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ESCRITA DE SI, RESISTÊNCIA E EMPODERAMENTO

A PROFESSORA ALFABETIZADORA E SUAS MEMÓRIAS DE/NA


ALFABETIZAÇÃO

Luciana Rodrigues de Souza


Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS
luciana77souza@hotmail.com
Eliane Greice Davanço Nogueira
Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul – UEMS
eg.nogueira@uol.com.br

Introdução

“Não há conhecimento sem conhecimento de nós


mesmos”.
Nóvoa (2013, p.9)

Na educação brasileira, a alfabetização é uma questão central. É caracterizada por um


processo de aprendizagem complexo, intrigante, desafiador, polêmico, encantador e
libertador, tanto para o indivíduo que ensina como para o sujeito que aprende. Neste artigo,
dialogamos sobre o universo “multifacetado” (MORTATTI, 2010) da alfabetização a partir da
análise autobiográfica do memorial de alfabetização da primeira autora, sobre como se deu
sua constituição como professora alfabetizadora. Como diz Nóvoa (2013), na epígrafe que
abre esse trabalho, é preciso, para haver conhecimento, primeiro conhecer a nós mesmos.
Com isso, o autor nos convida a pensar sobre nossas próprias interrogações, um exercício
pessoal que pode contribuir para compreender as verdades que ainda não foram reveladas
sobre a nossa vida.
O ato de pensar, refletir e narrar traz compreensões sobre o que somos e o que
podemos aprender a partir do outro. Dessa forma, esse artigo será escrito, a partir dos
próximos parágrafos, em primeira pessoa, embora conte com uma coautora. Justificamos essa
opção pelo referencial teórico que utilizamos, ligado ao método biográfico, e pela relação
orientadora e orientanda construída a partir do ingresso no Programa de Pós-Graduação

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Mestrado Profissional em Educação da Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul, que
tem refletido o encorajamento do reencontro dos primeiros passos como estudante e,
posteriormente, como professora alfabetizadora, como parte do processo de produção da
pesquisa, que trata da temática da alfabetização em classes multisseriadas. Partimos da
premissa, portanto, que o conhecimento de si e a escrita autobiográfica possibilitam mirar
com maior nitidez o objeto de pesquisa, pois, ao compreender o próprio processo de
alfabetização e as práticas cotidianas como professora alfabetizadora permitem autoria,
reflexão e autoformação.
Assim, sob o olhar atento e o "excedente de visão" (BAKHTIN, 1993) de minha
orientadora, narro nesse artigo minha trajetória como aluna da primeira série de uma escola
pública de Campo Grande, capital do estado de Mato Grosso do Sul, texto que muito me
alegra fazer, pois sei que minha constituição como professora alfabetizadora tem hoje muito

haver com o contexto histórico, social, com o método e com as experiências que tive no
passado com leitura e com escrita. Portanto, para contextualizar este artigo trago memórias de
minha infância, meus primeiros contatos com a escola formal e o processo de alfabetização e
letramento, articulando-as com reflexões sobre a minha prática docente atual.
Assim, o presente artigo está organizado a partir de eixos como: 1. Memórias de
alfabetização: investigando uma professora alfabetizadora; 2. O contexto histórico e social:
um divisor de águas na alfabetização; 3. As contribuições do método autobiográfico para
constituição do meu eu alfabetizadora.

1.Memórias de alfabetização: investigando uma professora alfabetizadora

Ao falar de memórias é fundamental posicionar o local de onde se fala. Nesses


escritos, uma professora alfabetizadora narra sua trajetória de formação desde a infância e o
início de seu processo de apropriação da leitura e escrita, em um movimento analítico, haja
vista que o conhecimento se constrói a partir do diálogo reflexivo narrado a partir do vivido.
Embora os escritos autobiográficos pareçam simples descrições, e muitos leitores, até
mesmo escritores, acreditem que é fácil falar de si mesmo, esse tipo de escrita consiste em um

