Você está na página 1de 218

Letícia Ferreira | Laura Lowenkron

Organizadoras

Etnografia de documentos
Pesquisas antropológicas entre papéis,
carimbos e burocracias

Rio de Janeiro, 2019


© Letícia Ferreira, Laura Lowenkron/E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2019.
Todos os direitos reservados a Letícia Ferreira e Laura Lowenkron/E-papers
Serviços Editoriais Ltda. É proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte
dela, por qualquer meio, sem a prévia autorização dos editores.
Impresso no Brasil.

ISBN XXXXXXXXXXXXXXXX

Foto da capa
XXXXX

Projeto gráfico, diagramação e capa


XXXXXX

Revisão
Mariana Oliveira

Esta publicação encontra-se à venda no site da


E-papers Serviços Editoriais.
http://www.e-papers.com.br

CIP-Brasil. Catalogação na fonte


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

M684
Mobilização social na Amazônia : a ‘luta’ por justiça e por educação / organização Paula
Lacerda. - 1. ed. - Rio de Janeiro : E-Papers, 2014.
366 p. : il. ; 23 cm.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-446-7

1. Mobilização Social - Brasil, Amazônia. 2. Educação - Amazônia. 3. Índios do Brasil -


Amazônia. 4. Etnologia - Brasil. 5. Antropologia. I. Lacerda, Paula.

14-15967 CDD: 306


CDU: 316
Sumário
INTRODUÇÃO
5 Encontros etnográficos com papéis
e outros registros burocráticos
Possibilidades analíticas e desafios metodológicos
Letícia Ferreira e Laura Lowenkron

CAPÍTULO 1
17 Perspectivas antropológicas
sobre documentos
Diálogos etnográficos na trilha dos papéis policiais
Laura Lowenkron e Letícia Ferreira

CAPÍTULO 2
53 Documentando relações e relacionando documentos
Sobre a materialidade das práticas de
conhecimento na regulação econômica
Gustavo Onto

CAPÍTULO 3
77 Cartas reduzidas a termo
Processos de estado e trâmites do comando na gestão das relações
em uma penitenciária feminina da cidade de São Paulo
Natália Corazza Padovani

CAPÍTULO 4
107 Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares
Claudia Fonseca, UFRGS

CAPÍTULO 5
141 Burocracias e violências de Estado
Analisando a trajetória documental de um caso de execução sumária
Juliana Farias

CAPÍTULO 6
179 Fazer falar os pedaços de carne
Comparações entre laudos periciais em casos seriais produzidos
pelo Instituto Médico-Legal (IML) de Campinas e de Juiz de Fora
Larissa Nadai e Cilmara Veiga

217 Sobre os autores


INTRODUÇÃO

Encontros etnográficos com papéis


e outros registros burocráticos
Possibilidades analíticas e
desafios metodológicos
Letícia Ferreira e Laura Lowenkron

O projeto deste livro nasceu dos desafios analíticos enfrentados pelas pró-
prias organizadoras em suas etnografias pelos inquéritos e outros documen-
tos policiais, mas compartilhados também por diversos antropólogos cujas
pesquisas de campo foram atravessadas, muitas vezes inesperadamente, por
encontros com papéis e outras modalidades de registros burocráticos. As
principais dificuldades com as quais nos deparamos podem ser atribuídas
ao fato de que, apesar da recente proliferação de pesquisas etnográficas
que se debruçam sobre estes objetos e do renovado interesse antropológico
pelo tema, ainda não é fácil encontrar trabalhos acadêmicos que discutam
ou ofereçam um levantamento mais sistemático sobre os caminhos teórico-
-metodológicos desenvolvidos e adotados na etnografia de documentos. Este
é o principal objetivo desta coletânea.1
Tendo como ponto de partida o pressuposto clássico de que a etnogra-
fia é uma das práticas de conhecimento privilegiadas da antropologia social,
ainda que seja cada vez mais valorizada e apropriada por diferentes áreas2,
este livro visa contribuir para deslocar a centralidade histórica atribuída à
expressão observação participante na compreensão do que seja a pesquisa
etnográfica. A fim de produzir este deslocamento, buscamos investigar, sem

1 A publicação deste livro foi financiada com recursos do edital Jovem Cientista do Nosso
Estado (JCNE) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
Janeiro (Faperj), no âmbito do projeto “Dramas de família nos balcões da burocracia: a adminis-
tração institucional de casos de desaparecimento de crianças e adolescentes no estado do Rio
de Janeiro” (processo E-26/203.244/2017).

2 Para uma crítica à popularização recente da etnografia em outras disciplinas e uma defesa
sobre a sua articulação profunda com a teoria antropológica, ver Peirano (2008).

Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos 5


pretender esgotar, múltiplas respostas possíveis a uma pergunta aparen-
temente simples: o que significa a expressão etnografar documentos3? Esta
questão e seus muitos desdobramentos têm atravessado discussões entre
diferentes pesquisadores em variadas ocasiões e espaços acadêmicos4, e
orientou os nossos debates no Simpósio de Pesquisas Pós-Graduadas (SPG)
“Perspectivas etnográficas sobre documentos: possibilidades analíticas e de-
safios metodológicos”, que coordenamos no 38º Encontro Anual da ANPOCS,
em 20145.
Documentos foram um dos artefatos etnográficos historicamente mais
negligenciados pela disciplina (Riles, 2006; Hull, 2012). Por isso, encontramos
pouco suporte na bibliografia clássica sobre etnografia para entender o sig-
nificado da tarefa de lidar com registros, tecnologias e peças documentais,
que, cada vez mais, é parte importante das atividades realizadas por antro-
pólogos quando estão em “campo”. Buscando contribuir para preencher esta
lacuna, o conjunto de trabalhos aqui reunidos ilumina algumas possibilidades

3 Para uma interessante reflexão sobre a tarefa de “etnografar documentos”, que nos foi
muito inspiradora, ver Vianna (2014). Vale notar que, em nossas próprias pesquisas, esta questão
se impôs desde cedo, não apenas pelos universos etnográficos que escolhemos pesquisar, mas
também pelos diálogos de orientação com Adriana Vianna, a quem somos gratas por ter nos
apresentado estas preocupações analíticas.

4 Ocasiões relevantes para o debate sobre o uso de documentos na pesquisa antropológica


no Brasil foram os seminários “Quando o campo é o arquivo: etnografias, histórias e outras
memórias guardadas”, “Quando o campo é o arquivo (de imagens)”, e “Pesquisa em arquivos po-
liciais e judiciais: perspectivas antropológicas, históricas e arquivísticas”, todos promovidos pelo
Centro de Pesquisa e Documentação de história Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Funda-
ção Getúlio Vargas (FGV). O primeiro desses eventos foi realizado em 25 e 26 de novembro de
2004, e promovido pelo CPDOC em conjunto com o Laboratório de Antropologia e História do
IFCS/UFRJ, contando com o apoio da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). O segundo
foi realizado em 11 e 12 de dezembro de 2008, e promovido pelo CPDOC em conjunto com o
Laboratório de Antropologia e História do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional/UFRJ. O terceiro evento, por fim, foi realizado em 29 e 30 de abril de 2013
e organizado pelo Laboratório de Estudos sobre Instituições do CPDOC. Já em agosto de 2015,
no âmbito do IV Encontro Nacional de Antropologia do Direito (ENADIR), sediado na Univer-
sidade de São Paulo (USP), o tema esteve em debate no Grupo de Trabalho (GT) Antropologia,
Burocracia e Documentos. Trabalhos apresentados no GT foram reunidos no dossiê “Burocracia
e documentos: olhares etnográficos”, publicado pela Confluências: revista interdisciplinar de
Sociologia e Direito (17/03, dezembro de 2015), organizada por Larissa Nadai e Letícia Ferreira.

5 Agradecemos imensamente aos autores que apresentaram seus trabalhos neste Simpósio
(Larissa Nadai, Cilmara Veiga, Gustavo Onto e Juliana Farias) e aceitaram o convite de publicá-
-los neste livro e também ao participativo público deste SPG, composto por Adriana Vianna,
Silvia Aguião, Maria Filomena Gregori, Bianca Freire-Medeiros e Jair Ramos, entre outros. Suas
questões e contribuições enriqueceram muito nossos debates, bem como o resultado deles
sintetizado nesta coletânea.

6 Etnografia de documentos
analíticas e desafios teórico-metodológicos da etnografia documental com
base em pesquisas recentes realizadas em diferentes “campos”. Sem quais-
quer pretensões de esgotar essas possibilidades ou de oferecer uma amos-
tra supostamente “representativa” desses desafios, a proposta de reunir tais
trabalhos em uma coletânea fundamenta-se no princípio de que é a própria
etnografia, em sua multiplicidade e seu caráter sempre situado e relacio-
nal, que possibilita expandir os debates teóricos e metodológicos próprios à
antropologia.
Uma das novidades e contribuições destes textos, assim como dos de-
bates que os ancoraram e que são por eles expandidos, foi ter deixado de
lado (ou para trás) as controvérsias e as crises existenciais que marcaram
a relação entre a antropologia e os documentos em outros momentos da
disciplina. Seguindo a trilha de discussões antropológicas contemporâneas
que têm explorado as múltiplas possibilidades analíticas da etnografia docu-
mental, os trabalhos reunidos nesta coletânea apresentam novas respostas
epistemológicas aos velhos dilemas. Vale destacar que, apesar da diversida-
de empírica e teórica dos textos, uma característica comum foi levada em
conta na organização do livro a fim de tornar mais produtivo o diálogo entre
eles: todos são baseados em pesquisas etnográficas realizadas no âmbito ou
em torno de organizações estatais. Visto que nestes espaços institucionais a
escrita e os documentos são tecnologias e artefatos centrais, estes passam a
ser também objetos fundamentais nas etnografias realizadas tanto nas pró-
prias repartições burocráticas quanto entre sujeitos, famílias e movimentos
que por elas transitam ou com elas interagem com determinadas finalidades.
Por esta razão, alguns dos autores dedicam-se a descrever de que forma o
interesse pelos documentos demonstrado por seus interlocutores de pes-
quisa tornou-se algo contagioso (Riles, 2006) e, por isso mesmo, incontor-
nável, embora não possuíssem quaisquer propósitos pré-definidos de voltar
sua atenção para os papéis, registros e demais artefatos gráficos (Hull, 2012)
produzidos ou arquivados nos contextos em que conduziram seus trabalhos
de campo.
Ao explorar o potencial heurístico dos encontros etnográficos travados
pelos autores aqui reunidos com processos, laudos, ofícios, cartas e outros
tantos tipos de registro escrito, nossa proposta não é apresentar fórmulas
prontas e nem um sentido definitivo para a expressão etnografar documen-
tos. Apostamos que a própria definição do que seja esta tarefa é ela mesma
etnográfica. Desse modo, nosso intuito ao reunir pesquisadores que estão

Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos 7


fazendo etnografia de documentos é justamente decifrar alguns significados
que esta expressão pode adquirir, o que depende simultaneamente das pers-
pectivas teóricas acionadas e dos trabalhos de campo específicos com base
nos quais esta noção é moldada. Se na vida social existem diferentes formas
de se relacionar com os documentos, o mesmo acontece na antropologia. Há
diferentes maneiras de abordar analiticamente os documentos em pesquisas
etnográficas, que aparecem de forma combinada ou alternada nos capítulos
desta coletânea.
Tradicionalmente, a etnografia documental conferiu mais atenção aos
conteúdos, que, por sua vez, podem ser lidos de diferentes maneiras (Sto-
ler, 2009). Recentemente, contudo, surgiu uma literatura antropológica es-
pecializada, revisada nos dois primeiros capítulos desta coletânea, que tem
conferido particular atenção à dimensão material e estética dos documentos
(Latour, 2002; Riles, 2006; Hull, 2012; Gupta, 2012). Levando em conta esta
materialidade, alguns autores têm voltado sua atenção à vida social destes
artefatos, analisando suas formas de organização, manipulação, arquivamento
e circulação por diferentes espaços e os processos de ressignificação e
outras metamorfoses associadas a estes trânsitos (Heymann, 2013). Há ainda
aqueles que têm conferido mais destaque às relações, inclusive afetivas, com
os papéis oficiais (Navaro-Yashin, 2007; Ferreira, 2013), e outros que vêm
explorando o acionamento de documentos como instrumentos basilares de
disputas e demandas colocadas por determinados sujeitos e coletividades
diante de agentes e agências de Estado (Padovani, 2013; Farias, 2014; Ferrei-
ra, 2015).
Uma das contribuições interessantes dessas recentes pesquisas antro-
pológicas com documentos, bem evidenciada nos capítulos desta coletânea,
é a impossibilidade de separar forma e conteúdo. Ou seja, não se pode ana-
lisar o que é dito sem atentar para o modo como está inscrito em diferentes
suportes materiais. Ao deslocarem o enfoque analítico da dimensão mera-
mente informacional ou referencial dos documentos para a sua materiali-
dade (Hull, 2012), alguns autores aqui reunidos conferem especial atenção
às assinaturas, aos carimbos, aos brasões, entre as várias outras inscrições
que autenticam e recriam performativamente institucionalidades, assime-
trias e autoridades. A atenção aos efeitos ou à dimensão performativa dos
documentos é outra característica comum aos trabalhos aqui publicados, na
medida em que todos se perguntam não apenas sobre o que os documentos
dizem (ou registram), mas também e principalmente sobre o que eles fazem

8 Etnografia de documentos
(ou o que permitem fazer). Os capítulos mostram, assim, que documentos
não só registram realidades pré-existentes, mas também são tecnologias
centrais na produção e fabricação das realidades que governam, sejam elas
corpos, territórios, relações.
Por terem sido conduzidas em burocracias estatais ou entre sujeitos,
famílias e movimentos que apresentam demandas a organizações dessa na-
tureza, as pesquisas que deram origem aos textos revelam também as dife-
rentes formas por meio das quais processos, formulários, ofícios e laudos,
tantas vezes interpretados como materializações da face mais impessoal e
racional (Weber, 1963; Herzfeld, 1992) e também mais opressora e desuma-
na da burocracia (Reis, 1998; DaMatta, 2002; Graeber, 2012), interpenetram-
-se com e incidem sobre universos como o da sexualidade, da intimidade,
do parentesco, das relações familiares e dos afetos. Demonstram, assim, as
múltiplas conexões, articulações e trânsitos entre objetos e universos con-
vencionalmente pensados como “esferas separadas” ou até opostas e reci-
procamente poluidoras (Zelizer, 2009 e 2011), explorando o potencial analíti-
co de se reunir, na mesma etnografia (ou na mesma coleção de documentos,
como fazem personagens de alguns capítulos do livro), papéis “oficiais” e
cartas, bilhetes e outros registros entendidos como “pessoais”.

Os capítulos
O capítulo “Perspectivas antropológicas sobre documentos: diálogos etno-
gráficos na trilha dos papéis policiais”, de Laura Lowenkron e Letícia Ferrei-
ra, discute implicações e potencialidades analíticas de se pensar e pesquisar
antropologicamente com documentos, argumentando que estes constituem
artefatos etnográficos especialmente rentáveis em certos contextos de pes-
quisa. Para tanto, recupera alguns movimentos históricos de distanciamento
e aproximação entre a antropologia e os documentos, colocando em diálo-
go os debates antropológicos sobre o tema e duas experiências recentes de
pesquisa etnográfica realizada pelas autoras.
Com base na etnografia de Lowenkron em meio a inquéritos da Polícia
Federal brasileira relacionados ao crime de tráfico de pessoas para fim de
exploração sexual, o capítulo analisa a “arte de reduzir a escrito” durante
uma oitiva policial a partir de uma alternância entre duas estratégias ana-
líticas de leituras (ao longo e na contracorrente). Em seguida, com base na
pesquisa de Ferreira sobre procedimentos administrativos em torno de

Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos 9


casos de “desaparecimento de pessoa” investigados pela Polícia Civil do Rio
de Janeiro, a atenção analítica se desloca para a materialidade dos docu-
mentos. Especial destaque é conferido às responsabilidades, às obrigações e
aos afetos que são produzidos pela fabricação, circulação e arquivamento de
documentos. Além de revelar o potencial heurístico da escolha por “seguir
o papel” (Hull, 2012) e chamar atenção para a micropolítica das interações
entre documentadores e documentados em cada uma das pesquisas, o texto
busca contribuir para reflexões mais amplas acerca dos desafios que a lida
com documentos em situações de trabalho de campo aporta à antropologia
e às suas autorrepresentações.
Baseado em uma etnografia das práticas de documentação do Conselho
Administrativo de Defesa Econômica (CADE6, o capítulo de Gustavo Onto,
“Documentando relações e relacionando documentos: sobre a materialidade
das práticas de conhecimento na regulação econômica”, enfatiza a materia-
lidade das práticas burocráticas. Dialogando com a literatura antropológica
internacional recente sobre o tema, o autor confere particular atenção ao
modo como certas características e formas dos documentos - entendidos
como artefatos de conhecimento (Riles, 2006) - criam sentidos ou associações.
Seu argumento é que a organização, a classificação e a gestão de papéis são
atividades centrais na administração de relações econômicas e empresariais
pelo órgão. Isto porque, durante sua pesquisa de campo, a expertise prática
de “lidar com documentos” revelou-se como sendo tão ou mais importante
do que os saberes especializados, como a Economia e o Direito, na rotina de
trabalho dos funcionários do Conselho.
Onto destaca ainda os diferentes sentidos do verbo “documentar”, que
aponta tanto para a produção de verdades/provas (e não simplesmente de
registros quaisquer), quanto para a ideia de organização/ordenação, focali-
zando a sua análise especialmente no segundo sentido do termo. Particular
atenção é conferida à gestão do tempo por meio dos prazos e à classificação
de documentos como elementos centrais destas práticas de conhecimento
e de governo. O ato de classificar certos documentos como “confidenciais”,
por exemplo, é explorado em seus efeitos, como a delimitação de fronteiras
entre o “Estado” e o “mercado” (Mitchell, 1999). Partindo da constatação de
que tornar-se um analista do CADE requer tornar-se um especialista em
“lidar” com documentos, o capítulo contribui ainda para uma reflexão mais

6 Órgão governamental brasileiro vinculado ao Ministério da Justiça e responsável pela


implementação da política de defesa da concorrência (ou antitruste) no país.

