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Etnografia de documentos
Pesquisas antropológicas entre papéis,
carimbos e burocracias
ISBN XXXXXXXXXXXXXXXX
Foto da capa
XXXXX
Revisão
Mariana Oliveira
M684
Mobilização social na Amazônia : a ‘luta’ por justiça e por educação / organização Paula
Lacerda. - 1. ed. - Rio de Janeiro : E-Papers, 2014.
366 p. : il. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-446-7
CAPÍTULO 1
17 Perspectivas antropológicas
sobre documentos
Diálogos etnográficos na trilha dos papéis policiais
Laura Lowenkron e Letícia Ferreira
CAPÍTULO 2
53 Documentando relações e relacionando documentos
Sobre a materialidade das práticas de
conhecimento na regulação econômica
Gustavo Onto
CAPÍTULO 3
77 Cartas reduzidas a termo
Processos de estado e trâmites do comando na gestão das relações
em uma penitenciária feminina da cidade de São Paulo
Natália Corazza Padovani
CAPÍTULO 4
107 Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares
Claudia Fonseca, UFRGS
CAPÍTULO 5
141 Burocracias e violências de Estado
Analisando a trajetória documental de um caso de execução sumária
Juliana Farias
CAPÍTULO 6
179 Fazer falar os pedaços de carne
Comparações entre laudos periciais em casos seriais produzidos
pelo Instituto Médico-Legal (IML) de Campinas e de Juiz de Fora
Larissa Nadai e Cilmara Veiga
O projeto deste livro nasceu dos desafios analíticos enfrentados pelas pró-
prias organizadoras em suas etnografias pelos inquéritos e outros documen-
tos policiais, mas compartilhados também por diversos antropólogos cujas
pesquisas de campo foram atravessadas, muitas vezes inesperadamente, por
encontros com papéis e outras modalidades de registros burocráticos. As
principais dificuldades com as quais nos deparamos podem ser atribuídas
ao fato de que, apesar da recente proliferação de pesquisas etnográficas
que se debruçam sobre estes objetos e do renovado interesse antropológico
pelo tema, ainda não é fácil encontrar trabalhos acadêmicos que discutam
ou ofereçam um levantamento mais sistemático sobre os caminhos teórico-
-metodológicos desenvolvidos e adotados na etnografia de documentos. Este
é o principal objetivo desta coletânea.1
Tendo como ponto de partida o pressuposto clássico de que a etnogra-
fia é uma das práticas de conhecimento privilegiadas da antropologia social,
ainda que seja cada vez mais valorizada e apropriada por diferentes áreas2,
este livro visa contribuir para deslocar a centralidade histórica atribuída à
expressão observação participante na compreensão do que seja a pesquisa
etnográfica. A fim de produzir este deslocamento, buscamos investigar, sem
1 A publicação deste livro foi financiada com recursos do edital Jovem Cientista do Nosso
Estado (JCNE) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (Faperj), no âmbito do projeto “Dramas de família nos balcões da burocracia: a adminis-
tração institucional de casos de desaparecimento de crianças e adolescentes no estado do Rio
de Janeiro” (processo E-26/203.244/2017).
2 Para uma crítica à popularização recente da etnografia em outras disciplinas e uma defesa
sobre a sua articulação profunda com a teoria antropológica, ver Peirano (2008).
3 Para uma interessante reflexão sobre a tarefa de “etnografar documentos”, que nos foi
muito inspiradora, ver Vianna (2014). Vale notar que, em nossas próprias pesquisas, esta questão
se impôs desde cedo, não apenas pelos universos etnográficos que escolhemos pesquisar, mas
também pelos diálogos de orientação com Adriana Vianna, a quem somos gratas por ter nos
apresentado estas preocupações analíticas.
5 Agradecemos imensamente aos autores que apresentaram seus trabalhos neste Simpósio
(Larissa Nadai, Cilmara Veiga, Gustavo Onto e Juliana Farias) e aceitaram o convite de publicá-
-los neste livro e também ao participativo público deste SPG, composto por Adriana Vianna,
Silvia Aguião, Maria Filomena Gregori, Bianca Freire-Medeiros e Jair Ramos, entre outros. Suas
questões e contribuições enriqueceram muito nossos debates, bem como o resultado deles
sintetizado nesta coletânea.
6 Etnografia de documentos
analíticas e desafios teórico-metodológicos da etnografia documental com
base em pesquisas recentes realizadas em diferentes “campos”. Sem quais-
quer pretensões de esgotar essas possibilidades ou de oferecer uma amos-
tra supostamente “representativa” desses desafios, a proposta de reunir tais
trabalhos em uma coletânea fundamenta-se no princípio de que é a própria
etnografia, em sua multiplicidade e seu caráter sempre situado e relacio-
nal, que possibilita expandir os debates teóricos e metodológicos próprios à
antropologia.
Uma das novidades e contribuições destes textos, assim como dos de-
bates que os ancoraram e que são por eles expandidos, foi ter deixado de
lado (ou para trás) as controvérsias e as crises existenciais que marcaram
a relação entre a antropologia e os documentos em outros momentos da
disciplina. Seguindo a trilha de discussões antropológicas contemporâneas
que têm explorado as múltiplas possibilidades analíticas da etnografia docu-
mental, os trabalhos reunidos nesta coletânea apresentam novas respostas
epistemológicas aos velhos dilemas. Vale destacar que, apesar da diversida-
de empírica e teórica dos textos, uma característica comum foi levada em
conta na organização do livro a fim de tornar mais produtivo o diálogo entre
eles: todos são baseados em pesquisas etnográficas realizadas no âmbito ou
em torno de organizações estatais. Visto que nestes espaços institucionais a
escrita e os documentos são tecnologias e artefatos centrais, estes passam a
ser também objetos fundamentais nas etnografias realizadas tanto nas pró-
prias repartições burocráticas quanto entre sujeitos, famílias e movimentos
que por elas transitam ou com elas interagem com determinadas finalidades.
Por esta razão, alguns dos autores dedicam-se a descrever de que forma o
interesse pelos documentos demonstrado por seus interlocutores de pes-
quisa tornou-se algo contagioso (Riles, 2006) e, por isso mesmo, incontor-
nável, embora não possuíssem quaisquer propósitos pré-definidos de voltar
sua atenção para os papéis, registros e demais artefatos gráficos (Hull, 2012)
produzidos ou arquivados nos contextos em que conduziram seus trabalhos
de campo.
Ao explorar o potencial heurístico dos encontros etnográficos travados
pelos autores aqui reunidos com processos, laudos, ofícios, cartas e outros
tantos tipos de registro escrito, nossa proposta não é apresentar fórmulas
prontas e nem um sentido definitivo para a expressão etnografar documen-
tos. Apostamos que a própria definição do que seja esta tarefa é ela mesma
etnográfica. Desse modo, nosso intuito ao reunir pesquisadores que estão
8 Etnografia de documentos
(ou o que permitem fazer). Os capítulos mostram, assim, que documentos
não só registram realidades pré-existentes, mas também são tecnologias
centrais na produção e fabricação das realidades que governam, sejam elas
corpos, territórios, relações.
Por terem sido conduzidas em burocracias estatais ou entre sujeitos,
famílias e movimentos que apresentam demandas a organizações dessa na-
tureza, as pesquisas que deram origem aos textos revelam também as dife-
rentes formas por meio das quais processos, formulários, ofícios e laudos,
tantas vezes interpretados como materializações da face mais impessoal e
racional (Weber, 1963; Herzfeld, 1992) e também mais opressora e desuma-
na da burocracia (Reis, 1998; DaMatta, 2002; Graeber, 2012), interpenetram-
-se com e incidem sobre universos como o da sexualidade, da intimidade,
do parentesco, das relações familiares e dos afetos. Demonstram, assim, as
múltiplas conexões, articulações e trânsitos entre objetos e universos con-
vencionalmente pensados como “esferas separadas” ou até opostas e reci-
procamente poluidoras (Zelizer, 2009 e 2011), explorando o potencial analíti-
co de se reunir, na mesma etnografia (ou na mesma coleção de documentos,
como fazem personagens de alguns capítulos do livro), papéis “oficiais” e
cartas, bilhetes e outros registros entendidos como “pessoais”.
Os capítulos
O capítulo “Perspectivas antropológicas sobre documentos: diálogos etno-
gráficos na trilha dos papéis policiais”, de Laura Lowenkron e Letícia Ferrei-
ra, discute implicações e potencialidades analíticas de se pensar e pesquisar
antropologicamente com documentos, argumentando que estes constituem
artefatos etnográficos especialmente rentáveis em certos contextos de pes-
quisa. Para tanto, recupera alguns movimentos históricos de distanciamento
e aproximação entre a antropologia e os documentos, colocando em diálo-
go os debates antropológicos sobre o tema e duas experiências recentes de
pesquisa etnográfica realizada pelas autoras.
Com base na etnografia de Lowenkron em meio a inquéritos da Polícia
Federal brasileira relacionados ao crime de tráfico de pessoas para fim de
exploração sexual, o capítulo analisa a “arte de reduzir a escrito” durante
uma oitiva policial a partir de uma alternância entre duas estratégias ana-
líticas de leituras (ao longo e na contracorrente). Em seguida, com base na
pesquisa de Ferreira sobre procedimentos administrativos em torno de
10 Etnografia de documentos
ampla sobre o que consiste a “expertise documental” com base nas dificul-
dades que o próprio etnógrafo enfrentou na sua tentativa de documentar
relações e relacionar documentos.
Natália Padovani, em “Cartas reduzidas a termo: processos de Estado e
trâmites do Comando na gestão das relações em uma penitenciária feminina
da cidade de São Paulo”, também explora os sentidos e os efeitos da aqui-
sição de certa “expertise documental” por suas interlocutoras de pesquisa.
A autora demonstra que no espaço da Penitenciária Feminina de Santana
(PFS), uma das prisões em que realizou trabalho de campo, essa “expertise”
expande-se em seu uso, sendo utilizada por mulheres em cumprimento de
pena não só diante de aparelhos estatais e suas sentenças, processos, relató-
rios e despachos, mas também em face dos procedimentos de gestão da vida
na prisão executados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), um coletivo
de presos cujo poder se capilarizou através de tramas relacionais, merca-
dos ilegais e ordenamentos morais que incidem de forma definitiva sobre a
vida nas prisões e nas periferias de São Paulo. Para tanto, a autora analisa os
usos que a presa Adelina, protagonista do capítulo, faz das cartas trocadas
entre ela e seu marido, ele também cumprindo pena em uma penitenciária.
Adelina produz, a partir das cartas, um dossiê que pretende comprovar seu
casamento perante as “torres de comando”, explorando, portanto, o sentido
de “documentar” como um processo de produção de verdades/provas.
Ao focar as cartas e os registros produzidos, recebidos e reunidos no
dossiê por Adelina, e ao partir deles para pensar as múltiplas rotinas e pro-
cedimentos a que se submetem as mulheres em cumprimento de pena em
penitenciárias, Padovani propõe uma contundente comparação entre as for-
malidades características dos aparelhos jurídicos prisionais e os chamados
“trâmites” executados pelo PCC nas prisões, ambos centrados nas “palavras”.
Nesse sentido, a partir da atenção detida não só sobre as palavras ditas, mas
principalmente sobre aquelas escritas e lidas por Adelina e pelas “irmãs” do
Comando em diferentes documentos e “trâmites”, a autora descreve como
as vidas das mulheres nas prisões de São Paulo são submetidas tanto a for-
mas de gestão estatais quanto àquelas emanadas das “torres de comando”
do PCC.
Claudia Fonseca, em “Tempo, DNA e documentos na validação de víncu-
los familiares”, também analisa disputas em torno da produção de verdades/
provas sobre vínculos familiares a partir do que ela denomina de tecnologias
interconectadas. Contudo, a autora demonstra como documentos oficiais,
12 Etnografia de documentos
segmentos de Estado – delegacias, secretarias, comissões temáticas, nú-
cleos especializados, entre outros – responsáveis pela gestão das mortes dos
moradores de favelas. Entendendo a produção de registros oficias enquanto
elemento central dessa gestão, a análise se constrói a partir da trajetória do-
cumental de um caso específico de execução sumária ocorrido em 2009 em
uma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro.
A autora explora os recursos acionados em diferentes documentos que
compõem o inquérito policial e o processo judicial que conformaram o caso
para defender ou contrapor a versão falaciosa de uma suposta troca de tiros
que teria provocado a morte em questão, levando em conta a implicação de
agentes estatais na redação/preenchimento dos papéis, bem como o enga-
jamento dos familiares nos esforços pela releitura dos mesmos como parte
do desvendamento do próprio crime. Dessa maneira, assim como o capítulo
de Fonseca, o de Juliana Farias evidencia como documentos oficiais podem
ser agenciados como instrumentos de disputa e pedidos de reparação ao
Estado por parte das famílias daqueles que sofreram violações perpetradas
por seus agentes ou instituições.
Larissa Nadai e Cilmara Veiga, em “Fazer falar os pedaços de carne:
comparações entre laudos periciais em casos seriais produzidos pelo Insti-
tuto Médico Legal (IML) de Campinas e de Juiz de Fora”, debruçam-se sobre
dois diferentes corpus documentais, colocando-os em comparação: os do-
cumentos oficiais de perícia produzidos pelo IML de Campinas, São Paulo,
em um caso serial de estupro e atentado violento ao pudor, e os exames
cadavéricos fabricados pelo IML de Juiz de Fora, Minas Gerais, em um caso
em série de latrocínio. Especialmente interessadas em explorar os termos e
as formas narrativas convencionadas nesses tipos de documento, as auto-
ras buscam colocar em evidência o saber por meio do qual especialistas do
campo da Medicina Legal “esquadrinham”, “perscrutam” e “fazem falar” os
corpos vivos e mortos que examinam rotineiramente com finalidades peri-
ciais. A partir disso, elas refletem, a um só tempo, tanto sobre os efeitos das
insígnias, assinaturas, carimbos e praxes de escrita sempre precisas e reite-
radamente exibidas pelos documentos analisados, quanto sobre os sentidos
e desdobramentos dos silêncios, ocultamentos, imprecisões e, sobretudo, do
caráter tantas vezes inconclusivo daqueles laudos e exames.
A perspectiva comparativa adotada pelas autoras ajuda a perceber as
especificidades das convenções narrativas acionadas por órgãos de polícia
técnico-científica na gestão de diferentes tipos de crime. Ademais, Nadai
14 Etnografia de documentos
Referências bibliográficas
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16 Etnografia de documentos
CAPÍTULO 1
Perspectivas antropológicas
sobre documentos
Diálogos etnográficos
na trilha dos papéis policiais1
Laura Lowenkron e Letícia Ferreira
1 Uma versão em inglês deste artigo foi publicada na revista Vibrant, v. 11, n. 2, 2014, p. 75-111.
2 Este crime é tipificado pelo art. 231 do Código Penal brasileiro: “promover ou facilitar a en-
trada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma
de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Pena – reclusão, de
3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a
pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la
ou alojá-la; § 2º A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para
a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou
outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV - há emprego de violência,
grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa” (BRASIL, 1940).
18 Etnografia de documentos
investigações criminais. A leitura e a observação direta da confecção desses
artefatos evidenciaram ainda como aqueles que são regulados e constituídos
por meio desses papéis não são inertes em relação às práticas de documen-
tação estatais.
Já o contato com registros de ocorrência e outros documentos relativos
a casos de “desaparecimento de pessoa” fabricados, colocados em circula-
ção e/ou arquivados em um setor da Polícia Civil do Rio de Janeiro foi, na
pesquisa realizada pela segunda autora do artigo, elemento central da pró-
pria possibilidade de realização do trabalho de campo (Ferreira, 2011; 2013).
Reforçando a lógica cartorial vigente em repartições policiais brasileiras
(Kant de Lima, 1995; Miranda et al., 2010), em um primeiro plano documen-
tos funcionaram como suporte material incontornável para a afirmação de
autoridades e para a concessão de autorizações sem as quais o trabalho de
campo não teria sido possível. Não obstante, em um segundo plano, docu-
mentos tornaram-se o objeto mais fundamental da pesquisa, tanto em razão
da maneira como os inspetores, investigadores e delegados que os fabricam
os encaram, quanto pelo papel crucial que desempenham na administração
policial de casos de “desaparecimento de pessoa” no Rio de Janeiro.