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desafio que vai muito além de narrações, pois é um ato que perpassa a existência, a forma de
pensar, agir, imaginar, é o que me faz ser quem eu sou, o que me constitui como pessoa,
professora e pesquisadora.
E para definir o caminho trilhado a partir da pesquisa narrativa, faço uso das
colocações de Clandinin e Connelly (2011), que a definem como um espaço tridimensional,
utilizando termos que indicam retrospectiva e prospectiva, introspectiva e extrospectiva,
compondo, assim, o lugar do qual se fala.
Esse método de pesquisa permite que as experiências gravadas em nosso consciente
sejam transmitidas em formatos de histórias e integrem a pesquisa com a prática: “[...] a
pesquisa narrativa é uma forma de experiência narrativa [...] e a experiência educacional
deveria ser estudada narrativamente” (CLANDININ; CONNELLY, 2011, p. 49).
As fontes básicas desse artigo são, sobretudo, as obras clássicas que retratam a
alfabetização no Brasil. Todavia, as narrativas, ao longo do texto, têm a função de descortinar
não somente o processo de alfabetização vivido durante infância, mas também retratar a busca
pelo próprio perfil de trabalho, a constituição de uma identidade profissional, portanto, o ato
de narrar a si mesmo constitui dados para análise e interpretação, o que pode trazer novas
significações para quem busca compreender sua prática e para consolidar o fazer docente. É,
portanto, uma forma pontual de entender porque eu, uma professora alfabetizadora, comporto-
me da forma atual e não de outra forma.
A narrativa abaixo retrata o início do meu processo de escolarização na pré-escola, no
ano 1986:

Lembro que estudava a tarde e que antes de ir para escola tinha obrigações
domésticas a cumprir. Cresci em uma comunidade urbana, onde não havia
asfalto e nem água encanada, as ruas eram desertas, um palco perfeito para
brincadeiras ao livre. Eu frequentava a escola pública, e meus pais
pagavam com sacrifício pelo uniforme, materiais escolares e livros que
comprávamos usados ou trocávamos com as outras famílias.

Esse trecho inicial revela os modos de organização da escola na década de 1980.


Segundo o estudo realizado por Mortatti (2010, p. 331) sobre o ensino da leitura e da escrita
desde seu início no final do século XIX até os dias atuais, esse período, denominado pela
autora como “quarto momento crucial da história da alfabetização”, foi marcado pelo
questionamento sistemático e oficial sobre o ensino e aprendizagem da leitura e escrita, uma

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vez que a maioria da população brasileira, especialmente os pobres, fracassava nessa etapa
inicial de escolarização, tornando-se foco das ações públicas. O momento histórico situa-se
em uma escola que já convivia com o fracasso das populações menos favorecidas, em que
existia um investimento por parte das famílias de todas as classes sociais, incluindo os pobres,
para garantir o acesso de seus filhos à escolarização.
No segundo momento, retrato um pouco da minha impressão pessoal sobre o processo
de escolarização:

Minha maior dificuldade ao entrar na escola formal é que ela não era nada
do que eu imaginava, pois ao adentrar os muros da escola tinha que
esquecer as brincadeiras de rua, as goiabeiras, os bolos de areia, os
brinquedos (carimbos e bonecas) e até mesmo as histórias. Lá dentro da
escola, a minha primeira professora era uma negra linda, mas firme, repetia
a leitura das sílabas, enquanto eu me lembrava da gaveta do guarda roupas
do meu avô cheia de gibis, mas o jeito era repetir tudo o que ela falava. Não
tive grandes problemas nessa época, eu me recordo da cartilha, porém não
lembro o nome, sei que era preciso seguir etapas, primeiro B do bebê e que
não podíamos ficar folheando as outras páginas, eu queria ir logo para os
próximos textos, mas sempre fui disciplinada, então obedecia, mas ao
chegar em casa folheava tudo.