10 Etnografia de documentos
ampla sobre o que consiste a “expertise documental” com base nas dificul-
dades que o próprio etnógrafo enfrentou na sua tentativa de documentar
relações e relacionar documentos.
Natália Padovani, em “Cartas reduzidas a termo: processos de Estado e
trâmites do Comando na gestão das relações em uma penitenciária feminina
da cidade de São Paulo”, também explora os sentidos e os efeitos da aqui-
sição de certa “expertise documental” por suas interlocutoras de pesquisa.
A autora demonstra que no espaço da Penitenciária Feminina de Santana
(PFS), uma das prisões em que realizou trabalho de campo, essa “expertise”
expande-se em seu uso, sendo utilizada por mulheres em cumprimento de
pena não só diante de aparelhos estatais e suas sentenças, processos, relató-
rios e despachos, mas também em face dos procedimentos de gestão da vida
na prisão executados pelo Primeiro Comando da Capital (PCC), um coletivo
de presos cujo poder se capilarizou através de tramas relacionais, merca-
dos ilegais e ordenamentos morais que incidem de forma definitiva sobre a
vida nas prisões e nas periferias de São Paulo. Para tanto, a autora analisa os
usos que a presa Adelina, protagonista do capítulo, faz das cartas trocadas
entre ela e seu marido, ele também cumprindo pena em uma penitenciária.
Adelina produz, a partir das cartas, um dossiê que pretende comprovar seu
casamento perante as “torres de comando”, explorando, portanto, o sentido
de “documentar” como um processo de produção de verdades/provas.
Ao focar as cartas e os registros produzidos, recebidos e reunidos no
dossiê por Adelina, e ao partir deles para pensar as múltiplas rotinas e pro-
cedimentos a que se submetem as mulheres em cumprimento de pena em
penitenciárias, Padovani propõe uma contundente comparação entre as for-
malidades características dos aparelhos jurídicos prisionais e os chamados
“trâmites” executados pelo PCC nas prisões, ambos centrados nas “palavras”.
Nesse sentido, a partir da atenção detida não só sobre as palavras ditas, mas
principalmente sobre aquelas escritas e lidas por Adelina e pelas “irmãs” do
Comando em diferentes documentos e “trâmites”, a autora descreve como
as vidas das mulheres nas prisões de São Paulo são submetidas tanto a for-
mas de gestão estatais quanto àquelas emanadas das “torres de comando”
do PCC.
Claudia Fonseca, em “Tempo, DNA e documentos na validação de víncu-
los familiares”, também analisa disputas em torno da produção de verdades/
provas sobre vínculos familiares a partir do que ela denomina de tecnologias
interconectadas. Contudo, a autora demonstra como documentos oficiais,

Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos 11


articulados tanto a reminiscências e narrativas orais quanto a exames de
DNA, funcionam, em determinados contextos políticos e estruturas institu-
cionalizadas coletivas, não apenas como tecnologias de produção de provas/
verdades, mas também de tipos particulares de socialidade, entrelaçados a
percepções também particulares de família e comunidade. O capítulo apre-
senta, por meio de cenas etnográficas, de diálogos com a antropologia do
parentesco e com os estudos da ciência, uma descrição do movimento po-
lítico que vem exigindo do governo brasileiro reparação legal pela violação
dos direitos humanos dos filhos de pessoas internadas compulsoriamente
por causa da hanseníase. Documentos, narrativas orais e testes de DNA são,
conforme analisa Fonseca, tecnologias acionadas por esses “filhos” para vali-
dar conexões familiares obliteradas, desfeitas ou perdidas ao longo dos anos
em que brasileiros portadores de hanseníase sofreram não só a internação
compulsória nas chamadas colônias para leprosos, mas também a separação,
igualmente compulsória, de sua prole, frequentemente conduzida a “pre-
ventórios” e orfanatos, além de inserida em redes de circulação de crianças.
Como mencionado, Claudia Fonseca trata os documentos procurados,
analisados e colocados em circulação pelos “filhos” e pelo Movimento pela
Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (MORHAN), bem como
as narrativas orais sobre o tempo da internação compulsória e os testes
de DNA acionados no presente para comprovar laços desfeitos no passa-
do, como tecnologias. Seu intuito é destacar tanto a materialidade quanto as
complexas temporalidades em jogo em suas demandas por reparação, além
de revelar que naquele, assim como em outros contextos de luta pela res-
ponsabilização do Estado por violações de direitos humanos, nem memórias,
nem os próprios sujeitos envolvidos podem ser tomados como dados a prio-
ri. Ao contrário, estão constantemente em processo de constituição, sendo
permanentemente atravessados por múltiplas agências e coproduzidos por
dispositivos os mais diversos, dentre os quais estão não só reminiscências
pessoais e desejados exames de DNA, mas também documentos oficiais, com
todas as suas imprecisões, fragilidades e vulnerabilidades.
Juliana Farias, no capítulo “Burocracias e violências de Estado: anali-
sando a trajetória documental de um caso de execução sumária”, apresenta
reflexões desenvolvidas com base em um trabalho de campo pautado pela
agenda de familiares de pessoas executadas sumariamente por agentes de
Estado em favelas cariocas. Tal agenda se constitui basicamente de reu-
niões, atendimentos, consultas e outras atividades realizadas em diferentes

12 Etnografia de documentos
segmentos de Estado – delegacias, secretarias, comissões temáticas, nú-
cleos especializados, entre outros – responsáveis pela gestão das mortes dos
moradores de favelas. Entendendo a produção de registros oficias enquanto
elemento central dessa gestão, a análise se constrói a partir da trajetória do-
cumental de um caso específico de execução sumária ocorrido em 2009 em
uma favela da Zona Sul do Rio de Janeiro.
A autora explora os recursos acionados em diferentes documentos que
compõem o inquérito policial e o processo judicial que conformaram o caso
para defender ou contrapor a versão falaciosa de uma suposta troca de tiros
que teria provocado a morte em questão, levando em conta a implicação de
agentes estatais na redação/preenchimento dos papéis, bem como o enga-
jamento dos familiares nos esforços pela releitura dos mesmos como parte
do desvendamento do próprio crime. Dessa maneira, assim como o capítulo
de Fonseca, o de Juliana Farias evidencia como documentos oficiais podem
ser agenciados como instrumentos de disputa e pedidos de reparação ao
Estado por parte das famílias daqueles que sofreram violações perpetradas
por seus agentes ou instituições.
Larissa Nadai e Cilmara Veiga, em “Fazer falar os pedaços de carne:
comparações entre laudos periciais em casos seriais produzidos pelo Insti-
tuto Médico Legal (IML) de Campinas e de Juiz de Fora”, debruçam-se sobre
dois diferentes corpus documentais, colocando-os em comparação: os do-
cumentos oficiais de perícia produzidos pelo IML de Campinas, São Paulo,
em um caso serial de estupro e atentado violento ao pudor, e os exames
cadavéricos fabricados pelo IML de Juiz de Fora, Minas Gerais, em um caso
em série de latrocínio. Especialmente interessadas em explorar os termos e
as formas narrativas convencionadas nesses tipos de documento, as auto-
ras buscam colocar em evidência o saber por meio do qual especialistas do
campo da Medicina Legal “esquadrinham”, “perscrutam” e “fazem falar” os
corpos vivos e mortos que examinam rotineiramente com finalidades peri-
ciais. A partir disso, elas refletem, a um só tempo, tanto sobre os efeitos das
insígnias, assinaturas, carimbos e praxes de escrita sempre precisas e reite-
radamente exibidas pelos documentos analisados, quanto sobre os sentidos
e desdobramentos dos silêncios, ocultamentos, imprecisões e, sobretudo, do
caráter tantas vezes inconclusivo daqueles laudos e exames.
A perspectiva comparativa adotada pelas autoras ajuda a perceber as
especificidades das convenções narrativas acionadas por órgãos de polícia
técnico-científica na gestão de diferentes tipos de crime. Ademais, Nadai

Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos 13


e Veiga exploram a articulação entre duas ordens de materialidade – a dos
corpos e a do crime -, desvendando como a materialidade dos corpos é pro-
duzida nos documentos a partir da lógica de constituição da materialidade
do crime (Lowenkron, 2013). É essa produção de materialidades que faz com
que o corpo examinado por médicos legistas, tanto nas ocorrências de es-
tupro quanto de latrocínio, seja fragmentado em “pedaços de carne”, como
hímens, tórax, abdômen, e tenha a si atribuídos níveis diferenciados de im-
portância a depender do caso em que esteja envolvido. O corpo, assim, é
constituído nos papéis preenchidos no IML e analisados pelas autoras não
como um corpo violentado que sofre (isto é, dotado de subjetividade), mas
como matéria e indício de materialidade de um crime.
Como o leitor notará, em conjunto os estudos aqui reunidos executam,
com nuances, ênfases e estilos específicos, as propostas gerais presentes nos
debates antropológicos mais atuais sobre documentos. Neste sentido, tran-
sitando entre autarquias, delegacias, prisões e instituições médico-legais,
integrando reuniões, diálogos e interações mais ou menos formais, e debru-
çando-se sobre as múltiplas relações estabelecidas entre sujeitos, papéis e
arquivos, os autores dos capítulos propõem-se a pensar antropologicamente
os documentos, e não apenas através deles, explorando sua materialidade,
sua capacidade de associar pessoas ou provocar rupturas, seus efeitos de
ocultamento ou exibição de assimetrias, hierarquias e autoridades, e, ainda,
os afetos, agenciamentos e poderes que eles exercem em determinados con-
textos. Ademais, os experimentos etnográficos apresentados no livro lidam
também com a proposta de pensar a agência não só daqueles que produzem
documentos no âmbito de organizações burocráticas estatais, mas também
daqueles que são objeto das práticas de documentação levadas a cabo nesses
espaços. Por fim, mas não menos importante, a coletânea trata ainda dos
desafios práticos de se enfrentar, não só no curso da pesquisa, mas também
no exercício da escrita etnográfica, o fato de que nos tempos atuais o an-
tropólogo dificilmente é o único personagem das situações forjadas por sua
presença “em campo” que produz registros escritos e zela por seus docu-
mentos, cadernos e demais suportes materiais de informação.

14 Etnografia de documentos
Referências bibliográficas
DAMATTA, Roberto. A mão visível do Estado: notas sobre o significado cultural dos
documentos na sociedade brasileira. Anuário Antropológico/99, Rio de Janeiro,
p.37-67, 2002.

FARIAS, Juliana. Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de fa-


velas no Rio de Janeiro. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia) – Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

FERREIRA, Leticia Carvalho de Mesquita. Dos autos da cova rasa: a identificação de


corpos não-identificados no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio
de Janeiro: FINEP/E-Papers, 2009.

FERREIRA, Leticia Carvalho de Mesquita. “Apenas preencher papel”: reflexões sobre


registros policiais de desaparecimento de pessoa e outros documentos. Mana: Estu-
dos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v.19, n.1, p.39-68, 2013.

FERREIRA, Leticia Carvalho de Mesquita. Formalidades, moralidades e disputas de


papel: a administração de casos de crianças desaparecidas no Rio de Janeiro. Dile-
mas: Revista de Estudos de Conflitos e Controle Social, Rio de Janeiro, v.8, n.2, abr./
maio/jun., 2015.

GRAEBER, David. Dead zones of the imagination. On violence, bureaucracy, and in-
terpretive labor. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v.2, n.2, pp. 105-128, 2012.

GUPTA, Akhil. Red tape: bureaucracy, structural violence and poverty in India.
Durham/Londres: Duke Univerty Press, 2012.

HERZFELD, Michael. The social production of indifference: exploring the symbolic


roots of Western bureaucracy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

HEYMANN, Luciana. Arquivos pessoais em perspectiva etnográfica. In: TRAVANCAS,


Isabel; ROUCHOU, Joelle; HEYMANN, Luciana (orgs.). Arquivos pessoais: reflexões
multidisciplinares e experiências de pesquisa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
p.67-76.

HULL, Matthew. Documents and Bureaucracy. Annual Review of Anthropology, v.41,


p.251-267, 2012.

LATOUR, Bruno. La fabrique du droit: une ethnographie du Conseil d’État. Paris: La


Découverte, 2002.

LOWENKRON, Laura. Da materialidade dos corpos à materialidade do crime: a mate-


rialização da pornografia infantil em investigações policiais. Mana: Estudos de Antro-
pologia Social, Rio de Janeiro, v.19, n.2, p.505-528, 2013.

MITCHELL, Timothy. Society, economy, and the State Effect. In: G. Steinmetz (ed.).
State/Culture: State-Formation after the Cultural Turn. Ithaca, Nova York/Londres:
Cornell University Press, 1999. p. 76-97

Encontros etnográficos com papéis e outros registros burocráticos 15


NAVARO-YASHIN, Yael. Make-believe papers, legal forms and the counterfeit: affec-
tive interactions between documents and people in Britain and Cyprus. Anthropolo-
gical Theory, v.7, p.79-98, 2007.

PADOVANI, Natália Corazza. Confounding Borders and Walls: Documents, letters and
the governance of relationships in São Paulo and Barcelona prisons. Vibrant: Virtual
Brazilian Anthropology, Brasília, v. 10, n. 2, jul.-dez. 2013.

PEIRANO, Marisa. Etnografia, ou a teoria vivida. Revista Ponto Urbe, São Paulo, ano
1, n. 2, 2008.

REIS, Elisa Pereira. Opressão Burocrática: o ponto de vista do cidadão. In: ______.
Processos e escolhas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.

RILES, Annelise. Introduction: In Response. In: RILES, A. (ed.). Documents: artifacts of


modern knowledge. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 2006.

STOLER, Ann Laura. Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial
Common Sense. Princeton: Princeton University Press, 2009.

VIANNA, Adriana. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos


judiciais. In: Castilho, Sérgio Ricardo Rodrigues; Souza Lima, Antônio Carlos; Teixeira,
Carla Costa (orgs.). Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre
burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, Faperj, 2014.

WEBER, Max. Burocracia. In: Ensaios de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1963. p. 229-282.

ZELIZER, Viviana A. Dualidades Perigosas. Mana: Estudos de Antropologia Social, Rio


de Janeiro, v.15, n.1, p.237-256, 2009.

ZELIZER, Viviana A. A negociação da intimidade. Tradução: Daniela Barbosa Henri-


ques. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. (Coleção Sociologia)

16 Etnografia de documentos
CAPÍTULO 1

Perspectivas antropológicas
sobre documentos
Diálogos etnográficos
na trilha dos papéis policiais1
Laura Lowenkron e Letícia Ferreira

Pesquisas antropológicas com documentos, realizadas em variados contex-


tos sociais e institucionais, têm contribuído para problematizar algumas das
concepções clássicas em torno não só do que seja o fazer etnográfico, mas
também das bases sobre as quais se fundamenta a produção da sua autorida-
de. O objetivo deste artigo é discutir, a partir de duas experiências etnográfi-
cas, alguns dilemas, implicações e potencialidades teóricas e metodológicas
de se pensar e pesquisar antropologicamente com documentos. Partimos do
pressuposto de que uma das tarefas atuais da disciplina é repensar a própria
construção de objetos de pesquisa no campo da antropologia, bem como a
eleição dos artefatos com base nos quais são construídas as etnografias.
A noção “pós-moderna” da etnografia como um texto (Clifford e Mar-
cus, 1986) fez com que a antropologia voltasse mais atenção a outros gêne-
ros textuais que haviam sido deixados relativamente de lado (ou passaram
a ser considerados menos importantes) desde que a disciplina se afastou
dos “gabinetes” e conquistou legitimidade e autoridade “científica” através
do trabalho de campo etnográfico malinowskiano. De um lado, “arquivos”
foram tomados como espaços privilegiados para entender as relações entre
governos coloniais e os povos tradicionalmente estudados pelos antropó-
logos (Stoler, 2002, 2009; Souza Lima, 1995). De outro, diferentes modali-
dades de produção documental das sociedades ditas ocidentais passaram a
ser analisadas como artefatos e/ou práticas de conhecimento fundamentais
para compreender os universos etnográficos que os antropólogos há algum

1 Uma versão em inglês deste artigo foi publicada na revista Vibrant, v. 11, n. 2, 2014, p. 75-111.

Perspectivas antropológicas sobre documentos 17


tempo compartilham com outras disciplinas, como a história, a sociologia e
a ciência política (cf. Riles, 2001; Latour e Woolgar, 1997).
Uma vez que os documentos são artefatos paradigmáticos das prá-
ticas de conhecimento modernas (Riles, 2006), que definem tanto a etno-
grafia quanto as práticas de conhecimento “nativas” em certos contextos,
boa parte das atividades dos/as antropólogos/as durante suas pesquisas
de campo etnográficas consiste na leitura de documentos produzidos por
seus interlocutores/as (sobre os quais eles/elas também tomam notas),
como ocorreu em nossas próprias etnografias (Ferreira, 2011; Lowenkron,
2012 e 2014). Como sugere Vianna (2014), o trabalho com documentos, antes
de produzir questões sobre o seu conteúdo e a sua confiabilidade, envolve
perguntar-se sobre o próprio ato de documentar. Nossas recentes experiên-
cias de pesquisa contribuíram para perceber que a análise etnográfica de
documentos em seu espaço social de fabricação, circulação e arquivamento
oferece um olhar privilegiado sobre o ato de documentar, isto é, sobre como
ele é realizado, o que significa e que efeitos produz em diferentes contextos.
A leitura de inquéritos e outros documentos policiais constituiu uma
das atividades privilegiadas da pesquisa etnográfica realizada na Polícia Fe-
deral brasileira por uma das autoras deste artigo, tendo como foco inves-
tigações de crimes de “tráfico de pessoas para fim de exploração sexual”2
(Lowenkron, 2014). Como parte crucial do trabalho policial consiste na do-
cumentação daquilo que é investigado, o interesse que os interlocutores de
pesquisa mostravam pelos documentos tornou-se contagioso (Riles, 2006, p.
8). Além de consultar os inquéritos em sede policial e produzir registros et-
nográficos sobre eles, durante o trabalho de campo foi possível acompanhar
presencialmente a fabricação de algumas de suas peças documentais ela-
boradas por agentes, delegados e escrivães da Polícia Federal ao longo das

2 Este crime é tipificado pelo art. 231 do Código Penal brasileiro: “promover ou facilitar a en-
trada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma
de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Pena – reclusão, de
3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a
pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la
ou alojá-la; § 2º A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos;
II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para
a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge,
companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou
outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV - há emprego de violência,
grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica,
aplica-se também multa” (BRASIL, 1940).

18 Etnografia de documentos
investigações criminais. A leitura e a observação direta da confecção desses
artefatos evidenciaram ainda como aqueles que são regulados e constituídos
por meio desses papéis não são inertes em relação às práticas de documen-
tação estatais.
Já o contato com registros de ocorrência e outros documentos relativos
a casos de “desaparecimento de pessoa” fabricados, colocados em circula-
ção e/ou arquivados em um setor da Polícia Civil do Rio de Janeiro foi, na
pesquisa realizada pela segunda autora do artigo, elemento central da pró-
pria possibilidade de realização do trabalho de campo (Ferreira, 2011; 2013).
Reforçando a lógica cartorial vigente em repartições policiais brasileiras
(Kant de Lima, 1995; Miranda et al., 2010), em um primeiro plano documen-
tos funcionaram como suporte material incontornável para a afirmação de
autoridades e para a concessão de autorizações sem as quais o trabalho de
campo não teria sido possível. Não obstante, em um segundo plano, docu-
mentos tornaram-se o objeto mais fundamental da pesquisa, tanto em razão
da maneira como os inspetores, investigadores e delegados que os fabricam
os encaram, quanto pelo papel crucial que desempenham na administração
policial de casos de “desaparecimento de pessoa” no Rio de Janeiro.
Baseando-se dessas experiências etnográficas para mostrar como os
documentos, encarados em seus contextos de produção, circulação e ar-
quivamento, constituem artefatos etnográficos especialmente rentáveis em
certos contextos de pesquisa, pretendemos contribuir para reflexões mais
amplas acerca não só das dinâmicas, dos efeitos e dos poderes mobilizados
por práticas de documentação, mas também dos desafios que a lida com do-
cumentos em situações de trabalho de campo etnográfico aporta à antropo-
logia e às suas autorrepresentações. Para isso, apresentamos como esses de-
safios apareceram em nossas pesquisas, dialogando com algumas discussões
que têm atravessado debates antropológicos contemporâneos sobre o tema.

Desencontros e reencontros entre antropologia e documentos


Em meados do século passado, Evans-Pritchard (1950) já chamava atenção
para o fato de que uma das mazelas da postura não só a-histórica, mas tam-
bém anti-histórica da antropologia estrutural-funcionalista, que consagrou
a “observação participante” como método privilegiado da disciplina, era o
uso acrítico de fontes documentais. Se esta crítica teve pouca repercussão à
época, atualmente ela parece mais significativa do que nunca (Stoler, 2002,

Perspectivas antropológicas sobre documentos 19


p. 20). Nos últimos anos, diversos antropólogos têm destacado a necessida-
de de ir além da dimensão informacional e instrumental dos documentos,
analisando-os enquanto produtores de conhecimento, relações, efeitos e
afetos (Stoler, 2002 e 2009; Cunha, 2004; Navaro-Yashin, 2007; Gupta, 2012;
Ferreira, 2013) ou, ainda, como artefatos cujas propriedades materiais, es-
téticas e formais bem como a vida social (ou processos sociotécnicos) não
podem mais ser facilmente ignorados (Latour e Woolgar, 1997; Riles, 2006;
Reed, 2006; Hull, 2012b).
Apesar de os documentos terem sido recentemente reabilitados en-
quanto artefatos etnográficos, a relação dos antropólogos com estes obje-
tos continua sendo atravessada por tensões, dúvidas e ansiedades. Não mais
por ameaçar a especificidade das práticas de conhecimento da disciplina,
se acreditarmos que tais dilemas já foram ou deveriam ter sido superados,
mas por produzir novos desafios analíticos. Uma vez que o conhecimento
etnográfico foi historicamente representado como “diverso e mesmo oposto
àquele que resulta da pesquisa documental” (Cunha, 2005, p.36), a tarefa de
etnografar documentos pode parecer ainda estranha e obscura para a maio-
ria dos etnógrafos, em contraste com a suposta autoevidência da expressão
“observação participante”.
A desvalorização epistemológica desses objetos, que retardou o seu es-
crutínio etnográfico, pode ser atribuída a diferentes motivos. Por um lado, a
etnografia documental não garante as mesmas estratégias de autoridade de-
rivadas das certezas (se não de objetividade, ao menos de parcialidade con-
trolada) produzidas pela experiência de encontro e interlocução direta com
todas as pessoas que passam a povoar as narrativas etnográficas. Por outro,
essa prática investigativa requer que o pesquisador dialogue e considere a
agência daqueles que não são imediatamente identificados como sujeitos na
pesquisa: as pessoas documentadas e os próprios papéis ou outros supor-
tes materiais de registros gráficos, textuais, sonoros e/ou audiovisuais. Há
ainda quem considere que a escrita burocrática foi durante muito tempo
negligenciada por constituir uma prática de conhecimento muito similar à
dos próprios antropólogos (Riles, 2006b), por ser tediosa e desprovida de ri-
queza simbólica ou densidade de significado que tornam possível uma descri-
ção etnográfica no sentido geertziano (Graeber, 2012), ou por ser fácil vê-la
como algo que apenas oferece acesso mediado para aquilo que documenta,
negando o papel da mediação (Hull, 2012b).