Baseando-se dessas experiências etnográficas para mostrar como os
documentos, encarados em seus contextos de produção, circulação e ar-
quivamento, constituem artefatos etnográficos especialmente rentáveis em
certos contextos de pesquisa, pretendemos contribuir para reflexões mais
amplas acerca não só das dinâmicas, dos efeitos e dos poderes mobilizados
por práticas de documentação, mas também dos desafios que a lida com do-
cumentos em situações de trabalho de campo etnográfico aporta à antropo-
logia e às suas autorrepresentações. Para isso, apresentamos como esses de-
safios apareceram em nossas pesquisas, dialogando com algumas discussões
que têm atravessado debates antropológicos contemporâneos sobre o tema.
20 Etnografia de documentos
O modo mais clássico de lidar com documentos é justamente olhar
através deles, e não tanto para eles (Hull, 2012a, p. 253), de modo a produ-
zir narrativas etnográficas sobre cenas, discursos e eventos que não foram
presenciados diretamente pelo pesquisador, isto é, que não foram registra-
dos em primeira mão em seu caderno de campo, mas, sim, já lhe chegaram
previamente documentados por outros (Vianna, 2014). A partir da chamada
“virada histórica” da disciplina nos anos 1980, a ideia de uma etnografia dos/
nos arquivos (Castro e Cunha, 2005; Cunha, 2004 e 2005; Castro, 2008; Zei-
tlyn, 2012), em suas múltiplas modalidades e extensões metafóricas, tornou-
-se cada vez menos exótica e mais frequente.
Emergiram desde então novas estratégias metodológicas para lidar
com os documentos. Como discute Zeitlyn (2012), uma delas é a leitura de
arquivos na contracorrente (against the grain)3, isto é, subvertendo os modos
de entendimento imaginados e pretendidos pelas racionalidades adminis-
trativas que produzem e mantêm tais acervos documentais. Essa postura
epistemológica levou ao desenvolvimento de abordagens críticas e imagina-
tivas de fontes tradicionais. O principal objetivo era escavar vozes subalter-
nas e silenciadas, resgatar ações (ou agência), percepções e pequenos gestos
de resistência daqueles situados à margem dos registros oficiais e, assim,
promover a “insurreição de saberes subjugados” (Foucault, 1980, p. 81).
Mais recentemente, Stoler (2002, 2009) questionou como a maioria dos
estudiosos de arquivos coloniais poderia voltar-se tão rapidamente para lei-
turas na contracorrente (against the grain) sem antes mover-se ao longo da
corrente (along the grain). Segundo a autora, assumir que já conhecemos tais
scripts diminui nossas possibilidades analíticas (Id, 2002, p. 100). Analisando
o arquivo como um artefato cultural, ela busca entender a perspectiva e as
preocupações de seus artífices, conferindo particular atenção às conven-
ções que moldam aquilo que pode ou não ser registrado, as repetições, os
esquecimentos, as diferentes modalidades de não ditos e as hierarquias de
credibilidade que delimitam saberes qualificados e desqualificados.
Ao deslocarem as autorrepresentações antropológicas da etnografia
como “observação participante” ou como escrita para modalidades de leitura,
esses ensinamentos das etnografias dos/nos arquivos permitem ampliar as
possibilidades analíticas de “documentos vivos” consultados durante pesqui-
sas de campo etnográficas em organizações burocráticas contemporâneas.
22 Etnografia de documentos
relação mutuamente constitutiva entre a produção, a troca e a transforma-
ção de documentos e os afetos retidos, transportados e experimentados por
aqueles que os manuseiam. No Brasil, trabalhos pioneiros e fundamentais de
Peirano (1986, 2006a, 2006b, 2009) vêm, desde há muito, chamando atenção
para a capacidade de o porte de documentos, em certas situações, fazer o
cidadão em termos performativos. Essa capacidade, como a autora sublinha
em relação a documentos de identidade, deriva em grande parte do efeito
de redundância entre elementos materiais presentes nesses papéis, como a
assinatura, o retrato 3x4 e a impressão digital da pessoa documentada (cf.
Peirano, 2006a, p. 36).
A crescente atenção concedida à materialidade de documentos em
trabalhos etnográficos, nesse sentido, tem lançado luz sobre o fato de que
papéis e formulários, assim como retratos, assinaturas, selos, carimbos e ou-
tros artefatos gráficos4 de uso corrente em organizações burocráticas de-
sempenham funções tanto no controle e na coordenação de procedimentos,
agentes e ações administrativas, quanto na construção de subjetividades,
afetos, pessoas e relações que extrapolam universos organizacionais. Assim,
etnografias atentas para esses artefatos e não só para o que pode ser visto
através deles têm explicitado a necessidade de não concebermos a fabrica-
ção, a circulação e o arquivamento de papéis como processos isomórficos
às estruturas organizacionais em que têm lugar, e iluminado as socialidades
e os enredamentos que esses processos produzem, bem como as fronteiras
que eles têm a capacidade ora de cruzar, ora de desfazer, ora de reafirmar.
Seguir a trilha aberta por tais trabalhos e explorar a materialidade dos
documentos na pesquisa sobre ocorrências policiais de “desaparecimento
de pessoa”5permite conhecer responsabilidades, obrigações e afetos que
4 A expressão “artefato gráfico” foi cunhada por Hull (2012b) para designar os mais diversos
documentos e tipos de registro produzidos em repartições burocráticas, como mapas, cópias,
cartões, assinaturas e listas, chamando atenção, de modo indissociável, tanto para sua dimen-
são material quanto para seu papel como mediadores fundamentais na produção das pessoas e
dos espaços a que se referem.
de pessoas por um estado ou por organização política, ou com a autorização, apoio ou aquies-
cência destes, seguidos da negativa de informar sobre a privação de liberdade ou dar informa-
ção sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas, com a intenção de deixá-las fora do amparo da
lei por um período prolongado”. (Jardim 2011,p.14). Para uma análise antropológica da incidência
do crime de “desaparecimento forçado de pessoas” no Brasil hoje, que explora inclusive a pos-
sibilidade deste crime permanecer encoberto pela categoria administrativa “desaparecimento
de pessoa”, ver Araújo (2008, 2012).
24 Etnografia de documentos
técnicos, depoimentos tomados em cartório e de um relatório juridicamente
orientado, assinado por um delegado de polícia, bacharel em direito” (Misse,
2011, p. 19). Mas ele é também o instrumento que formaliza e oficializa o tra-
balho investigativo policial6. Como diz o jargão jurídico, “o que não está nos
autos não está no mundo”, de modo que uma investigação não documentada
é como se não tivesse existido.
Se o inquérito é o artefato por meio do qual as ações investigativas e
administrativas da Polícia Federal tornam-se legíveis e reais diante de seus
próprios artífices, para etnografar essas práticas era preciso seguir o papel. A
ideia inicial era abordar estes documentos como meios de entender as racio-
nalidades administrativas responsáveis pela construção e gestão do crime de
“tráfico de pessoas” e de seus respectivos personagens sociais (“traficantes”
e “traficadas”). Isso significava lê-los ao longo da corrente. No entanto, aos
poucos foi possível perceber que o processo de produção, deslocamento e
fixação de concepções oficiais e oficiosas do “tráfico de pessoas” nos in-
quéritos policiais não dependia apenas das performances dos seus múltiplos
documentadores, mas também das pessoas documentadas. Para compreen-
der como as supostas “vítimas” deste crime constroem “espaços de agência”
(Piscitelli, 2013) nas interações, certamente assimétricas, com os aparatos
estatais, era preciso ler os inquéritos simultaneamente na contracorrente.
Nesse sentido, a etnografia dos inquéritos policiais de “tráfico de pes-
soas” dialoga com outros trabalhos que, no lugar da perspectiva da “viti-
mização”, têm sugerido dar voz às experiências das pessoas que participam
dessas mobilidades, possibilitando confrontar suas narrativas com os relatos
hegemônicos sobre elas (Agustín, 2005; Piscitelli, 2008). A partir dessa con-
frontação, as pesquisas mostram que as trajetórias desses migrantes geral-
mente não se enquadram nos mitos e estereótipos disseminados pela mídia
e pelas campanhas antitráfico (Piscitelli, 2008; Teixeira; 2008; Blanchette e
Silva, 2010). Essa sugestão vai ao encontro da percepção policial sobre o fe-
nômeno, tanto que na maior parte do tempo eles caracterizavam o “tráfico
de pessoas” menos em relação à definição legal do Código Penal do que a
partir de um contraste com o que eles supunham que seus interlocutores
“de fora” (inclusive a pesquisadora) esperassem que fosse a realidade desse
crime.
26 Etnografia de documentos
documentos são meios privilegiados de dispersão de responsabilidades e de
produção de uma agência coletiva (Hull, 2012b) ou, neste caso, compartilha-
da entre os agentes documentadores e as pessoas documentadas.
Sem perder de vista que a condição assimétrica dessa relação deve ser
levada em conta na análise das performances individuais, a possibilidade de
observação das interações entre os indivíduos e o “Estado” (enquanto apa-
rato administrativo) faz do campo na Polícia Federal um espaço produtivo
para aprofundar essa reflexão a respeito das potencialidades do conceito de
agência, entendida aqui jamais como livre-arbítrio e não necessariamente
como resistência, mas, sim, “num sentido antropológico, como capacidade
de ação, mediada social e culturalmente” (Piscitelli, 2013, p. 22). O que se
pode notar é que, a partir da relativa autoridade que lhes é delegada ao assu-
mirem a condição de “testemunhas” privilegiadas nestes inquéritos policiais,
as supostas “traficadas” manipulam as informações segundo seus próprios
interesses. Com isso, geralmente, resistem ao processo criminalizador/viti-
mizador, pois raramente denunciam ou contribuem para a configuração da
materialidade do delito do qual, em tese, seriam “vítimas”.
Partindo da premissa de que a escrita é uma das atividades mais impor-
tantes das rotinas estatais (Gupta, 2012), a etnografia das práticas policiais de
documentação busca observar como as falas dessas pessoas são “reduzidas a
escrito”7 no inquérito policial, bem como explicitar as estruturas reguladoras
que regem estas formações e deformações discursivas. O chamado “Termo
de declarações” é o principal gênero de escrita burocrática que garante aos
discursos das supostas “vítimas” (convertidas nos autos em “testemunhas”)
“subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente” (Foucault,
2014, p. 159) ao longo do processo de produção e sobreposição documental.
Enunciadas mediante os constrangimentos da chamada “oitiva” policial,
as declarações “reduzidas a termo” são registradas em um documento dota-
do de rigor formal, marcado por convenções narrativas que se repetem e por
uma forma jurídica própria. A conversão da oralidade para a escrita, neste
caso, é constituída pela redução e substituição das respostas dos interro-
gados pelo discurso indireto do interrogador. As perguntas são silenciadas
e sinalizadas apenas pela fórmula genérica “inquirido a respeito dos fatos,
RESPONDEU: QUE...”, situada no início do documento, após a data, o local,
9 Foram consultados, ao todo, 11 dos 14 inquéritos de “tráfico de pessoas para fim de explo-
ração sexual” que estavam em curso na delegacia da Polícia Federal no Rio de Janeiro na qual a
pesquisa foi realizada, que à época reunia a maior quantidade de casos sobre este crime entre
as superintendências regionais do órgão, situadas em cada um dos estados da federação. Em
apenas um inquérito (o analisado) teve indiciamento. Além deste, a materialidade e a autoria de
crime foram configuradas em apenas mais um caso, cujas investigações foram conduzidas pela
Polícia Civil e os criminosos já tinham sido processados e condenados pelos crimes de compe-
tência da Justiça Estadual, como a “exploração sexual de crianças e adolescentes” e o “rufianis-
mo”. Como foram coletadas provas também do “tráfico internacional de pessoas”, uma cópia dos
autos foi encaminhada à Justiça Federal e à Polícia Federal.
28 Etnografia de documentos
lá foram entendidas e tratadas como “migrantes indocumentadas”. Entretan-
to, esta divergência classificatória é silenciada ao longo do inquérito policial,
sem abalar as relações diplomáticas estabelecidas e renovadas pelo tráfego
internacional de documentos oficiais.
A única acusada que vivia no Brasil foi “indiciada”10 na Polícia Federal a
partir das cópias de peças processuais extraídas do inquérito de Portugal e
de um “Termo de declarações” produzido pelo procurador da República que
recebeu o pedido de cooperação jurídica internacional. Interrogada inicial-
mente no Ministério Público Federal, a mulher declarou ser empregada do-
méstica e receber ajuda financeira da filha que vivia no exterior, casada com
um português, cuja remuneração seria proveniente das bebidas consumidas
por clientes que acompanhava na boate em que trabalhava. O documento
registra ainda que a mãe afirmava que a filha não se prostituía, mas não sabia
dizer se na boate havia prostitutas. Garantia também que nunca havia trata-
do com o sogro por telefone qualquer assunto envolvendo a remessa para o
exterior de mulheres brasileiras para fim de prostituição. O termo é, então,
encerrado com a narrativa da cena na qual a suspeita é emocionalmente de-
sestabilizada pelos registros de uma ligação telefônica e com a exibição bu-
rocrática de que o procurador da República cumpriu as formalidades legais:
Após ser confrontada com a transcrição constante nos autos de
ligações telefônicas, demonstrou-se reticente e, orientada pelo
Procurador da República que não era obrigada a responder e que
podia consultar-se com advogado, preferiu dizer que não teve
esta conversa e optar pelo silêncio, dizendo que não iria mais res-
ponder as perguntas que lhe seriam formuladas. Assim, é deter-
minado o encerramento da oitiva e ela é orientada a procurar a
Defensoria Pública da União.
30 Etnografia de documentos
pagar mais caro pela bebida só para conversar!”, comenta o policial, em tom
de ironia. Ela corrige o policial, “não é boate, é clube”, e retruca que no Brasil
pode ser diferente, mas que os homens portugueses iam lá atrás de compa-
nhia, por “carência”, tanto que depois marcavam de almoçar, jantar, até casar
com a menina. Conta que a maioria das brasileiras casou com portugueses lá,
inclusive a cunhada, que estaria “muito bem-casada”, e ela mesma se “ajun-
tou” durante quatro anos com um homem que conheceu no “clube de alter-
ne” em Portugal. O diálogo foi traduzido pela autoridade policial e “reduzida
a termo” pelo escrivão da seguinte maneira:
QUE o trabalho de “alternadeira” consistia em incentivar clientes
a consumirem bebidas alcoólicas e que ganhariam 50% sobre o
valor consumido, sendo que os outros 50% ficariam com a boate;
QUE no local havia somente música ambiente e venda de bebidas
alcoólicas, não havendo shows de striptease e tampouco local
para realização de encontros sexuais, sendo realmente um bar
(grifos meus).
32 Etnografia de documentos
foi como eu conheci o meu namorado e fiquei com ele.” Complementado o
que a moça dizia com outras informações registradas nos autos (em “Ter-
mos de declarações” de outras testemunhas, transcrições de interceptações
telefônicas e relatórios da polícia e da justiça portuguesas), suas explicações
foram assim “reduzidas a termo”:
QUE sabe de meninas que trabalharam no Club que se prosti-
tuíram, porém isso era feito durante o dia e fora do Club; QUE
muitas delas namoraram e até mesmo se casaram com homens
que conheceram no local; QUE a própria DECLARANTE chegou
a namorar um português, por quase 4 anos, cujos dados qualifi-
cativos encontram-se às fls. 580/581 dos autos; QUE inclusive
chegou a morar com este cidadão português, em Portugal
34 Etnografia de documentos
se autolegitimam menos a partir do que é de fato documentado pelos órgãos
estatais que atuam na linha de frente operacional de combate a este crime
(como a polícia), e mais pela proclamada necessidade de aprimorar a regula-
ção daquilo que supõe-se não estar sendo devidamente documentado.
11 Para citar as exatas palavras de Eilbaum (2012), “a sigla VPI provém do §3º do artigo 5º do
Código de Processo Penal Brasileiro. Refere-se a que quando uma infração penal é comunicada
à polícia, esta deve, uma vez verificada a procedência das informações, instaurar um inquérito
policial. A partir do ato de verificar as informações, a polícia passou a criar uma peça adminis-
trativa burocrática própria, chamada VPI.” (2012, p.414)
36 Etnografia de documentos
iniciais da pesquisa incluíam o interesse em entender o lugar ocupado por
ocorrências de “desaparecimento” nas classificações informais acionadas
por policiais.