O trecho acima demonstra que o meu processo de alfabetização estava vinculado à


leitura de trechos sem sentido, na passividade do aluno, no ensino pouco instigante e com
ensinamentos desvinculados com a vida exterior. Eram textos produzidos sistematicamente
para o espaço escolar, textos diferentes dos quais eu tinha contato por meio das experiências
familiares e que tanto me encantavam, uma prática que se perpetua em muitas escolas
brasileiras, evidenciando o abismo que separa a prática escolar da prática social da leitura e da
escrita. (LERNER, 2002).
Nas entrelinhas, revelo um processo tortuoso de aprendizagem, um contexto que não
foi natural, mas imposto. Na verdade, eu não sabia ler, e nem tinha a menor ideia do que eu
estava lendo, apenas reproduzia o que havia memorizado por meio dos símbolos gráficos,
como pode ser visto no fragmento abaixo:

Uma lembrança marcante é fato de que eu ficava sempre muito ansiosa nos
dias em que formávamos uma fila na porta da sala da direção, para que a
diretora “tomasse” a leitura. O nervosismo era tanto que eu ficava rezando
para que ela abrisse em uma lição que eu soubesse. Nunca esqueci que a

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letra F foi uma das mais difíceis de aprender na grafia cursiva, ficava horas
fazendo caligrafia e a professora dizia que a minha letra era de
formiguinha, isso quando eu não ficava de recuperação somente para
treinar a letra cursiva por dias e dias.

Partindo desse ponto de vista, as relações de ensino e aprendizagem ocorreram na


escola por meio de uma didática tradicional, que não previa ou não fazia nenhuma menção
aos modelos teóricos que estavam sendo sistematicamente oficializados e divulgados no
âmbito de políticas para alfabetização no Brasil.
Depois de uma breve reflexão sobre minhas memórias de alfabetização e minha
insatisfação com as práticas com as quais vivenciei na escola, busco no próximo item, a partir
das narrativas e da análise do contexto histórico e social, compreender como minhas
concepções durante a infância podem ou não contribuir para aprendizagem dos meus alunos.
Será possível ensinar em uma perspectiva diferente da que herdei historicamente? Será que
minha prática está travestida de velhos princípios? Como se livrar de entendimentos
retorcidos e desabrochar com uma postura firme e coerente, acreditando que todo aprendiz é
capaz e tem direito a aprender independentemente de sua classe social ou cultural?
No próximo eixo, utilizo os preceitos de Clandinin e Connelly (2011) para estudar
minhas experiências educacionais e a partir das narrativas reviver espaços tridimensionais,

alterando papéis de sujeito, objeto e de pesquisadora, com objetivo de compreender como a


minha história de vida está atrelada ao contexto histórico, social e profissional.

2. O contexto histórico e social: um divisor de águas na alfabetização

A década de 1980 foi marcada por intenso movimento de descoberta de novos


métodos, propostas, conceitos e teorias de aprendizagem, bem como por tensões entre a
permanência e ruptura, entre o novo e o velho para solucionar o problema do fracasso escolar.
Para situar o momento histórico e contexto social, utilizo as colocações de Mortatti
(2010) e seus apontamentos:

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O construtivismo ganhou força na década de 80 principalmente com a
pesquisa de Emília Ferreiro, mas outros estudos e pesquisas também
ganharam destaque nacional como a proposta de pesquisadores brasileiros
como João Wanderley Geraldi e Ana Luiza Smolka fundamentos no
interacionismo linguístico e na pesquisa soviética, e com propostas de Mary
Kato, Leda Tfouni, Ângela Kleiman e Magda Soares, com fundamentos no
conceito de letramento. (MORTATTI, 2010, p. 332)

Conforme Mortatti (2010), o construtivismo, interacionismo linguístico e letramento


são modelos teóricos que surgiram como respostas aos impasses da alfabetização no Brasil.
Logo, o momento histórico é de forte reinvenção dos métodos, de propostas teórico-
metodológicas e de busca sistemática para solucionar o insucesso na alfabetização. Durante a
escrita desse item, busco conceituar estes modelos teóricos e métodos de alfabetização, bem
como suas concepções na minha alfabetização inicial e na minha prática como professora
alfabetizadora, verificando como o contexto social e histórico foram importantes nos
processos vividos e na busca de novos caminhos ou reabitação de velhos conceitos.
Embora os modelos teóricos proporcionassem uma série de propostas diferenciadas de
ensino, nem tudo foi imediatamente incorporado em todas as esferas do país. Em minha
experiência, a cartilha ainda predominou.