20 Etnografia de documentos
O modo mais clássico de lidar com documentos é justamente olhar
através deles, e não tanto para eles (Hull, 2012a, p. 253), de modo a produ-
zir narrativas etnográficas sobre cenas, discursos e eventos que não foram
presenciados diretamente pelo pesquisador, isto é, que não foram registra-
dos em primeira mão em seu caderno de campo, mas, sim, já lhe chegaram
previamente documentados por outros (Vianna, 2014). A partir da chamada
“virada histórica” da disciplina nos anos 1980, a ideia de uma etnografia dos/
nos arquivos (Castro e Cunha, 2005; Cunha, 2004 e 2005; Castro, 2008; Zei-
tlyn, 2012), em suas múltiplas modalidades e extensões metafóricas, tornou-
-se cada vez menos exótica e mais frequente.
Emergiram desde então novas estratégias metodológicas para lidar
com os documentos. Como discute Zeitlyn (2012), uma delas é a leitura de
arquivos na contracorrente (against the grain)3, isto é, subvertendo os modos
de entendimento imaginados e pretendidos pelas racionalidades adminis-
trativas que produzem e mantêm tais acervos documentais. Essa postura
epistemológica levou ao desenvolvimento de abordagens críticas e imagina-
tivas de fontes tradicionais. O principal objetivo era escavar vozes subalter-
nas e silenciadas, resgatar ações (ou agência), percepções e pequenos gestos
de resistência daqueles situados à margem dos registros oficiais e, assim,
promover a “insurreição de saberes subjugados” (Foucault, 1980, p. 81).
Mais recentemente, Stoler (2002, 2009) questionou como a maioria dos
estudiosos de arquivos coloniais poderia voltar-se tão rapidamente para lei-
turas na contracorrente (against the grain) sem antes mover-se ao longo da
corrente (along the grain). Segundo a autora, assumir que já conhecemos tais
scripts diminui nossas possibilidades analíticas (Id, 2002, p. 100). Analisando
o arquivo como um artefato cultural, ela busca entender a perspectiva e as
preocupações de seus artífices, conferindo particular atenção às conven-
ções que moldam aquilo que pode ou não ser registrado, as repetições, os
esquecimentos, as diferentes modalidades de não ditos e as hierarquias de
credibilidade que delimitam saberes qualificados e desqualificados.
Ao deslocarem as autorrepresentações antropológicas da etnografia
como “observação participante” ou como escrita para modalidades de leitura,
esses ensinamentos das etnografias dos/nos arquivos permitem ampliar as
possibilidades analíticas de “documentos vivos” consultados durante pesqui-
sas de campo etnográficas em organizações burocráticas contemporâneas.

3 Ver, por exemplo, Comaroff e Comaroff (1991) e Hartman (1997).

Perspectivas antropológicas sobre documentos 21


Como veremos, a combinação destas duas estratégias de leitura (ao longo e
contracorrente) na etnografia dos inquéritos policiais de “tráfico de pessoas
para fim de exploração sexual” busca explicitar as relações de poder que
atravessam a produção desses documentos e são fixadas nesses papéis e, ao
mesmo tempo, fazer da etnografia documental uma maneira de subverter a
finalidade e a lógica deste procedimento administrativo policial. Para isso é
preciso lembrar, como sugere Hull (2012a), que restaurar analiticamente a
visibilidade dos documentos significa tratá-los como mediadores, isto é, coi-
sas que “transformam, traduzem, deslocam, distorcem e modificam o senti-
do ou os elementos que eles supostamente carregam” (Latour, 2005, p. 39).
O exercício de restaurar a visibilidade e o papel de mediação dos do-
cumentos, especialmente daqueles produzidos em organizações burocráti-
cas, tem levado etnografias recentes a explorar a dimensão material des-
ses papéis. Muitas francamente tributárias de trabalhos que promoveram
mudanças importantes na maneira como a antropologia vinha lidando com
objetos (cf. Appadurai, 1986; Miller, 2013), essas etnografias levam às últi-
mas consequências analíticas não só modalidades de leitura, mas também de
porte, manuseio e transação de documentos, e chamam atenção para aquilo
que aproxima papéis, em termos dos efeitos que eles provocam, de outros
artefatos igualmente corriqueiros nestes espaços institucionais. Desta pers-
pectiva, “para muitos gêneros de documentos, no mais das vezes aquilo que
eles representam é menos importante do que a forma como eles organizam
pessoas em torno de si, como mesas e balcões.” (Hull, 2012b, p.134, tradução
nossa) Cabe ao etnógrafo, portanto, encará-los como mais que instrumentos
de registro utilizados por burocratas, e buscar apreender de que forma eles
constituem, hierarquizam, separam e relacionam pessoas.
Exemplo paradigmático desse movimento é a etnografia de Hull em
repartições burocráticas no Paquistão, que explora a centralidade de do-
cumentos e formas de documentação na governança da cidade de Islama-
bad (2012b). Partindo da premissa de que as qualidades materiais de papéis
governamentais não só são mobilizadas na produção de significação, como
também consistem em forças motrizes de processos de outras naturezas, a
monografia analisa, entre outras questões, as relações entre o porte, a as-
sinatura e a fabricação de cópias de documentos e a difusão de responsa-
bilidades individuais de burocratas em prol da produção de certo tipo de
“agência coletiva”. Realizada em contexto distinto, mas partindo de premis-
sa semelhante, o trabalho de Navaro-Yashin (2007), por sua vez, sublinha a

22 Etnografia de documentos
relação mutuamente constitutiva entre a produção, a troca e a transforma-
ção de documentos e os afetos retidos, transportados e experimentados por
aqueles que os manuseiam. No Brasil, trabalhos pioneiros e fundamentais de
Peirano (1986, 2006a, 2006b, 2009) vêm, desde há muito, chamando atenção
para a capacidade de o porte de documentos, em certas situações, fazer o
cidadão em termos performativos. Essa capacidade, como a autora sublinha
em relação a documentos de identidade, deriva em grande parte do efeito
de redundância entre elementos materiais presentes nesses papéis, como a
assinatura, o retrato 3x4 e a impressão digital da pessoa documentada (cf.
Peirano, 2006a, p. 36).
A crescente atenção concedida à materialidade de documentos em
trabalhos etnográficos, nesse sentido, tem lançado luz sobre o fato de que
papéis e formulários, assim como retratos, assinaturas, selos, carimbos e ou-
tros artefatos gráficos4 de uso corrente em organizações burocráticas de-
sempenham funções tanto no controle e na coordenação de procedimentos,
agentes e ações administrativas, quanto na construção de subjetividades,
afetos, pessoas e relações que extrapolam universos organizacionais. Assim,
etnografias atentas para esses artefatos e não só para o que pode ser visto
através deles têm explicitado a necessidade de não concebermos a fabrica-
ção, a circulação e o arquivamento de papéis como processos isomórficos
às estruturas organizacionais em que têm lugar, e iluminado as socialidades
e os enredamentos que esses processos produzem, bem como as fronteiras
que eles têm a capacidade ora de cruzar, ora de desfazer, ora de reafirmar.
Seguir a trilha aberta por tais trabalhos e explorar a materialidade dos
documentos na pesquisa sobre ocorrências policiais de “desaparecimento
de pessoa”5permite conhecer responsabilidades, obrigações e afetos que

4 A expressão “artefato gráfico” foi cunhada por Hull (2012b) para designar os mais diversos
documentos e tipos de registro produzidos em repartições burocráticas, como mapas, cópias,
cartões, assinaturas e listas, chamando atenção, de modo indissociável, tanto para sua dimen-
são material quanto para seu papel como mediadores fundamentais na produção das pessoas e
dos espaços a que se referem.

5 Enquanto título aferido a ocorrências policiais, o “desaparecimento de pessoa” não se con-


funde com o tipo penal internacional “desaparecimento forçado de pessoa”, designado, no senso
comum, como “desaparecimento político”. “Desaparecimento de pessoa”, como discutido mais
adiante neste artigo, é uma categoria administrativa acionada em delegacias de polícia brasilei-
ras àquilo que tem sido chamado, em algumas ocasiões, de “desaparecimento civil” (cf. Oliveira,
2007). Já “desaparecimento forçado de pessoa” é um crime contra a humanidade definido no
âmbito do Tribunal Penal Internacional em abril de 1998, e regulado pelo chamado Estatuto de
Roma. Por “desaparecimento forçado de pessoa” entende-se “a prisão, detenção ou sequestro

Perspectivas antropológicas sobre documentos 23


são produzidos pela fabricação, circulação e arquivamento de registros de
ocorrência e outros papéis reunidos, no âmbito de um setor da Polícia Civil
do Rio de Janeiro, na forma de sindicâncias. Naquele contexto, fronteiras
entre o que seriam responsabilidades da polícia e o que seriam atribuições
de “famílias de pessoas desaparecidas” são tanto produzidas quanto atra-
vessadas e até temporariamente desfeitas pelos papéis que os policiais ma-
nuseiam. Ademais, naquele contexto, documentos, quando recobertos por
determinadas assinaturas e carimbos, funcionam como condições de pos-
sibilidade para o estabelecimento de determinadas socialidades, dentre as
quais se encontra aquela estabelecida entre a própria pesquisadora e seus
interlocutores.
No marco mais amplo dessas discussões teórico-metodológicas e de
seus impactos em pesquisas antropológicas com e sobre arquivos e docu-
mentos, apresentaremos a seguir as razões e a rentabilidade analítica de
nossas escolhas por seguir o papel (Hull, 2012b, p. 22) em ambas as pesquisas
já mencionadas: no estudo conduzido em uma delegacia da Polícia Federal
brasileira, dedicado a compreender as práticas e racionalidades administra-
tivas responsáveis pela construção e gestão do crime de “tráfico de pessoas
para fins de exploração sexual”; e também no estudo realizado em um setor
da Polícia Civil do Rio de Janeiro, interessado em analisar como casos de
“desaparecimento de pessoas” são administrados em repartições policiais
brasileiras. As duas etnografias conferem ainda particular atenção à micro-
política das interações entre documentadores e documentados.

A arte de “reduzir a escrito”: ao longo e contracorrente do


inquérito policial
Como destacam alguns autores, não se pode confundir o inquérito com a
investigação policial (Misse, 2011; Vidal, 2013). Tendo como principal objetivo
a apuração da materialidade (no sentido jurídico do termo) e da autoria de
uma suposta prática criminosa, o inquérito é “uma peça composta de laudos

de pessoas por um estado ou por organização política, ou com a autorização, apoio ou aquies-
cência destes, seguidos da negativa de informar sobre a privação de liberdade ou dar informa-
ção sobre a sorte ou o paradeiro dessas pessoas, com a intenção de deixá-las fora do amparo da
lei por um período prolongado”. (Jardim 2011,p.14). Para uma análise antropológica da incidência
do crime de “desaparecimento forçado de pessoas” no Brasil hoje, que explora inclusive a pos-
sibilidade deste crime permanecer encoberto pela categoria administrativa “desaparecimento
de pessoa”, ver Araújo (2008, 2012).

24 Etnografia de documentos
técnicos, depoimentos tomados em cartório e de um relatório juridicamente
orientado, assinado por um delegado de polícia, bacharel em direito” (Misse,
2011, p. 19). Mas ele é também o instrumento que formaliza e oficializa o tra-
balho investigativo policial6. Como diz o jargão jurídico, “o que não está nos
autos não está no mundo”, de modo que uma investigação não documentada
é como se não tivesse existido.
Se o inquérito é o artefato por meio do qual as ações investigativas e
administrativas da Polícia Federal tornam-se legíveis e reais diante de seus
próprios artífices, para etnografar essas práticas era preciso seguir o papel. A
ideia inicial era abordar estes documentos como meios de entender as racio-
nalidades administrativas responsáveis pela construção e gestão do crime de
“tráfico de pessoas” e de seus respectivos personagens sociais (“traficantes”
e “traficadas”). Isso significava lê-los ao longo da corrente. No entanto, aos
poucos foi possível perceber que o processo de produção, deslocamento e
fixação de concepções oficiais e oficiosas do “tráfico de pessoas” nos in-
quéritos policiais não dependia apenas das performances dos seus múltiplos
documentadores, mas também das pessoas documentadas. Para compreen-
der como as supostas “vítimas” deste crime constroem “espaços de agência”
(Piscitelli, 2013) nas interações, certamente assimétricas, com os aparatos
estatais, era preciso ler os inquéritos simultaneamente na contracorrente.
Nesse sentido, a etnografia dos inquéritos policiais de “tráfico de pes-
soas” dialoga com outros trabalhos que, no lugar da perspectiva da “viti-
mização”, têm sugerido dar voz às experiências das pessoas que participam
dessas mobilidades, possibilitando confrontar suas narrativas com os relatos
hegemônicos sobre elas (Agustín, 2005; Piscitelli, 2008). A partir dessa con-
frontação, as pesquisas mostram que as trajetórias desses migrantes geral-
mente não se enquadram nos mitos e estereótipos disseminados pela mídia
e pelas campanhas antitráfico (Piscitelli, 2008; Teixeira; 2008; Blanchette e
Silva, 2010). Essa sugestão vai ao encontro da percepção policial sobre o fe-
nômeno, tanto que na maior parte do tempo eles caracterizavam o “tráfico
de pessoas” menos em relação à definição legal do Código Penal do que a
partir de um contraste com o que eles supunham que seus interlocutores
“de fora” (inclusive a pesquisadora) esperassem que fosse a realidade desse
crime.

6 Esta formalização das investigações no papel é o que garante ao procurador da República,


ao juiz e ao investigado acompanharem a legalidade dos atos praticados em sede policial (Vidal,
2013, p. 36).

Perspectivas antropológicas sobre documentos 25


Quase todos os policiais federais ouvidos ao longo da pesquisa inicia-
vam a conversa alertando que havia poucos inquéritos sobre este tipo penal,
parecendo não conferir muita relevância à matéria, em parte, por conside-
rarem as investigações infrutíferas. “Às vezes a investigação não dá em nada
porque, simplesmente, não é. Não é porque começou um inquérito que exis-
te um crime”, destaca uma delegada. “Há muito disque-vingança”, dizem os
agentes, afirmando que as pessoas utilizam o serviço de “Disque-denúncia”
da Secretaria de Segurança Pública para prejudicar alguém devido a algum
conflito ou inimizade pessoal. Entretanto, os policiais eram unânimes em
considerar que a maior dificuldade encontrada na solução dos casos de “trá-
fico de pessoas” é que as “vítimas” não se reconhecem como tais, o que reve-
la que as autoridades atribuem a elas a corresponsabilidade pela elucidação
(ou não) do crime. Nas palavras de um dos agentes: “normalmente as vítimas
negam tudo. Só não negam quando se dão muito mal mesmo. Aí elas abrem
o jogo. Mas normalmente negam, porque se dão bem”.
Um delegado diz que não gosta de trabalhar com esse tipo de crime,
pois ninguém quer cooperar com a investigação. Ele diz que a “vítima” é uma
espécie de “partícipe do crime”, isto é, ela é conivente e protege o criminoso.
Esta autoridade policial afirma que quase sempre a “vítima” sabe dos riscos,
escolhe se prostituir e quer ir para o exterior onde tem oportunidade de
ganhar mais. Sendo assim, eles procuram diferenciar a realidade do crime de
“tráfico de pessoas” encontrada nas investigações policiais das representa-
ções idealizadas segundo as quais as “traficadas” seriam enganadas quanto
à finalidade do deslocamento e/ou forçadas a se prostituir, enfatizando o
consentimento e a agência para a desconstrução da ideia de violência, mes-
mo quando reconhecem a “conduta típica”, isto é, definida e criminalizada
na lei penal.
Entretanto, o intuito aqui é menos discutir a agência dessas pessoas em
relação aos projetos migratórios e de mobilidade, como tem sido enfatizado
em algumas pesquisas acadêmicas sobre o tema e como notam os policiais,
do que propor um enfoque analítico diferente e pensar a agência das su-
postas “vítimas” diante dos aparatos administrativos estatais. Isso implica,
por um lado, levar em conta a sugestão foucaultiana de que os sujeitos são
constituídos (“subjetivados”) em meio a uma multiplicidade de correlações
de força através de dinâmicas de sujeição e de resistência, sendo as duas
operações igualmente importantes para pensar a noção de agência (Mah-
mood, 2006). Por outro, é preciso lembrar que, nas burocracias estatais,

26 Etnografia de documentos
documentos são meios privilegiados de dispersão de responsabilidades e de
produção de uma agência coletiva (Hull, 2012b) ou, neste caso, compartilha-
da entre os agentes documentadores e as pessoas documentadas.
Sem perder de vista que a condição assimétrica dessa relação deve ser
levada em conta na análise das performances individuais, a possibilidade de
observação das interações entre os indivíduos e o “Estado” (enquanto apa-
rato administrativo) faz do campo na Polícia Federal um espaço produtivo
para aprofundar essa reflexão a respeito das potencialidades do conceito de
agência, entendida aqui jamais como livre-arbítrio e não necessariamente
como resistência, mas, sim, “num sentido antropológico, como capacidade
de ação, mediada social e culturalmente” (Piscitelli, 2013, p. 22). O que se
pode notar é que, a partir da relativa autoridade que lhes é delegada ao assu-
mirem a condição de “testemunhas” privilegiadas nestes inquéritos policiais,
as supostas “traficadas” manipulam as informações segundo seus próprios
interesses. Com isso, geralmente, resistem ao processo criminalizador/viti-
mizador, pois raramente denunciam ou contribuem para a configuração da
materialidade do delito do qual, em tese, seriam “vítimas”.
Partindo da premissa de que a escrita é uma das atividades mais impor-
tantes das rotinas estatais (Gupta, 2012), a etnografia das práticas policiais de
documentação busca observar como as falas dessas pessoas são “reduzidas a
escrito”7 no inquérito policial, bem como explicitar as estruturas reguladoras
que regem estas formações e deformações discursivas. O chamado “Termo
de declarações” é o principal gênero de escrita burocrática que garante aos
discursos das supostas “vítimas” (convertidas nos autos em “testemunhas”)
“subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente” (Foucault,
2014, p. 159) ao longo do processo de produção e sobreposição documental.
Enunciadas mediante os constrangimentos da chamada “oitiva” policial,
as declarações “reduzidas a termo” são registradas em um documento dota-
do de rigor formal, marcado por convenções narrativas que se repetem e por
uma forma jurídica própria. A conversão da oralidade para a escrita, neste
caso, é constituída pela redução e substituição das respostas dos interro-
gados pelo discurso indireto do interrogador. As perguntas são silenciadas
e sinalizadas apenas pela fórmula genérica “inquirido a respeito dos fatos,
RESPONDEU: QUE...”, situada no início do documento, após a data, o local,

7 A expressão é utilizada no artigo 9º do Código de Processo Penal (Brasil, 1941): “Todas as


peças do inquérito policial serão, num só processado, reduzidas a escrito ou datilografadas e,
neste caso, rubricadas pela autoridade.”

Perspectivas antropológicas sobre documentos 27


a “qualificação”8 completa do declarante e o nome próprio da autoridade
policial que presidiu o ato de inquirição. Ao final, o termo deve ser lido e assi-
nado por todos (declarante, delegado e escrivão), oficializando-o e atestando
a sua confiabilidade.
A leitura dos “Termos de declarações” e de seus desdobramentos ao
longo da corrente dos inquéritos de “tráfico de pessoas para fim de explora-
ção sexual” mostrou como a margem de agência de testemunhas e suspeitos
só é reduzida nos procedimentos de documentação quando suas versões
são confrontadas com a “força social” de outros documentos (Ferreira, 2013),
como as transcrições de escutas telefônicas. A observação presencial de uma
oitiva policial, por sua vez, permitiu acompanhar a arte policial de “reduzir a
termo” em ação e, assim, entender e subverter as formações e deformações
discursivas que essa modalidade de escrita burocrática produz.
A fim de explicitar a micropolítica das interações entre documentado-
res e documentados, serão apresentados, a seguir, a confecção e os agencia-
mentos de alguns documentos de um dos únicos inquéritos consultados no
qual a materialidade e a autoria do crime de “tráfico de pessoas para fim de
exploração sexual” foram de fato configuradas9. O referido procedimento foi
instaurado a partir de uma “carta rogatória” que formalizava um pedido de
cooperação jurídica internacional, noticiando a participação de uma cida-
dã brasileira em um grupo criminoso que promovia a saída de mulheres do
Brasil para exercer a prostituição em Portugal. A maioria dos integrantes da
quadrilha já tinha sido presa e condenada do outro lado do oceano, não pelo
“tráfico de pessoas”, mas pelos crimes de “lenocínio” e “auxílio à imigração
ilegal” – o que revela que as pessoas que aqui eram definidas como “vítimas”,

8 A “qualificação” é o modo formal de identificar as pessoas em atos e documentos jurídicos,


contendo ao menos algumas das seguintes informações: nome completo, sexo, data de nasci-
mento, nacionalidade, naturalidade, estado civil, filiação, grau de instrução, profissão, número
de documentos, telefone, endereço e profissão.

9 Foram consultados, ao todo, 11 dos 14 inquéritos de “tráfico de pessoas para fim de explo-
ração sexual” que estavam em curso na delegacia da Polícia Federal no Rio de Janeiro na qual a
pesquisa foi realizada, que à época reunia a maior quantidade de casos sobre este crime entre
as superintendências regionais do órgão, situadas em cada um dos estados da federação. Em
apenas um inquérito (o analisado) teve indiciamento. Além deste, a materialidade e a autoria de
crime foram configuradas em apenas mais um caso, cujas investigações foram conduzidas pela
Polícia Civil e os criminosos já tinham sido processados e condenados pelos crimes de compe-
tência da Justiça Estadual, como a “exploração sexual de crianças e adolescentes” e o “rufianis-
mo”. Como foram coletadas provas também do “tráfico internacional de pessoas”, uma cópia dos
autos foi encaminhada à Justiça Federal e à Polícia Federal.

