Você está na página 1de 5

Capítulo 11

O sentido da descrição documental

No âmbito dos estudos ligados à teoria e à prática do arranjo e da


descrição de arquivos permanentes, assume lugar de proeminência o
estabelecimento de um elo suficiente e necessário entre a indagação do
pesquisador e sua solução, tornada possível pelos chamados instrumentos de
pesquisa. Sua elaboração criteriosa, cuidada e precisa, rigorosa mesmo, é tarefa
primordial do arquivista dos arquivos de terceira idade.

A descrição é uma tarefa típica dos arquivos permanentes. Ela não cabe nos
arquivos correntes, onde seu correspondente é o estabelecimento dos códigos
do plano de classificação — que acabam por servir de referência para a
recuperação da informação —, assim como de outras categorias de controle de
vocabulário e indexação que se usem para o mesmo fim. Tampouco a descrição
faz sentido no âmbito dos arquivos intermediários, onde a frequência de
utilização secundária é quase nula. Nesses depósitos, para fins de
esclarecimento, de informações adicionais e de testemunho ainda decorrentes
do uso primário, os instrumentos de busca resumem-se aos próprios planos de
classificação, às listas de remessas de papéis, às tabelas de temporalidade e
aos quadros gerais de constituição de fundos. Os conteúdos, a tipificação das
espécies documentais, as datas-baliza, as subscrições, as relações orgânicas
entre os documentos e a ligação entre função e espécie, enfim todos os
elementos ligados às informações de interesse do historiador é que serão objeto
do trabalho descritivo.

Poder-se-ia perguntar se a primordialidade do trabalho, na função


arquivística, não caberia ao estabelecimento de fundos, quando do arranjo. Com
efeito, nenhuma atividade que vise a transferência da informação deve ser
iniciada sem que se pense antes num exato quadro de arranjo. Só ele pode
proporcionar a indispensável correlação entre documentos da mesma série,
entre séries do mesmo grupo, entre grupos do mesmo fundo. A descrição feita
no “miúdo” — a que incide diretamente sobre o documento unitário, não levando
em conta seu meio orgânico — dificilmente revela ao historiador o real significado
do material analisado. Para que o trabalho descrito “flagre” realmente os
conteúdos nos seus contextos de produção, o arranjo e sua ordenação interna
devem estar corretos.

Se o fluxo da documentação, após sua utilização primária, obedecer aos


critérios que permitem um perfeito andamento, o encaixe dos documentos em
seus respectivos fundos, quando da passagem do arquivo intermediário para o
permanente, far-se-á de forma natural e automática, não sendo tarefa que ocupe
o arquivista cotidianamente. Já a descrição — a elaboração de guias,
inventários, catálogos, índices e, esporadicamente, catálogos seletivos — é
função permanente nos arquivos de custódia, e feita por seus arquivistas
especializados. A otimização dos instrumentos depende também de que se
saiba como trabalha o historiador e que vocabulário usa em suas indagações.

Os instrumentos de pesquisa são vitais para o processo historiográfico.


Escolhido um tema e aventadas as hipóteses de trabalho, o historiador passa ao
como e ao onde. Diante de um sem-número de fontes utilizáveis, a primeira
providência, pela própria essência do método histórico, é a localização dos
testemunhos. Para tanto, farão o seu papel as referências documentais em
trabalhos publicados, o “colégio invisível” e o próprio conhecimento dos arquivos:
as diferentes tipologias das instituições já definem as espécies documentais que
guardam e possibilitam desenhar o perfil das informações contidas. Ir da análise
crítica do material documentário até a síntese e a interpretação é o caminho a
seguir.

O conhecimento prévio das fontes — a detecção do material de interesse


— é proporcionado aos historiadores pelos arquivistas, através dos chamados
instrumentos de pesquisa. Eles constituem as vias de acesso ao documento
custodiado pelos arquivos permanentes, agindo como desencadeadores da
pesquisa. Está claro que o documento de que o historiador fará uso pode
transcender essa custódia, principalmente se se leva em conta que documentos
de arquivos públicos administrativos são, em geral, documentos no sentido
estrito e que a história se faz com muito mais que isso.13

Há n tipos de documentos no sentido lato, considerando-se os que não têm


o papel como suporte e os que ultrapassam as fronteiras da arquivística
tradicional. Tal estado de coisas recentemente tem dado origem a apelos por
parte de certos historiadores franceses em favor de uma nova arquivística para
uma nova história. Um redimensionamento das teorias arquivísticas tradicionais
se impõe urgentemente em razão não só dos novos documentos informáticos
como também da ampliação sem limites da pesquisa histórica. Mas é fora de
dúvida que o “documento de arquivo”, tradicional e consistente, ocupa lugar de
destaque no trabalho historiográfico.