Os textos da cartilha começavam com frases curtas e iam crescendo


conforme íamos aprendendo as lições. Era do fácil para difícil. Assim
aprendi sendo estimulada a repetir os sons das sílabas, ou seja, um hábito
que privilegia a forma e não o significado.

Essas lembranças demonstram que o método sintético era a tecnologia empregada na


minha alfabetização inicial, e não havendo menção de qualquer outra prática que não fosse a

tradicional. De fato, a história da alfabetização no Brasil está fortemente ligada a discussão


sobre os métodos, e, segundo as concepções de Frade (2007, p.22), temos dois marcos
fundamentais:

[...] aqueles métodos que elegem sub-unidades da língua e que focalizam


aspectos relacionados às correspondências fonográficas, ou seja, o eixo da
decifração e os métodos que priorizam a compreensão. Ambos têm como
conteúdo o ensino da escrita, mas diferem em pelo menos dois aspectos: a)
quanto ao procedimento mental, ou ponto de partida do ensino que se daria
das partes para o todo nos métodos sintéticos e do todo para as partes nos
métodos analíticos; b) quanto ao conteúdo da alfabetização que ensinam.

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As colocações de Frade (2007) e Mortatti (2010) revelam marcos teóricos sob os quais
se assentam a alfabetização e me levam a indagar sobre minha concepção, sobre quais
métodos e metodologias embasam minha prática, já que convivo com premissa de ter sido
alfabetizada de uma forma (método sintético), mas não consigo conceber que posso
alfabetizar meus alunos nessa perspectiva, o que leva a um conflito conceitual que preciso
resolver para embasar fazeres e saberes pedagógicos.
A classificação dos métodos em analíticos, sintéticos e globais marca o curso para as
águas da alfabetização, havendo uma divisão sobre as formas de ensinar. O que faz com que
haja pouca contribuição para solucionar o fracasso que as crianças daquela época viveram,
assim como para solucionar o meu insucesso como meus aprendizes atualmente, pois, como
revela Mortatti (2010, p. 12), as dificuldades de aprender a ler e escrever e a busca pelo
almejado sucesso escolar são históricos e envolvem problemas que até meados do século XX
estavam voltados para a pergunta “como se ensina a ler e a escrever”.
Conforme reforçam Soligo e Vaz (2005, p. 78), “a principal preocupação de
professores e especialistas estava voltada para os métodos, materiais e técnicas para ensinar a
ler e escrever”, o que recaiu novamente sobre a eficácia dos métodos. Entretanto, com a
consolidação do movimento de redemocratização do Brasil, a pergunta deslocou o foco para
“como a criança aprende a ler e escrever”.
A marca distinta que caracteriza o novo curso das águas se dá nesse processo histórico
de descoberta de como a criança aprende a partir dos estudos de Emília Ferreiro e Ana
Teberosky. Emília Ferreiro realizou uma consistente pesquisa a partir dos estudos de Piaget e
trouxe um inédito para alfabetização, especialmente para o nosso país nas décadas de

1980/1990, pois o processo de ensino começou a centrar-se no aluno e não somente no


método.
Tratou-se, então, de aprender a diagnosticar em que fase a criança estava e culminou
com venda de receitas prontas para alfabetizar dentro da psicogênese da língua escrita. O
equívoco foi tratar apenas de conhecer as hipóteses de escrita dos alunos para classificá-los
em função do diagnóstico, sendo que o primordial era investigar como o aprendiz pensa a