Para abordar essa questão etnograficamente, o caminho tomado foi
buscar acesso a um setor daPolícia Civil do Rio de Janeiro especializado em
casos de “desaparecimento”: o Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da
atual Divisão de Homicídios da capital. Em uma primeira visita ao SDP a pes-
quisadora foi recebida pelo então chefe interino do setor, inspetor Fernando,
e rapidamente instruída a solicitar formalmente à Chefia de Polícia Civil do
Rio de Janeiro uma autorização para fazer o estudo. A instrução foi seguida
à risca e também rapidamente, mas o documento só chegou à Chefia depois
de percorrer diferentes setores da Polícia Civil e receber mais de uma deze-
na de carimbos e pequenos manuscritos em suas margens até, finalmente,
ter inscrita em seu verso a curta frase que, pela negativa, permitiu a rea-
lização do trabalho: “Nada opor a pretensão acadêmica no que se refere à
pesquisa.”A necessidade não só de um papel, mas de um papel que circulasse
por múltiplos setores de uma organização em um ritmo alheio à vontade da
solicitante, colocou a antropóloga em contato com aquilo que é entendido
no Brasil como a opressora materialização dos ideais de formalismo, impes-
soalidade e anonimato vigentes em burocracias: a incontornável necessida-
de de registros, papéis timbrados e assinaturas para dar continuidade aos
mais variados processos e obter os mais diversos direitos (cf. Reis, 1998 e
DaMatta, 2002). Ademais, a necessidade da autorização explicitou também
um aspecto-chave do funcionamento de organizações burocráticas: a impo-
sição tanto da incerteza quanto da espera como um eficaz recurso de poder
(cf. Hoag, 2011, p.86).
Além disso, a leitura da curta frase que enfim autorizou a condução da
pesquisa apresentou à antropóloga “um fato etnográfico mesmo antes de
chegar ao ‘campo’” (Peirano, 2009, p.54). Isto porque ler documentos tornou-
-se não só uma atividade rotineira, como também um dado envolvente do
trabalho de campo que então se iniciou. Embora a solicitação respondida
com aquela frase tenha sido depositada em uma gaveta do SDP, de onde
foi retirada uma única vez para ser checada, outros papéis, organizados na
forma de VPIs, foram cotidianamente retirados de gavetas e sistematica-
mente lidos, transcritos e manuseados pela pesquisadora. Esses atos, ainda
‘repercussão’, os que têm relevância, são os de homicídio, sequestro, roubos de cargas, tráfico
de drogas, entre outros.” (p.166)
38 Etnografia de documentos
“desaparecimento” diretamente de pessoas classificadas por policiais, mui-
tas vezes independentemente de vínculos factuais, como “famílias de pes-
soas desaparecidas”. Tempos depois de efetuados seus primeiros registros
nas delegacias, as VPIs são encaminhadas ao SDP para investigações espe-
cializadas13. Diferente de inquéritos policiais, como já sugerido, as VPIs são
procedimentos administrativos instaurados diante de ocorrências não cri-
minais. O ponto central, porém, não é a natureza distinta das VPIs em com-
paração aos inquéritos, e sim a diferença de status atribuída pelos policiais
às VPIs e aos inquéritos e, ainda, a menor importância atribuída às VPIs de
“desaparecimento de pessoa” em relação a outras. Reproduzindo a hierar-
quia implícita na separação entre “crimes de verdade” e “feijoada”, policiais
entendem que inquéritos são documentos propriamente policiais e, por isso,
dotados de notória relevância, ao passo que VPIs são, em suas palavras, “só
procedimentos administrativos”, desimportantes, vistos como incapazes de
revelar a “realidade” do trabalho policial e, por isso mesmo, passíveis de ser
tocados, lidos e transcritos até mesmo por uma pesquisadora.14
Não obstante, no heterogêneo universo das VPIs, policiais entendem
que aquelas instauradas diante de casos de “desaparecimento” são ainda me-
nos importantes do que as demais. Acionando outra classificação informal
que ora se soma, ora se sobrepõe à separação entre “crimes de verdade” e
“feijoada”, os policiais do SDP frequentemente afirmam que casos de “desa-
parecimento” são “problemas de família”, em oposição ao que seriam “pro-
blemas de polícia”. Enquanto homicídios, sequestros e roubos, entre outros
crimes, seriam “problemas de polícia” que demandam operações de rua, in-
vestigações em equipe e outras atividades entendidas como parte do que
chamam de “trabalho policial”, casos de “desaparecimento” são, da ótica dos
13 Como detalhado na tese (Ferreira, 2011) e em artigo posterior (Ferreira, 2013) resultan-
te da pesquisa, o SDP tem por atribuição investigar casos de “desaparecimento” registrados
em um conjunto específico de delegacias comuns (da 1ª DP à 44ª DP) da capital do estado do
Rio de Janeiro. As delegacias que realizam os primeiros registros desses casos têm quinze dias
para levar a cabo investigações e dar-lhes desfecho. É depois de extinto esse prazo que, caso
as investigações não tenham permitido solucioná-los, centraliza-se no SDP a competência e
a responsabilidade por todos os casos de “desaparecimento” registrados naquelas DPs (Rio de
Janeiro 1991).
14 Se por um lado o status atribuído a VPIs é não só distinto, mas também inferior ao dos in-
quéritos policiais, a etnografia de Kant de Lima (1995, p.68-69) revela que esses procedimentos
administrativos oferecem uma margem maior de autonomia a policiais do que os inquéritos,
uma vez que seu arquivamento não depende de autorização de um juiz ou promotor, e sim do
arbítrio de um delegado.
40 Etnografia de documentos
desaparecidos. O que os números não apontam, contudo, é que a solução de
muitos casos se dá porque os desaparecidos retornam voluntariamente para
suas casas, e não em função de investigações bem-sucedidas.
Acompanha essa “ilusão” produzida por dados quantitativos e a desim-
portância atribuída aos papéis em que os casos são registrados, ainda, uma
clara incongruência entre elementos materiais dos documentos que com-
põem as VPIs e os enredos dos “desaparecimentos de pessoa” neles regis-
trados. Essa incongruência faz somar à inferioridade das VPIs a ideia de que
elas são peças documentais ineficazes em termos investigativos, reforçando
o caráter “ilusório” do trabalho do SDP, além de redundarem tanto na pro-
dução de registros vagos e imprecisos sobre os casos, quanto no recurso de
muitos policiais por deixar campos vazios ou preenchê-los com formas nar-
rativas como “ignorado”, “desconhecido” ou “não sabe”, entre outras.
Registros de ocorrência, ofícios, relatórios ou termos de declaração,
entre outros papéis incluídos em VPIs, trazem impressos, além de inscri-
ções e insígnias da Polícia Civil do Rio de Janeiro e/ou das delegacias e se-
tores em que são confeccionados, categorias, campos para preenchimento
de informações e convenções narrativas que se repetem de modo exaustivo.
Categorias como “autor”, “vítima”, “testemunha”, “local do fato”, “data e hora
do fato” e “bens envolvidos”, por exemplo, aparecem no corpo de registros
de ocorrência, orientando o trabalho de todo policial que venha a preencher
esse documento diante de um caso – seja ele de “desaparecimento” ou não.
Também em termos de declarações, ofícios, despachos e mandados de in-
timação, assim como em alguns relatórios, parte dessas categorias aparece
para preenchimento, justapostas a campos onde devem necessariamente ser
registrados dados sobre a “vítima”, como “nome”, “filiação”, “profissão”, “cor”
e “idade”. Se tais categorias aparecem de modo repetitivo e até redundante
nos documentos, ao mesmo tempo não há espaço destinado nos papéis nem
para que retratos dos envolvidos nas ocorrências sejam anexados, nem para
que eles sejam descritos fisicamente para além da “cor” atribuída à sua pele.
A incontornável presença de tais categorias e campos para preenchi-
mento nos documentos, bem como a ausência de espaços para retratos e
descrições físicas dos envolvidos nos casos, são elementos materiais das VPIs
que se revelam incompatíveis com enredos de “desaparecimento de pes-
soa”. Casos de “desaparecimento” não são crimes e, portanto, não há como
se falar em “autores”, “vítimas” e “testemunhas”, ao menos não com os sen-
tidos carregados por essas categorias em ocorrências criminais. Ademais,
42 Etnografia de documentos
elementos materiais e os enredos dos casos, acaba por reforçar a desimpor-
tância atribuída às VPIs, além de revestir os “desaparecimentos” de um cará-
ter enigmático que decorre não dos casos em si, mas da imprecisão provo-
cada por aquelas incongruências.17 Ademais, ela acaba por reforçar também
a ideia de que “desaparecimentos” não são “problemas de polícia”, já que até
aquilo que é mais trivial na rotina de uma delegacia e tão pouco importante
a ponto de não ter relação com sua “realidade”, os papéis rotineiramente
preenchidos, revela-se inadequado diante de suas características, enredos
e personagens.
Ainda que considerados desimportantes, e a despeito da incongruência
entre seus elementos materiais e os enredos das ocorrências neles regis-
tradas, documentos sobre “desaparecimentos” exercem um papel crucial na
forma como agentes e repartições policiais como o SDP os administram. Em
função sobretudo do efeito de acúmulo e repetição provocado pela leitura
sistemática de documentos no curso do trabalho de campo, foi possível à
pesquisadora compreender que muito do conteúdo registrado nesses papéis
aponta não para o que teria ocorrido quando do “desaparecimento” de uma
pessoa, e sim para um processo de delegação de responsabilidade que é co-
locado em movimento, depois da comunicação do caso em uma delegacia,
pela própria produção e circulação de documentos. Se para policiais como o
inspetor Fernando “desaparecimentos” são “problemas de família”, ao “ape-
nas preencher papéis” a respeito dos casos, esses mesmos agentes logram
delegar a responsabilidade de geri-los e até mesmo de solucioná-los para as
chamadas “famílias de pessoas desaparecidas”.
A partir do que registram, da forma como registram e do fato de que
aquilo que registram fica firmado em documentos de natureza policial –
apesar de suas próprias concepções quanto ao caráter assistencial do traba-
lho demandado por “desaparecimentos” –, policiais atribuem funções como
procurar “desaparecidos”, controlar sua mobilidade e até impedir que de-
sapareçam novamente para as pessoas que foram a delegacias exatamente
com a finalidade de que eles, os policiais, executassem essas tarefas. Como
mostram três casos evocados a seguir, ao preencher documentos os poli-
ciais devolvem às “famílias”, na forma de conselhos e sugestões apresentados
tanto oralmente quanto nos próprios textos que firmam nos documentos, a
17 Na tese em que a pesquisa resultou (Ferreira, 2011, pp.94-112) há uma reflexão pormenori-
zada sobre esse caráter enigmático e sua relação com elementos materiais dos documentos. Por
razões de economia textual, a questão não será desenvolvida aqui.
44 Etnografia de documentos
familiar, e sua mãe decidiu procurar a polícia. Na ocasião, foi feito registro
de “desaparecimento” em nome de Melissa. Uma semana depois, a mãe da
desaparecida retornou à repartição e relatou que a menina já estava em casa.
A partir de seus relatos, o policial que a atendeu registrou:
Que segundo informações da comunicante, sua filha Melissa foi
encontrada no Bairro de Quintino na casa de uma amiga, sendo
levada para casa para serem tomadas certas medidas com relação
ao comportamento da mesma.
46 Etnografia de documentos
ineficácia (ou a desimportância) de inquéritos que “não dão em nada”, seja
diferenciando a atividade de “apenas preencher papel” das práticas investi-
gativas que idealmente deveriam privilegiar. Assim, acabam frequentemente
delimitando fronteiras e hierarquias de maneira muito similar ao modo pelo
qual antropólogos tradicionalmente conceberam e definiram a etnografia:
opondo a lida com documentos ao que seria o “verdadeiro” trabalho policial,
constituído pela investigação de rua e voltado para “crimes de verdade”.
Como se sabe, a legitimidade e a autoridade da antropologia, ancoradas
no modelo mítico do trabalho de campo etnográfico malinowskiano, foram
fundadas em certa oposição entre uma “antropologia de gabinete”, basea-
da em pesquisa documental e concebida como distante e desinteressante, e
uma antropologia que emanaria da experiência do trabalho de campo, esta,
sim, entendida como capaz de apreender a “realidade” da vida nativa. Con-
siderando as potencialidades desta analogia, é possível notar que se, por um
lado, nossos relatos etnográficos demonstraram o lugar central desempe-
nhado pelos artefatos documentais no cotidiano de instituições policiais,
mesmo quando sua importância é menosprezada por seus artífices, por ou-
tro, revelaram a distância pouco debatida entre certas autorrepresentações
idealizadas sobre a pesquisa antropológica e as atividades que efetivamente
realizamos quando fazemos antropologia (cf. Pacheco de Oliveira, 2009).
Ao seguir a trilha dos papéis policiais e afastar-se de certos estereó-
tipos sobre as práticas de conhecimento da disciplina e sobre os artefatos
que devemos observar, manusear e descrever quando fazemos etnografia, os
dois relatos apresentados explicitaram e basearam-se em estratégias analí-
ticas distintas: o primeiro concentrou-se na descrição etnográfica da arte de
“reduzir a escrito” a partir de uma leitura ao longo e na corrente dos inqué-
ritos de “tráfico de pessoas” na Polícia Federal e, o segundo, na exploração
da materialidade e dos agenciamentos produzidos pelos registros de ocor-
rência e outros artefatos documentais relativos a casos de “desaparecimento
de pessoa” na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ambos os trabalhos conferiram
particular atenção à micropolítica da interação entre documentadores e do-
cumentados, permitindo também reflexões sobre a interação entre docu-
mentadores e uma das pesquisadoras.
Ao tomar os documentos como artefatos etnográficos, pudemos no-
tar que a solução (ou não) dos casos investigados nas instituições em que
as pesquisas foram conduzidas depende não apenas da ação (ou inação)
dos seus artífices, mas também de modalidades distintas de delegação de
48 Etnografia de documentos
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52 Etnografia de documentos
CAPÍTULO 2
Introdução1
“documentar (De documento + ar). Verbo transitivo direto. 1. Jun-
tar documentos a; provar, com documentos, que (algo) é verda-
deiro, autêntico, etc. 2. Registrar visando maior organização e
referência para posteriores alterações.” (Dicionário Aurélio, 2009)
1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 38o Encontro Anual da Anpocs, den-
tro do SPG 15 (“Perspectivas etnográficas sobre documentos: possibilidades analíticas e desafios
metodológicos”), coordenado por Laura Lowenkron e Leticia Carvalho de Mesquita Ferreira.
Agradeço pelos comentários das coordenadoras e dos debatedores, que permitiram tornar os
argumentos deste artigo mais claros e a interlocução com outros autores mais evidente.
2 O trabalho de campo que embasa este artigo consistiu numa etnografia feita entre março
de 2012 e agosto de 2013 sobre o trabalho de análise e julgamento dos processos administrati-
vos do CADE. A instrução processual é realizada por servidores públicos e estagiários das mais
variadas áreas (em geral economistas e advogados) que trabalham no Tribunal Administrativo e
na Superintendência-Geral do órgão antitruste brasileiro, localizado em Brasília.
54 Etnografia de documentos
2011; Sharma e Gupta, 2006) têm dado importância analítica à materialidade
dos documentos sob variados aspectos – sua forma gráfica, a disposição das
informações no papel, os modos de organização –, ao mesmo tempo que
chamam atenção para o “texto”, o “discurso” ou o “significado” contido neles.
As qualidades formais ou estéticas dos documentos servem, nessa literatura,
como um contraponto metodológico e analítico ao que seria uma considera-
ção excessivamente representacional do tratamento etnográfico do material
documental (Riles, 2006; 2010). Argumenta-se que os documentos podem
ser considerados não apenas meros instrumentos de racionalização e sim-
plificação de realidades, mas principalmente artefatos performadores das
mais variadas relações ou objetos governamentais.