28 Etnografia de documentos
lá foram entendidas e tratadas como “migrantes indocumentadas”. Entretan-
to, esta divergência classificatória é silenciada ao longo do inquérito policial,
sem abalar as relações diplomáticas estabelecidas e renovadas pelo tráfego
internacional de documentos oficiais.
A única acusada que vivia no Brasil foi “indiciada”10 na Polícia Federal a
partir das cópias de peças processuais extraídas do inquérito de Portugal e
de um “Termo de declarações” produzido pelo procurador da República que
recebeu o pedido de cooperação jurídica internacional. Interrogada inicial-
mente no Ministério Público Federal, a mulher declarou ser empregada do-
méstica e receber ajuda financeira da filha que vivia no exterior, casada com
um português, cuja remuneração seria proveniente das bebidas consumidas
por clientes que acompanhava na boate em que trabalhava. O documento
registra ainda que a mãe afirmava que a filha não se prostituía, mas não sabia
dizer se na boate havia prostitutas. Garantia também que nunca havia trata-
do com o sogro por telefone qualquer assunto envolvendo a remessa para o
exterior de mulheres brasileiras para fim de prostituição. O termo é, então,
encerrado com a narrativa da cena na qual a suspeita é emocionalmente de-
sestabilizada pelos registros de uma ligação telefônica e com a exibição bu-
rocrática de que o procurador da República cumpriu as formalidades legais:
Após ser confrontada com a transcrição constante nos autos de
ligações telefônicas, demonstrou-se reticente e, orientada pelo
Procurador da República que não era obrigada a responder e que
podia consultar-se com advogado, preferiu dizer que não teve
esta conversa e optar pelo silêncio, dizendo que não iria mais res-
ponder as perguntas que lhe seriam formuladas. Assim, é deter-
minado o encerramento da oitiva e ela é orientada a procurar a
Defensoria Pública da União.

O processo de confecção do “Termo de declarações” de uma


“vítima”/“testemunha” do mesmo inquérito policial foi acompanhado dire-
tamente durante a pesquisa etnográfica na Polícia Federal. Antes de iniciar
a “oitiva”, o delegado analisa rapidamente os autos do inquérito e marca as
páginas que considera mais importantes para auxiliá-lo no ato de inquiri-
ção. A testemunha também comparece munida de documentação. Além da
cópia da intimação policial, trouxe consigo uma pasta com o contrato de
aluguel de um apartamento na cidade em que morou e o diploma do curso

10 O “indiciamento” é o ato de formalização da suspeita no inquérito judicial, geralmente


realizado ao final das investigações. Para uma explicação mais detalhada, ver Vidal (2013).

Perspectivas antropológicas sobre documentos 29


de estética que havia feito em Portugal. Como a materialidade destes papéis
em nada contribuía para a construção (ou desconstrução) da materialidade
do crime, apenas os documentos pessoais de identificação exigidos para a
oficialização da sua presença em sede policial foram examinados e registra-
dos no cabeçalho do “Termo de declarações”.
Convencido pelos autos do inquérito da polícia portuguesa sobre a fi-
nalidade da viagem, o delegado buscava apenas confirmar e documentar
como e por quem a moça havia sido convidada a viajar, bem como extrair
sua confissão sobre a prática da prostituição, condição necessária para ca-
racterizar a materialidade do crime. A testemunha, por sua vez, esforçava-
-se para proteger a própria reputação. Se aos policiais, os efetivos redatores
dos autos, cabe “tornar simultaneamente visíveis e invisíveis – ou audíveis e
inaudíveis – certos relatos” (Vianna, 2014, p. 54), selecionando o que será ou
não registrado no “Termo de declarações”, isso não significa que a pessoa
documentada submeta-se passivamente ao ato oficial de documentação. A
declarante busca, ao contrário, negociar a escolha das palavras e, até certo
ponto, moldar a arquitetura da narrativa a ser fixada no papel. Dessa manei-
ra, o inquérito policial pode ser lido na contracorrente, como um veículo de
suas perspectivas, experiências e aspirações, apesar das evidentes deforma-
ções produzidas ao longo do processo de mediação.
A moça, que há sete anos viajara duas vezes a Portugal para trabalhar
no mesmo estabelecimento comercial, contou que, na primeira vez, foi a
cunhada quem lhe contou que uma amiga havia ganhado muito dinheiro em
um “bar de alterne”, recebendo 50% do valor das bebidas oferecidas e consu-
midas pelos clientes. Elas decidiram partir juntas porque era “só pra beber”
e foram, então, apresentadas a uma senhora (por quem ela ainda nutria um
evidente sentimento de raiva), responsável por angariar mulheres no Brasil e
mediar todo o processo migratório (retirada de passaporte, compra da pas-
sagem e contato com o clube no exterior). O delegado a interrompe, dizendo
que se não colocar no papel não serve. Então, lê em voz alta tudo que foi
registrado, pedindo que a moça confirmasse a história e continuasse mais
devagar.
Explicitando uma suspeita que poderia ter sido previamente descarta-
da caso tivesse lido os autos com mais atenção, o delegado pergunta se na
boate tinha show de striptease ou quartos para encontro sexual. Ela nega:
“Nem pensar, nada disso! Era um bar”, e afirma que os clientes iam ao “clube”
apenas para beber e conversar. “Mas português é burro mesmo de ir à boate

30 Etnografia de documentos
pagar mais caro pela bebida só para conversar!”, comenta o policial, em tom
de ironia. Ela corrige o policial, “não é boate, é clube”, e retruca que no Brasil
pode ser diferente, mas que os homens portugueses iam lá atrás de compa-
nhia, por “carência”, tanto que depois marcavam de almoçar, jantar, até casar
com a menina. Conta que a maioria das brasileiras casou com portugueses lá,
inclusive a cunhada, que estaria “muito bem-casada”, e ela mesma se “ajun-
tou” durante quatro anos com um homem que conheceu no “clube de alter-
ne” em Portugal. O diálogo foi traduzido pela autoridade policial e “reduzida
a termo” pelo escrivão da seguinte maneira:
QUE o trabalho de “alternadeira” consistia em incentivar clientes
a consumirem bebidas alcoólicas e que ganhariam 50% sobre o
valor consumido, sendo que os outros 50% ficariam com a boate;
QUE no local havia somente música ambiente e venda de bebidas
alcoólicas, não havendo shows de striptease e tampouco local
para realização de encontros sexuais, sendo realmente um bar
(grifos meus).

Apesar do tom um pouco ansioso e apressado, a mulher parecia firme e


segura sobre o que queria ou não dizer aos policiais, tentando apresentar em
seus próprios detalhes a dinâmica das relações. Na primeira vez viajou por
iniciativa própria e pagou sua passagem. Assim, caso não gostasse, poderia
ir embora. Na segunda vez, em princípio não queria ir, mas a angariadora
insistiu para que viajasse. Nesta ocasião, aceitou o empréstimo do valor da
passagem, mas em um mês quitou a dívida, pois era esperta e não bebia,
fingia, evitando perder o controle para não ser “enrolada” no pagamento,
como ocorria com as mulheres que ficavam bêbadas. A primeira parte das
informações foi registrada, mas as explicações mais minuciosas sobre a pos-
sibilidade de trapaça e sua estratégia de resistência foram ignoradas. Isso
não significa que o delegado quisesse apagar a agência das ditas “mulheres
traficadas”, pelo contrário. Ele faz questão de sublinhar o seu consentimento,
mesmo que na lei este seja irrelevante para a configuração do delito de “trá-
fico de pessoas”. Contrastando o caso concreto com aquilo que corresponde
às imagens idealizadas deste crime, o policial registra:
QUE em todo o tempo que trabalhou nessa boate o fez por von-
tade própria, não tendo ficado presa em algum local contrário a
sua vontade; QUE não teve seu passaporte retido por qualquer
pessoa, pois o mesmo ficava na sua posse durante todo o tempo
em que esteve em Portugal.

Perspectivas antropológicas sobre documentos 31


A retenção do passaporte para a cobrança de dívidas, apesar de tam-
bém não ser um requisito legal para a caracterização formal do delito de
“tráfico de pessoas”, é uma das imagens mais comuns nas representações
políticas e midiáticas deste fenômeno, simbolizando o cerceamento da liber-
dade. Vale notar, contudo, que para migrantes em situação irregular, como
muitas das “vítimas” do crime em questão, o porte do passaporte com visto
vencido ou errado (de turista e não de trabalho) não impede de ser visto
e tratado como “indocumentado”. Desprovido, depois de poucos meses, de
seu suposto poder de fazer performativamente o cidadão (Peirano, 2006a),
este documento é convertido, além das fronteiras nacionais, em um “objeto
efêmero” (Navaro-Yashin, 2007), cuja força da materialidade subsiste apenas
enquanto fetiche do Estado-nação.
A moça interrogada na Polícia Federal conta que os gestores do clube
cobravam mais ou menos o dobro do valor da passagem, alegando que era
para cobrir os custos com outras despesas, como alimentação e a mora-
dia gratuita nas primeiras semanas. O delegado, então, a interrompe: “Não
cobravam caso o horário de chegada ao clube fosse respeitado?” Ela respon-
de que não lembra direito. O delegado dita para o escrivão que ela lembra
vagamente que tinha que chegar até às 18h. Ela diz que não lembra disso.
“Por isso eu falei ‘lembra vagamente’”, justifica o policial, lendo em seguida
nos autos o trecho da transcrição de uma interceptação telefônica que con-
firmava esta informação:
“... se eu cumprir o horário assim de chegar seis horas eu não
pago nem residencial, a moradia, nem a comida, a janta”. “Eu te-
nho que chegar seis horas, seis e meia na boate, pra mim (sic) não
pagar moradia e comida, entendeu?” (funcionária recém-chegada
explicando à interlocutora no Brasil como funciona o regime de
trabalho no clube em Portugal).

Ainda não satisfeito, o delegado faz uma última tentativa de extrair da


suposta “vítima” uma confissão capaz de configurar a materialidade do cri-
me, dizendo que todos os clientes ouvidos nas investigações em Portugal di-
ziam que as meninas do “clube” se prostituíam, inclusive o seu ex-namorado.
“Se elas faziam, era quando saíam com os clientes, quando iam almoçar e
jantar com eles ou acompanhá-los num shopping e, depois, não sei, talvez
pudessem ir a um motel... Mas eu nunca fiz e não soube.”, defende-se a tes-
temunha, diante das insinuações. Insistindo no seu argumento, ela diz: “Você
tá entendendo? A mulher tinha que sair até conquistar e casar com o cliente,

32 Etnografia de documentos
foi como eu conheci o meu namorado e fiquei com ele.” Complementado o
que a moça dizia com outras informações registradas nos autos (em “Ter-
mos de declarações” de outras testemunhas, transcrições de interceptações
telefônicas e relatórios da polícia e da justiça portuguesas), suas explicações
foram assim “reduzidas a termo”:
QUE sabe de meninas que trabalharam no Club que se prosti-
tuíram, porém isso era feito durante o dia e fora do Club; QUE
muitas delas namoraram e até mesmo se casaram com homens
que conheceram no local; QUE a própria DECLARANTE chegou
a namorar um português, por quase 4 anos, cujos dados qualifi-
cativos encontram-se às fls. 580/581 dos autos; QUE inclusive
chegou a morar com este cidadão português, em Portugal

Se, por um lado, a resposta da “declarante” denota um esforço de apa-


gar a dimensão mais mercantilizada dos intercâmbios sexuais (a prostitui-
ção), que foi reintroduzida pelo delegado na decodificação de seu discurso
fixada no papel, por outro, revela que as relações entre as funcionárias da
boate e os clientes nem sempre cabiam na caixinha da “prostituição”, se-
gundo suas próprias perspectivas, pois as relações estabelecidas entre mu-
lheres e homens que circulavam nesses espaços incluíam uma diversidade
e um continuum de intercâmbios entre sexo, afetos e dinheiro (Piscitelli et
al., 2011), que iam desde trocas comerciais em torno do consumo de bebidas
alcoólicas dentro do clube, passando por “saídas” (que podiam envolver pro-
gramas propriamente ditos ou encontros menos formais e mercantilizados,
como um convite para jantar), até namoros e casamentos.
Antes de assinar o documento, a declarante lê tudo com muita atenção.
Corrige uma palavra escrita errado (“alterne”) e o valor cobrado pela passa-
gem. Confirma que está tudo “certinho”. O escrivão reimprime o “Termo” e o
entrega para ela assinar. Ela relê todo o conteúdo e reclama da palavra “boa-
te”. O escrivão argumenta que, no Brasil, “boate” é um lugar onde se vendem
bebidas... Ela diz “tudo bem” e, então, finalmente assina e recebe uma cópia
do “Termo de declarações”. Antes de sair, pergunta se vai ser chamada de
novo. O escrivão diz que dificilmente, “pelo menos na polícia, não”.
Retomando a analogia de Ginzburg (1991) entre inquisidores e antropó-
logos, a leitura destas peças documentais ao longo e na contracorrente do in-
quérito policial possibilita não só olhar criticamente para esta forma de do-
cumentação e gestão estatal, mas também repensar artifícios similares das
práticas de conhecimento antropológicas, tanto que as mesmas operações

Perspectivas antropológicas sobre documentos 33


analíticas poderiam ser feitas com o relato da antropóloga que presenciou
e registrou silenciosamente esta interação. Ademais, a análise buscou cha-
mar atenção para o fato de que nem o caráter “inquisitorial” das oitivas em
sede policial nem as remodelações produzidas no processo de mediação que
converte as falas das testemunhas em “Termo de declarações” fazem das
pessoas documentadas objetos inertes das práticas administrativas de docu-
mentação. Não é à toa que raramente estes procedimentos levam as teste-
munhas a denunciarem o crime do qual elas supostamente seriam “vítimas”.
Para concluir este relato é importante destacar que, diferentemente do
caso analisado, a maioria dos inquéritos de “tráfico de pessoas” instaura-
dos nesta delegacia da Polícia Federal levava menos à construção do que
à desconstrução da materialidade do crime, fazendo com que, em vez de
se desdobrarem em uma denúncia criminal e num processo judicial, eles
geralmente acabem sendo arquivados no Ministério Público Federal. Entre-
tanto, considerando que a estatística é um dos principais gêneros narrati-
vos e administrativos estatais (Gupta, 2012, p. 153-154), ao nos deslocarmos
da dimensão qualitativa para os efeitos quantitativos destes documentos, é
possível notar que o resultado supostamente pouco expressivo destes in-
quéritos não significa que eles “não dessem em nada”, como costumavam
dizer os policiais. Nos relatórios oficiais sobre o fenômeno, o número de in-
quéritos é mais importante do que seus conteúdos, servindo de suporte para
a formulação de políticas públicas. Assim, a heterogeneidade e os “detalhes
confusos dos casos são substituídos pela factualidade precisa dos números”
(Ibid, p. 156, tradução nossa), que consistem no principal critério para medir
a produtividade e a efetividade desta e outras políticas criminais.
Nesse sentido, os desdobramentos institucionais destes inquéritos po-
liciais, se avaliados para além de seus aspectos penais, explicitam como o
governo burocrático é exercido não só pela articulação entre saber e poder
(Foucault, 1980), mas também pela produção cotidiana da ignorância e até
da estupidez, nos termos de Graeber (2012). A força política da ignorância
pode ser percebida na maneira pela qual os chamados “dados quantitativos”
são utilizados nos níveis mais elevados da hierarquia administrativa esta-
tal, responsáveis pela elaboração de relatórios nacionais e pela interlocução
com agências governamentais supranacionais. No contexto brasileiro, o bai-
xo número de inquéritos policiais de “tráfico de pessoas”, associado à sua
baixa “produtividade” em termos de condenações criminais, é convertido em
estatísticas incertas e em políticas de enfrentamento que se reproduzem e

34 Etnografia de documentos
se autolegitimam menos a partir do que é de fato documentado pelos órgãos
estatais que atuam na linha de frente operacional de combate a este crime
(como a polícia), e mais pela proclamada necessidade de aprimorar a regula-
ção daquilo que supõe-se não estar sendo devidamente documentado.

Dentro e fora das gavetas: relações, sentimentos e


compromissos no papel
Se, como chamamos atenção em relação ao inquérito policial, não se pode
confundir este artefato documental com os procedimentos da investigação
propriamente dita, o mesmo não pode ser afirmado em relação a documen-
tos produzidos diante de casos de “desaparecimento de pessoa” registrados
em repartições de Polícia Civil do Rio de Janeiro. Nas delegacias do estado,
todo caso de “desaparecimento” é objeto de uma “Verificação de Procedên-
cia de Informação” (VPI), que consiste em um conjunto documental de ca-
ráter administrativo, dotado de status distinto do inquérito. Embora designe
documentos, a “verificação da procedência de informações” foi inicialmen-
te concebida e regulamentada no Código Penal brasileiro como uma etapa
preliminar de toda investigação policial, que deve anteceder e determinar a
instauração (ou não) de um inquérito. No cotidiano das delegacias, contudo,
a expressão designativa dessa etapa da investigação passou a denominar um
conjunto de papéis, estabelecendo, na prática, a coincidência entre procedi-
mentos investigativos e documentos (cf. Eilbaum, 2012).11
VPIs são instauradas não só diante de casos de “desaparecimento”, mas
também das mais variadas ocorrências registradas em delegacias. A coin-
cidência entre procedimentos e documentos implícita em seu nome é re-
cuperada aqui, contudo, para introduzir as razões e os efeitos da opção por
lidar com documentos em uma pesquisa voltada especificamente para ca-
sos de “desaparecimento”. O objetivo central da pesquisa era compreender,
por meio de trabalho de campo etnográfico, como casos classificados como
“desaparecimento” são administrados em repartições policiais brasileiras,
apreendendo tanto as práticas quanto as representações sobre esse tipo de

11 Para citar as exatas palavras de Eilbaum (2012), “a sigla VPI provém do §3º do artigo 5º do
Código de Processo Penal Brasileiro. Refere-se a que quando uma infração penal é comunicada
à polícia, esta deve, uma vez verificada a procedência das informações, instaurar um inquérito
policial. A partir do ato de verificar as informações, a polícia passou a criar uma peça adminis-
trativa burocrática própria, chamada VPI.” (2012, p.414)

Perspectivas antropológicas sobre documentos 35


ocorrência vigentes em delegacias. Inicialmente, não havia opção definida
pelo uso de documentos como artefatos dos quais a etnografia seria cons-
truída. Desde as negociações que tornaram a pesquisa possível, porém, a lida
com papéis tornou-se imperativo, uma vez que naquele contexto processos
e documentos mantêm entre si relações estreitas e definitivas. Embora bas-
tante reveladora, a relação de coincidência implícita na sigla VPI é apenas
uma delas.
“Desaparecimento de pessoas” é, dentre tantas outras, uma categoria
utilizada em delegacias de Polícia Civil brasileiras para intitular um tipo es-
pecífico de ocorrência. Casos de adultos que deixam suas casas, trabalhos e
rotinas sem informar seu paradeiro; episódios de calamidade pública, intem-
péries e desastres naturais cujas vítimas não são localizadas; crianças e ado-
lescentes que fogem de casa, de abrigos ou de instituições de cumprimento
de medidas socioeducativas; idosos ou doentes mentais que se perdem nas
cidades em que vivem. Entre tantos outros dramas, são episódios, tramas
e personagens como estes que constituem e protagonizam os enredos de
ocorrências intituladas “desaparecimento de pessoa”, registradas e investi-
gadas em VPIs. Ocorrências de “desaparecimento” são parte do universo dos
chamados “fatos atípicos” registrados em delegacias: eventos que não cor-
respondem a tipos penais previstos na lei brasileira e, portanto, não consti-
tuem crimes (cf. Paes, 2008, p.173).
Reflexões etnográficas sobre o campo da segurança pública e da justiça
criminal no Brasil há muito demonstram que policiais hierarquizam as ocor-
rências com as quais lidam em seu cotidiano, somando às categorias formais
que utilizam, como “ocorrência”, “desaparecimento de pessoa” e “fato atípi-
co”, uma série de classificações informais, rótulos e estereótipos (cf. Kant de
Lima, 1995; Kant de Lima, Pires e Eilbaum, 2008; Miranda et al., 2010). Uma
dessas classificações informais é a que separa a chamada “feijoada”, conjun-
to de ocorrências consideradas pouco relevantes, como casos de ameaça,
conflito conjugal e furto sem prova, dos ditos “crimes de verdade”, que se-
riam os homicídios, sequestros e casos de roubo, por exemplo.12 Os objetivos

12 A interpretação já consolidada para essas hierarquizações, desenvolvida em trabalhos de


referência no campo dos estudos antropológicos sobre segurança pública (cf. Kant de Lima,
1995; Kant de Lima, Pires e Eilbam, 2008; Miranda et al., 2010), é a de que a autoridade policial
se constitui, no cotidiano, através das formas pelas quais os agentes não só hierarquizam, mas
também criminalizam (ou não) os eventos com que têm que lidar. Nos termos de Kant de Lima,
Pires e Eilbaum (2008), nas delegacias de polícia “os casos de furtos sem provas, ameaças, con-
flitos conjugais, entre outros, são filtrados, bicados, evitados. É que os casos ‘de verdade’, de