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escrita, para que, a partir das experiências do sujeito, fossem propostos modos de organização
curricular que favorecessem o seu avanço, ou seja, o foco deveria ser as intervenções docentes
e não a precisão na classificação da escrita.
O construtivismo emergiu nessa época como metodologia que privilegia o aluno como
sujeito que pensa e que constrói interpretações, que age sobre o objeto de conhecimento e se
apropria. Soligo e Vaz (2005, p.79) alertam que “as concepções do sujeito-aprendiz e da
língua apontados pela pesquisadora (Ferreiro) não foram devidamente compreendidos e
considerados por grande parte dos educadores, o que acabou por provocar uma série de
distorções e equívocos”. As interpretações desprovidas de sentido geraram muitas
controvérsias, pois sua gênese foi equivocadamente concebida como método de ensino e
criou-se a crença de que crianças e professores estariam livres para ousar no processo de
ensino.
Nesse período, embora eu tivesse tido vagamente um contato com o construtivismo
por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), por falta de aprofundamento teórico
acaba mesclando esses conhecimentos, divulgados nos documentos e formações oficiais, com
a teoria sobre alfabetização de Paulo Freire, um ecletismo que demonstra falhas, muitos
enganos e uma tendência de negação aos princípios que vivenciei na infância.

Meu primeiro contato com alfabetização como professora alfabetizadora foi


com adultos em uma comunidade carente, no ano 1998. Eu era acadêmica
do curso de Pedagogia, não tinha experiência, mas já me encantava com o
fato libertador que a leitura e escrita poderiam trazer para vida desses
estudantes. Os estudos sobre Paulo Freire e o princípio gerativo foram meu
norte conceitual, então eu usava temas do cotidiano dos meus alunos.
Infelizmente, o projeto não foi concluído e não consegui alfabetizar todos, o
que me reporta é alegria de uma senhora que aprendeu a escrever o nome
próprio e o título da receita que filho mais gostava, naquele dia eu soube
que eu queria ser alfabetizadora.

O que mais me marcou e apontava uma tendência a aderir à abordagem construtivista


foi a necessidade de vincular minha prática com os conhecimentos prévios dos alunos, uma

alternativa possível de conceber uma escola um pouco diferente daquela em que eu aprendi,
uma forma de reduzir o abismo da qual Lerner (2002) se refere.
Soligo e Vaz (2005, p. 79) ressaltam que “[...] os processos de aprendizagem e os
conhecimentos prévios do sujeito passam a 'interessar' e se configuram como ponto de partida

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para construir a compreensão da lógica do sistema alfabético de escrita e, portanto, para o
planejamento das intervenções do professor.”
De fato utilizo essas premissas em meu fazer docente, e por minhas práticas muitas
vezes sou questionada por colegas de trabalho sobre a eficácia da metodologia por mim
abordada.
Após 30 da minha escolarização pueril, ainda verifico essa prática na escola que atuo,
pois a metodologia amplamente adotada consiste em uma mescla dos métodos, regada a
memorização e leitura de textos para alfabetizar descontextualizados. É comum ouvir nos
corredores que primeiro se alfabetiza e depois se promove o letramento, o que me deixa
frustrada por não ter argumentos para legitimar minha prática. Muitas vezes me pego
pensando “será que eles têm razão? Será real a crença que as crianças pobres não aprendem
por meio de uma metodologia que comunga com o construtivismo e que concebe práticas de
leitura e escrita sobre o prisma que aproxima os saberes curriculares com vida fora da
escola?"
Sobre a entrada dos fundamentos conceituais do letramento em meu processo de
alfabetização, narro:

Eu sempre gostei de histórias, meus avós eram contadores de histórias, e


era comum irmos para casa deles no fim da tarde para ouvirmos contos e
lendas. Na casa deles havia uma gaveta enorme cheia de livros, gibis
antigos, eu ficava horas sentada na frente daquelas imagens, ensaiando
minhas primeiras leituras. Meu irmão mais velho já sabia ler, então eu
pedia para ele ler para mim, mas ele nem sempre tinha paciência, dizia: lê
você, usa imaginação. Minha avó pintava panos de pratos, costurava para
fora, tudo para ajudar na renda da família e eu ficava por ali, queria pintar
os panos também, coisa que ela deixava de vez em quando.

