavra que formam: bom, o que você acabou de fazer, foi ler". Tento
sempre apresentar às crianças esta instrução, que não é fácil e que não é
natural fazer sozinhas. Tento apresentá-la com algumas variações passíveis
de suscitar curiosidade: geralmente funciona; vamos ver se alguns meses de
idade a menos vai fazer diferença. Acho que não. Além disso, o único menino
nesta turma que já tem domínio deste campo não está entre os que vão para
a primeira série. Além do mais, esta era a escola de Alberto Manzi, o
professor que, na jovem TV, ensinava a Itália adulta analfabeta a ler... e
ensinou a mim, que tinha 4 anos e meio e não queria ir à creche das freiras;
trabalhava aqui quando foi obrigado a parar de ensinar, porque se recusava
a preencher as primeiras "fichas".
Com essa classe, não participo de nenhum projeto. O único do qual
participo, e não se chama propriamente projeto, é aquele pago pelas famílias
para que meninos e meninas façam atividades motoras durante 1 hora e
vinte minutos por semana, no horário escolar, não comigo, mas com
profissionais formados em Educação Física, muito simpáticos e competentes.
Em relação a essa atividade, que é uma velha tradição desta escola da
infância (e não da primeira série) e que tem a adesão maciça das fanu1ias,
mantenho uma velha neutralidade: abstenho-me do ato de aprová-la
concordando com as colegas e deixo que as famílias dos meninos e das
meninas determinem com adesões individuais, a participação ou não da
classe. Em relação a todos os outros projetos, o que importa para mim até
agora é o fato de que disponho de 25 horas e de alguns recursos materiais
para ensinar meninos e meninas, e não vejo nenhuma vantagem em chamar
de "projeto" algumas dessas horas, separá-las das outras, subtraí-las de
outras e dedicá-las a algo extremamente específico. Como professor do
Instituto, por outro lado, fico atento, obser-

Página 92

vando meticulosamente os critérios de distribuição interna dos recursos


materiais, para que não seja atribuído um montante despropositadamente
baixo às atividades desta turma por causa dessa minha escolha. Este ano,
desse ponto de vista, ficamos ricos e ricas, pois foi atribuída à nossa turma a
embriagante cifra de 420 euros de disponibilidade para despesas: é até
demais.
Pretendo, como todos os anos, sair com o grupo algumas vezes. No ano
passado, apresentei alguns planos em relação a isso, e depois acabei
fazendo coisas completamente diferentes. Os meninos e as meninas ainda se
lembram, com prazer, de uma das duas saídas reais, a que fizemos para ir
ao Grauco, um pequeno cinema de arte do bairro Pigneto, e que eu gostaria
de propor novamente. A outra saída, um passeio sem destino preciso no
centro histórico, revelou-se um pouquinho ambiciosa. Com a advertência que
fiz anteriormente, hoje pensaria numa mostra que tem na EUR2 (creio,
porém, que já esteja no final) sobre "a imagem no fantástico", muito
congruente com o que estamos falando na classe; ou com mais calma, na
primavera, a minha velha idéia fixa nunca realizada, de uma visita à livraria
das crianças, para a qual, na minha opinião, este grupo está maduro; ou ao
planetário (a ser verificada a possibilidade). O fato é que vou sair com este
grupo, do jeito que ele está, a qualquer momento; e que, se sairmos, será
com os meios de transporte público e com a ajuda dos pais e mães
disponíveis.
Mais duas coisas. A primeira. Entre as resistências que tenho em relação às
versões anteriores deste texto há uma, crítica, que me pede para refletir
sobre o uso muito freqüente dos pronomes "eu" e "me". Como confirmei a
escolha de um texto na primeira pessoa, explico a esse propósito o que ainda
não ficou claro a partir do texto. Nós todos e todas, às vezes, dizemos coisas
parecidas com a afirmação "2 mais 2 são 4", de difícil contestação, ou seja,
nesse caso soaria muito estranho dizer "acho que 2 mais 2 são 4", seria
como se quiséssemos patentear a aritmética. Mas dizemos coisas parecidas
com a afirmação" a chicória é boa", ou pior, como "os burros voam",
passíveis de contradição: nesse caso,
Nota 2 – página 92. Cidade próxima a Roma, criada por Mussolini.

Página 93

pessoalmente, preferia ter escrito" eu acha que a chicória é boa" ou "parece-


me que os burros voam". Estou convencido do que escrevi aqui é claro, mas
acho justo apresentar o que escrevi como convicções minhas.
A segunda. As Indicações nacionais escrevem que nós, professores e
professoras, devemos assumir "a responsabilidade de 'prestar contas' das
escolhas feitas e de dar às famílias e à comunidade condições de conhecê-las
e de compartilhá-las". É com esse espírito que concebo, há tantos anos, esse
texto de propostas e é exatamente com esse espírito que acho justo
encerrá-lo todos os anos com o convite a pais e mães dos meninos e
meninas que tenho na escola, para virem, se e quando puderem e quiserem,
ver como funcionamos e brincar com a gente. Li, recentemente, no jornal
Repubblica, que em todas as pré-escolas municipais de uma sub prefeitura
da cidade, há uma experiência desse tipo: sinal de que o meu convite,
embora não faça parte do ritual, não é impraticável. Na nossa escola, desde
o ano passado, resolveram dificultar a entrada de pais e mães nas salas (e,
portanto, nesta minha sala) fora do horário de ingresso e acompanhamento
de meninos e meninas, e o meu consentimento não é suficiente; é
necessário que apresentem justificativas fundamentadas. Não posso passar
por cima da decisão deles, mas reiterar o meu convite e a minha absoluta
disponibilidade para te-los conosco, sim. Convoco reuniões individuais em
alguns períodos do ano. Mas os pais e as mães podem me pedir para
conversar a qualquer momento, nunca considero tempo perdido. Se parecer
obscuro este texto ou o que faço concretamente, estou a disposição.

Novembro de 2004

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