36 Etnografia de documentos
iniciais da pesquisa incluíam o interesse em entender o lugar ocupado por
ocorrências de “desaparecimento” nas classificações informais acionadas
por policiais.
Para abordar essa questão etnograficamente, o caminho tomado foi
buscar acesso a um setor daPolícia Civil do Rio de Janeiro especializado em
casos de “desaparecimento”: o Setor de Descoberta de Paradeiros (SDP) da
atual Divisão de Homicídios da capital. Em uma primeira visita ao SDP a pes-
quisadora foi recebida pelo então chefe interino do setor, inspetor Fernando,
e rapidamente instruída a solicitar formalmente à Chefia de Polícia Civil do
Rio de Janeiro uma autorização para fazer o estudo. A instrução foi seguida
à risca e também rapidamente, mas o documento só chegou à Chefia depois
de percorrer diferentes setores da Polícia Civil e receber mais de uma deze-
na de carimbos e pequenos manuscritos em suas margens até, finalmente,
ter inscrita em seu verso a curta frase que, pela negativa, permitiu a rea-
lização do trabalho: “Nada opor a pretensão acadêmica no que se refere à
pesquisa.”A necessidade não só de um papel, mas de um papel que circulasse
por múltiplos setores de uma organização em um ritmo alheio à vontade da
solicitante, colocou a antropóloga em contato com aquilo que é entendido
no Brasil como a opressora materialização dos ideais de formalismo, impes-
soalidade e anonimato vigentes em burocracias: a incontornável necessida-
de de registros, papéis timbrados e assinaturas para dar continuidade aos
mais variados processos e obter os mais diversos direitos (cf. Reis, 1998 e
DaMatta, 2002). Ademais, a necessidade da autorização explicitou também
um aspecto-chave do funcionamento de organizações burocráticas: a impo-
sição tanto da incerteza quanto da espera como um eficaz recurso de poder
(cf. Hoag, 2011, p.86).
Além disso, a leitura da curta frase que enfim autorizou a condução da
pesquisa apresentou à antropóloga “um fato etnográfico mesmo antes de
chegar ao ‘campo’” (Peirano, 2009, p.54). Isto porque ler documentos tornou-
-se não só uma atividade rotineira, como também um dado envolvente do
trabalho de campo que então se iniciou. Embora a solicitação respondida
com aquela frase tenha sido depositada em uma gaveta do SDP, de onde
foi retirada uma única vez para ser checada, outros papéis, organizados na
forma de VPIs, foram cotidianamente retirados de gavetas e sistematica-
mente lidos, transcritos e manuseados pela pesquisadora. Esses atos, ainda

‘repercussão’, os que têm relevância, são os de homicídio, sequestro, roubos de cargas, tráfico
de drogas, entre outros.” (p.166)

Perspectivas antropológicas sobre documentos 37


que muito semelhantes ao que os próprios policiais faziam em seu cotidiano,
eram encarados pelo inspetor Fernando e por seus colegas como tarefas
quase opostas ao que poderia ser visto ali pela antropóloga, caso ela se dedi-
casse a observar o dia a dia do setor.
Já na negociação inicial entre a pesquisadora e os policiais visando de-
finir uma rotina para o trabalho de campo, “observação” e “lida com docu-
mentos” lhe foram apresentadas como opções contrárias em termos dos
efeitos que poderiam provocar no dia a dia do SDP. Imediatamente após a
pesquisadora afirmar que pretendia “observar o cotidiano do setor e con-
versar com os policiais”, o inspetor lhe advertiu: “Essa palavra ‘observar’ vai
te causar problema.” Segundo Fernando, conversar com policiais e observar
seu trabalho necessariamente conduziria a pesquisadora a uma encruzilha-
da: ou eles contariam o que fazem e o que devem fazer de forma idealiza-
da, e ela escreveria um trabalho “bonito, mas irreal”, ou ela escreveria o que
de fato acontece em uma repartição policial, produzindo um trabalho “real”,
mas despertaria toda a animosidade dos policiais. Foi então Fernando su-
geriu uma “ótima alternativa”, nas palavras dele: que a antropóloga voltasse
sua atenção para os papéis recebidos, produzidos e guardados nas gavetas
e armários do SDP, chamados por ele e seus colegas de “nossos arquivos”. A
pesquisa com documentos, disse Fernando, seria “mais fácil”.
Ao falar da pesquisa com documentos como uma “ótima alternativa”,
“mais fácil” porque dissociada do que seria “real” no dia a dia do SDP, o inspe-
tor Fernando expressou uma ideologia gráfica (cf. Hull, 2012b) recorrente en-
tre burocratas e outros documentadores: esses agentes, “tanto quanto cien-
tistas, afirmam representar, se engajar ou produzir realidades ‘no mundo’ de
modo independente dos processos de produção de documentos” (Ib, 2012b,
p.5). Para Fernando, afinal, enquanto estivesse lidando com os documentos
produzidos e manuseados por ele e seus colegas, a antropóloga não estaria
observando o que eles “realmente” fazem. O que importa destacar aqui, não
obstante, é que se essa ideologia gráfica se faz presente entre os mais diver-
sos documentadores, no caso específico dos policiais do SDP ela é reforçada
por duas características dos papéis específicos com os quais lidam: primeiro,
seu status de procedimentos administrativos e a desimportância que daí de-
corre; e, segundo, a incongruência entre elementos materiais e convenções
narrativas presentes nesses papéis e os enredos dos casos neles registrados.
As VPIs específicas que circulam no SDP são instauradas em delega-
cias da cidade do Rio de Janeiro, que recebem comunicações de casos de

38 Etnografia de documentos
“desaparecimento” diretamente de pessoas classificadas por policiais, mui-
tas vezes independentemente de vínculos factuais, como “famílias de pes-
soas desaparecidas”. Tempos depois de efetuados seus primeiros registros
nas delegacias, as VPIs são encaminhadas ao SDP para investigações espe-
cializadas13. Diferente de inquéritos policiais, como já sugerido, as VPIs são
procedimentos administrativos instaurados diante de ocorrências não cri-
minais. O ponto central, porém, não é a natureza distinta das VPIs em com-
paração aos inquéritos, e sim a diferença de status atribuída pelos policiais
às VPIs e aos inquéritos e, ainda, a menor importância atribuída às VPIs de
“desaparecimento de pessoa” em relação a outras. Reproduzindo a hierar-
quia implícita na separação entre “crimes de verdade” e “feijoada”, policiais
entendem que inquéritos são documentos propriamente policiais e, por isso,
dotados de notória relevância, ao passo que VPIs são, em suas palavras, “só
procedimentos administrativos”, desimportantes, vistos como incapazes de
revelar a “realidade” do trabalho policial e, por isso mesmo, passíveis de ser
tocados, lidos e transcritos até mesmo por uma pesquisadora.14
Não obstante, no heterogêneo universo das VPIs, policiais entendem
que aquelas instauradas diante de casos de “desaparecimento” são ainda me-
nos importantes do que as demais. Acionando outra classificação informal
que ora se soma, ora se sobrepõe à separação entre “crimes de verdade” e
“feijoada”, os policiais do SDP frequentemente afirmam que casos de “desa-
parecimento” são “problemas de família”, em oposição ao que seriam “pro-
blemas de polícia”. Enquanto homicídios, sequestros e roubos, entre outros
crimes, seriam “problemas de polícia” que demandam operações de rua, in-
vestigações em equipe e outras atividades entendidas como parte do que
chamam de “trabalho policial”, casos de “desaparecimento” são, da ótica dos

13 Como detalhado na tese (Ferreira, 2011) e em artigo posterior (Ferreira, 2013) resultan-
te da pesquisa, o SDP tem por atribuição investigar casos de “desaparecimento” registrados
em um conjunto específico de delegacias comuns (da 1ª DP à 44ª DP) da capital do estado do
Rio de Janeiro. As delegacias que realizam os primeiros registros desses casos têm quinze dias
para levar a cabo investigações e dar-lhes desfecho. É depois de extinto esse prazo que, caso
as investigações não tenham permitido solucioná-los, centraliza-se no SDP a competência e
a responsabilidade por todos os casos de “desaparecimento” registrados naquelas DPs (Rio de
Janeiro 1991).

14 Se por um lado o status atribuído a VPIs é não só distinto, mas também inferior ao dos in-
quéritos policiais, a etnografia de Kant de Lima (1995, p.68-69) revela que esses procedimentos
administrativos oferecem uma margem maior de autonomia a policiais do que os inquéritos,
uma vez que seu arquivamento não depende de autorização de um juiz ou promotor, e sim do
arbítrio de um delegado.

Perspectivas antropológicas sobre documentos 39


agentes do setor, “problemas de família” que não deveriam ficar a cargo de
repartições policiais. Diante desses casos, dizem os policiais, eles têm pouco
a fazer a não ser “preencher papel” (cf. Ferreira, 2013) e atender às ditas “fa-
mílias de pessoas desaparecidas”, executando um tipo de serviço que classi-
ficam como “trabalho de assistência social”.15
O inspetor Fernando costuma fundamentar o uso de classificações in-
formais como “problemas de família” e “trabalho de assistência social” na-
quele que, como apontado acima, é um dos principais gêneros narrativos e
administrativos estatais: as estatísticas oficiais, nesse caso produzidas pelo
Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro. Há alguns anos o ISP
tem afirmado, com base em dados quantitativos, que a maior parte dos casos
de “desaparecimento” registrados em delegacias do estado tem como desfe-
cho o retorno dos desaparecidos a suas casas ou ao menos a descoberta de
seus paradeiros.16 Para Fernando, os tais dados comprovam o que ele vê em
seu cotidiano: que a maioria das ocorrências consiste em conflitos familia-
res que redundam em episódios de fuga do lar, separações entre casais ou
decisões explícitas tomadas por uma das partes em conflito de deixar a casa
em que vivia. Esses conflitos aportariam em repartições policiais de forma
equivocada, restando a policiais como ele e seus colegas de setor “apenas
preencher papel” – não qualquer papel, mas sim documentos particularmen-
te desimportantes – e aguardar por sua solução. Não obstante, para Fer-
nando esses números também fazem com que o trabalho do SDP seja “uma
ilusão”: enquanto ele e seus colegas “apenas preenchem papel”, a maior parte
dos casos são solucionados, sendo assim contabilizados e, portanto, permi-
tindo o uso, em níveis mais elevados da hierarquia administrativa do estado,
de cifras que sugerem que o SDP é um eficiente serviço de localização de

15 De forma pioneira, a pesquisa de Oliveira (2007) também tratou desses questionamentos


e reflexões feitos por policiais quanto a suas atribuições e responsabilidades diante de casos de
“desaparecimento de pessoa”.

16 Em dezembro de 2009, o Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP), autar-


quia estadual dedicada à pesquisa e à capacitação de servidores da área de segurança pública,
divulgou um estudo pioneiro sobre casos de desaparecimento de pessoa. Intitulado “Pesquisa
de Desaparecidos”, o estudo, que tem sido atualizado periodicamente desde então, teve como
objetivo mapear os casos ocorridos no estado para identificar, por um lado, o perfil das pessoas
desaparecidas, por outro, as circunstâncias e as possíveis causas de seus desaparecimentos.
Dentre os resultados da pesquisa, destaca-se um dado frequentemente evocado no SDP: da
amostra de casos analisados tanto no primeiro estudo, quanto em suas atualizações, mais de
70% tiveram como desfecho o retorno dos desaparecidos às suas casas ou ao menos sua locali-
zação (cf. ISP, 2009).

40 Etnografia de documentos
desaparecidos. O que os números não apontam, contudo, é que a solução de
muitos casos se dá porque os desaparecidos retornam voluntariamente para
suas casas, e não em função de investigações bem-sucedidas.
Acompanha essa “ilusão” produzida por dados quantitativos e a desim-
portância atribuída aos papéis em que os casos são registrados, ainda, uma
clara incongruência entre elementos materiais dos documentos que com-
põem as VPIs e os enredos dos “desaparecimentos de pessoa” neles regis-
trados. Essa incongruência faz somar à inferioridade das VPIs a ideia de que
elas são peças documentais ineficazes em termos investigativos, reforçando
o caráter “ilusório” do trabalho do SDP, além de redundarem tanto na pro-
dução de registros vagos e imprecisos sobre os casos, quanto no recurso de
muitos policiais por deixar campos vazios ou preenchê-los com formas nar-
rativas como “ignorado”, “desconhecido” ou “não sabe”, entre outras.
Registros de ocorrência, ofícios, relatórios ou termos de declaração,
entre outros papéis incluídos em VPIs, trazem impressos, além de inscri-
ções e insígnias da Polícia Civil do Rio de Janeiro e/ou das delegacias e se-
tores em que são confeccionados, categorias, campos para preenchimento
de informações e convenções narrativas que se repetem de modo exaustivo.
Categorias como “autor”, “vítima”, “testemunha”, “local do fato”, “data e hora
do fato” e “bens envolvidos”, por exemplo, aparecem no corpo de registros
de ocorrência, orientando o trabalho de todo policial que venha a preencher
esse documento diante de um caso – seja ele de “desaparecimento” ou não.
Também em termos de declarações, ofícios, despachos e mandados de in-
timação, assim como em alguns relatórios, parte dessas categorias aparece
para preenchimento, justapostas a campos onde devem necessariamente ser
registrados dados sobre a “vítima”, como “nome”, “filiação”, “profissão”, “cor”
e “idade”. Se tais categorias aparecem de modo repetitivo e até redundante
nos documentos, ao mesmo tempo não há espaço destinado nos papéis nem
para que retratos dos envolvidos nas ocorrências sejam anexados, nem para
que eles sejam descritos fisicamente para além da “cor” atribuída à sua pele.
A incontornável presença de tais categorias e campos para preenchi-
mento nos documentos, bem como a ausência de espaços para retratos e
descrições físicas dos envolvidos nos casos, são elementos materiais das VPIs
que se revelam incompatíveis com enredos de “desaparecimento de pes-
soa”. Casos de “desaparecimento” não são crimes e, portanto, não há como
se falar em “autores”, “vítimas” e “testemunhas”, ao menos não com os sen-
tidos carregados por essas categorias em ocorrências criminais. Ademais,

Perspectivas antropológicas sobre documentos 41


o “desaparecimento” de uma pessoa não pode ser narrativamente tratado
como um “fato” que se deu em determinado “local”, “data e hora” e diante de
determinadas pessoas. O que se pode afirmar sobre um “desaparecimento”,
ao contrário, é apenas o local em que a pessoa “desaparecida” foi vista pela
última vez por outras que assim passaram a considerá-la a partir de um mo-
mento ou de um processo que pode não ter qualquer relação com eventos
marcados no tempo e no espaço.
Em função disso, retratos 3x4 e outras fotografias de pessoas conside-
radas “desaparecidas”, artefatos gráficos que costumam ser levados por suas
“famílias” às delegacias em que comunicam os casos, são frequentemente
coladas, de forma ao mesmo tempo improvisada e já padronizada, nos can-
tos de papéis incluídos nas VPIs. Na maior parte dos casos, isso é feito no
topo superior direito dos registros de ocorrência, onde não há insígnias e
inscrições que seriam invisibilizadas pelas imagens. Já descrições físicas dos
“desaparecidos”, incluindo informações sobre as roupas que vestiam quando
foram vistos pela última vez, traços marcantes de suas fisionomias e marcas
ou tatuagens que eventualmente possuam, são registradas em campos des-
tinados não para registros sobre pessoas, e sim para a descrição da chamada
“dinâmica do fato”.
Como Paes (2008) descreve de modo exemplar, o preenchimento de
documentos em delegacias caracteriza-se justamente por improvisos, alte-
rações e subversões do que categorias e campos como “dinâmica do fato”
parecem pressupor, como as acionadas diante de “desaparecimentos” para
incluir fotos e descrições físicas dos “desaparecidos” nas VPIs. Esses impro-
visos e subversões tornam-se muitas vezes padrões fixos de registro, como
revela, por exemplo, a praxe de preencher o campo “dinâmica do fato” não
com informações sobre a ocorrência, e sim com relatos das atividades em-
preendidas pelos próprios policiais desde o momento em que tomaram co-
nhecimento dela.
Essa praxe, assim como outros padrões de registro utilizados em de-
legacias, são interpretados por Paes (2008) e por Miranda et al. (2010) como
efeitos do sistema não só inquisitorial mas também cartorial que orienta as
ações policiais no Brasil. Como resultado desse sistema, “a lógica do docu-
mento que tem de ser registrado e protocolado precede a lógica do registro
como um insumo para investigação” (Paes, 2008, p.175). No caso específi-
co de registros sobre “desaparecimentos”, essa lógica dos documentos que
devem ser preenchidos, inclusive a despeito das incongruências entre seus

42 Etnografia de documentos
elementos materiais e os enredos dos casos, acaba por reforçar a desimpor-
tância atribuída às VPIs, além de revestir os “desaparecimentos” de um cará-
ter enigmático que decorre não dos casos em si, mas da imprecisão provo-
cada por aquelas incongruências.17 Ademais, ela acaba por reforçar também
a ideia de que “desaparecimentos” não são “problemas de polícia”, já que até
aquilo que é mais trivial na rotina de uma delegacia e tão pouco importante
a ponto de não ter relação com sua “realidade”, os papéis rotineiramente
preenchidos, revela-se inadequado diante de suas características, enredos
e personagens.
Ainda que considerados desimportantes, e a despeito da incongruência
entre seus elementos materiais e os enredos das ocorrências neles regis-
tradas, documentos sobre “desaparecimentos” exercem um papel crucial na
forma como agentes e repartições policiais como o SDP os administram. Em
função sobretudo do efeito de acúmulo e repetição provocado pela leitura
sistemática de documentos no curso do trabalho de campo, foi possível à
pesquisadora compreender que muito do conteúdo registrado nesses papéis
aponta não para o que teria ocorrido quando do “desaparecimento” de uma
pessoa, e sim para um processo de delegação de responsabilidade que é co-
locado em movimento, depois da comunicação do caso em uma delegacia,
pela própria produção e circulação de documentos. Se para policiais como o
inspetor Fernando “desaparecimentos” são “problemas de família”, ao “ape-
nas preencher papéis” a respeito dos casos, esses mesmos agentes logram
delegar a responsabilidade de geri-los e até mesmo de solucioná-los para as
chamadas “famílias de pessoas desaparecidas”.
A partir do que registram, da forma como registram e do fato de que
aquilo que registram fica firmado em documentos de natureza policial –
apesar de suas próprias concepções quanto ao caráter assistencial do traba-
lho demandado por “desaparecimentos” –, policiais atribuem funções como
procurar “desaparecidos”, controlar sua mobilidade e até impedir que de-
sapareçam novamente para as pessoas que foram a delegacias exatamente
com a finalidade de que eles, os policiais, executassem essas tarefas. Como
mostram três casos evocados a seguir, ao preencher documentos os poli-
ciais devolvem às “famílias”, na forma de conselhos e sugestões apresentados
tanto oralmente quanto nos próprios textos que firmam nos documentos, a

17 Na tese em que a pesquisa resultou (Ferreira, 2011, pp.94-112) há uma reflexão pormenori-
zada sobre esse caráter enigmático e sua relação com elementos materiais dos documentos. Por
razões de economia textual, a questão não será desenvolvida aqui.

Perspectivas antropológicas sobre documentos 43


responsabilidade de gerir os casos em que estão envolvidos. Esses conselhos
e sugestões engendram nas “famílias” compromissos, sentimentos e obri-
gações que, não gratuitamente, são também registrados em VPIs e, assim,
depositados nos chamados “arquivos” do SDP para serem conhecidos por
quem quer que se aventure a abrir suas gavetas.
Vejamos então os casos de Arlete, Cinira e Melissa, três jovens que fo-
ram registradas como “desaparecidas” e cujos casos, todos solucionados,
encontram-se atualmente nas gavetas do setor. Os trechos dos casos abai-
xo citados revelam orientações, conselhos e sugestões fornecidos por poli-
cias às “famílias” das três “desaparecidas”, ao mesmo tempo que evidenciam
compromissos, sentimentos e obrigações provocados tanto nessas “famílias”
quanto nas próprias “desaparecidas” por essas orientações, conselhos e su-
gestões firmados no papel. Comecemos por Arlete.
Dia 7 de janeiro de 2008, a empregada doméstica Regina saiu cedo para
o trabalho, como de hábito. Voltou no horário também habitual, e encontrou
sua filha Arlete, de 16 anos, assistindo televisão. As duas jantaram juntas e,
em seguida, Regina foi deitar, “deixando sua filha acordada, e sua filha falou
que iria para a residência de sua colega Ana, e que lá iria dormir”. No dia
seguinte, trabalhou normalmente, mas ao voltar para casa não encontrou
Arlete.
Nos quatro dias que se seguiram, a doméstica seguiu sua rotina, espe-
rando encontrar Arlete toda noite. Isso não aconteceu. No dia 12 de janeiro
foi, então, a uma delegacia e obteve um registro de “desaparecimento” da
adolescente. Quase um mês depois, esteve novamente naquela repartição,
agora para informar o contrário: que Arlete havia voltado para casa. Embora
já solucionado, em junho de 2008 o caso de Arlete foi encaminhado para o
SDP. Antes de arquivá-lo, o policial que o recebeu achou por bem telefonar
para Regina e encerrar o caso com o seguinte registro:
Por telefone a comunicante declarou que sua filha retornou para
casa, após ficar alguns dias na companhia de colegas; disse ainda
que desde então procura manter maior controle da menor, in-
clusive, a castigou com uma surra quando chegou em casa. Foi
orientado que a mãe providenciasse carteira de identidade da
menor.