Nessa narrativa, minhas memórias evidenciam uma criança que trazia consigo
algumas práticas de letramento por conta das experiências que vivenciou em casa com os
familiares, pela leitura feita por outras pessoas, pela interação que realizava com material
escrito, mesmo não sabendo ler convencionalmente.
Soligo (2003) enfatiza que já existe um consenso de que os processos de ensino e
aprendizagem inicial da leitura e escrita e dos diferentes usos da linguagem devem acontecer

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concomitantemente a partir do momento que a criança ingressa unidade escolar. Também
Soares (2008) afirma que os processos de letramento e alfabetização são indissociáveis, tanto
em aspectos teóricos como práticos, porém alerta para a inadequação e inconveniência de
confundir os dois processos, uma vez que entende que “[...] a relação é inegável, necessária e
até mesmo imperiosa”, porém cada fenômeno tem sua especificidade, o letramento não pode
se sobrepor à alfabetização. (SOARES, 2008, p.27)
Kleiman (2005/2010) também conceitua alfabetização e letramento como associados,
porém nos diz que o letramento não é método e que a prática de alfabetização tem por
objetivo o domínio do sistema alfabético e ortográfico, precisa de sistematização, e é essencial
para a participação de forma autônoma nas práticas de letramento em diferentes esferas da
sociedade.
À época em que eu fui alfabetizada, o construtivismo, o interacionismo e o letramento
estavam sendo difundidos, porém não relato práticas diferenciadas por parte de minhas
professoras, muito menos em favorecer ou valorizar o que eu já sabia.
Mas, será que em minha prática em uma escola rural valorizo realmente os saberes dos
meus aprendizes? Aprendizes estes oriundos da classe menos favorecidas, em que os textos
quase não circulam no cotidiano doméstico, pois muitos pais são analfabetos. Será que, como
professora alfabetizadora, reconheço e legitimo os conhecimentos prévios deles e os auxilio
frente a essa pouca frequência de experiências com mundo letrado? Levo em consideração o
que Kleiman (2005-2010, p.34) adverte, quando afirma que em “[...] comunidades afastadas
dos grandes centros, [...] a leitura que a criança faz é dos sinais da paisagem natural”?
Compreendo o significado da constatação de Ferreiro (2005) sobre as crianças que
participaram de sua pesquisa, ao relatar que os alunos pobres e os de classe média eram
igualmente inteligentes, mas sabiam coisas diferentes? Segundo a pesquisadora, “Os de classe
média, rodeados de oportunidades de contato com material escrito e com leitores tinham tido
mais oportunidades de pensar sobre a escrita que os outros”. (FERREIRO, 2005.p.4)
Partindo dessas indagações, deparo-me com minhas próprias necessidades de
formação para atuar como alfabetizada, possivelmente similar a de meus pares, pois a
fragmentação e sedimentação de métodos e teorias confundem e deixam o professor sem chão
diante de tantas opções teóricas e metodológicas, fazendo com que o profissional docente não
se detenha ou se aprofunde em nenhuma. Nem sempre o contexto social, histórico e político

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irão remar a favor das nossas aspirações, mas é importante considerá-los, para entender os
processos vividos e para buscar novos caminhos.
Volto, assim, à epígrafe que abre esse artigo: é preciso se conhecer para produzir
conhecimento. Se o professor está confuso, como vai escolher o caminho mais apropriado?
Como terá autonomia para optar pela melhor embarcação frente às águas tão turbulentas do
mar da alfabetização?
Com essas reflexões em mente, no último eixo faço algumas articulações entre as
contribuições do método autobiográfico para a constituição do meu eu alfabetizadora,
traçando alguns percursos para vencer os problemas de leitura e escrita que se tornam cada
vez mais aparentes para mim a partir das narrativas que emergem desse processo de
construção "de um projeto de si" (DELORY-MOMBERGER, 2006).