Os primeiros documentos escritos surgiram não com a finalidade de,


posteriormente, se fazer com eles a história, mas com objetivos jurídicos,
funcionais e administrativos — documentos que o tempo tornaria históricos. O
desenvolvimento da vida econômica e social, por sua vez, também originou os
documentos necessários às transações, e tudo isso veio a constituir fontes
documentárias custodiadas pelos arquivos. Estes são, assim, desde a
Antiguidade, “fonte direta, fundamental e indiscutível, à qual todo historiador
deve recorrer”.134 Os arquivos permanentes devem, pois, estar munidos de um
retrato credível de seu acervo, o que é conseguido através dos respectivos meios
de busca

Partindo-se das mais rudimentares listagens e dos inventários mais antigos,


passando pela precisão e cientificidade do século XIX, até a racionalização, a
funcionalidade e, em alguns casos, a sofisticação de nossos dias, os
instrumentos de pesquisa têm percorrido pari passu os caminhos da
historiografia

Desde o século XIII, a arquivística registra a existência de inventários de


documentos de várias comunas francesas. Muitos desses velhos instrumentos
de pesquisa servem ainda hoje de base para a elaboração de novos
instrumentos. No Brasil, existem desde fins do século XIX, porém em pequeno
número e em editoração não sistemática.135 A verdade é que carecemos de
levantamentos gerais dos arquivos existentes no país e de seus fundos. Na sua
falta, não se pode avaliar a arquivalia nacional brasileira. Os instrumentos com
que contamos são fragmentados em relação ao todo, mas traduzem um heroico
trabalho, não obstante ser isolado e lento. Além disso, apesar do elogiável
esforço e da boa vontade com que foram feitos, alguns apresentam certa
ambiguidade quanto à normalização arquivística internacional, notadamente
quanto à terminologia.

O trabalho do arquivista precisa revelar-se ao historiador desde o seu


primeiro momento no arquivo; é esse trabalho que deve proporcionar o encontro
satisfatório entre pesquisador e documento, através dos instrumentos de
pesquisa. A presença constante do arquivista junto à mesa do pesquisador não
é necessária, a não ser em casos de esclarecimentos fortuitos.

Contrariamente, Schellenberg afirma, a respeito dos instrumentos de


pesquisa, que “não conseguem esses, por bem-preparados que sejam, veicular
todo o conhecimento que a mente do arquivista informado encerra. Nem têm
como objetivo dispensar-lhe os préstimos. São simplesmente meios auxiliares,
no verdadeiro sentido da palavra, e destinados a ajudar o pesquisador na
localização dos materiais necessários. A experiência do arquivista é, sempre,
imprescindível para achá-los mais fácil e copiosamente”. Prosseguindo, o
renomado arquivista norte-americano endossa as palavras de Boyd Shafer, da
Associação Histórica Americana: “Talvez (...) se imponha aos historiadores
inteirar-se de que não há substituto real para as relações pessoais entre eles
próprios e quem tiver a custódia dos documentos importantes e específicos, e
de que nenhum folheto de instruções pode fazer as vezes de algumas perguntas
oportunas dirigidas à pessoa que manipula os documentos dia sim, dia não”.136

É provável que “folhetos de instruções” não forneçam mesmo informações


tão completas quanto as exigidas por um pesquisador experimentado, mas
instrumentos de pesquisa bem-planejados e executados podem perfeitamente
fazê-lo.

A execução de instrumentos de pesquisa não é, reconheça-se, tarefa fácil.


Contudo, urge que os arquivistas levem em conta que a documentação
produzida é cumulativa e cresce assustadoramente. A proliferação de
documentos de toda ordem ameaça desabar sobre os arquivos, bibliotecas,
centros de documentação e bancos de dados. Atualmente, é angustiante a
preocupação de arquivistas, bibliotecários e demais profissionais da
documentação, além também dos historiadores, com relação à apreensão de
toda a massa de informação produzida.
Existe perplexidade não só com relação à quantidade de documentos, mas
também com a própria tipologia documental. Uma gama infinita de novos
testemunhos, de novas fontes que se abrem à pesquisa histórica começa a
desafiar a família dos instrumentos de pesquisa e a sua estrutura clássica. Será
que guias, inventários, catálogos e índices tradicionais refletem as novas fontes,
as inquietações dos novos pesquisadores e as novas temáticas da história? Até
onde a informática agilizará os meios de busca? Por outro lado, os documentos
legíveis por máquina chegarão a ser rotineiros no trabalho arquivístico?

A qualidade de um arquivista transparece na precisão dos instrumentos de


pesquisa que ele elabora e na medida em que seu trabalho satisfaz ao
pesquisador. Ao tornar claro e profícuo o encontro entre documento e historiador,
ele está cumprindo a missão que lhe foi confiada. Um instrumento de pesquisa
incompleto pode esterilizar uma pesquisa, uma vez que o consulente não tem
acesso ao acervo e que nenhum meio de busca será refeito, dada a vastidão da
documentação a ser descrita.

Qualquer que seja a orientação do trabalho histórico, o pesquisador


necessita que o texto seja colocado ao seu alcance. Cabe portanto ao elaborador
da descrição apreender, identificar, condensar e, sem distorções, apresentar
todas as possibilidades de uso e aplicação da documentação por ele descrita.
Se o historiador deve submeter-se às coordenadas que limitam seu trabalho, isto
é, à existência de documentos utilizáveis e à lógica da sua própria análise,
interpretação e síntese, o arquivista, por seu conhecimento do acervo e por sua
técnica de descrição, indexação e resumo, pode fornecer-lhe elementos que,
muitas vezes, permaneceriam para sempre ignorados, gerando lacunas,
distorções graves ou mesmo fatais para a historiografia.

Só um arquivo munido de um guia geral de fundos, inventários e catálogos


parciais, e cuja equipe de arquivistas possa preparar em tempo razoável
catálogos seletivos e edições de textos, quando pertinentes, estará cumprindo
sua função junto à comunidade científica e ao meio social de que depende e a
que serve

Você também pode gostar