A reflexão aqui apresentada se insere num conjunto de trabalhos que
tem dedicado atenção especial a práticas de documentação em órgãos regu-
ladores da economia e nas organizações (bancos, empresas) por eles regula-
das. A etnografia de certos documentos como relatórios de missões do FMI
(Harper, 1998), formulários de securitização no mercado financeiro (Riles,
2011) e atas das reuniões de bancos centrais (Holmes, 2009; 2014) permiti-
ram explicar seu papel na construção e coordenação de expectativas sobre
a economia (Holmes, idem) ou na formação de uma obrigação legal e inter-
temporal de compra e venda de ações (Riles, 2010). Esses estudos ilustram
como práticas de documentação – utilizando os dois sentidos do verbo “do-
cumentar”: como a organização e circulação de artefatos documentais e
como a produção escrita de conhecimento – são imprescindíveis à constru-
ção de objetos ou realidades econômicas (como mercados, expectativas, em-
presas, concorrência...) e das entidades que, supostamente externas à vida
econômica, a regulam e a controlam, como o “Estado” por exemplo (Mitchell,
1999). Neste artigo, por meio de uma descrição dos mecanismos que funcio-
nários do órgão governamental encontram para gerir a enorme quantidade
de documentos que cotidianamente produzem, leem, arquivam, copiam ou
enviam, procura-se evidenciar as relações e os sentidos sociais produzidos
na interação com artefatos documentais.
Este artigo está dividido em cinco partes. A primeira descreve o CADE e
sua função nas políticas nacionais. A segunda descreve a materialidade das
práticas burocráticas no gabinete de um dos conselheiros do órgão. A tercei-
ra e quarta partes analisam duas características dos documentos do CADE:
a sua temporalidade e sua confidencialidade. Na última parte são apresen-
tadas algumas considerações a respeito da analogia entre a relação descrita
56 Etnografia de documentos
especializados6 e organizações estatais que tentam fazer desse princípio
uma realidade. Cabe principalmente aos órgãos estatais antitruste do mun-
do, baseando-se nas legislações concorrenciais7 dos seus países e nos co-
nhecimentos de especialistas sobre a economia e o direito, decidir quando
há uma ameaça a esse princípio. No caso brasileiro, no artigo 173, § 4º, da
Constituição de 1988, a lei especifica a função do órgão antitruste, depois
detalhada em lei complementar: “A lei reprimirá o abuso do poder econô-
mico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros.” Essas organizações governamentais, portan-
to, têm uma função similar em praticamente todos os lugares: determinar
caso a caso, processo a processo, quando uma prática (cartel entre empre-
sas, por exemplo) ou concentração empresarial (como fusão de empresas)
podem gerar um risco à “livre concorrência”. O modo como o órgão brasilei-
ro realiza esse trabalho é o objeto central do projeto de pesquisa que gerou
este artigo.
No Brasil, o CADE, autarquia8 judicante vinculada ao Ministério da Jus-
tiça, é o braço do Poder Executivo responsável pela política de defesa da
concorrência. Embora tenha sido criado em 1962, inspirado nas agências an-
titrustes de países considerados mais desenvolvidos (como a Federal Trade
Commission dos Estados Unidos ou o Bundeskartellamt alemão), o CADE pas-
sou muito tempo tendo uma função marginal na política econômica nacio-
nal (Considera e Corrêa, 2002). Somente no início da década de 1990, quan-
do novas legislações concorrenciais foram aprovadas, buscando também
8 Segundo o jurista Hely Meirelles (2010, p.380): “Autarquias são entes administrativos autô-
nomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patri-
mônio próprio e atribuições estatais específicas (…) esta administra-se a si própria, segundo as
leis editadas pela entidade que a criou.”
9 “A Administração Pública, para registro de seus atos, controle da conduta de seus agentes
e solução de controvérsia de seus administrados, utiliza-se de diversificados procedimentos,
que recebem a denominação comum de processo administrativo.” (Meirelles, 2010, p.734)
58 Etnografia de documentos
e redação minuciosa das características de empresas e mercados, tendo em
vista a elucidação de relações concorrências mais ou menos problemáticas,
por outro lado, seu trabalho consiste em relacionar formas documentais
diversas (jurisprudência do órgão, petições, ofícios, relatórios, pareceres,
estudos, folhas de presença, etc..) e organizá-las conforme procedimentos
administrativos comuns à administração pública brasileira.
O órgão antitruste é constituído pelo Tribunal Administrativo de Defesa
Econômica, pela Superintendência-Geral e pelo Departamento de Estudos
Econômicos. A Procuradoria Federal e o Ministério Público Federal também
participam da estrutura do órgão e possuem representantes em sua depen-
dência. O Tribunal Administrativo compõe-se de um presidente e seis con-
selheiros12 e é responsável pelo julgamento dos processos e recursos e pela
aprovação dos termos de compromisso e dos acordos. A Superintendência-
-Geral (SG) é chefiada por um superintendente-geral e divide-se em várias
coordenações, a elas competindo, dentre outras atribuições, a instauração e
instrução de todos os processos, remetendo-os ao Tribunal Administrativo
para julgamento. O Departamento de Estudos Econômicos (DEE) realiza es-
tudos e pareceres econômicos para auxiliar as análises da SG e do Tribunal.
Todas essas divisões se localizam, desde julho de 2012, no mesmo edifício de
cinco andares, alugado e recentemente construído na Asa Norte de Brasília.
60 Etnografia de documentos
perda de um documento relevante, à desconsideração de provas e evidên-
cias importantes na construção de um julgamento ou à “perda do prazo” do
processo (ver abaixo).
62 Etnografia de documentos
Durante o segundo semestre de 2013, os funcionários do gabinete, de-
vido à grande quantidade de processos que deveriam ser analisados e jul-
gados, separavam processos entre a sala dos assessores e a sala de espera/
recepção. Os processos foram separados de acordo com uma divisão com-
preendida por todos os participantes da política de defesa da concorrência,
inclusive por advogados e economistas que trabalham para as empresas. Os
conhecidos ACs (atos de concentração) e os PAs (processos administrativos)
ou APs (averiguações preliminares) são as siglas mais comuns da atividade
burocrática do CADE. Os processos de ACs, por terem um “prazo” para res-
posta e, portanto, por serem passíveis de “esquecimento”, são armazenados
na sala dos assessores, pois exigem uma atenção maior. Os PAs e APs, segun-
do os assessores, “podem esperar”, pois não têm prazos de resposta especí-
ficos e são armazenados, como não surpreende, na “sala de espera”, sendo
somente abertos para instrução quando os prazos dos ACs estiverem “sob
controle”, como diziam. Cada um dos três assessores do gabinete possui um
armário com seu nome na sala onde estão os ACs sob sua responsabilidade,
conforme a figura 2.
64 Etnografia de documentos
que será posteriormente anexada ao processo correspondente à reunião.
Antes de entrar novamente na sala de reuniões, ela afirma: “Trabalhar no
CADE é aprender a mexer com os documentos.” Nas primeiras semanas da
etnografia, acreditava que essa consideração a respeito do trabalho do CADE
era própria do seu cargo como secretária, que consistia principalmente em
reunir, separar, copiar, distribuir e registrar documentos dos mais variados
tipos. A secretária teria razões para entender cada processo como um con-
junto de documentos. Seu conhecimento dos procedimentos e das formas
documentais era reconhecido por todos do gabinete, que a procuravam para
tirar dúvidas a respeito de como enviar, assinar, procurar ou classificar os
documentos. O próprio conselheiro, que estava há pouco tempo no cargo,
afirmava que não poderia realizar seu trabalho sem ela e que para onde ele
fosse após o CADE, a levaria junto13.
Contudo, conforme me familiarizava com aquilo que acreditava ser
a atividade “central” do trabalho do CADE14, ou seja, a instrução processual,
com suas análises e interpretações, mais eu percebia que a consideração
da secretária poderia ser aplicada em todos os espaços do órgão. Não havia
analista, assessor, estagiário, coordenador ou conselheiro que não tivesse a
necessidade de aprender a mexer ou lidar com documentos.
13 Isso seria dificilmente possível, na medida em que as secretárias do CADE são todas tercei-
rizadas e não podem facilmente ser transferidas para outro órgão público.
14 A percepção de que existe uma atividade mais “central” do órgão é reforçada pela clas-
sificação do próprio CADE entre as chamadas atividades “fins” e atividades “meio”. O traba-
lho dos gabinetes e das coordenações, mais analíticos ou interpretativos, são considerados
“fins”, enquanto o trabalho da área processual ou da área de recursos humanos, por exemplo,
é denominado “meio”. Essa relação organizacional assimétrica é análoga àquela que este artigo
pretende abordar e questionar: a relação entre o conteúdo dos documentos e a materialidade
documental.
66 Etnografia de documentos
que foi enviado a uma das partes do processo da empresa JBS irá “vencer”, ou
seja, a partir desse dia o prazo do ato de concentração irá “voltar a correr”,
dentro dos sessenta dias estipulados para a análise do processo. Neste dia,
seria bom que o processo tenha sido pautado para a próxima sessão de jul-
gamento ou que um novo ofício fosse produzido e enviado “parando o prazo”
do processo. Os ofícios – documentos enviados às empresas requerentes,
representantes ou concorrentes tendo em vista a obtenção de informações
a respeito das empresas e de seus mercados – têm, portanto, também a fun-
ção de segurar o “tempo” do processo. A complexidade e a quantidade das
perguntas são critérios utilizados também para prever o tempo de resposta
das empresas e, por isso, as perguntas são formuladas levando-se em consi-
deração ao mesmo tempo a necessidade de certas informações e de “segu-
rar” mais ou menos os prazos dos processos.
Nesse caso, a petição inicial das requerentes foi protocolada pelas re-
querentes no dia 4 de maio e apenas no dia 30 de maio (o mês está equivo-
cado na tabela) o primeiro ofício foi expedido. Nesse período considera-se
que o processo “ficou parado”. Somando-se o período entre 1o de junho e
6 de junho, este processo está “com 31 dias”, não sendo uma prioridade do
gabinete. A cor verde indicada no prazo auxilia o chefe de gabinete a admi-
nistrar os mais de cem processos em trâmite. Processos com mais de 45 dias
de prazo recebem a cor vermelha na tabela, indicando maior atenção em sua
instrução.
Os ofícios são os documentos mais produzidos pelo CADE e constituem
a principal forma dos analistas deste órgão obterem informações a respei-
to das concentrações ou condutas que eles investigam. No corpo do ofício
estipula-se o prazo para que a empresa (ou o seu representante) responda
às informações requeridas15. Esse prazo varia normalmente de cinco a trinta
68 Etnografia de documentos
dias, dependendo da quantidade de informação que o assessor esteja pedin-
do e da complexidade esperada de obtenção desse material. Contudo, como
mostrado, os prazos dos ofícios também funcionam como organizadores das
temporalidades internas do gabinete, definindo os processos mais urgentes
e “empurrando para frente” aqueles que não podem ser analisados no mo-
mento. A necessidade de julgar certos casos o mais rapidamente possível,
devido a uma pressão do presidente do CADE ou de outros conselheiros,
por exemplo, torna alguns processos prioritários. As sessões de julgamento
quinzenais, as reuniões semanais com advogados, as avaliações semestrais
do gabinete e o período do exercício do cargo de conselheiro, por exemplo,
são temporalidades que influenciam o tempo dos processos e dos ofícios
utilizados na sua instrução. Tudo isso em conjunto faz com que a gestão da
temporalidade processual seja preocupação constante dos funcionários do
gabinete.
Além da temporalidade dos processos e dos documentos, o caráter
confidencial de certos documentos também participa na construção de sub-
jetividades, limites e possibilidades da ação burocrática. Documentos podem
ser classificados como confidenciais – ou de “acesso restrito”, conforme a
denominação da nova lei de acesso à informação – quando uma requeren-
te pede que certas informações disponibilizadas por ela para a autoridade
antitruste não possam ser visualizadas por outros interessados do processo
(como outros concorrentes do mercado investigado). O CADE necessita de-
ferir o pedido de confidencialidade para que certos trechos de documentos
tornem-se de acesso restrito. Em geral, na regulação da concorrência, as
empresas tendem a pedir sigilo de informações relativas a seus custos de
produção, rentabilidade ou estratégias empresariais, pois essas informações
podem ser utilizadas em seu desfavor por seus concorrentes.
O termo de compromisso que precisei assinar para permanecer no
CADE especificava claramente que eu não poderia ter acesso às informações
confidenciais do processo, os volumes identificados com uma fita verme-
lha. Caso eu tivesse acesso a essas informações, o documento dizia que eu
não poderia publicar ou divulgar as informações encontradas, assim como
os funcionários do órgão. Levando-se em conta que a prática analítica do
gabinete exige a manipulação, leitura e conversa sobre os autos confiden-
ciais de forma ainda mais frequente do que sobre os autos públicos, seria
16 Como eu não sabia se era permitido o fornecimento da informação de que existia outro
volume confidencial no processo, perguntei ao coordenador responsável sobre como proceder.
Segundo ele, não havia nada que impedisse uma das partes do processo de saber sobre a exis-
tência de outro volume confidencial. Porém, nada obrigava ao analista (eu, no caso) fornecer
essa informação pelo telefone. Mesmo assim, acabei revelando que não havia outro volume
confidencial nos autos, visando facilitar o trabalho dos advogados.
70 Etnografia de documentos
instrução processual – os advogados que representam as partes poderiam
requerer reuniões e enviar petições ao CADE, por exemplo, caso uma outra
parte no processo tenha protocolado no órgão documentos confidenciais
relevantes.
Desse modo, a forma confidencial dos documentos produz o efeito de
uma perspectiva do “Estado” (Mitchell, 1999), uma perspectiva englobante
que incluiria todas as informações dos participantes do mercado. Os fun-
cionários do CADE, pelo fato de terem o acesso às informações confiden-
ciais, tornam-se apartados do mercado e, por isso, possuem a capacidade de
administrá-lo “imparcialmente”, ou seja, com base no ponto de vista de todas
as partes (ou de nenhuma). Tornar os documentos confidenciais é, portanto,
um mecanismo de construir fronteiras (Riles, 2011, p.113) entre perspectivas
sobre a realidade governada. O documento que autorizava a presença do an-
tropólogo no conselho, visando limitar seu acesso aos documentos públicos,
também estabelece uma clara fronteira entre as informações que podem ser
visualizadas e conhecidas pelo Estado e aquilo que não pode sair da sua es-
fera de controle. Por outro lado, a confidencialidade é, ela mesma, criadora
da possibilidade de se conceber a realidade econômica como “concorren-
cial”. A confidencialidade, como uma característica formal de documentos
do CADE, pode ser entendida como um índice de que existem estratégias
empresariais em disputa e de que as informações são parcela importante
dessas estratégias.
Considerações finais
Neste artigo, procurei descrever brevemente como documentos formatam e
padronizam ações e representações entre diferentes tipos possíveis de pro-
fissionais que são acionados na atividade de análise e investigação de pro-
cessos (Riles, 2011a:59)17. Os documentos são os artefatos comuns com os
quais economistas, advogados, juízes, gestores públicos, ou qualquer outro
profissional envolvido no trabalho analítico devem se familiarizar. Os docu-
mentos tornam os conhecimentos profissionais e os saberes esotéricos res-
tritos a certas formas ou características estéticas (Riles, 1999, 2006), como
17 Um ponto não explorado neste artigo poderia ser como, no CADE, documentos que cir-
culam e são produzidos entre o órgão, os escritórios de advocacia e as empresas, formatam e
padronizam representações e formas de conhecer mercados, empresas e consumidores, cons-
truindo entendimentos compartilhados sobre a economia.
18 Bruno Latour (1988, p.6) argumenta que o documento serve como “ferramenta de inscri-
ção” (inscription device), permitindo a construção de verdades epistemológicas (fatos), devi-
do ao seu caráter “móvel” porém também imutável e combinável, podendo também ser lido e
apresentado.
72 Etnografia de documentos
sentidos descrito anteriomente implica um grande conhecimento e familiari-
dade do burocrata com as formas/modelos e os conteúdos dos documentos
do CADE. Os efeitos produzidos na relação com documentos confidenciais
deste órgão, por exemplo, são compreendidos pelos funcionários levando-se
em consideração o tipo de informação que esses documentos carregam e os
limites que o “acesso restrito” impõe. Essa “expertise documental”, neces-
sária para o governo dos papéis e identificada na secretária do gabinete do
CADE, é formada, em grande parte, na própria rotina burocrática do órgão,
como pude experienciar na minha própria trajetória dentro do conselho.