3 Contribuições do método autobiográfico para constituição do meu eu alfabetizadora

“Quem disse que eu me mudei?” “Não importa


que a tenham demolido: a gente continua
morando na velha casa em que nasceu”.
(Mario Quintana)

Não é fácil abrir o nosso arcabouço, refletir, confessar e modificar crenças arraigadas
desde minha primeira experiência com a leitura e a escrita, lá na década de 1980, em que já
começo a fazer minhas próprias escolhas e a escrever minha própria história. E como diz os
versos de Mario Quintana, é muito difícil habitar outras casas, varrer as folhas secas, limpar a
aglomerado que impede limpeza de conceitos cristalizados.
Para Clandinin e Connelly (2011, p.37) “[...] nossas experiências são gravadas e
transmitidas em formatos de histórias”, assim, a pesquisa narrativa é vivida na prática, a
história pessoal, com seus enredos bons ou ruins, são os provocadores de transformações de
quem busca compreender a realidade e assumir uma postura crítica frente ao que se diz, pensa
e se faz na educação.
A abordagem autobiográfica no campo educacional permite repensar os sentidos da
vida e da profissão. Dessa forma, com esse processo de reflexão tracei uma investigação que

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considera a minha alfabetização inicial, confrontando-a com a alfabetização que proponho
como professora e com a história da alfabetização.
Como mencionado por Schön (1992, p. 83), o processo de “reflexão-na-ação” tem
diferentes dimensões e, nesse artigo, consiste em um processo que permite ao narrador,
professor e pesquisador “[...] pensar no que aconteceu no que observou, no significado que
lhe deu e na eventual adoção de outros sentidos.”
Nesse terceiro eixo coloco sutilmente as coisas recorrentes relacionadas à minha
prática e que tem implicações com minha alfabetização inicial. Traço pequenas convergências
e divergências dessa comparação e verifico que essa metodologia de autoria da nossa própria
história nos deixa livre para confessar o que fizemos e o que não fizemos para mudar a nós
mesmos, portanto, faço o exercício de distanciamento para compreender os significados
presente nas minhas narrativas autobiográficas.
Os insucessos que tenho colecionado durante minha atuação docente nas escolas
públicas é fruto dessa falta de especificidade, “sou repleta de falhas e fraquezas” e sem medo
dos julgamentos venho aqui confessar meus erros, já que nem sempre meus resultados foram
satisfatórios. Na busca pela originalidade de ideias, procuro assim reinventar minha prática de
alfabetização.
Nem sempre consigo habitar a casa do novo, apesar de ter conhecimento que os
métodos de marcha sintética não são os mais apropriados. Em minhas experiências na
alfabetização, acabei reproduzindo essa metodologia, muitas vezes de forma inconsciente e
outras tantas de forma consciente e induzida, simplesmente por falta de argumentação teórica
e consistência da minha identidade profissional.
Nas narrativas reconheço que há necessidade de conviver com textos autênticos, que
circulam na esfera social, mas também reconheço que nem sempre acreditei que a
sistematização fosse primordial. Um equívoco foi acreditar que somente a inserção nas
práticas de letramento pudesse amenizar a insuficiência de meus alunos com relação às
práticas social, devido às suas características culturais.
Entre o dito e não dito sobre minhas narrativas está a falta de método, de estudos e de
formação continuada sobre alfabetização, pois eu também revivo essa tensão entre romper
com velho, mudar de casa, ou sempre que algo der errado, fugir e buscar abrigo no velho.
Sim, porque é mais fácil usar argumentos ultrapassados, mas com fundamentos em processos

