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Introdução
haver com o contexto histórico, social, com o método e com as experiências que tive no
passado com leitura e com escrita. Portanto, para contextualizar este artigo trago memórias de
minha infância, meus primeiros contatos com a escola formal e o processo de alfabetização e
letramento, articulando-as com reflexões sobre a minha prática docente atual.
Assim, o presente artigo está organizado a partir de eixos como: 1. Memórias de
alfabetização: investigando uma professora alfabetizadora; 2. O contexto histórico e social:
um divisor de águas na alfabetização; 3. As contribuições do método autobiográfico para
constituição do meu eu alfabetizadora.
Lembro que estudava a tarde e que antes de ir para escola tinha obrigações
domésticas a cumprir. Cresci em uma comunidade urbana, onde não havia
asfalto e nem água encanada, as ruas eram desertas, um palco perfeito para
brincadeiras ao livre. Eu frequentava a escola pública, e meus pais
pagavam com sacrifício pelo uniforme, materiais escolares e livros que
comprávamos usados ou trocávamos com as outras famílias.
Minha maior dificuldade ao entrar na escola formal é que ela não era nada
do que eu imaginava, pois ao adentrar os muros da escola tinha que
esquecer as brincadeiras de rua, as goiabeiras, os bolos de areia, os
brinquedos (carimbos e bonecas) e até mesmo as histórias. Lá dentro da
escola, a minha primeira professora era uma negra linda, mas firme, repetia
a leitura das sílabas, enquanto eu me lembrava da gaveta do guarda roupas
do meu avô cheia de gibis, mas o jeito era repetir tudo o que ela falava. Não
tive grandes problemas nessa época, eu me recordo da cartilha, porém não
lembro o nome, sei que era preciso seguir etapas, primeiro B do bebê e que
não podíamos ficar folheando as outras páginas, eu queria ir logo para os
próximos textos, mas sempre fui disciplinada, então obedecia, mas ao
chegar em casa folheava tudo.
Uma lembrança marcante é fato de que eu ficava sempre muito ansiosa nos
dias em que formávamos uma fila na porta da sala da direção, para que a
diretora “tomasse” a leitura. O nervosismo era tanto que eu ficava rezando
para que ela abrisse em uma lição que eu soubesse. Nunca esqueci que a
alternativa possível de conceber uma escola um pouco diferente daquela em que eu aprendi,
uma forma de reduzir o abismo da qual Lerner (2002) se refere.
Soligo e Vaz (2005, p. 79) ressaltam que “[...] os processos de aprendizagem e os
conhecimentos prévios do sujeito passam a 'interessar' e se configuram como ponto de partida
Nessa narrativa, minhas memórias evidenciam uma criança que trazia consigo
algumas práticas de letramento por conta das experiências que vivenciou em casa com os
familiares, pela leitura feita por outras pessoas, pela interação que realizava com material
escrito, mesmo não sabendo ler convencionalmente.
Soligo (2003) enfatiza que já existe um consenso de que os processos de ensino e
aprendizagem inicial da leitura e escrita e dos diferentes usos da linguagem devem acontecer
Não é fácil abrir o nosso arcabouço, refletir, confessar e modificar crenças arraigadas
desde minha primeira experiência com a leitura e a escrita, lá na década de 1980, em que já
começo a fazer minhas próprias escolhas e a escrever minha própria história. E como diz os
versos de Mario Quintana, é muito difícil habitar outras casas, varrer as folhas secas, limpar a
aglomerado que impede limpeza de conceitos cristalizados.
Para Clandinin e Connelly (2011, p.37) “[...] nossas experiências são gravadas e
transmitidas em formatos de histórias”, assim, a pesquisa narrativa é vivida na prática, a
história pessoal, com seus enredos bons ou ruins, são os provocadores de transformações de
quem busca compreender a realidade e assumir uma postura crítica frente ao que se diz, pensa
e se faz na educação.
A abordagem autobiográfica no campo educacional permite repensar os sentidos da
vida e da profissão. Dessa forma, com esse processo de reflexão tracei uma investigação que
(In) conclusões
São as memórias que emergem das narrativas que revelam que essa história não
termina aqui, pois ela está repleta de (in) conclusões, mas o final é provisório e mostra que
partir da temática tratada é pertinente ao professor alfabetizador construir uma metodologia de
trabalho coerente com a teoria que acredita ser a mais consistente para construir sua matriz
teórica e procedimental. E são exatamente minhas memórias que revelam quem eu sou e meu
processo formativo em devir.
Como ser diferente após uma batalha investigativa sobre sua própria trajetória?
Escrever sobre a sua própria história de vida pode ser um bom pretexto de uma professora
alfabetizadora para refletir sobre processos de e na alfabetização e escolher somente os
dizeres que lhe são convenientes. Resgatei e utilizei velhas práticas de meus professores,
mesmo após trinta anos. Mas, nesse processo de análise da minha prática, percebi a
necessidade de mudança metodológica a fim de que meus alunos, crianças de camadas menos
favorecidas e que vivenciam a ausência ou pouca frequência de contato com material escrito e
práticas de letramento, possam escrever futuramente outras narrativas sobre suas experiências
na alfabetização.
Embora tenha apego à minha velha casa, fazendo uma breve analogia as sábias
palavras de Quintana, o que eu quero mesmo é apenas guardar suas lembranças, pois sei que
sua construção foi árdua e que existem outros métodos, outras formas de construir novas
casas, e não é porque minha casa foi destruída que não posso reconstruí-la, fazer novas
escolhas, mudar. Acredito que já não consigo morar naquela casa antiga, onde estive
confortável por algum tempo, mas que agora me é estranha. Quero mesmo uma nova casa,
abandonar os velhos saberes e conselhos cristalizados, quero mesmo construir um novo barco,
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