Durante o período em que estive no CADE, fui aos poucos me transfor-
mando de pesquisador-observador das práticas de conhecimento da análise
processual para colaborador-analista do conselho. Paulatinamente, come-
cei a produzir documentos como ofícios, pareceres e relatórios auxiliando
o trabalho dos meus interlocutores. No segundo semestre de campo, passei
a trabalhar como se fosse um estagiário na Superintendência-Geral do ór-
gão, instruindo três processos do tipo PA. Como economista de formação,
encontrava uma série de dificuldades em interpretar as questões jurídicas
relativas a esses processos e não conseguia produzir relatórios ou pareceres
sólidos que possibilitassem continuar a instrução desses processos. Mesmo
conhecendo as formas documentais, o modo com que elas circulavam e seus
efeitos, tendo aprendido isso observando o trabalho dos funcionários do ga-
binete, não era possível ainda redigir e interpretar um texto coerente sobre
esses casos.
A impossibilidade de interpretar e produzir documentos tornava meu
novo estatuto como “estagiário” ou “colaborador” do CADE indefinido. Não
era mais apenas um pesquisador observador, mas também não poderia ser
considerado um estagiário pleno. Esse relativo fracasso demonstra como
que o trabalho dos analistas, assessores, estagiários, coordenadores e con-
selheiros do CADE exige interpretar, produzir e “mexer” com os documen-
tos. A expertise necessária para lidar com os documentos não prescinde de
um conhecimento de suas formas, sua estética e materialidade, assim como
de certa capacidade de compreender aquilo que está escrito. Muitos an-
tropólogos têm escolhido analiticamente, em recentes etnografias, ressaltar
aquilo que parece representar um dos lados de uma mesma moeda: a forma
ou o conteúdo dos documentos. Se cada uma das perspectivas gera possibi-
lidades diferentes para a compreensão antropológica desses artefatos (Riles,
2006), pode-se perguntar em que medida essas escolhas analíticas levam em
74 Etnografia de documentos
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76 Etnografia de documentos
CAPÍTULO 3
Apresentação
O Primeiro Comando da Capital, ou o PCC, já foi definido como um coletivo
de presos, criado na década de 1990, com o objetivo de melhorar a vida dos
presos no convívio dos pavilhões das prisões paulistas. As histórias sobre o
surgimento desse coletivo são bastante polissêmicas. Ele pode ter sido cria-
do na Casa de Detenção do Carandiru – cenário do Massacre do Carandiru
no qual, em 2 de outubro de 1992, morreram mais de cem presos –, mas
pode, também, ter sido idealizado na Casa de Custódia do Taubaté na for-
mação de um time de futebol (ver: DuRap e Zeni, 2002; Leite, 2005; Jozino,
2005; Biondi, 2009).
Autores como Feltran (2011), Hirata (2009) e Silva (2014) têm ilustrado, contu-
do, que mais do que um coletivo de presos, o Comando se capilarizou atra-
vés das tramas relacionais entre periferias e prisões de São Paulo. Por meio
dessas tessituras atravessadas não só pelos mercados ilegais, como também,
por ordenamentos morais, o PCC passou a constituir “outros aparelhos ju-
rídicos” aos quais moradores de bairros como Sapopemba, na Zona Leste de
São Paulo, também recorrem (Feltran, 2010a).
1 Agradeço à Letícia Ferreira e Laura Lowenkron pelo convite por participar dessa coletânea
e também pelas leituras cuidadosas. Agradeço a elas, principalmente, pelas trocas sempre pro-
dutivas e pela amizade cuidadosa.
2 A primeira vez que entrei em uma penitenciária feminina paulista foi em 2003, para a rea-
lização de minha pesquisa de Iniciação Científica sobre oficinas de trabalho na agora desativada
Penitenciária Feminina de Tatuapé, São Paulo, sob orientação do professor Rui Gomes Braga
Neto (Padovani, 2006). No mestrado, segui com o trabalho de campo em prisões na Penitenciá-
ria Feminina da Capital, também em São Paulo, sob a orientação de Maria Lygia Quartim de Mo-
raes (Padovani, 2010). Neste período participei, ainda, como voluntária na Pastoral Carcerária.
Minha última visita a prisões femininas foi em junho de 2013. O trabalho de campo feito para o
doutorado ocorreu através de visitas e atividades de pesquisa na Penitenciária Feminina da Ca-
pital. Estas foram aprovadas pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP)
e pela juíza corregedora da Vara de Execuções Criminais do Fórum da Barra Funda. Além disso,
desde 2009 realizei visitas semanais à Penitenciária Feminina de Santana como voluntária da
Pastoral Carcerária. Sobre minha inserção ao campo e a problematização desta, ver Padovani,
2015.
78 Etnografia de documentos
do pavilhão administrativo. A resposta dada coletivamente à minha pergunta
por meio destes mapeamentos, que diferenciavam e equalizavam o PCC e os
aparatos administrativos penitenciários, encerrava impressões e narrativas
colhidas em campo. Dados que me faziam olhar para a produção de justa-
posições entre processos jurídico-policiais e para o Comando de modo mais
atento. Dados que gritavam, inclusive, sobre as possibilidades de articulação
política que passavam ao largo do fórum, fosse ele o de cima ou o de baixo,
mesmo que estas articulações se direcionassem ao Ministério Público.
Também não era a primeira vez que eu ouvia que a principal atribuição
das irmãs do Comando na prisão feminina era “cuidar da vida das bandidas”,
e eu sabia que toda a tensão de Adelina, protagonista das páginas a seguir,
decorria dos cuidados que eram dispensados à vida íntima das mulheres
presas e com algum tipo de envolvimento com os homens do Comando. Vida
íntima a qual, em outro momento (Padovani, 2010), vi ser objeto administra-
tivo basal da manutenção e produção da instituição penitenciária feminina.
Dentro dos pavilhões, contendas e relações de poder eram produzidas pelas
tecnologias de gênero (Lauretis, 1984), que têm historicamente fundamenta-
do discursos de “verdade” acerca do que é ser “mulher” e, mais ainda, do que
é ser “mulher bandida”. Discursos articulados pelos cerceamentos e regula-
ções de práticas/prazeres/relações sexuais.
No embaralhamento desses processos de regulação e poderes relacio-
nais, a personagem deste artigo produz artifícios argumentativos que acio-
nam expertises calcadas tanto nos aparatos técnico-burocráticos de docu-
mentação, quanto nas sofisticadas tramas da argumentação oral, ferramenta
significativamente valorizada nas negociações com o Comando e nos seus
trâmites.
Os trâmites, assim como os “casos” – que pode se tratar do caso policial,
do caso que está na justiça, e, também, do caso com a companheira de cela,
o caso com o “correspondente” –, significam procedimentos documentais,
judiciais, policiais, e também os trâmites da vida íntima: contar ou não contar
ao marido sobre um caso, falar ou não à mãe sobre uma briga na prisão, um
castigo, uma retaliação. São os trâmites que enlaçam/desenlaçam pessoas e
histórias. “Fazer os trâmites”, nesse registro, significa refletir acerca da ati-
tude, ponderá-la, mas também, seguir o protocolo e, de acordo com ele, pe-
dir comprovações e esclarecimentos. Trâmites de processos de justiça que
funcionam também com o PCC.
80 Etnografia de documentos
tou e pediu que eu a esperasse um instante. Obedeci. Pouco tempo depois,
Adelina desceu de sua cela carregando saquinhos e uma caixa de sapatos
branca onde estavam guardadas cartas, cartões, fotos, desenhos, a sentença
publicada e números de processos ainda sem julgamento, em trâmite no tri-
bunal de justiça, portanto.Juntos, aqueles papéis carregavam as escritas da
vida de Adelina que era, assim, gestada na prisão. As cartas em que estavam
escritas suas relações eram, necessariamente, embaralhadas aos documen-
tos que legibilizavam seus processos criminais.
Os processos e andamentos, Adelina havia recebido de defensores pú-
blicos e assistentes sociais da prisão. As fotos e os cartões vinham de sua
mãe. As cartas e os desenhos ela recebera de seu marido, de seu irmão e
também de outro homem com quem ela, por algum tempo, havia se corres-
pondido e mantido uma relação através de correspondências. Marido, irmão
e amante de Adelina estavam, como ela, presos. Os papéis que me mostrava
teciam relações entre prisões, mas também entre a rede de manutenção e
produção das instituições penitenciárias: a casa de sua mãe, o fórum crimi-
nal, o pavilhão administrativo da unidade.
Fora da caixa, ainda sem registro a ser guardado nos saquinhos, estava
outra relação de Adelina que se fazia ver pela tatuagem que ela carregava no
antebraço. Esta a enredava aos “cafofos”, as celas da Penitenciária Feminina
da Capital e a enredaria, ainda, aos trâmites da Penitenciária Feminina de
Santana para onde havia sido transferido Guinu – sapatão com quem Adelina
começara a namorar durante sua estadia no terceiro pavilhão da PFC e de
quem o nome ela havia tatuado no braço.
fora da prisão, iria acessar meu perfil no Facebook é porque este acesso poderia ser feito via
ligação telefônica para alguém fora da prisão com conexão à rede ou aluguel de minutos de um
aparelho conectado à Internet.
***
4 “Tacadinhas” é como são chamadas as pequenas ações ilegais. Um furto de moto, um assal-
to a um ônibus ou a um estabelecimento comercial, uma viagem carregando cocaína, maconha,
crack, são ações que não configuram envolvimento com mercado ilegal de drogas ou com uma
profissionalização na atuação de assaltos e sequestros, por exemplo, mas são tacadinhas: “bicos”
pontuais que ajudam a incrementar os ganhos financeiros em determinadas circunstâncias.
82 Etnografia de documentos
de camisola. Meninas transitavam levando baldes, rodos, cestas de roupas
limpas e sujas, tintura de cabelo, bacias e instrumentos para manicure e
pedicure. Deitada no chão do pátio, estava uma menina aparentemente in-
cólume ao intenso movimento do comércio de mercadorias e serviços de
limpeza e estética que acontecia a seu redor. Tomava sol com a camiseta le-
vantada até o início dos seios e mantinha as calças dobradas de tal modo que
deixavam à mostra suas pernas peludas pelos anos passados na prisão, anos
sem muita depilação. Mais uma vez, era Adelina. Como no dia em que nos
conhecemos, ainda na Penitenciária Feminina da Capital, fui ao seu encontro
e pedi para me sentar a seu lado. Quando me viu Adelina sorriu: “É você! Não
acredito que vou poder falar com alguém!” Desde nossa última conversa, ela
não parecia mais tão feliz na prisão. Sua exclamação carregava apreensão e
certo alívio.
Mais uma vez, Adelina queria mostrar suas cartas, que agora eram razão
de ansiedade. Aguardei enquanto ela entrava em sua cela e voltava ao pátio
carregando a mesma caixa de papelão branco e outros tantos saquinhos,
seus arquivos. Ventava muito aquele dia e os papéis voavam enquanto ela
tentava, freneticamente, me explicar que precisava falar com alguém. Pre-
cisava de ajuda para entender o que, afinal, estava acontecendo com a sua
vida, ou melhor, com o seu casamento. “Nem acredito que você está aqui,
que vou poder falar com alguém!” E começou a falar sobre seu marido.
Lembra que eu não dava a menor para ele quando fui presa?
Ele não era nada, era pobre, magrelo e feio. Fui na pedalada com
aquele cara. Mandava carta, mandava foto e ele me mandava uns
cigarrinhos, coisa assim... Caí no lesco com o Guinu! Olha só a ta-
tuagem enorme que fiz do nome dele no meu braço! Mano, nem
te conto do rolo dessa tatuagem... E não terminei com meu ma-
rido, mas também nunca me esforcei, né? Ó quanta carta ele me
enviou nesse tempo todo, eu respondia a uma aqui, a outra ali. Às
vezes nem respondia. Mas aí, recebi uma carta que me fez querer
mudar tudo.
Enquanto falava, Adelina procurava a carta que dizia ser a certa, o que
não a impedia de me entregar outras tantas correspondências pedindo que
eu as lesse prestando atenção nas palavras, “nos códigos do partido”, carim-
bos do Primeiro Comando da Capital. Quando achou a carta que procurava,
já tínhamos lido juntas três outras, todas escritas por seu marido. Em algu-
mas letras, alguns cantos das folhas, apareciam pequenos pingos ou dese-
nhos para os quais Adelina apontava dizendo: “Tá vendo só? São os símbolos
5 Batismo é o processo pelo qual alguém passa a integrar o coletivo do PCC como irmão/
irmã. A partir da nomenclatura irmão/irmã, são feitas outras nomeações, como cunhada, que
indica que a mulher é casada com um irmão e primos/as, sendo uma pessoa envolvida com o
partido, mas não batizada. Sobre esta gramática que trama ordenamentos familiares e princi-
palmente religiosos aos do coletivo e do “crime”, sugiro ver: Vitalda Cunha, 2008; Almeida, 2009;
Marques, 2013 e Takahashi, 2014.
84 Etnografia de documentos
Em linhas escritas com canetas de várias cores, ele dizia em vermelho
e em letras garrafais estar “decepcionado mesmo”. Mas em azul e em letras
corridas dizia que, apesar de tudo, iria perdoá-la com a condição de que ela
mantivesse “a caminhada” a partir dali. Por fim, a carta terminava com a frase
grifada: “Para provar teu amor, você vai passar uns venenos por uns tempos”.
Era isso que Adelina queria falar com alguém. Queria conversar sobre aquilo
para tentar entender de que venenos as letras do marido que ela não via há
tantos anos falava.
Você me ajuda a entender? O que você acha? Porque, ó, eu não
posso perguntar essas coisas para as irmãs. Ó, sei que, de uns
tempos pra cá, eu tinha uma dívida de quinhentos reais e nem me
puseram no vermelho, nem vieram me cobrar. Eu outro dia enfiei
o dedo na cara da irmã e ela nem relou a mão em mim. Mas aí
disseram que tiraram umas fotos da minha tatuagem [mostrando
o braço onde estava escrito o nome de Guinu] e mandaram por
mensagem de celular pra ele. Mano, fizeram isso! E tem também
essa menina que descobri que meu marido estava escrevendo
para ela. E ela é bonitona! E eu com a perna peluda e o cabelo
quebrado. Porque, véio, na rua eu não sou esse bagulho, não. Na
rua eu sou bonita pra caralho! Aí acho que ele começou a pedalar
com essa menina que mora com as irmãs daqui, entendeu? E ela
é bonita, nunca lescou, tem toda a caminhada certinha. Bandida
mesmo. Eu tô pirando? Meu marido fala que tá só comigo, mas eu
sei que ele também tá correndo com ela, entendeu? Eu sei, todo
mundo sabe. Ela mora com as irmãs! Ela vive na torre! Mano, aí
eu fui pros trâmites! Pedi pra irmã botar todo mundo na linha e ir
pros trâmites! A irmã riu da minha cara. Mas aí eu enfiei o dedo
na cara dela e disse que, se ela não queria resolver problema de
pé quebrado, que nem tinha de ter virado irmã. E aí que tá! Nin-
guém toca em mim. Ninguém me bate, mano! Aí eu fico pensando
que meu marido tá falando que tá me esperando para eu sair da
cadeia e ir lá visitar ele e ele raspar meu cabelo, entendeu? Ao
mesmo tempo fico pensando que ele já podia ter mandado me
baterem aqui... Véio, tô com medo de tudo. Tá foda, tô ficando
doida mesmo. Esse homem tá me deixando louca. Eu preciso sa-
ber logo se vou morrer ou se virei cunhada.
86 Etnografia de documentos
frente. Este não era um ato simbólico, mas protetivo. Pediam que a nossa
disposição em relação aos edifícios dos pavilhões fosse assim para que nin-
guém pudesse “ler seus lábios”, “deduzir suas palavras”. Nesse registro, as
estratégias para escapar do “controle da torre” assemelhavam-se às formas
de esquiva produzidas cotidianamente em relação às agentes de segurança
e funcionárias da prisão. Tanto nas negociações com a “torre” quanto com
a “polícia”,6 era necessário saber usar (ou silenciar) as palavras e ferramen-
tas corretas. Percebendo isso, Adelina passou a usar artifícios que conhecia
desde suas negociações com os agentes de outro aparato jurídico: do fórum
e da prisão.