Desfecho semelhante teve o caso de Melissa, uma estudante de 14 anos


que costumava passar um ou dois dias fora de casa sem dar notícias. Em
abril de 2008, a adolescente passou três dias sem se comunicar com nenhum

44 Etnografia de documentos
familiar, e sua mãe decidiu procurar a polícia. Na ocasião, foi feito registro
de “desaparecimento” em nome de Melissa. Uma semana depois, a mãe da
desaparecida retornou à repartição e relatou que a menina já estava em casa.
A partir de seus relatos, o policial que a atendeu registrou:
Que segundo informações da comunicante, sua filha Melissa foi
encontrada no Bairro de Quintino na casa de uma amiga, sendo
levada para casa para serem tomadas certas medidas com relação
ao comportamento da mesma.

Um tanto mais rico em detalhes e registros, por fim, vejamos o caso


de Cinira, uma universitária de 19 anos que deixou a casa em que vivia com
a mãe e a irmã e retornou dez dias depois. Assim que voltou, a própria Cini-
ra foi à DP onde seu “desaparecimento” fora registrado. Os registros da ida
da “desaparecida” à repartição assemelham-se aos que constam do caso de
Arlete e Melissa: firmam no papel compromissos com controle de comporta-
mentos. No caso de Cinira, porém, são compromissos com o autocontrole e
com o que seria uma boa condução de si, e não de outrem, como no caso das
adolescentes Arlete e Melissa.
As falas da jovem ao policial que a atendeu foram assim registradas:
que na verdade não ocorreu nenhum crime relacionado a seu
desaparecimento; que saiu da casa onde mora com sua mãe às
22:00 horas aproximadamente, não dando satisfação a ninguém,
não fazendo nenhuma espécie de contato e reaparecendo 10
(dez) dias após o desaparecimento, dizendo que estava aborreci-
da com a vida, cansada e extremada; que a declarante está muito
arrependida de não ter feito contato com a família, que quando
sair para passear e demorar um pouco ligará para alguém de sua
família, para comunicar onde e com quem está; a declarante disse
(...) que durante o período em que ficou fora não sentiu vontade
de falar com ninguém, atitude da qual se arrepende e muito.

Tanto quanto a “surra” registrada no caso de Arlete, a culpa, o arrepen-


dimento e os compromissos de controlar os próprios desejos, sentimentos e
condutas presentes no relato de Cinira, e ainda a obrigação de punir a filha
por seu comportamento, como ocorrido com a mãe de Melissa, são efei-
tos de conselhos, sugestões e orientações fornecidos por policiais em suas
interações com “famílias de pessoas desaparecidas” que procuram delega-
cias para comunicar casos de “desaparecimento”. Um exemplo desse tipo
de orientação é a sugestão de providenciar documento de identidade para a

Perspectivas antropológicas sobre documentos 45


adolescente, presente no caso de Arlete, não só dita pelo policial que aten-
deu sua mãe, como também registrada na VPI do caso.
É precisamente por meio da articulação entre conselhos, sugestões
e orientações como essa e os compromissos, sentimentos e obrigações
que eles provocam nas ditas “famílias” que policiais administram casos de
“desaparecimento” registrados em delegacias do Rio de Janeiro. Se, do ponto
de vista desses agentes, “desaparecimentos” são “problemas de família”, são
precisamente as “famílias” que acabam por geri-los, por meio de “surras”,
culpas e compromissos firmados nos documentos considerados menos
relevantes em repartições policiais. Essa modalidade de administração,
nesse sentido, torna-se efetiva porque encontra seu caminho no papel, re-
velando de modo contundente que documentos oficiais “carregam o duplo
signo da distância e do entranhamento do estado na vida cotidiana” (Das e
Poole, 2004, p.15, tradução nossa).

Na trilha dos papéis policiais: diálogos etnográficos e outras


considerações finais
Neste artigo buscamos evidenciar a rentabilidade dos documentos em pes-
quisas antropológicas a partir do diálogo entre discussões teórico-meto-
dológicas recentes sobre o tema e dois relatos etnográficos de pesquisas
realizadas seguindo a trilha dos papéis policiais. Optando por lidar com do-
cumentos, nossas etnografias abordaram o caráter cartorial amplamente
criticado na literatura sobre repartições policiais brasileiras (Kant de Lima,
1995; Miranda et al., 2010; Misse, 2011; Vidal, 2013) em suas positividades.
Isto é, em vez de associar as práticas de documentação a uma suposta ine-
ficiência que impediria o bom desempenho das investigações policiais, pro-
curamos levar a sério a ideia de que a escrita é uma das atividades mais
importantes das rotinas estatais (Gupta, 2012) e explorar suas potencialida-
des analíticas. Assim, argumentamos que para entender a gestão policial do
“tráfico de pessoas para fim de exploração sexual” e do “desaparecimento de
pessoas” era preciso, como fizemos, seguir o papel (Hull, 2012b) e produzir
reflexões que questionassem o tédio, a falta de riqueza simbólica e a ausência
de densidade de significado atribuídas aos documentos (cf. Graeber, 2012).
Ao seguir a papelada por eles produzida e manuseada rotineiramen-
te, pudemos observar que policiais federais e estaduais atribuem menor
importância ao trabalho de documentação que realizam, seja apontando a

46 Etnografia de documentos
ineficácia (ou a desimportância) de inquéritos que “não dão em nada”, seja
diferenciando a atividade de “apenas preencher papel” das práticas investi-
gativas que idealmente deveriam privilegiar. Assim, acabam frequentemente
delimitando fronteiras e hierarquias de maneira muito similar ao modo pelo
qual antropólogos tradicionalmente conceberam e definiram a etnografia:
opondo a lida com documentos ao que seria o “verdadeiro” trabalho policial,
constituído pela investigação de rua e voltado para “crimes de verdade”.
Como se sabe, a legitimidade e a autoridade da antropologia, ancoradas
no modelo mítico do trabalho de campo etnográfico malinowskiano, foram
fundadas em certa oposição entre uma “antropologia de gabinete”, basea-
da em pesquisa documental e concebida como distante e desinteressante, e
uma antropologia que emanaria da experiência do trabalho de campo, esta,
sim, entendida como capaz de apreender a “realidade” da vida nativa. Con-
siderando as potencialidades desta analogia, é possível notar que se, por um
lado, nossos relatos etnográficos demonstraram o lugar central desempe-
nhado pelos artefatos documentais no cotidiano de instituições policiais,
mesmo quando sua importância é menosprezada por seus artífices, por ou-
tro, revelaram a distância pouco debatida entre certas autorrepresentações
idealizadas sobre a pesquisa antropológica e as atividades que efetivamente
realizamos quando fazemos antropologia (cf. Pacheco de Oliveira, 2009).
Ao seguir a trilha dos papéis policiais e afastar-se de certos estereó-
tipos sobre as práticas de conhecimento da disciplina e sobre os artefatos
que devemos observar, manusear e descrever quando fazemos etnografia, os
dois relatos apresentados explicitaram e basearam-se em estratégias analí-
ticas distintas: o primeiro concentrou-se na descrição etnográfica da arte de
“reduzir a escrito” a partir de uma leitura ao longo e na corrente dos inqué-
ritos de “tráfico de pessoas” na Polícia Federal e, o segundo, na exploração
da materialidade e dos agenciamentos produzidos pelos registros de ocor-
rência e outros artefatos documentais relativos a casos de “desaparecimento
de pessoa” na Polícia Civil do Rio de Janeiro. Ambos os trabalhos conferiram
particular atenção à micropolítica da interação entre documentadores e do-
cumentados, permitindo também reflexões sobre a interação entre docu-
mentadores e uma das pesquisadoras.
Ao tomar os documentos como artefatos etnográficos, pudemos no-
tar que a solução (ou não) dos casos investigados nas instituições em que
as pesquisas foram conduzidas depende não apenas da ação (ou inação)
dos seus artífices, mas também de modalidades distintas de delegação de

Perspectivas antropológicas sobre documentos 47


responsabilidades às pessoas documentadas. Isso porque os policiais con-
sideram que, diante desses casos, eles não têm muito a fazer a não ser pro-
duzir papéis, reconhecendo a agência das pessoas tecnicamente definidas
como “traficadas” ou “desaparecidas” sobre a gestão de suas próprias vidas e
corpos. As duas análises revelaram também que tal delegação de responsa-
bilidades garante às pessoas documentadas a possibilidade de intervir ativa-
mente no destino burocrático dos procedimentos administrativos e artefa-
tos documentais nos quais parte de suas vidas são inscritas (e escritas).
Como também foi possível perceber ao longo dos relatos, o processo
de dispersão de responsabilidades, que produzem uma espécie de agência
coletiva, como nota Hull (2012b), ou compartilhada, como sugerimos, se dá
por meio do papel. A principal diferença é que, nos casos de “tráfico de pes-
soas”, a agência dos sujeitos documentados assume a forma de resistência,
enquanto nos casos de “desaparecimento”, a agência se dá a partir de uma
dinâmica de sujeição, lembrando que os dois processos são fundamentais
para entender a noção de agência, como sugere Mahmood (2006). Nas nos-
sas pesquisas, só foi possível entender e analisar estas duas modalidades
distintas de agência, que ganham forma e materialidade no papel e cujos
efeitos podem ser percebidos pelos destinos burocráticos desses procedi-
mentos administrativos, à medida que resolvemos perseguir analiticamente
as mediações e os agenciamentos produzidos a partir dos processos de fa-
bricação, circulação e arquivamento de documentos policiais.

48 Etnografia de documentos
Referências bibliográficas
AGUSTÍN, Laura. Migrants in the Mistress’s House: Other Voices in the ‘Trafficking’
Debate. Social Politics, v. 12, n. 1, p. 96-117, 2005.

APPADURAI, Arjun. The social life of things. Cambridge: Cambridge University Press,
1986.

ARAÚJO, Fábio Alves. Falta alguém na minha casa. In: KANT DE LIMA, Roberto. Antro-
pologia e Direitos Humanos 5. Brasília: Booklink: ABA/Fundação Ford, 2008.

ARAÚJO, Fabio Alves. Das consequências da “arte” macabra de fazer desaparecer cor-
pos: sofrimento, violência e política entre familiares de vítimas de desaparecimento
forçado. 2012. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia
e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.

BLANCHETTE, Thaddeus Gregory e SILVA, Ana Paula da. Mulheres vulneráveis e me-
ninas más: uma análise antropológica de narrativas hegemônicas sobre o tráfico de
pessoas no Brasil. In: FERREIRA, Ademir Pacelli et al. A experiência migrante: entre
deslocamentos e reconstruções. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Institui o Código Penal. Dis-


ponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm. Acesso
em: 26 ago. 2019.

BRASIL. Decreto-Lei 3.699, de 3 de outubro de 1941. Institui o Código de Processo


Penal. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/declei/1940-1949/
decreto-lei-3688-3-outubro-1941-413573-publicacaooriginal-1-pe.html. Acesso em:
26 ago. 2019.

CASTRO, Celso. Pesquisando em Arquivos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

______ e CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Quando o campo é o arquivo. Estudos
Históricos, v.2, n.36, p. 3-5, 2005.

CLIFFORD, James; MARCUS, George (eds.). Writing Culture: The Poetics and Politics
of Ethnography. Berkeley & Los Angeles: University of California Press, 1986.

COMAROFF, Jean; COMAROFF, John. Of Revelation and Revolution. Chicago: Univ.


Chicago Press, 1991. (Christianity, Colonialism and Consciousness in South Africa,
v.1).

CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Tempo imperfeito: uma etnografia do arquivo. Mana,
Rio de Janeiro, v.10, n.2, p. 2287-322, 2004.

______. Do ponto de vista de quem? Diálogos, olhares e etnografias dos/nos arquivos.


Estudos históricos, Rio de Janeiro, n.36, p. 7-32, 2005.

DAMATTA, Roberto. A Mão Visível do Estado: notas sobre o significado cultural dos
documentos na sociedade brasileira. Anuário Antropológico/99, Rio de Janeiro, p.37-
64, 2002.

Perspectivas antropológicas sobre documentos 49


DAS, Veena e Poole, Deborah. State and its margins: comparative ethnographies. In:
______. Anthropology in the Margins of the State. Santa Fe: SAR Press, 2004. p.3-33.

EILBAUM, Lucía. ‘O Bairro Fala’: conflitos, moralidades e justiça no conurbano bo-


naerense. São Paulo: Hucitec/ANPOCS, 2012.

EVANS-PRITCHARD, E. E. Social Anthropology: Past and Present, The Marett Lec-


ture, 1950. Social Anthropology and Others Essays. Nova York: Free Press, 1951.
FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Uma Etnografia para Muitas Ausências: o
desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social. 2011. Tese
(Doutorado em Antropologia Social)– Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

______. Apenas preencher papel: reflexões sobre registros policiais de desapareci-


mento de pessoa e outros documentos. Mana: Estudos de Antropologia Social, Rio de
Janeiro, v.19, n.1, p.39-68, 2013.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense Universi-


tária, 2014.

______. Power/Knowledge: Selected Interviews and Other Writings, 1972-1977. Brigh-


ton, UK: Harvester, 1980.

GINZBURG, Carlo. O inquisidor como antropólogo: uma analogia e as suas implica-


ções. In: ______. A micro-história e outros ensaios. Rio de Janeiro: Bertrand, 1991. p.
203-14

GRAEBER, David. Dead Zones of the imagination. On violence, bureaucracy, and in-
terpretive labor. HAU: Journal of Ethnographic Theory, v.2, n.2, p.105-28, 2012.

GUPTA, Akhil. Red tape: bureaucracy, structural violence and poverty in India.
Durham/Londres: Duke Univerty Press, 2012.

HARTMAN, Saidiya V. Scenes of Subjection: terror, slavery and self-making in nine-


teenth-century America. Nova York/Oxford: Oxford University Press, 1997.

HOAG, Collin. Assembling partial perspectives: thoughts on the anthropology of bu-


reaucracy. PoLAR: Political and Legal Anthropology Review, v.34, n.1, p.81-94, 2011.

HULL, Matthew. Documents and Bureaucracy. Annual Review of Anthropology, Mich-


igan, v.41, p.251-267, 2012a.

______. Government of paper: the materiality of bureaucracy in Urban Pakistan. Ber-


keley, Los Angeles, Londres: University of California Press, 2012b.

ISP – INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Pesquisa Desaparecidos. Disponível em:


http://www.isp.rj.gov.br. Arquivo capturado em: 29 dez. 2009.

JARDIM, Tarciso Dal Maso. Brasil condenado a legislar pela Corte Interamericana de
Direitos Humanos: da obrigação de tipificar o crime de desaparecimento forçado de
pessoas. Brasília: Centro de Estudos da Consultoria do Senado/Textos para discus-
são, 2011. n. 83.

50 Etnografia de documentos
LATOUR, Bruno. Reassembling the Social: an introduction to actor-network-theory.
Oxford: Oxford University Press, 2005.

______; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Tra-
dução: Angela R. Vianna. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.

LOWENKRON, Laura. O Monstro Contemporâneo: a construção social da pedofilia em


múltiplos planos. 2012a. Tese (Doutorado em) – Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012a.
______. Gênero, fronteiras e Estado: a construção do tráfico de pessoas em investiga-
ções e inquéritos policiais. Relatório de pesquisa de pós-doutoramento apresentado
à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), (processo nº
2012/11629-4), mar. 2014.

MAHMOOD, Saba. Teoria Feminista, Agência e Sujeito Liberatório: algumas reflexões


sobre o revivalismo islâmico no Egito. Etnográfica, v. X, n.1, p. 121-158, 2006.

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura mate-
rial. Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

MIRANDA, Ana Paula Mendes de et al. A reinvenção da “cartorialização”: análise do


trabalho policial em registros de ocorrência e inquéritos policiais em “Delegacias Le-
gais” referentes a homicídios dolosos na cidade do Rio de Janeiro. Segurança, Justiça
e Cidadania, n.4, p.119-152, 2010.

MISSE, Michel. O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil:


algumas reflexões a partir de uma pesquisa. Revista Sociedade e Estado, v. 26, n. 1, p.
15-27, 2011.

NAVARO-YASHIN, Yael. Make-believe papers, legal forms and the counterfeit: affec-
tive interactions between documents and people in Britain and Cyprus. Anthropolo-
gical Theory, v.7, p.79-98, 2007.

PACHECO DE OLIVEIRA, João. Pluralizando Tradições Etnográficas: sobre um certo


mal-estar na Antropologia. Cadernos do Leme, Campina Grande, v.1, n.1, pp.2-27, 2009.

PAES, Vivian Ferreira. “Quem domina a regra do jogo”: sobre a reforma da polícia e
os registros policiais. In: MISSE, Michel (org.). Acusados & Acusadores: estudos sobre
ofensas, acusações e incriminações. Rio de Janeiro: FAPERJ/Revan, 2008.

PEIRANO, Mariza. Sem lenço, sem documento. Sociedade e Estado, Brasília, v. 1, n.1,
p.49-63, 1986.

PEIRANO, Mariza. De que serve um documento? In: PALMEIRA, Moacir & BARREIRA,
César (orgs.). Política no Brasil: visões de antropólogos. Rio de Janeiro: Relume Du-
mará, NuAP/UFRJ, 2006a.

PEIRANO, Mariza. A lógica múltipla dos documentos. In: ______. A teoria vivida e ou-
tros ensaios de antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006b.

______. O paradoxo dos documentos de identidade. Horizontes Antropológicos, ano


15, n.32, p.53-80, jul/dez 2009.

Perspectivas antropológicas sobre documentos 51


PISCITELLI, Adriana. Trânsitos: brasileiras nos mercados transnacionais do sexo. Rio
de Janeiro: Eduerj, 2013.

______. Entre as “máfias” e a “ajuda”: a construção de conhecimento sobre tráfico de


pessoas. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 29-63, 2008.

______; ASSIS, Gláucia Oliveira de; OLIVAR, José Miguel Nieto (orgs.). Gênero, sexo,
amor e dinheiro: mobilidades transnacionais envolvendo o Brasil. Campinas/SP: Uni-
camp/PAGU, 2011.
REED, Adam. Documents Unfolding. In: RILES, A. (ed.). Documents: artifacts of modern
knowledge. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 2006.

REIS, Elisa Pereira. Opressão Burocrática: o ponto de vista do cidadão. In: ______.
Processos e escolhas. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998.

RILES, Annelise. Introduction: In Response. In: RILES, A. (ed.). Documents: artifacts of


modern knowledge. Ann Arbor, MI: University of Michigan Press, 2006.

______. The network inside out. Ann Arbor: The Michigan University Press, 2001.

RIO DE JANEIRO. 1991. Secretaria de Estado de Segurança Pública. Resolução SEPC


513 de 16 de dezembro de 1991.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos de. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade
e formação do Estado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1995.

STOLER, Ann Laura. Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonial Com-
mon Sense. Princeton: Princeton University Press, 2009.

______. Colonial archives and the art of governance. Archival Science, v.2, p.87-109,
2002.

TEIXEIRA, Flavia do Bonsucesso. L’Italia dei Diveti: entre o sonho de ser europeia e o
babado da prostituição. Cadernos Pagu, Campinas, n. 31, p. 275-308, 2008.

VIANNA, Adriana. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos


judiciais. In: CASTILHO, Sérgio R.R.; SOUZA LIMA, Antonio Carlos de; TEIXEIRA, Car-
la C. Antropologia das práticas de poder: reflexões etnográficas entre burocratas, elites
e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2014. p.43-70.

VIDAL, Paula Chagas Lessa. “Os donos do carimbo”: investigação policial como proce-
dimento escrito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013

ZEITLYN, David. Anthropology in and of the Archives: Possible Futures and Conti-
gent Pasts. Archives as Anthropological Surrogates. Annual Review of Anthropology,
Michigan, v.41, 2012, p. 461-80.

52 Etnografia de documentos
CAPÍTULO 2

Documentando relações e relacionando


documentos
Sobre a materialidade das práticas de
conhecimento na regulação econômica
Gustavo Onto

Introdução1
“documentar (De documento + ar). Verbo transitivo direto. 1. Jun-
tar documentos a; provar, com documentos, que (algo) é verda-
deiro, autêntico, etc. 2. Registrar visando maior organização e
referência para posteriores alterações.” (Dicionário Aurélio, 2009)

Este artigo baseia-se numa pesquisa etnográfica realizada no Conselho Ad-


ministrativo de Defesa Econômica, o CADE, órgão judicante vinculado ao Mi-
nistério da Justiça e responsável pela política de defesa da concorrência ou
antitruste2. O CADE é responsável pela instrução e o julgamento de proces-
sos que envolvem pedidos de uniões contratuais entre empresas (fusões, por
exemplo) ou ainda investigações a respeito de práticas concorrenciais ilíci-
tas, como a formação de cartéis. O objetivo da etnografia foi descrever prá-
ticas de conhecimento características do órgão antitruste brasileiro: como

1 Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 38o Encontro Anual da Anpocs, den-
tro do SPG 15 (“Perspectivas etnográficas sobre documentos: possibilidades analíticas e desafios
metodológicos”), coordenado por Laura Lowenkron e Leticia Carvalho de Mesquita Ferreira.
Agradeço pelos comentários das coordenadoras e dos debatedores, que permitiram tornar os
argumentos deste artigo mais claros e a interlocução com outros autores mais evidente.