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vividos na infância: “eu aprendi assim, se deu certo comigo, que também era uma criança
pobre, pode dar certo como meu aluno.”
Esse julgamento em si já se constitui em um fracasso, pois é apoiado na falsa crença
que criança pobre não aprende, e ela aprende, desde que o professor acredite em sua
capacidade. É preciso, então, rebelar se, trancar a porta da velha casa, sair, arriscar-se e fazer
diferente, não ficar apenas no discurso, conhecer os modelos teóricos e compreender que eles
são diferentes e são oriundos de formas epistemológicas distintas, com diferentes finalidades,
e que sua adesão é a uma opção teórica e primordial, mas que terá que ter ampla significação
com o modelo de aprendiz que você tem e sua intenção para com ele. A educação não pode
ser considerada com uma prática neutra.
O estudo da minha prática docente a partir das narrativas revelou uma professora
alfabetizadora que navega em águas turbulentas, frente ao trabalho com a alfabetização. Uma
professora que sabe que seu barco jamais será uma casa fixa, e nele deverá levar muito mais
do que paixão e encantamento, embora estes sentimentos sejam necessários, em especial para
os dias em que o barco quase afundar. O conhecimento prévio dos alunos é o ponto de partida
para sua navegação docente. Uma professora que entende que deve deixar de ser a única
capitã desse barco, permitir que seus aprendizes assumam o comando, dando-lhes voz e vez.
Ciente que enfrentará muitas tempestades e muitos julgamentos sabe que para fazer novas
escolhas e escrever a uma nova história não deve propor jamais atividades dissociadas do
objeto de ensino e da função social, que terá que remar muito contra a maré.
E para a constituição dessa nova identidade de professora alfabetizadora, assumirei
definitivamente que não gostaria de utilizar a mesma metodologia na qual fui alfabetizada, e
que não poderei voltar atrás com o barco, terei que seguir em frente. As contribuições
teóricas, como da psicogênese da língua escrita, servirão para compreender e ajudar o
aprendiz a avançar, e não serão usadas apenas para classificar ou diagnosticar, mas sim
direcionar as estratégias, pois os aprendizes são sujeitos que pensam, são capazes e,
sobretudo, têm direito de aprender.
A intenção é que após essa investigação didática eu ensine menos e meus aprendizes
aprendam melhor, pois o compromisso social não é somente com a minha produção de
conhecimento intelectual como professora, mas com a produção de saberes e conhecimento
dos aprendizes que irão navegar em meu barco nas águas da alfabetização.

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Essas reflexões, propiciadas pela análise, por meio do distanciamento, dos meus
escritos autobiográficos, talvez não sejam suficiente para mudar de uma casa segura para um
barco flutuante. Mas, espero que possa contribuir para que professores alfabetizadores
revivam suas memórias e percebam que suas escolhas fazem toda diferença na história que foi
e ainda está sendo construída e reconstruída.

(In) conclusões

São as memórias que emergem das narrativas que revelam que essa história não
termina aqui, pois ela está repleta de (in) conclusões, mas o final é provisório e mostra que
partir da temática tratada é pertinente ao professor alfabetizador construir uma metodologia de
trabalho coerente com a teoria que acredita ser a mais consistente para construir sua matriz
teórica e procedimental. E são exatamente minhas memórias que revelam quem eu sou e meu
processo formativo em devir.
Como ser diferente após uma batalha investigativa sobre sua própria trajetória?
Escrever sobre a sua própria história de vida pode ser um bom pretexto de uma professora
alfabetizadora para refletir sobre processos de e na alfabetização e escolher somente os
dizeres que lhe são convenientes. Resgatei e utilizei velhas práticas de meus professores,
mesmo após trinta anos. Mas, nesse processo de análise da minha prática, percebi a
necessidade de mudança metodológica a fim de que meus alunos, crianças de camadas menos
favorecidas e que vivenciam a ausência ou pouca frequência de contato com material escrito e
práticas de letramento, possam escrever futuramente outras narrativas sobre suas experiências
na alfabetização.
Embora tenha apego à minha velha casa, fazendo uma breve analogia as sábias
palavras de Quintana, o que eu quero mesmo é apenas guardar suas lembranças, pois sei que
sua construção foi árdua e que existem outros métodos, outras formas de construir novas
casas, e não é porque minha casa foi destruída que não posso reconstruí-la, fazer novas
escolhas, mudar. Acredito que já não consigo morar naquela casa antiga, onde estive
confortável por algum tempo, mas que agora me é estranha. Quero mesmo uma nova casa,
abandonar os velhos saberes e conselhos cristalizados, quero mesmo construir um novo barco,

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uma identidade profissional, fazer realmente o que acredito na prática e não somente na
teoria, para assim escrever novas histórias de e na alfabetização.

Referências
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