88 Etnografia de documentos
Ao ler a carta que vinha do irmão, Adelina telefonou para a mãe com
a intenção de saber mais da situação dele dentro da prisão7. A mãe, então,
disse estar muito preocupada. Segundo ela, alguns parceiros da cela em que
o irmão de Adelina vivia o acusavam de ser homossexual e não ter avisado
nada aos demais presos sobre isso. As acusações dos parceiros de cela de seu
irmão motivaram a transferência dele para a cela de um dos “faxinas” do PCC
naquela cadeia, quer dizer, dentre outras coisas, de um dos responsáveis
pela mediação de conflitos naquela unidade8.
Como Boldrin (2014), Dias (2011) e Biondi (2009) ressaltam, homosse-
xuais em cumprimento de pena nas prisões masculinas “do Comando” (ou de
outras “facções”, como explicita mais especificamente Dias), são interditados
de dividirem copos, talheres ou outros utensílios cotidianos que possuam a
carga simbólica da “contaminação” (Douglas, 2012; Feldman, 1991). As etno-
grafias destes autores elucidam, ainda, que mesmo a presença de homos-
sexuais no “convívio”, ou seja, nos pavilhões de moradia, é tensionada nas
falas de seus interlocutores (Biondi, 2009, p.110-111). Deste modo, não inco-
mum o encaminhamento para celas e pavilhões exclusivos ou, até mesmo, no
caso das “monas”9, para penitenciárias neutras – “cadeias onde não existem
membros ativos de facções” (Boldrin, 2014, p.15)s.
Ao ser acusado de ter “escondido” sua orientação sexual, o irmão de
Adelina, na verdade, estava sendo acusado de expor os demais presos à
7 A prisão em que o irmão de Adelina cumpria pena não “estava no ar”, quer dizer, não
havia aparelhos celulares possíveis de serem conectados naquele momento que viabilizassem
a comunicação direta entre Adelina e ele. Seja pelo uso do bloqueio de sinais de telefonia ins-
talado ou por algum controle mais rígido da entrada e do uso dos aparelhos, algumas unidades
prisionais ficam contingencialmente “fora do ar”. Nas falas de minhas interlocutoras havia um
fluxo e uma constante atualização das penitenciárias que estavam “no ar” ou “fora do ar”.
8 “Faxina”, assim como “torre” e “piloto”, é mais um dos nomes atribuídos aos postos polí-
ticos do PCC. Ser faxina significa estar em uma posição de responsabilidade e confiança em
relação ao Comando. Parte das atribuições dos “faxinas” é distribuir a comida entre as celas dos
pavilhões, intermediar a comunicação entre presos e funcionários da unidade e perguntar aos
recém-chegados à prisão se eles têm algum problema com alguém que está preso na mesma
unidade para, assim, evitarem/intermediarem os conflitos. É significativo observar, contudo,
que nas prisões femininas onde fiz campo muito dificilmente encontrei a palavra “faxina” atri-
buída àquelas que tinham essas responsabilidades. A palavra “setor” era mais recorrente. Nesse
registro, a palavra “faxina” utilizada pela mãe de Adelina era facilmente substituída pelo termo
“setor” nas palavras da filha. Sobre os “faxinas” no PCC ver: Marques (2009), Biondi (2009) e
Mallart (2014). Sobre os “faxinas” postos no cotidiano de uma prisão em contexto bem anterior
ao PCC, ver Ramalho (1979).
10 Excerto retirado de uma das cartas de Adelina enviadas a seu marido. Procurei manter,
nesta reprodução, a grafia mais próxima possível das palavras de Adelina. Porém. algumas alte-
rações foram feitas para facilitar o entendimento do leitor e também para suprimir a possibili-
dade de identificações.
90 Etnografia de documentos
articuladora das palavras. Mas, mesmo através dessa expertise, ela não con-
seguiu sair do veneno, como almejava.
Seu marido retornou sua carta dizendo poderia interceder a favor do
irmão de Adelina, o qual, segundo ele, estava em vias de ser transferido para
uma “prisão neutra”. Na correspondência, seu marido dizia, ainda, para ela
não responder mais nem às cartas do irmão ou do “faxina”, pois eles ain-
da estavam casados e seu irmão não só havia escondido que era gay, como
também estava “passando a caminhada errada” – mentindo sobre o relacio-
namento de Adelina e seu esposo – para os irmãos da prisão onde ele estava
detido.
A resposta que Adelina recebeu do marido resultou num cansaço que a
fez pensar em desistir de seu casamento e de toda a euforia com a possibili-
dade de “virar cunhada”. Ela não queria mais todo este veneno que envolvia
tantos esforços retóricos, documentais e estratégicos. Adelina queria ir para
casa.
***
Junto de seu irmão mais novo, Adelina foi criada pela mãe em uma
cidadezinha do interior do estado de São Paulo, na divisa com Mato Grosso
do Sul, região de alta rotatividade de caminhoneiros. Sua mãe trabalhava na
estrada, numa zona de prostituição onde Adelina e o irmão se acostumaram
a passar as noites e a brincar. Ela contava que aos 10 anos conheceu o “tio do
caminhão”. Um homem que gostava dela e de quem ela gostava também. “Ele
era carinhoso, eu saía para comer com ele, ganhava roupas, arrumava o ca-
belo. Eu gostava dele.” Assim, Adelina me contava que ela e seu irmão faziam,
quando crianças, pequenos programas com os caminhoneiros, os quais, em
troca, davam-lhes brinquedos novos, sapatos e os levavam para comer.
Meu irmão não é gay, Natália. Não é isso. Ele não gosta de dar o
cu. Ele já fez isso. Ficou traumatizado. Ele é traumatizado! Eu sei
disso, mas ele não é bicha, mano! Ele é home! Já pensou o que é
prum home saber que já fez isso? Ele traumatizou, mano. Isso
come a mente dele. Eu preciso sair daqui pra poder ajudar ele e
a minha mãe. Ela tá desesperada porque não consegue mandar
uma comida, uma roupinha pra ele. Porque cê sabe, né? Eu me
viro, mas meu irmão, mano, ele é traumatizado. Ele depende mui-
to da minha mãe. Tá vendo, né? Minha vida dá um livro! Escreve
aí...
92 Etnografia de documentos
joelhos de Adelina, que apanhou “por uns três minutos”. Cobrança bem mais
leve do que a que ela já havia esperado anteriormente11.
Na semana seguinte do último trâmite de que Adelina havia tomado
parte, a encontrei ainda reclamando de dores na barriga e andando mais
devagar. Nesse dia, contudo, sentamos ela, eu e mais duas meninas com as
costas apoiadas para a parede olhando de frente para o edifício de moradia
do pavilhão. Diante de todas as janelas dos cinco andares do prédio, faláva-
mos sobre o final da história de Adelina e das vezes que Catarina, uma das
meninas sentadas ao nosso lado, havia apanhado do marido. Falávamos, de
frente para a torre, de uma vida ordinária que não era por ela regulada.
Ao mesmo tempo, falávamos sobre as informações impressas no extrato
de andamentos dos processos criminais respondidos por Adelina e publi-
cados pela Vara de Execução Criminal que eu havia levado para ela naquela
visita. O Regime Aberto de Adelina estava em trâmite no Ministério Público
e ela sabia que logo poderia ir para casa, afinal, tinha sido absolvida de al-
guns dos processos que respondia como corréu de seu ex-marido. Enquanto
discutíamos sobre a situação de seu processo, um advogado que caminhava
pelo pátio da prisão onde fazia trabalho voluntário escutou a nossa conversa
e tomou Adelina por colega de trabalho presa pelas contingências da vida.
No final daquele dia de visita, ele estava certo que Adelina era, como ele,
bacharel em direito e a chamou de doutora. “Doutora, não é? A senhora é
advogada não é mesmo?”; “Sou, sou doutora, doutor! Sou formada no direito
da vida. E você, senhor, tem certeza que é advogado?” Pego de surpresa com
a resposta, ele ainda tentou contestar, mas rindo disse que não, não tinha.
Perto de Adelina, a única certeza era que todos os pés eram mesmo
quebrados.
11 O tempo contado, aqui, em três minutos, faz referência ao “peguê”: uma surra aplicada
coletivamente às pessoas que, de alguma forma, foram contra as regulações de procedimento
do Comando. A utilização do peguê como punição a uma pessoa que não agiu segundo “o certo”
é decidida em debates que envolvem, no caso das prisões femininas, as irmãs do PCC presas na
unidade e, quase sempre, o telefone celular que coloca “na linha” o irmão de alguma peniten-
ciária masculina, que dá o aval definitivo. O tempo do peguê é geralmente calculado em quinze
minutos e trinta e três segundos fazendo referência ao 15.3.3, outro dos nomes do PCC. Dizer
que Adelina apanhou não mais que três minutos, nesse registro, indica a diferença entre um
“peguê” e a “cobrança leve” à qual Adelina foi sujeitada.
94 Etnografia de documentos
ou seja, conseguir provar que os cumprimentos das ações seguem àquilo que
se falou: ter proceder é, nesse sentido, cumprir com as palavras proferidas,
escritas. Afinal, “palavra de malandro não faz curva”.
As cartas de Adelina carregavam informações e provas materiais que
podiam ser acionadas pelos sujeitos em debate como ferramentas que ates-
tavam (ou não) o argumento oral posto em discussão. Elas reuniam em um
dossiê documental as suas comprovações de que ela estava mantendo sua
palavra de atuar segundo a conduta, o proceder esperado pela esposa fiel, tal
qual seu marido demandara. Adelina, contudo, não conseguia ser ela deten-
tora das palavras que produziriam a verdade decorrente dos “trâmites”. Ela
não ocupava qualquer posição política dentro do Comando e, ainda, era uma
mulher de pés e cabelos quebrados, carregando vínculos familiares atraves-
sados pelo trabalho de prostituta de sua mãe e pela homossexualidade de
seu irmão. Nesse registro, as cartas eram para Adelina vias de acesso à pala-
vra, ferramentas de informes dos seus andamentos.
Adelina buscava utilizá-las tal como fazia com as certificações perma-
nentemente demandadas pela polícia, ou seja, suas cédulas de identidade,
seus registros de antecedentes criminais. Ela tentava tramar com as cartas
em sua analogia aos documentos, mas, como Groebner (2007) chama aten-
ção, estes apenas “identificam” os sujeitos por que são fundamentados na
palavra do emissor de autoridade. As cartas de Adelina, nesse sentido, po-
deriam ser utilizadas por ela como recursos argumentativos, jamais como
atestados de suas relações/suas palavras. Estes seriam, assim como foram,
produzidos pelos agentes emissores da verdade nos debates: as irmãs e o
seu marido.
Como Gabriel Feltran já analisou (2010a; 2010b), o PCC ascendeu nas
últimas décadas como instância de autoridade jurídica nas periferias de São
Paulo. Com relação às práticas de policiamento da vida e das relações nas pe-
nitenciárias do Estado, Biondi (2009) e Marques (2009) evidenciaram como
as questões mais cotidianas passam a ser orientadas pelo Comando por meio
da figura de seus irmãos e integrantes. São eles que examinam e definem
resoluções sobre contendas ou demais problemas decorrentes das relações
entre presos, fundamentadas, segundo Biondi, por um “ideal de igualdade”
que equaciona a todas as pessoas em situação de prisão sem, com isso, dei-
xar de reconhecer/produzir diferenças entre elas. Nas palavras da autora
O ideal de igualdade atravessa todos esses planos e pode ser con-
siderado um grande responsável pela manutenção do PCC em
96 Etnografia de documentos
como um castigo balizado por um ideal igualitário que quantifica a pena de
acordo com o tempo de privação da liberdade, “considerada ao mesmo tem-
po como um direito e como um bem” de todos os indivíduos (Foucault, 2001,
p.14). Por meio do desenvolvimento de sua exposição acerca de processos
de esquadrinhamento dos sujeitos, contudo, o autor elucida que a prisão,
mais do que resultado do reconhecimento da universalidade dos direitos que
interdita como punição, é um dispositivo de diferenciação (sujeição e subje-
tivação): “uma fábrica de criminosos”.
Assim posto o ideal de igualdade, reiterado por meio de práticas que
produzem diferenciações, sublevam a justaposição entre processos de Esta-
do e do PCC na regulação ordinária da vida e das relações das pessoas pre-
sas. A “palavra”, aí, aparece como mecanismo central para os dois aparatos
jurídicos. Afinal, como Das e Poole (2004) elucidaram, se “a maior parte do
Estado moderno está construído a partir de práticas de escrita” (p. 25), gran-
de parte das práticas do Comando está fundamentada na “palavra”.
Os dados etnográficos de José Douglas Silva (2014), produzidos a par-
tir de narrativas sobre “políticas estatais e criminais” na zona oeste da re-
gião metropolitana de São Paulo, ilustram que as posições políticas do PCC
são arranjadas através do entendimento de “quem tá na palavra”, quer dizer,
quem tem o respaldo e os aparatos de decisão/mediação entre as partes de
um conflito. Nesse registro, mesmo que resoluções e políticas do Comando
decorram de mecanismos preocupados em não produzir líderes individuais,
mas, sim, operadores de um “coletivo superior”, e que “estar com a palavra”
seja produto da ocupação de arranjos situacionais, como argumenta Biondi
(2009), são esses operadores organizados segundo a distribuição de postos
de autoridades fundamentados em quem tem ou não “palavra”.
De modo similar, é o que argumenta Adriana Vianna (2014). A autora, ao
se debruçar na produção de documentos pelos agentes do aparelho judiciá-
rio dos quais a definição de guarda de crianças e adolescentes resulta, ana-
lisa a autoridade de quem os escreve. Assistentes sociais, advogados, juízes,
nesse registro, são autores de textos que “reduzem a termo” (Lowenkron e
Ferreira, 2014) toda uma profusão de falas que são manejadas por meio da
expertise dos agentes especializados do Estado em tornar dramas singulares
em “atos burocráticos capazes, portanto, de certa padronização e dotados
de suposta neutralidade racional” (Vianna, 2014, p.56).
Ao fazer a relação entre posições políticas que têm palavra no PCC
e postos jurídicos estatais de produção de documentos, não ignoro as
98 Etnografia de documentos
importância que “seguir os papéis” tem em suas pesquisas antropológicas
feitas dentro do aparato judicial/policial. As autoras argumentam que “como
diz o jargão jurídico, ‘o que não está nos autos não está no mundo’, de modo
que uma investigação [policial] não documentada é como se não tivesse
existido” (Lowenkron e Ferreira, 2014, p.84). Não é o que ocorre com os de-
bates do Comando. Neles, palavras não documentadas sãotambém levadas
em conta. Mas isso não significa que a ferramenta de explicitar por meio da
escrita os implícitos (Goody, 1987) seja ignorada neste processo. O jargão
policial ao qual Lowenkron e Ferreira se referem poderia ser traduzido para
a análise proposta neste capítulo da seguinte forma: “O que não está nas car-
tas está no mundo, mas o que está nas cartas pode ser posto em relevo sobre
o mundo.” As questões que se colocam, e que atravessam tanto as análises
de Ferreira e Lowenkron quanto as decorrentes dos dados de campo desta
pesquisa, são: sob que termos e em quais contextos podem ser postas cartas,
ou autos, sobre o mundo? E quem pode fazer isso?
Como argumenta Gabriel Feltran (2010c), as etnografias, ao se debru-
çarem sobre discursos e práticas, possibilitam uma “equação compreensiva
entre igualdade e diferença, em sua normatividade” (p.578). Deste modo, o
autor propõe que os “estereótipos” de categorização, como “quem é more-
no”, “quem é branquinho”, “quem é viado” (p.574), sejam levados a sério pela
análise etnográfica, pois estes organizam normativamente o cotidiano e o
coloca, ainda, em relação a outro plano normativo para o qual estas clivagens
seriam inexistentes: o plano jurídico-político que considera a todos “igual-
mente” cidadãos. A história de Adelina é exemplo da potência analítica da
etnografia para a qual Feltran chama atenção.
A personagem deste artigo articula suas práticas a partir da coexistên-
cia dos planos normativos de categorizações das diferenças e da (des)igual-
dade político-jurídica. Os debates dos quais Adelina participa estão funda-
mentados na ideia de que é necessário haver uma discussão para que todas
as partes do conflito possam ter os mesmos “direitos” de fala. Ao mesmo
tempo, o debate como dispositivo de igualdade leva em conta categoriza-
ções que diferenciam os sujeitos discursivamente. É o que ocorre também
com escritas e encaminhamentos de papéis às instâncias jurídicas estatais
de reconhecimentos de direitos.