2 O trabalho de campo que embasa este artigo consistiu numa etnografia feita entre março
de 2012 e agosto de 2013 sobre o trabalho de análise e julgamento dos processos administrati-
vos do CADE. A instrução processual é realizada por servidores públicos e estagiários das mais
variadas áreas (em geral economistas e advogados) que trabalham no Tribunal Administrativo e
na Superintendência-Geral do órgão antitruste brasileiro, localizado em Brasília.

Documentando relações e relacionando documentos 53


os profissionais que lá trabalham produzem o conhecimento necessário para
analisar e julgar os processos administrativos. As práticas de conhecimento
necessárias conformam um amplo processo de investigação e análise sobre
mercados, empresas e setores da economia nacional. A investigação pode
requerer práticas variadas, como análises contábeis, elaboração de indica-
dores e índices estatísticos, cálculos de receitas futuras e distâncias, além
de interpretação e pesquisa jurisprudencial. Este capítulo trata dos artefatos
produzidos e circulados no decurso dessas práticas de conhecimento roti-
neiras do CADE: os documentos3, físicos e eletrônicos. Descreve-se parte
do trabalho do órgão antitruste a partir de diferentes tipos de documentos,
seus usos e seus efeitos.
A importância dos documentos e da escrita nas burocracias governa-
mentais possui longa trajetória de reflexão nas ciências sociais (Cohn, 1987;
Foucault, 1972; Goody, 1977; Weber, 2005 [1922]). Uma contribuição dessa
tradição foi apontar para o modo como os objetos de governo são construí-
dos com base nos documentos, ou seja, como os referentes dos textos go-
vernamentais são produzidos na escrita, interpretação e disseminação dos
textos documentais (entendidos sempre como representações de uma reali-
dade). Este capítulo, por outro lado, trata de outra característica ou forma de
agência (Riles, 1999) dos documentos que, embora não possa ser claramen-
te separada da anterior, costuma não ser apontada. Procura-se, neste caso,
descrever etnograficamente como características materiais ou formais dos
documentos produzidos e/ou circulados no CADE resultam em certos tipos
de significações ou associações para os funcionários que lidam com eles. A
ênfase nas práticas de documentação que envolvem a regulação estatal da
concorrência tem como objetivo realçar a importância da materialidade en-
volvida no trabalho de instrução processual na burocracia pesquisada.
A literatura antropológica mais recente sobre documentos vem enfa-
tizando o quanto estes são mais do que apenas instrumentos facilitadores
de variadas formas organizacionais – órgãos governamentais, tribunais, em-
presas, prisões, departamentos policiais ou ONGs (ver Riles, 2006). Alguns
trabalhos (por exemplo, Gupta, 2012; Hull, 2012a; Latour, 2002; Riles, 2006;

3 “Documentos” tem sido usado na literatura antropológica recente como alternativa às


expressões “textos” ou “representação”, com o fim de deslocar a ênfase dos aspectos discursivos
e referenciais das formas burocráticas de documentação para suas características materiais e
estéticas, como a organização do espaço gráfico, modelos de documentos, a qualidade ou tipo
de papel, assinaturas, entre outras (Hull, 2012b).

54 Etnografia de documentos
2011; Sharma e Gupta, 2006) têm dado importância analítica à materialidade
dos documentos sob variados aspectos – sua forma gráfica, a disposição das
informações no papel, os modos de organização –, ao mesmo tempo que
chamam atenção para o “texto”, o “discurso” ou o “significado” contido neles.
As qualidades formais ou estéticas dos documentos servem, nessa literatura,
como um contraponto metodológico e analítico ao que seria uma considera-
ção excessivamente representacional do tratamento etnográfico do material
documental (Riles, 2006; 2010). Argumenta-se que os documentos podem
ser considerados não apenas meros instrumentos de racionalização e sim-
plificação de realidades, mas principalmente artefatos performadores das
mais variadas relações ou objetos governamentais.
A reflexão aqui apresentada se insere num conjunto de trabalhos que
tem dedicado atenção especial a práticas de documentação em órgãos regu-
ladores da economia e nas organizações (bancos, empresas) por eles regula-
das. A etnografia de certos documentos como relatórios de missões do FMI
(Harper, 1998), formulários de securitização no mercado financeiro (Riles,
2011) e atas das reuniões de bancos centrais (Holmes, 2009; 2014) permiti-
ram explicar seu papel na construção e coordenação de expectativas sobre
a economia (Holmes, idem) ou na formação de uma obrigação legal e inter-
temporal de compra e venda de ações (Riles, 2010). Esses estudos ilustram
como práticas de documentação – utilizando os dois sentidos do verbo “do-
cumentar”: como a organização e circulação de artefatos documentais e
como a produção escrita de conhecimento – são imprescindíveis à constru-
ção de objetos ou realidades econômicas (como mercados, expectativas, em-
presas, concorrência...) e das entidades que, supostamente externas à vida
econômica, a regulam e a controlam, como o “Estado” por exemplo (Mitchell,
1999). Neste artigo, por meio de uma descrição dos mecanismos que funcio-
nários do órgão governamental encontram para gerir a enorme quantidade
de documentos que cotidianamente produzem, leem, arquivam, copiam ou
enviam, procura-se evidenciar as relações e os sentidos sociais produzidos
na interação com artefatos documentais.
Este artigo está dividido em cinco partes. A primeira descreve o CADE e
sua função nas políticas nacionais. A segunda descreve a materialidade das
práticas burocráticas no gabinete de um dos conselheiros do órgão. A tercei-
ra e quarta partes analisam duas características dos documentos do CADE:
a sua temporalidade e sua confidencialidade. Na última parte são apresen-
tadas algumas considerações a respeito da analogia entre a relação descrita

Documentando relações e relacionando documentos 55


dos funcionários com artefatos documentais e a relação do etnógrafo com
os documentos do campo.

O CADE e a política de defesa da concorrência


A chamada política de defesa da concorrência ou política antitruste4 pode
ser definida como um “conjunto de políticas e leis que garantem que a con-
corrência nos mercados não será reduzida de forma a diminuir o bem-estar
econômico” (Motta, 2004, p.30). As políticas e leis construídas para garantir
a “concorrência” baseiam-se numa premissa central do liberalismo econô-
mico, discutida em profundidade nas teorias da ciência econômica, de que
situações de maior “concorrência nos mercados” trazem maiores ganhos
econômicos para consumidores e para a economia nacional como um todo.
A concorrência entre as empresas pela venda de produtos e serviços per-
mitiria aos consumidores comprar produtos a preços menores e tornaria as
empresas mais inovadoras e produtivas (Forgioni, 2013). Essa política públi-
ca, cuja presença e similaridade entre os países industrializados é notável,
tornou-se, nos anos 1990, gradualmente mais relevante dentro do conjunto
de políticas econômicas do governo brasileiro (Miola, 2014; Onto, 2009).
A “livre concorrência” é hoje considerada um valor a ser preservado
nas democracias modernas, e consiste, inclusive, em um princípio consti-
tucional5 no Brasil e, com isso, também um parâmetro para a organização
da economia de um país, sendo objeto de legislações específicas, saberes

4 Os países de língua inglesa costumam utilizar a expressão “política antitruste” em vez de


“política concorrencial” ou de “defesa da concorrência”. Isso se deve, em parte, pelo fato de a
história das legislações e políticas concorrenciais, combativas aos monopólios comerciais, ter
tido uma significativa inflexão com a guerra aos “trustes” (forma legal em que podem se enqua-
drar empresas no direito norte-americano) no final do século XIX nos Estados Unidos. Nes-
se período, novas legislações, como o Sherman Act de 1890, foram promulgadas buscando-se
combater cartéis formados pelos grandes “trustes” das companhias ferroviárias. O empregoda
expressão “antitrust” para designar o conjunto de medidas tomadas no combate às práticas
anti-competitivas das grandes empresas tornou-se comum nas campanhas presidenciais do
período (Forgioni, 2013).

5 O artigo 170 da Constituição Federal estabelece nove princípios constitucionais da ordem


econômica, a partir dos quais o Estado deve regular a economia: soberania nacional, proprie-
dade privada, função social da propriedade, livre concorrência, defesa do consumidor, defesa
do meio ambiente, redução das desigualdades regionais e sociais, busca de pleno emprego e
tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituída sob as leis brasileiras e
que tenham sua sede e administração no país.

56 Etnografia de documentos
especializados6 e organizações estatais que tentam fazer desse princípio
uma realidade. Cabe principalmente aos órgãos estatais antitruste do mun-
do, baseando-se nas legislações concorrenciais7 dos seus países e nos co-
nhecimentos de especialistas sobre a economia e o direito, decidir quando
há uma ameaça a esse princípio. No caso brasileiro, no artigo 173, § 4º, da
Constituição de 1988, a lei especifica a função do órgão antitruste, depois
detalhada em lei complementar: “A lei reprimirá o abuso do poder econô-
mico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao
aumento arbitrário dos lucros.” Essas organizações governamentais, portan-
to, têm uma função similar em praticamente todos os lugares: determinar
caso a caso, processo a processo, quando uma prática (cartel entre empre-
sas, por exemplo) ou concentração empresarial (como fusão de empresas)
podem gerar um risco à “livre concorrência”. O modo como o órgão brasilei-
ro realiza esse trabalho é o objeto central do projeto de pesquisa que gerou
este artigo.
No Brasil, o CADE, autarquia8 judicante vinculada ao Ministério da Jus-
tiça, é o braço do Poder Executivo responsável pela política de defesa da
concorrência. Embora tenha sido criado em 1962, inspirado nas agências an-
titrustes de países considerados mais desenvolvidos (como a Federal Trade
Commission dos Estados Unidos ou o Bundeskartellamt alemão), o CADE pas-
sou muito tempo tendo uma função marginal na política econômica nacio-
nal (Considera e Corrêa, 2002). Somente no início da década de 1990, quan-
do novas legislações concorrenciais foram aprovadas, buscando também

6 A reflexão sobre a concorrência e o modo de governá-la é objeto de duas disciplinas ou


saberes cuja relação é vista como complementar. O direito da concorrência é a área do direito
voltada para o estudo do conjunto de normas, princípios e procedimentos que limitam as práti-
cas econômicas que “abusam do poder econômico” e, portanto, infringem um dos princípios da
ordem econômica, a “livre concorrência”. A “economia antitruste” ou “organização industrial”,
uma subárea da microeconomia, estuda o comportamento de empresas (ou “firmas”) e os efei-
tos (econômicos) sobre a concorrência de mercado que certas práticas produzem.

7 No Brasil, a Lei 12.529, de 30 de novembro de 2011, entrou em vigor em 30 de maio de 2012


substituindo a Lei 8.884 de 1994. Esta nova lei de concorrência e alterou, principalmente, a es-
trutura institucional do chamado “Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência”, transferindo
as funções da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça para a Superintendên-
cia-Geral do CADE e incluindo a necessidade de uma “notificação prévia” ao CADE de “atos de
concentração”.

8 Segundo o jurista Hely Meirelles (2010, p.380): “Autarquias são entes administrativos autô-
nomos, criados por lei específica, com personalidade jurídica de Direito Público interno, patri-
mônio próprio e atribuições estatais específicas (…) esta administra-se a si própria, segundo as
leis editadas pela entidade que a criou.”

Documentando relações e relacionando documentos 57


complementar medidas adotadas para o controle da inflação, é que a política
antitruste brasileira ganhou relevância. A política passa a ser considerada
pelos economistas favoráveis às reformas econômicas como imprescindível
numa economia de livre mercado mais privatizada e com poucas empresas
estatais. O CADE evitaria o “abuso do poder econômico” por parte de empre-
sas grandes o suficiente para controlar mercados de produtos ou serviços.
O CADE exerce as funções a ele atribuídas na chamada Lei da Concor-
rência, que implica a missão de “zelar pela livre concorrência no mercado”.
O órgão instrui dois tipos principais de processos administrativos9: (i) pro-
cessos que autorizam ou vedam “atos de concentração”, ou seja, “fusões”,
“aquisições de controle”, “incorporações”, “joint ventures”, e outras uniões
contratuais, temporárias ou não, entre grandes empresas que possam colo-
car em risco a “livre concorrência”; e (ii) processos que investigam “condutas
empresariais anticompetitivas”, a mais conhecida delas a prática de “cartel”10.
No primeiro caso, a análise é feita com o objetivo de prever potenciais danos
que uma concentração possa gerar à concorrência de mercado no futuro,
enquanto , no segundo caso, a investigação é retrospectiva, buscando com-
preender se uma determinada prática individual ou coordenada entre duas
empresas, no passado mais ou menos recente, gerou algum prejuízo à con-
corrência11. Enquanto no primeiro caso o Conselho pode decidir proibir uma
concentração empresarial, no segundo caso a empresa pode ser condenada
ao pagamento de multas severas.
O trabalho de instrução desses processos no conselho, realizado por
analistas, assessores, conselheiros e estagiários, exige um amplo trabalho
de coleta e interpretação de informação sobre empresas, setores, mercados
e consumidores. Se por um lado o trabalho desses funcionários exige uma
constante documentação de relações econômicas, ou seja, de uma descrição

9 “A Administração Pública, para registro de seus atos, controle da conduta de seus agentes
e solução de controvérsia de seus administrados, utiliza-se de diversificados procedimentos,
que recebem a denominação comum de processo administrativo.” (Meirelles, 2010, p.734)

10 Há uma grande variedade de condutas “anticompetitivas”, como os“acordos de exclusivi-


dade”, a “recusa de venda”, a “fixação de preços de revenda”, os “cartéis”, o “preço predatório” e
a “venda casada”. Essas condutas podem ser práticas “unilaterais”, quando se trata da ação de
uma só empresa, ou “coordenadas”. A investigação dessas condutas pode se iniciar como uma
denúncia de uma empresa ou por meio de um indício que o próprio órgão tenha identificado
num estudo de mercado.

11 A distinção entre tipos de processos (“atos de concentração” e “condutas anticompetiti-


vas”) e os efeitos que suas diferentes temporalidades produzem na atividade dos reguladores
serão objeto de descrição ainda neste artigo.

58 Etnografia de documentos
e redação minuciosa das características de empresas e mercados, tendo em
vista a elucidação de relações concorrências mais ou menos problemáticas,
por outro lado, seu trabalho consiste em relacionar formas documentais
diversas (jurisprudência do órgão, petições, ofícios, relatórios, pareceres,
estudos, folhas de presença, etc..) e organizá-las conforme procedimentos
administrativos comuns à administração pública brasileira.
O órgão antitruste é constituído pelo Tribunal Administrativo de Defesa
Econômica, pela Superintendência-Geral e pelo Departamento de Estudos
Econômicos. A Procuradoria Federal e o Ministério Público Federal também
participam da estrutura do órgão e possuem representantes em sua depen-
dência. O Tribunal Administrativo compõe-se de um presidente e seis con-
selheiros12 e é responsável pelo julgamento dos processos e recursos e pela
aprovação dos termos de compromisso e dos acordos. A Superintendência-
-Geral (SG) é chefiada por um superintendente-geral e divide-se em várias
coordenações, a elas competindo, dentre outras atribuições, a instauração e
instrução de todos os processos, remetendo-os ao Tribunal Administrativo
para julgamento. O Departamento de Estudos Econômicos (DEE) realiza es-
tudos e pareceres econômicos para auxiliar as análises da SG e do Tribunal.
Todas essas divisões se localizam, desde julho de 2012, no mesmo edifício de
cinco andares, alugado e recentemente construído na Asa Norte de Brasília.

A materialidade das práticas burocráticas


O dia 27 de agosto de 2012 marca o primeiro dia da minha pesquisa de cam-
po dentro do órgão de defesa da concorrência em Brasília. Finalmente havia
conseguido autorização para acompanhar o trabalho dos assessores, esta-
giários, da secretária e do conselheiro em um dos gabinetes do Tribunal Ad-
ministrativo do CADE. O conselheiro me disse que eu teria uma mesa dentro
da sala dos assessores para poder observar mais de perto o trabalho por eles
realizado, mas, nessa primeira semana, ainda não tinham “realocado” uma
das estagiárias que trabalhava na mesa onde eu ficaria. Assim, passei os pri-
meiros dias sentado na sala de espera do gabinete, lugar em que trabalhava a

12 Na nova legislação, os conselheiros e o presidente são nomeados pelo presidente da Repú-


blica depois de aprovados pelo Senado Federal. Seu mandato é de quatro anos, não coinciden-
tes, sendo vedada a recondução. Tanto o presidente quanto os conselheiros devem possuir um
“conhecimento notório de ciência econômica ou de direito” (conforme todas as legislações con-
correnciais desde 1962), o que na prática significa terem formação em economia e/ou direito.

Documentando relações e relacionando documentos 59


secretária do conselheiro e um estagiário ainda estudante do ensino médio,
que passava as tardes auxiliando-a.
Na primeira manhã, a secretária, uma jovem de 24 anos, tentando en-
tender minha presença no gabinete “como antropólogo”, passou a explicar
suas tarefas diárias e a descrever seu trabalho enquanto o fazia. Disse que
sua primeira função naquele dia seria “abrir um volume do processo”. Expli-
cou que quando um processo chega a duzentas páginas o “ideal”, conforme
a orientação regulamentar, é que se abra um novo volume, mas que isso não
é sempre feito; alguns volumes chegam a se estender por até quatrocen-
tas páginas. Levantando-se, disse que para fazer isso seria necessário ir ao
setor protocolar, no piso térreo do edifício. Ao observar minha expressão de
relativa incompreensão, ela perguntou, inconformada: “Você nunca viu um
processo?”
Embora eu soubesse que o CADE instruía e julgava processos, não es-
tava ainda claro para mim que instruir e julgar também requeria ver, tocar,
separar ou classificar esses processos. Não pensava que a materialidade dos
processos fosse uma característica relevante para os burocratas (e por isso
também não seria para um antropólogo). Segundo Matthew Hull (2012, p.12),
a percepção de que os documentos ficam inseridos entre as coisas que real-
mente importam, dando acesso imediato àquilo ao qual eles documentam,
torna-os invisíveis. Essa percepção seria uma característica não apenas dos
documentos, mas de todos os mediadores (Latour, 2005), visto que estes são
capazes de desviar a atenção de sua materialidade ou tecnicalidade redire-
cionando-a para aquilo que está sendo mediado (Hull, 2012, p.13). Procurando
mostrar como ver os processos era importante para compreender o trabalho
do CADE, a secretária me explicou algumas de suas características, apon-
tando para os processos abaixo na mesa de uma das assessoras do gabinete:
Cada processo, como ela me indicou, é o conjunto de volumes empi-
lhados e amarrados por uma fita elástica com as iniciais do Ministério da
Justiça. Cada um desses são os “autos de um processo”, ela disse. As fitas
elásticas não são obrigatórias, mas ajudam a identificar e a separar volu-
mes (e documentos) que fazem parte de um mesmo processo. Quando um
documento, como uma “petição”, é colocado na mesa de um assessor (ou
estagiário), em geral distribuído pela secretária, o assessor o insere dentro
do processo correspondente, evitando assim que documentos de processos
distintos acabem se misturando. Uma eventual desorganização dos docu-
mentos pode levar a uma invalidação da própria decisão do Conselho por

60 Etnografia de documentos
perda de um documento relevante, à desconsideração de provas e evidên-
cias importantes na construção de um julgamento ou à “perda do prazo” do
processo (ver abaixo).

Figura 1: Autos de processos na mesa de um dos assessores.

Na mesa do assessor, além de seu computador e de um telefone, esta-


vam vários processos pelos quais ele é responsável por instruir. A instrução
exige uma ampla investigação do caso, resultando na produção de docu-
mentos (como os “ofícios”), o que auxiliará o conselheiro na redação de um
voto escrito sobre o processo. Segundo um dos assessores, a quantidade de
processos na mesa de um assessor pode ser um medidor de sua habilida-
de, tendo em vista que isso possivelmente indica o grau de confiança que
o chefe de gabinete ou o conselheiro têm na capacidade desse funcionário

Documentando relações e relacionando documentos 61


para “cuidar” dos processos. O “cuidar” implica tanto a capacidade de redi-
gir, analisar e interpretar esses processos quanto de monitorar a “tempo-
ralidade” deles (ver outra seção), não deixando o prazo do processo expirar,
por exemplo. Mas a quantidade de processos na mesa de um dos assessores
pode ser também um demonstrativo da ineficiência do funcionário, como
me explicou o mesmo assessor, acusando implicitamente seus companhei-
ros de sala.
A quantidade de volumes num processo pode indicar tanto a longevi-
dade de sua existência circulando na burocracia e/ou sua relativa “comple-
xidade”, que implicaria na existência de um amplo conjunto de documentos
produzidos pelo órgão antitruste, pelas partes do processo ou por outros
interessados. Esses documentos podem ou não ser classificados como “con-
fidenciais” (ou de “acesso restrito”). Aqueles considerados confidenciais são
colocados conjuntamente num volume separado, marcado com uma fita ver-
melha como na figura 1.
Parcela considerável do trabalho do estagiário de ensino médio con-
siste em enumerar as folhas do processo. Como é padrão em órgãos da ad-
ministração pública que lidam com processos administrativos, cada folha de
um volume é carimbada e enumerada em intervalos de duzentas em duzen-
tas folhas para facilitar a leitura e a identificação de uma referência específi-
ca quando os relatórios, pareceres técnicos ou votos forem redigidos. Estes
também serão anexados ao processo e suas folhas igualmente carimbadas
e numeradas. Os autos do processo são, nesse contexto, o conjunto de do-
cumentos separados por volumes, com folhas enumeradas e identificados
geralmente por uma fita elástica.
Entre outras tarefas, a secretária é responsável pela separação dos do-
cumentos entre os assessores do gabinete. Quando um documento chega no
gabinete, trazido por um dos funcionários do setor protocolar, a secretária
o redistribui para o assessor responsável pela instrução do processo corres-
pondente. Isso requer, portanto, saber sobre qual processo o documento se
refere, além de saber qual assessor “cuida” daquele processo. Ler o docu-
mento e identificar o processo correspondente pelo seu número protocolar
ou pelo nome das partes é uma tarefa corriqueira, exigida várias vezes por
dia assim que o documento chega no gabinete, visto que uma nova “petição”
pode alterar o prazo de um processo ou ainda viabilizar a elaboração de um
voto do conselheiro para a próxima sessão de julgamento.