É no nó das tensões entre diferenças e (des)igualdade que têm incidido
grande parte das etnografias sobre instituições e processos de Estado. Os
trabalhos de Regina Facchini (2005) e Silvia Aguião Rodrigues (2014) ilustram
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1 Além dos muitos colegas (a maioria dos quais são citados neste artigo) que de alguma for-
ma contribuíram para este trabalho, eu gostaria de agradecer aos meus revisores anônimos por
suas provocações inestimáveis.
3 Esta palavra tem vários significados em inglês, entre eles, a ação ou o processo de calcular
ou avaliar alguma coisa; ponto de vista; julgamento ou opinião pessoal; retribuição ou acerto de
contas; olhar ou considerar algo de uma maneira específica (N.T.).
4 É usado, por exemplo, para criticar leis de anistia que decretam o que é considerado por
muitos um encerramento prematuro dos debates sobre atrocidades perpetradas pelo Estado.
7 Com mais de 30 mil novos casos diagnosticados a cada ano, o Brasil é superado apenas pela
Índia em número e proporção de casos nas estatísticas epidemiológicas.
8 Inspirei-me aqui nas análises de Alexander (2002) e Gatti (2011) sobre a reconfiguração do
massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial – de “atrocidade de guerra” para “crime
contra a humanidade”.
9 Ver Scott et al. (2002), Herzfeld (1992, 2005) e Peirano (2009) para algumas das grandes
discussões sobre documentação escrita como parte das tecnologias de governança.
11 Ver Fonseca (no prelo) para mudanças em uma direção semelhante na lei e na jurisprudên-
cia brasileiras.
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2 Os quatro policiais militares foram acusados por homicídio qualificado. Na capa do proces-
so do caso, registra-se o artigo do Código Penal referente ao crime, que copio aqui adicionando
as respectivas definições entre parênteses: Art. 121 (“Matar alguém”), parágrafo 2º (“Se o homi-
cídio é cometido”), incisos I (“mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo
torpe”) e IV (“à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte
ou torne impossível a defesa do ofendido”). A ação empreendida é caracterizada, então, como
uma pena de competência do júri.
(Das, 1995, p.6). Segundo Das (1995), a descrição de eventos críticos proporcionam a elaboração
de uma etnografia que produz uma incisão sobre todas essas instituições ao mesmo tempo e,
assim, suas respectivas implicações nos eventos são trazidas para o primeiro plano da análise.
Dito isso, aciono neste trabalho o termo “vítima” para me referir especificamente às pessoas que
foram mortas ou feridas por agentes de Estado, enquanto aciono o termo “familiares de vítimas”
para me referir às mães, irmãs, irmãos, enfim, parentes dessas vítimas em geral, enfocando, em
uma abordagem antropológica, o fato de esses “familiares de vítimas” terem experimentado
situações aproximadas do que Das (1995) chama de “eventos críticos”.
5 A discussão apresentada neste texto é resultado não só das reflexões que compõem mi-
nha tese de doutorado, mas também decorre das trocas realizadas no âmbito do SPG “Pers-
pectivas etnográficas sobre documentos: possibilidades analíticas e desafios metodológicos”,
realizado na Anpocs 2014 sob a coordenação de Laura Lowrenkon e Leticia Ferreira. Agradeço
sinceramente às coordenadoras e aos colegas de SPG pela interlocução, e também às questões
e comentários colocados pelas professoras Adriana Vianna e Maria Filomena Gregori. Para a
produção desta versão final, tive o privilégio de contar com a leitura e os comentários de Tássia
Mendonça, a quem também deixo registrados meus agradecimentos.
6 Para a elaboração da tese não foi feita uma escolha pré-definida de recorte analítico
sobre este ou aquele órgão ou instância estatal, o que faz com que o presente estudo apresente
discussões que transitam entre um segmento de Estado e outro, assim como o próprio percurso
dos familiares de vítimas que tive a possibilidade de acompanhar durante a realização do
trabalho de campo. Vale registrar que esta decisão por estruturar a própria forma do texto da
tese com base em movimentações observadas/realizadas em campo junto aos familiares de ví-
timas se deve especialmente à interlocução com Tássia Mendonça, cuja etnografia (Mendonça,
2014) expressa não só no conteúdo, mas também na forma, os enfrentamentos políticos de seus
interlocutores na favela do Batan.
8 vale destacar que foram concedidas autorizações prévias para as gravações em áudio de
reuniões fechadas: as reuniões no Nudedh foram registradas com a concordância do defensor
público responsável pelos casos na época da realização do trabalho de campo – a quem também
deixo registrado meu agradecimento.
9 Para a redação da tese, utilizei além do material já referido meus arquivos relativos ao
acompanhamento das atividades do Movimento Posso me identificar? e da Rede de Comunidades
e Movimentos contra a Violência (entre 2004 e final de 2008). Trata-se de fotografias, mate-
riais de campanhas e de divulgação de manifestações, recortes de jornal, notas de campo e
entrevistas.
11 Refiro-me a segmentos de Estado tendo como referência a análise de Souza Lima (2002)
sobre formas administrativas de “gestar e gerir desigualdades”, através da qual o autor nos in-
centiva a enxergar nuances nos exercícios de poder de “um estado segmentado e conflituoso”.
***
Russo aqui abordado. Tal forma de definição assemelha-se à de Greco (2013), para quem a zona
de tatuagem decorre da “incrustação de grânulos e fragmentos de pólvora não combusta pelo
disparo na região atingida, não sendo removível”. Já de acordo com o estudo de Eisele e Campos
(2003), a zona de tatuagem “é composta por partículas de carvão (pólvora combusta) e de grâ-
nulos de pólvora incombusta, dispersas em torno do orifício de entrada, de bordas deprimidas,
cujo diâmetro cresce progressivamente até perder-se a energia cinética de cada corpúsculo,
assim como a aceleração de que está animado”.
16 Diferentes aspectos do registro são explorados ao longo da tese, bem como em Farias
(2008 e 2009), tendo como fonte primeira de consulta as análises de Verani (1996). Abordagens
mais recentes sobre o tema também informam a presente reflexão, com destaque para Nasci-
mento, Grillo e Neri (2009), Leite (2012), Líbano (2010), Ferreira (2013) e Misse et. al (2013).
18 “O processo penal, tanto nos crimes como nas contravenções, inicia-se pelo recebimento
da denúncia, com a descrição dos fatos, a imputação da autoria, a classificação do crime e o rol
de testemunhas (art. 41 do CPP). Iniciada a ação, não pode o Ministério Público dela desistir (art.
42 do CPP)” (Führer e Führer, 2009).
19 Neste trecho da denúncia produzida pelo Ministério Público, além das modificações já
anunciadas, foram modificados também o nome do bairro onde se localiza a favela em questão,
o nome do bar próximo ao local dos crimes e os números das folhas do processo relativas às
cópias dos laudos cadavéricos das vítimas fatais da operação.
20 Tal resolução determina ainda que o motorista e o técnico de enfermagem devem ser
treinados em curso técnico de emergência médica de nível básico e devem ter conhecimentos
específicos de resgate. Portaria disponível no site do CREMERJ no endereço http://old.cremerj.
org.br/skel.php?page=legislacao/resultados.php .
22 Como destacam Misse et al. (2013, p.15), “o governo do Estado do Rio de Janeiro adotou,
a partir de meados dos anos 90, a estratégia de investir, cada vez mais, em recursos materiais
e humanos principalmente para a polícia militar, através da aquisição de armas de alto poten-
cial letal, como os fuzis .762, da contratação de membros para a corporação e da expansão
considerável de sua frota de viaturas, incluindo veículos blindados, apelidados de ‘caveirões’.
Também houve investimento na capacitação dos policiais para atuar em contextos de ‘guerrilha
urbana’, aumentando-se o efetivo do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e do Batalhão
de Policiamento de Choque (BPCHq), além de se criarem Grupamentos de Ação Tática (GAT)
nos batalhões convencionais. Todo este aparato de guerra foi empregado em operações de in-
cursão cada vez mais frequentes em favelas com o objetivo de fazer frente ao poder local dos
traficantes.”
25 Relatório da Sociedade Civil para o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções
Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007.
27 Utilizo aqui trechos da entrevista completa realizada com Rodrigo Pimentel, então capi-
tão do BOPE, durante as filmagens do documentário Notícias de uma guerra particular (1999),
dirigido por João Moreira Salles e Katia Lund. Disponibilizada nos extras do DVD do filme, a
entrevista completa (dividida em duas partes) também pode ser acessada pelos links: <http://
www.youtube.com/watch?v=h9Jngj99NlI> e <http://www.youtube.com/watch?v=ZAvoKor-
-XjQ>. Acesso em: 20/08/2013.
28 Esta leitura compartilha do posicionamento explicitado na análise de Leite (2012), que ar-
gumenta que as execuções dos moradores de favelas devem ser compreendidas “não como pro-
duto de ‘desvios de conduta’ ou ‘excessos’ praticados por agentes das instituições estatais, ou
por ‘maus policiais’, mas como resultantes dos dispositivos de gestão das favelas e de suas popu-
lações que estão inscritos nas próprias concepções e práticas estatais na sociedade brasileira”.
Assim, então, a defesa dos policiais mobiliza o resultado dos exames ca-
davéricos para dizer que com eles não é possível sustentar aquela denúncia.
Ainda que o ponto da crítica resida na ausência de provas que permitam
29 Para a análise em questão, foi acionada a ideia de “limpeza moral” elaborada por Machado
da Silva e Leite (2008) durante investigação sobre estratégias de enfrentamento de estigmas e
de distanciamento moral dos moradores de favelas em relação aos traficantes que atuam nessas
localidades.
quando constituir elemento do corpo de delito (Art. 243, § 2o , do CPP). São inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da CF).” (Führer e Führer, 2009).
31 Nesta seção me refiro a Frederico Chagas também como “o defensor”. Gostaria de lem-
brar que se trata de um dos defensores que atua enquanto assistente de acusação do caso, não
podendo ser confundido, portanto, com o defensor público que atua na defesa dos policiais
acusados. Na tentativa de evitar qualquer mal-entendido nesse sentido, busquei utilizar na re-
dação deste texto o termo “defesa” para me referir à defesa dos réus, sem apresentá-la através
do profissional que a desempenha.
32 Vale ressaltar que, nesta situação, prejudicar a investigação do caso não é uma frase neu-
tra, mas posicionada, e que indica uma acusação de mau uso da “verdade técnica”.
34 Trecho do parecer técnico-científico produzido por Dr. Saul para ser anexado ao processo
do caso do Morro do Russo.
37 Trecho do Despacho assinado pelo juiz titular da vara em questão, documento também
incluído no processo do Morro do Russo.
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2 Durante a pesquisa de mestrado de Larissa Nadai, ela pôde acompanhar de maneira mais
detida o desenrolar das investigações realizadas na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM)
de Campinas, e que tomam parte da constituição de um inquérito policial (IP). Entre tais
procedimentos ela destaca: os depoimentos de vítima, autor (quando conhecido) e de possíveis
testemunhas, bem como diligências e papéis protocolares endereçados a setores internos
da DDM ou externos a ela (IML, Setor de Criminalística ou ao Fórum). A esses inquéritos são
agregados ainda os laudos periciais da vítima, os antecedentes criminais do autor, os laudos
de peças, local e armas (quando existem), remetidos pelo Instituto de Criminalística, e os
pedidos de prisão preventiva executados durante a investigação policial. Em seguida, mediante
Relatório Final da delegada, essa peça policial é remetida ao Fórum (NADAI, 2012). Quanto à
pesquisa de Cilmara Veiga, realizada entre processos penais no Fórum de Juiz de Fora, além dos
documentos constitutivos dos Inquéritos Policiais, é possível ainda encontrar os depoimentos
de testemunhas e acusado (oitivas), os documentos e papéis arrolados ao processo penal por
advogados e promotores correspondentes à denúncia do Ministério Público e à sentença do
juiz, que finaliza os casos de latrocínio estudados por ela. A escolha analítica para este artigo,
contudo, não será de pensá-los a partir de seus circuitos institucionais, ou seja, colocá-los em
relação a outros documentos que constituem inquéritos policiais e processos penais. Nesse
sentido, buscaremos lançar mais luz às convenções narrativas desses documentos do que aos
efeitos que esses laudos podem produzir quando etnografados em seus contextos de produção
e circulação.
4 Entendido, de forma superficial, como “roubo seguido de morte” ou “crime de matar para
roubar”, o crime de latrocínio não possui nenhuma especificação no Código Penal brasileiro.
Proveniente do termo em latim latrocinium, a palavra já apresenta, na raiz de seu significado,
uma controvérsia. De maneira unânime, se traduz o prefixo latro como “ladrão”, mas seu sufixo
cinium é traduzido como derivado de canere, que significa “cantar”, ou como caedere, cujo
sentido é “bater, golpear, matar”. Ou seja, latrocínio pode caracterizar o anúncio de um roubo
à mão armada (sentido primeiro dado à palavra), mas também matar para roubar. Ainda que
este termo não se encontre no atual Código Penal brasileiro, de 1940, no parágrafo terceiro do
artigo 157, a morte aparece como “qualificadora” ou “agravante” do crime de roubo. O artigo 157
– “subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência” – se
encontra na chamada “Parte Especial” do Código Penal, no seguimento “Título II – Dos crimes
contra o patrimônio”. Dessa forma, o latrocínio estaria no interstício do que é determinado
pela justiça como “crime contra a pessoa” e “crime contra o patrimônio”. Se colocarmos nessa
perspectiva também a ideia de crime em série, que caracteriza os casos ocorridos em Juiz de
Fora, chama atenção a desproporcionalidade dos valores atribuídos à vida e ao patrimônio, uma
vez que os objetos levados da cena do crime, pelo criminoso, eram insignificantes perante a
repetição sistemática da crueldade e da tortura imputadas às vítimas do Maníaco Matador de
Velhinhas.
5 1) Houve conjunção carnal?; 2) Qual a data provável dessa conjunção?; 3) Era virgem a
paciente?; 4) Houve violência para essa prática?; 5) Qual o meio dessa violência?; 6) Da violência
resultou para a vítima incapacidade para ocupações por mais de trinta dias ou perigo de vida, ou
debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade
permanente para o trabalho ou enfermidade incurável, ou perda ou inutilização de membro,
sentido ou função, ou deformidade, ou aborto?; 7) É vítima alienada ou débil mental?; 8) Houve
qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?
6 A pessoa fica deitada de costas, com as pernas flexionadas em suportes (perneiras). http://
pt.scribd.com/doc/54083090/49.
8 Maníaco e Matador de Velhinhas foram alguns dos nomes que o assassino recebeu da
imprensa local no período da descoberta dos corpos e ao longo das investigações.
10 1. Houve a morte?; 2.Qual a causa da morte?; 3. Qual o instrumento ou meio que produziu
a morte?; 4. A morte foi produzida com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou
outro meio insidioso ou cruel ou de que se podia resultar perigo comum?(Resposta especificada).
Dito isso, o legista faz uma última anotação pertinente aos “Exames
Externos”. Diante da hipótese de violência sexual, ventilada pela polícia no
momento em que Dona Rosa foi encontrada em sua casa, morta e desnuda,
informa:
“ao exame macroscópico da região vulvar, observamos hiperemia,
escoriações superficiais e fissuras nos grandes lábios, pequenos lá-
bios e vestíbulo, compatíveis com prática de ato libidinoso. Sangra-
mento na região vulvar”. (Caderno de Campo).
11 Entre parênteses, o formulário indica ao legista o que é preciso ser descrito: “(tamanho,
forma, sede, aspecto, etc)”.
13 Diante de suas atribuições, nas palavras de Corrêa (1998), os modelos jurídicos e médicos
deixavam de ser heterogêneos entre si, e, absorvendo um ao outro, florescia uma nova área
de saber situada exatamente na intersecção desses modelos: a medicina legal. Tratava-se
da constituição de um terceiro saber que deveria se concentrar em diagnosticar e indicar
tratamento adequado, de acordo com os parâmetros jurídicos e médicos, aos atos que insidiam
contra a normalidade da vida social.
14 Segundo Deleuze (2007), falando sobre a obra do pintor Francis Bacon, a vianda não pode
ser compreendida como uma carne (corpo) morta. Ao contrário, ela conserva todas as cores e
todos os sofrimentos de uma carne viva. Nas pinturas de Bacon, vianda é um estado do corpo
no qual carne e osso se confrontam, mas não se adéquam estruturalmente: a carne se origina
dos ossos, ao mesmo tempo que os ossos dela se elevam. Vianda seria uma espécie de zona
de indiscernibilidade, de indecisão entre o homem e o animal, um estado no qual o pintor “se
identifica com os objetos de seu horror e de sua compaixão” (Deleuze, 2007,p. 31). Citando um
romance de Moritz, Deleuze (2007) descreve essa carne, que é vianda, por meio da imagem de
uma personagem que experimenta a sensação de horror, de insignificância, ao ver a execução
de quatro homens que, exterminados e esquartejados, têm seus pedaços jogados na rua.
Gregori (2010), falando sobre os usos de sex toys, aponta também como a ideia de carne pode
ser compreendida mediante um outro sentido: a carnalidade. Por esse termo, a autora mostra
como carne também pode evocar o corpo como objeto erotizado e sexualizado.
15 Foucault (1980), entretanto, nos alerta que não devemos tomar o acesso do olhar médico
ao interior do corpo como uma continuação de um movimento, que, cada vez mais, leva a
medicina ao interior desses corpos doentes. Ao contrário, trata-se de uma reformulação ao
nível do próprio saber e não de um movimento de acumulação, de conhecimentos que são
afinados e ajustados a novas realidades.
16 Por quadro, Foucault (1980) está preocupado em delimitar uma representação espacialmente
legível e coerente, na qual a doença possa ser descrita por meio de um instrumento analítico
(prontuário ou ficha clínica) que conjuga o percebido na superfície do corpo pelo olho clínico, e
aquilo que é ouvido por esse mesmo clínico por meio da interação médico/paciente.
17 Apesar da ambiguidade contida no termo, optamos por manter o termo sexo em vez de
sexualidade. Seu uso aqui não remete apenas à ideia de sexo biológico, mas está inspirado nos
trabalhos de Foucault (1988) e Butler (1993). Para a autora, a categoria sexo é desde sempre
normativa porque não só funciona como uma norma, como também produz os corpos que
governa. Em outras palavras, sexo é um discurso de natureza que opera como marcador e
diferenciador dos corpos por ele produzidos. Nesse sentido, o que Butler (1993) aponta é que
sexo, portanto, não é algo que alguém tem, antes é uma das normas mediante as quais “alguém”
torna-se viável e inteligível. Como se interroga Foucault (1988, p. 77), “que injunção é essa? Por
que essa grande caça à verdade do sexo, à verdade no sexo?”.
18 Segundo Fávero (1954, p. 210), hímen é “uma membrana mucosa, mais ou menos permeável,
excepcionalmente imperfurada, que se apresenta no orifício interior da vagina”.
19 Vênus de Hotentote foi como ficou conhecida Sarah Baartman, nascida na África do Sul,
com 1,35m de altura, pertencente ao povo Hotentote, ou dos Bushmen. Sarah foi capturada e
levada para a Europa em 1810 pela configuração exótica de seu corpo: nádegas salientes e lábios
genitais de grandes proporções. Por sua corporalidade “exótica”, Sarah passou a participar de
feiras, exposições e espetáculos itinerantes. Morreu em 1825, aos 26 anos (Rago, 2008).
20 Uma Márcia foi qualificada no laudo pericial como uma jovem de 22anos, natural de Minas
Gerais, solteira e balconista. Seu laudo de corpo de delito foi realizado no dia 18 de outubro de
2004, apenas dois dias depois de ter sido abordada e violentada, na cidade de Campinas.
21 O legista declarou: “informa a examinada que teria sido vítima de ato libidinoso (sexo oral e
tentativa de coito anal) sob ameaça de revólver em 16 de outubro de 2004”. (Caderno de Campo).
23 Segundo Fávero (1954), o hímen morfologicamente apresentaria o que pode ser chamado
de “membrana” e aquilo que ficou denominado como “óstio” (que seria limitado pela borda
livre da membrana). A membrana apresentaria duas faces, uma vaginal e outra vestibular, e
duas bordas (uma inserção vaginal e outra livre). A classificação de Afrânio Peixoto teria se
dedicado a classificar o hímen pelo aspecto da membrana. Daí Peixoto ter traçado linhas de
junção que dariam origem a ângulos ou fendas na inserção da membrana no óstio vaginal. É por
meio dessas aberturas que Peixoto classificou os himens a partir de três grupos: acomissurados
(imperfurados), comissurados (com número variado de pontos de junção) e os atípicos. Já a
classificação empreendida por Oscar Freire estava ligada ao óstio, uma vez que a borda livre da
membrana apresenta dimensões e aspectos variáveis. Sua classificação dividia o hímen em três
classes: sem orifício, com orifício e os atípicos.
25 Por contraste ao que ocorre com os outros casos aqui apresentados, a caracterização do
ocorrido com uma Joana é muito mais detalhada, acrescentando, inclusive, novas informações
ao caso, uma vez que em nenhum dos depoimentos de uma Joana havia ficado descrito que ela
teria sido abordada por um desconhecido “no caminho para o cursinho”. O motivo pelo qual
caminhava pela rua, na qual Ricardo Dias lhe abordou, é indicado exclusivamente em seu laudo
indireto.
26 Em entrevista realizada com alguns dos médicos legistas do IML de Campinas, ficou ainda
mais evidente que os laudos feitos de forma indireta habitam uma espécie de limbo semântico.
Além da necessidade de serem requisitados pelo próprio interessado, no caso a vítima, esses
Dito isto, resta apenas ao legista dizer, na lacuna Conclusão, que nada
pode “afirmar ou infirmar” sobre os fatos descritos.
É por meio de outros expedientes técnicos do detalhe e da precisão que
a morte ganha seu lugar nos exames periciais analisados nesse artigo. Por
meio de termos por vezes indecifráveis, outras formas narrativas são postas
em operação. A linguagem através da qual os corpos nas mesas de necropsia
se convertem em documento pode parecer ao leitor ainda mais enigmática.
Se, nos casos de estupro e ato libidinoso, a carne se faz entrever me-
diante membranas “valiosas” e genitais com “conformações” diversas, os cor-
pos de idosas como Dona Rosa, vitimados mortalmente pelo Maníaco Ma-
tador de Velhinhas de Juiz de Fora, são descritos com um rigor técnico que
torna a leitura algo difícil. Tanto a descrição externa de seu corpo coberto
por pele, quanto de suas partes inundadas por sangue e cartilagens, depois
que a carne é irrompida pelos instrumentos da necropsia, exigem que a lei-
tura seja feita com o auxílio de dicionário[, ou de um guia médico. O mesmo
acontece quando, entre “larvas e moscas”, cabe ao legista descrever estados
de putrefação e estágios de decomposição.
A dedicação aos exames cadavéricos parece responder às pretensões
científicas dos médicos fundadores da disciplina no Brasil, mas também a
imagem que foi sendo tecida sobre o tipo de trabalho realizado nos Institu-
tos Médico-Legais. Segundo Antunes (1995), a participação desses profissio-
nais em perícias necroscópicas foi tão impactante que a necropsia e a me-
dicina legal tornaram-se quase expressões sinônimas. O site oficial do IML
de São Paulo ajuda a ilustrar essa reputação ao salientar que a manipulação
de corpos mortos encontra-se como uma das mais conhecidas funções da
instituição27.
laudos acabam restritivos exatamente pelo efeito de cópia que enredam. Ou seja, diante do
prontuário médico, resta ao legista descrever e proferir as conclusões de outro profissional, o
que limita ainda mais sua possibilidade de “concluir”. Além disso, tais exames realizados através
de prontuário médico estendem o tempo de conclusão da perícia, o que por sua vez trava o
cotidiano de trabalho do IML.
27 Segundo dado fornecido atualmente pelo site da Polícia Científica do Estado de São Paulo,
isso continua muito evidente: “a mais conhecida das funções do IML é a necropsia, vulgarmente
chamada de autópsia, que é o exame do indivíduo após sua morte. Porém, este tipo de exame
constitui apenas 30% do movimento do Instituto. A maior parte do atendimento (70%) é dada
a indivíduos vivos, pessoas que foram vítimas de acidentes de trânsito, agressões, acidentes de
trabalho etc”. (http://www.polcientifica.sp.gov.br/institucional_superintendencia.asp).
28 A tríade técnica e conceitual de que fala Foucault (1980) é: a vida, a doença e a morte.
Contudo, não se trata mais da “velha continuidade das obsessões milenares que colocava, na
vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença aproximada da morte” (p.165). Ao contrário, o
que o autor mostra é uma nova articulação entre esses termos, agora, mediante a imagem de um
triângulo. Um triângulo que tem em seu vértice superior a morte, que ilumina e pode desvelar
“tanto o espaço do organismo quanto o tempo da doença”. (Foucault, 1980, p. 165).
29 Em sua pesquisa no IML do Rio de Janeiro, Medeiros (2012) nos conta sobre a necropsia
realizada em seis baleados de Manguinhos. Nessa seção, autora conta sobre os procedimentos
realizados pelo profissional Thiago, que, dando sequência às manipulações no cadáver de um
dos baleados, resolve “rebater o couro cabeludo” do morto sob a justificativa de que o cabelo, por
vezes, pode ocultar alguma lesão relevante. Contudo, ao realizar tal procedimento é perguntado
pelo colega de profissão que com ele realizava a perícia: “Vai fazer ciência agora?” (Medeiros,
2012, p. 69).
30 Vale ressaltar, que o relatório de necropsia realizado no cadáver de Dona Margarida foi
o único que teve como médica legista uma mulher. Ainda que não seja possível fazer uma
discussão mais detida a isso, parece interessante destacar que a mudança do legista que assina
o laudo produz uma mudança no conteúdo e nos efeitos narrativos do mesmo. As descrições
empreendidas pela médica legista são muito mais minuciosas, tanto em relação às vestes e sua
disposição, quanto às lesões, suas dimensões e fluídos encontrados.
32 Entre os trabalhos relevantes destacaríamos: Ardaillon & Debert (1987); Vargas (1997);
Coulouris (2004) e Vieira (2011).
33 Vale ressaltar que o uso de foto nos exames de corpo de delito é raro, independentemente
do caso de morte ou estupro a que se faça referência. Em nenhum dos casos acessados durante
nossas pesquisas vimos qualquer menção a esse tipo de recurso visual. Essa característica pode
ter a ver com a época na qual os relatórios de necropsia investigados aqui foram realizados
(no final da década de 1990), uma vez que outras pesquisas recentes em torno dos expedientes
técnicos e burocráticos realizados em corpos sem vida já salientam o sistemático uso de
máquinas fotográficas nas salas de necropsia. Sobre isso ver: Medeiros, 2012. Todavia, como se
constata nas entrevistas que realizamos, o ato de fotografar e o uso dessas imagens fica a cargo
do legista e de suas escolhas pessoais. Além disso, todos salientaram a não existência de um
banco de dados para armazenamento dessas fotos. Todas elas ficam com o legista, normalmente
nos computadores e celulares de uso pessoal.
Portanto, chama atenção uma espécie de jogo narrativo que tem seus
resultados já sabidos antes mesmo de terminado o ”tempo da necropsia”.
Ou seja, esses profissionais da polícia científica engatam as suas conclusões
àquilo que teria levado os corpos de Dona Rosa, Violeta, Dália, Margarida e
Camélia ao necrotério da cidade de Juiz de Fora. Estranguladas por “asfixia
mecânica” ou mortas por “traumatismo craniano”, as idosas têm, reiterado
nas conclusões de seus laudos periciais, que tais causas da morte se deram
“devido à agressão”, “devido a latrocínio segundo consta” e “num contexto ho-
micida”. Daí a impossibilidade de separar das conclusões médicas certifica-
das pelo legista, a requisição fornecida pelo Delegado de Polícia e enviada
junto ao corpo dessas idosas quando removidas de suas residências para as
mesas do necrotério de Juiz de Fora. Como aparece no caso de Dona Rosa,
o legista busca em suas conclusões expor em detalhes a causa médica que
teria levado a idosa a óbito: “traumatismo cranioencefálico com hemorragia
subaracnoidea e de tronco cerebral”. Mas, informado pelo contexto no qual a
vítima foi encontrada morta, seja por requisição ou pelo perito que esteve
no “local dos fatos”, o legista atrela a causa da morte àquilo que será em Juízo
formulado como a causa jurídica do óbito: “devido à agressão”. Como escla-
rece em entrevista o médico-legista sediado em Campinas:
“A causa jurídica do óbito, você precisa de alguns elementos que
nem sempre você encontra na hora da necropsia. (...) Um estran-
gulamento, por exemplo, você tem um fio, uma corda que passa
pelo pescoço e a força que age é uma força externa, não é o peso
do corpo como num enforcamento. Um estrangulamento você pode
ter tanto num contexto homicida, quando alguém vem e estrangula
uma pessoa, quanto você pode ter um estrangulamento acidental.
(...) Então, para isso você precisa lançar mão da perícia [do local,
das requisições encaminhadas, etc.]. (Entrevista realizada em 23
de janeiro de 2015).
de DNA colhido pelo CAISM. Em compensação, quando exigido por juízes, a lâmina foi enviada à
DDM por meio de carta endereçada à polícia, via correio, para então ser reenviada ao IML. Além
do tempo decorrido entre o início dos trâmites até o laudo emitido pelo IML, a lâmina enviada
era o único exemplar. Ou seja, qualquer tipo de extravio comprometeria irreversivelmente a
feitura do laudo. Também, as análises que exigem laboratório ou outras técnicas de detecção
como DNA ou fluidos corpóreos só são feitas em São Paulo. Isso significa que o Núcleo de Perícia
do IML de São Paulo recebe material para análise do estado todo. Além disso, em entrevistas
realizadas recentemente com médicos-legistas na cidade de Campinas, todos foram unânimes
em alegar a demora e a lentidão no envio dos resultados da maioria dos laudos periciais
concluídos pelo Núcleo de Perícia do IML de Campinas que exigem resultados fornecidos pelo
IML de São Paulo. Muitos salientaram que evitam requerer exames toxicológicos, patológicos
e de DNA porque acabam atados aos laudos que permanecem sem finalização em suas mesas.
36 A pergunta “7) É vítima alienada ou débil mental?” nem sempre é respondida pelo termo
“Prejudicado”. Nos casos analisados aqui, com exceção de uma Madalena, tanto uma Márcia,
quanto uma Joana tiveram tal termo anotado em resposta ao quesito obrigatório por lei.
37 Sem dúvida, ao contrastar esses laudos com alguns exames realizados em crianças, e
mesmo envolvendo as idosas personagens dos processos aqui investigados, fica evidente que a
idade é um marcador central no que diz respeito às convenções narrativas empreendidas nos
laudos periciais, independente do contexto local em que esses papéis oficiais foram redigidos
e oficializados. A “tenra idade” de certas crianças justificam a impossibilidade de resistirem ao
abuso (para ver mais: Nadai, 2013). Também, no caso de Dona Rosa, a crueldade foi atestada e
legitimada por meio da frase: “sim para meio cruel, considerando-se as lesões no corpo da vítima
e sua idade (76 anos)”.
Considerações finais
Iniciamos este artigo visando comparar duas convenções narrativas. A saber,
os documentos de corpo de delito em casos de estupro e ato libidinoso, e os
relatórios de necropsia em casos de latrocínio, ambos em contextos seriais.
38 Também nos casos de estupro e atentado violento ao pudor de Madalenas, Joanas e Márcias,
há uma lacuna a ser preenchida pelos possíveis exames complementares. Contudo, raras vezes
esses exames são pedidos. E quando o são, não foram sequer descritos, muito menos tiveram
suas cópias anexadas ao inquérito policial, que permanece nos arquivos da DDM.
39 A série conta a história de uma renomada neurocirurgiã americana, que após sofrer um
acidente de carro, passa a ter uma sequela motora de diagnóstico desconhecido. Não podendo
mais realizar cirurgias devido aos tremores constantes de suas mãos, a personagem assume
um cargo como médica-legista em sua cidade. Produzida em 2011 pela ABC Studios, a série teve
três temporadas, com aproximadamente vinte episódios cada. No Brasil ela foi transmitida pelo
canal AXN.
40 Na cena Dra. Hunt começava uma minuciosa descrição do corpo de uma possível vítima
de homicídio encontrada em um rio com uma lesão na cabeça. O diálogo foi em resposta à
obsessão do policial Bud Morris por qual teria sido a possível arma do crime.
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