62 Etnografia de documentos
Durante o segundo semestre de 2013, os funcionários do gabinete, de-
vido à grande quantidade de processos que deveriam ser analisados e jul-
gados, separavam processos entre a sala dos assessores e a sala de espera/
recepção. Os processos foram separados de acordo com uma divisão com-
preendida por todos os participantes da política de defesa da concorrência,
inclusive por advogados e economistas que trabalham para as empresas. Os
conhecidos ACs (atos de concentração) e os PAs (processos administrativos)
ou APs (averiguações preliminares) são as siglas mais comuns da atividade
burocrática do CADE. Os processos de ACs, por terem um “prazo” para res-
posta e, portanto, por serem passíveis de “esquecimento”, são armazenados
na sala dos assessores, pois exigem uma atenção maior. Os PAs e APs, segun-
do os assessores, “podem esperar”, pois não têm prazos de resposta especí-
ficos e são armazenados, como não surpreende, na “sala de espera”, sendo
somente abertos para instrução quando os prazos dos ACs estiverem “sob
controle”, como diziam. Cada um dos três assessores do gabinete possui um
armário com seu nome na sala onde estão os ACs sob sua responsabilidade,
conforme a figura 2.

Figura 2: Armários separados de cada assessor


com seus respectivos processos.

Documentando relações e relacionando documentos 63


Após mostrar os processos e explicar sua disposição dentro do gabine-
te, a secretária voltou às suas tarefas. Primeiramente, realizou alguns proce-
dimentos necessários para o envio de um processo a outro setor do CADE, a
Procuradoria. Para isso foi necessário entrar no sistema eletrônico interno
do Conselho e preencher um formulário com o nome das partes do proces-
so, o número de volumes, a origem (Gabinete X), o destino (Procuradoria), o
tipo de processo (AC, PA ou AP), o número, a data e o horário. O sistema ge-
rava um recibo que precisava ser impresso e anexado ao processo. Somente
dessa forma seria possível circular o processo dentro do CADE, levando-o
em mãos para a Procuradoria, que irá, então, estudar o processo, redigir um
parecer e realizar o mesmo procedimento para que o processo retorne ao
gabinete para julgamento.
A maior parte das ligações atendidas pela secretária também dizem
respeito à circulação, visualização e conteúdo dos documentos. Alguns mi-
nutos mais tarde, um advogado ligou reclamando que ofícios foram enviados
ao seu cliente pedindo informações similares àquelas que ofícios anteriores
já haviam requerido. Após passar a ligação para o assessor responsável pelo
processo, a secretária me explicou que isso poderia ter acontecido por um
erro do gabinete ou por uma falta de resposta ao ofício anterior. Pouco tem-
po depois, outro advogado pediu que o gabinete autorizasse a cópia de um
processo ou de parte de um processo ao setor protocolar. A secretária ex-
plicou ao advogado, que segundo ela devia ser um pouco inexperiente, que
nesse caso o setor processual (ou simplesmente “protocolo”) deve enviar ao
gabinete um requerimento de cópia, o qual deve ser aprovado pelo gabinete,
assinado e reenviado ao protocolo, que emite um GRU a ser pago pelo es-
critório de advocacia e depois recolhido no protocolo. Segundo a secretária,
“advogados mais espertos pedem vista no processo e tiram foto dele, sem
precisar fazer um requerimento de cópia”.
No mesmo momento, um advogado, ainda estagiário, entra no gabi-
nete pedindo para falar com um assessor para que uma petição sua fos-
se deferida. Após o advogado sair da sala, a secretária diz: “Não sei como
aparecem aqui.” Ela se referia ao fato de que os advogados não poderiam
subir ao terceiro andar do CADE sem que tivessem marcado uma reunião
pelo sistema do conselho ou ao menos telefonado para o gabinete. A secre-
tária, então, se levanta e se dirige à sala de reuniões do gabinete, que precisa
estar pronta em cinco minutos. Ela pede ao garçom que sirva água e café e
imprime uma lista de presença com os nomes dos participantes, lista essa

64 Etnografia de documentos
que será posteriormente anexada ao processo correspondente à reunião.
Antes de entrar novamente na sala de reuniões, ela afirma: “Trabalhar no
CADE é aprender a mexer com os documentos.” Nas primeiras semanas da
etnografia, acreditava que essa consideração a respeito do trabalho do CADE
era própria do seu cargo como secretária, que consistia principalmente em
reunir, separar, copiar, distribuir e registrar documentos dos mais variados
tipos. A secretária teria razões para entender cada processo como um con-
junto de documentos. Seu conhecimento dos procedimentos e das formas
documentais era reconhecido por todos do gabinete, que a procuravam para
tirar dúvidas a respeito de como enviar, assinar, procurar ou classificar os
documentos. O próprio conselheiro, que estava há pouco tempo no cargo,
afirmava que não poderia realizar seu trabalho sem ela e que para onde ele
fosse após o CADE, a levaria junto13.
Contudo, conforme me familiarizava com aquilo que acreditava ser
a atividade “central” do trabalho do CADE14, ou seja, a instrução processual,
com suas análises e interpretações, mais eu percebia que a consideração
da secretária poderia ser aplicada em todos os espaços do órgão. Não havia
analista, assessor, estagiário, coordenador ou conselheiro que não tivesse a
necessidade de aprender a mexer ou lidar com documentos.

Os tempos e a confidencialidade dos processos


Como já dito, processos de tipos diferentes são armazenados em locais dis-
tintos, pois exigem maior ou menor urgência em seu tratamento. Atos de
concentração são os tipos processuais que mais constrangem as ações dos
assessores, pois podem “expirar” e, então, não serem julgados apropriada-
mente. A “perda do prazo” desses processos é catastrófica na reputação do
assessor responsável e do conselheiro, já que a operação (fusão, aquisição,
etc.) sob análise é aprovada automaticamente. Os ACs possuem sessenta dias

13 Isso seria dificilmente possível, na medida em que as secretárias do CADE são todas tercei-
rizadas e não podem facilmente ser transferidas para outro órgão público.

14 A percepção de que existe uma atividade mais “central” do órgão é reforçada pela clas-
sificação do próprio CADE entre as chamadas atividades “fins” e atividades “meio”. O traba-
lho dos gabinetes e das coordenações, mais analíticos ou interpretativos, são considerados
“fins”, enquanto o trabalho da área processual ou da área de recursos humanos, por exemplo,
é denominado “meio”. Essa relação organizacional assimétrica é análoga àquela que este artigo
pretende abordar e questionar: a relação entre o conteúdo dos documentos e a materialidade
documental.

Documentando relações e relacionando documentos 65


para serem julgados, mas esse prazo pode ser estendido indefinidamente,
contanto que um ofício requerendo mais informações das partes seja envia-
do, para que se aumente o prazo nos dias estipulados no próprio documento.
Uma tarefa importante do chefe de gabinete é acompanhar o “vencimento”
desses ofícios, atentando para os prazos de todos os processos do gabinete.
O segundo semestre de 2012 foi particularmente conturbado para os
profissionais de todas as áreas do CADE. Uma nova lei de concorrência, apro-
vada no ano anterior, tinha acabado de entrar em vigor, alterando procedi-
mentos, funções profissionais e a estrutura organizacional do órgão. Além
disso, o órgão havia se transferido do Setor Hoteleiro Norte da capital para a
quadra 515, agora num novo e maior edifício. Entre outras coisas, a mudan-
ça física do órgão gerou uma desorganização dos processos administrativos
sob responsabilidade de cada gabinete. Muitos processos foram levados ao
novo prédio, mas não se sabia exatamente onde estavam localizados ante-
riormente. Ainda, como muitas empresas não sabiam exatamente como seria
aplicada a nova lei, houve no primeiro semestre uma série de requerimentos
de atos de concentração que abarrotaram de papéis as salas do Conselho .
Esses atos de concentração que haviam sido protocolados antes da mu-
dança física do órgão para o novo endereço passaram a ser chamados de
“estoque”, sendo que um dos objetivos do presidente do CADE nesse período
era “acabar” com esses processos, julgando-os o mais rapidamente possível.
Além do risco de perder o prazo dos processos, agora muito mais nume-
rosos, pretendia-se apresentar um órgão muito mais eficiente com a nova
legislação e, por isso, havia uma tentativa coordenada de “soltar” (ou seja,
julgar) uma quantidade grande de processos por sessão. O grande “estoque”
de processos gerava ainda outra ansiedade resultante de uma forma de tem-
poralidade externa ao órgão antitruste: o tempo da “economia” e do “merca-
do”. A demora no julgamento desses processos significava um prejuízo para
as empresas que baseiam suas decisões estratégicas nas resoluções do órgão
administrativo.
Por todos esses motivos, o gerenciamento dos processos do “estoque”,
especialmente os atos de concentração, era uma tarefa distribuída entre os
assessores e constituía uma forma de disciplina de suas ações no gabinete.
Um grande quadro branco (figura 3) com o calendário do mês e mostrando
os prazos estipulados nos ofícios enviados às partes dos processos foi colo-
cado na parede da sala dos assessores para que todos soubessem claramente
as prioridades do dia e da semana. Por exemplo, no dia 13 de março o ofício

66 Etnografia de documentos
que foi enviado a uma das partes do processo da empresa JBS irá “vencer”, ou
seja, a partir desse dia o prazo do ato de concentração irá “voltar a correr”,
dentro dos sessenta dias estipulados para a análise do processo. Neste dia,
seria bom que o processo tenha sido pautado para a próxima sessão de jul-
gamento ou que um novo ofício fosse produzido e enviado “parando o prazo”
do processo. Os ofícios – documentos enviados às empresas requerentes,
representantes ou concorrentes tendo em vista a obtenção de informações
a respeito das empresas e de seus mercados – têm, portanto, também a fun-
ção de segurar o “tempo” do processo. A complexidade e a quantidade das
perguntas são critérios utilizados também para prever o tempo de resposta
das empresas e, por isso, as perguntas são formuladas levando-se em consi-
deração ao mesmo tempo a necessidade de certas informações e de “segu-
rar” mais ou menos os prazos dos processos.

Figura 3: Quadro com os prazos dos processos, identificados


pelos nomes das partes. Um elemento importante nesse
quadro é a identificação do processo pelo nome da
requerente ou representante (Microsoft, Amil, etc.), que
costuma ser o modo de se referir a elas no gabinete.

A preocupação com o prazo de sessenta dias de análise dos processos


gera a necessidade de uma avaliação e cálculo constante de quanto tempo

Documentando relações e relacionando documentos 67


já foi “percorrido” por eles. Os assessores, estagiários e, inclusive, a secre-
tária, costumam “contar o prazo” dos processos, construindo tabelas com o
indicativo de quais processos estão chegando no prazo final. Para isso, eles
abrem os autos e calculam, pela data de envio e recebimento dos documen-
tos, quanto tempo o processo “ficou parado”, sendo esse o momento crítico
que, ironicamente, permite que o prazo do processo avance. “Ficar parado”
significa o período entre o momento em que as requerentes ou represen-
tantes dos processos enviaram uma petição ao CADE e o momento em que
o órgão produziu um novo ofício para as requerentes. O chefe do gabinete,
calculando o prazo de um processo, produziu a seguinte tabela:

Figura 4: Cópia do arquivo de Excel


com os cálculos de prazo de um processo.

Nesse caso, a petição inicial das requerentes foi protocolada pelas re-
querentes no dia 4 de maio e apenas no dia 30 de maio (o mês está equivo-
cado na tabela) o primeiro ofício foi expedido. Nesse período considera-se
que o processo “ficou parado”. Somando-se o período entre 1o de junho e
6 de junho, este processo está “com 31 dias”, não sendo uma prioridade do
gabinete. A cor verde indicada no prazo auxilia o chefe de gabinete a admi-
nistrar os mais de cem processos em trâmite. Processos com mais de 45 dias
de prazo recebem a cor vermelha na tabela, indicando maior atenção em sua
instrução.
Os ofícios são os documentos mais produzidos pelo CADE e constituem
a principal forma dos analistas deste órgão obterem informações a respei-
to das concentrações ou condutas que eles investigam. No corpo do ofício
estipula-se o prazo para que a empresa (ou o seu representante) responda
às informações requeridas15. Esse prazo varia normalmente de cinco a trinta

15 A empresa que não responder ao ofício “tempestivamente”, ou seja, no prazo estipulado


no texto do documento, corre o risco de ser multada, punida mais severamente pelo órgão

68 Etnografia de documentos
dias, dependendo da quantidade de informação que o assessor esteja pedin-
do e da complexidade esperada de obtenção desse material. Contudo, como
mostrado, os prazos dos ofícios também funcionam como organizadores das
temporalidades internas do gabinete, definindo os processos mais urgentes
e “empurrando para frente” aqueles que não podem ser analisados no mo-
mento. A necessidade de julgar certos casos o mais rapidamente possível,
devido a uma pressão do presidente do CADE ou de outros conselheiros,
por exemplo, torna alguns processos prioritários. As sessões de julgamento
quinzenais, as reuniões semanais com advogados, as avaliações semestrais
do gabinete e o período do exercício do cargo de conselheiro, por exemplo,
são temporalidades que influenciam o tempo dos processos e dos ofícios
utilizados na sua instrução. Tudo isso em conjunto faz com que a gestão da
temporalidade processual seja preocupação constante dos funcionários do
gabinete.
Além da temporalidade dos processos e dos documentos, o caráter
confidencial de certos documentos também participa na construção de sub-
jetividades, limites e possibilidades da ação burocrática. Documentos podem
ser classificados como confidenciais – ou de “acesso restrito”, conforme a
denominação da nova lei de acesso à informação – quando uma requeren-
te pede que certas informações disponibilizadas por ela para a autoridade
antitruste não possam ser visualizadas por outros interessados do processo
(como outros concorrentes do mercado investigado). O CADE necessita de-
ferir o pedido de confidencialidade para que certos trechos de documentos
tornem-se de acesso restrito. Em geral, na regulação da concorrência, as
empresas tendem a pedir sigilo de informações relativas a seus custos de
produção, rentabilidade ou estratégias empresariais, pois essas informações
podem ser utilizadas em seu desfavor por seus concorrentes.
O termo de compromisso que precisei assinar para permanecer no
CADE especificava claramente que eu não poderia ter acesso às informações
confidenciais do processo, os volumes identificados com uma fita verme-
lha. Caso eu tivesse acesso a essas informações, o documento dizia que eu
não poderia publicar ou divulgar as informações encontradas, assim como
os funcionários do órgão. Levando-se em conta que a prática analítica do
gabinete exige a manipulação, leitura e conversa sobre os autos confiden-
ciais de forma ainda mais frequente do que sobre os autos públicos, seria

regulador ou não receber um parecer favorável da autoridade.

Documentando relações e relacionando documentos 69


difícil evitar o contato com documentos de acesso restrito. Em contraste
com os autos públicos que circulam nos diversos setores do órgão, os au-
tos confidenciais não costumam sair do gabinete do conselheiro responsável
pelo processo. Esses documentos não são copiados por representantes das
partes e são ainda mais essenciais à análise antitruste para a elaboração de
ofícios e pareceres.
Mais importante, os autos confidenciais dos processos têm o efeito de
produzir uma diferenciação com relação aos limites de se compreender a
realidade que o CADE procura administrar. O conteúdo da parte confidencial
é conhecido pelo órgão administrativo e pela requerente ou representante
(empresa A, por exemplo) que solicitou a confidencialidade desses volumes.
As outras representantes ou partes interessadas no processo (empresa B,
C, etc.) não têm acesso aos volumes confidenciais da empresa A. Mas essas
empresas, B ou C, também podem ter volumes confidenciais que não são
disponíveis para a parte A. Desse modo, os volumes confidenciais constroem
duas perspectivas: aquela do órgão antitruste (“Estado”) e aquela da empresa
específica (“Mercado”). Enquanto o órgão governamental tem acesso à infor-
mações confidenciais sobre todas as empresas envolvidas numa operação,
sejam elas empresas que desejam se fusionar ou empresas interessadas na
fusão, cada uma dessas tem apenas informação parcial do mercado: os autos
públicos e a informação confidencial própria.
Durante o período em que participei da instrução de processos na Su-
perintendência-Geral do Conselho, recebi ligações de advogados pergun-
tando se havia num processo específico algum outro volume confidencial
além daquele que eles haviam protocolado. O interesse dos representan-
tes não era no conteúdo específico de um outro volume confidencial, mas
simplesmente na existência dele16. Caso houvesse um outro volume, a defe-
sa suspeitaria que algum outro participante do mercado ou interessado no
processo estaria fornecendo ao CADE informações relevantes para o caso.
A defesa, nesse caso, se anteciparia com relação a possíveis informações
prejudiciais para sua solicitação. Assim, a simples existência de documentos
confidenciais alteram o modo com que partes de um processo participam da

16 Como eu não sabia se era permitido o fornecimento da informação de que existia outro
volume confidencial no processo, perguntei ao coordenador responsável sobre como proceder.
Segundo ele, não havia nada que impedisse uma das partes do processo de saber sobre a exis-
tência de outro volume confidencial. Porém, nada obrigava ao analista (eu, no caso) fornecer
essa informação pelo telefone. Mesmo assim, acabei revelando que não havia outro volume
confidencial nos autos, visando facilitar o trabalho dos advogados.

70 Etnografia de documentos
instrução processual – os advogados que representam as partes poderiam
requerer reuniões e enviar petições ao CADE, por exemplo, caso uma outra
parte no processo tenha protocolado no órgão documentos confidenciais
relevantes.
Desse modo, a forma confidencial dos documentos produz o efeito de
uma perspectiva do “Estado” (Mitchell, 1999), uma perspectiva englobante
que incluiria todas as informações dos participantes do mercado. Os fun-
cionários do CADE, pelo fato de terem o acesso às informações confiden-
ciais, tornam-se apartados do mercado e, por isso, possuem a capacidade de
administrá-lo “imparcialmente”, ou seja, com base no ponto de vista de todas
as partes (ou de nenhuma). Tornar os documentos confidenciais é, portanto,
um mecanismo de construir fronteiras (Riles, 2011, p.113) entre perspectivas
sobre a realidade governada. O documento que autorizava a presença do an-
tropólogo no conselho, visando limitar seu acesso aos documentos públicos,
também estabelece uma clara fronteira entre as informações que podem ser
visualizadas e conhecidas pelo Estado e aquilo que não pode sair da sua es-
fera de controle. Por outro lado, a confidencialidade é, ela mesma, criadora
da possibilidade de se conceber a realidade econômica como “concorren-
cial”. A confidencialidade, como uma característica formal de documentos
do CADE, pode ser entendida como um índice de que existem estratégias
empresariais em disputa e de que as informações são parcela importante
dessas estratégias.

Considerações finais
Neste artigo, procurei descrever brevemente como documentos formatam e
padronizam ações e representações entre diferentes tipos possíveis de pro-
fissionais que são acionados na atividade de análise e investigação de pro-
cessos (Riles, 2011a:59)17. Os documentos são os artefatos comuns com os
quais economistas, advogados, juízes, gestores públicos, ou qualquer outro
profissional envolvido no trabalho analítico devem se familiarizar. Os docu-
mentos tornam os conhecimentos profissionais e os saberes esotéricos res-
tritos a certas formas ou características estéticas (Riles, 1999, 2006), como

17 Um ponto não explorado neste artigo poderia ser como, no CADE, documentos que cir-
culam e são produzidos entre o órgão, os escritórios de advocacia e as empresas, formatam e
padronizam representações e formas de conhecer mercados, empresas e consumidores, cons-
truindo entendimentos compartilhados sobre a economia.

Documentando relações e relacionando documentos 71


o “processo” ou o “ofício”. A entrada etnográfica pelos documentos permitiu
descrever práticas de conhecimento performadas por assessores, estagiá-
rios, analistas técnicos, conselheiros e coordenadores sem a necessidade
de assumir ou identificar de antemão as diferenças epistêmicas entre esses
profissionais que, na maior parte das vezes, pouco importam para o anda-
mento dos processos. Os documentos no órgão antitruste escondem essas
diferenças, pois servem, simultaneamente, como artefatos mediadores dos
procedimentos jurídicos (Pottage, 2012) e como materiais imprescindíveis18 à
produção de conhecimento sobre a vida econômica.
Por outro lado, a descrição das formas documentais do CADE e o modo
como elas são geridas ilustram como estas constroem novas diferenciações
e associações. Os diferentes sentidos que a materialidade dos documentos
ganha de acordo com seus vários usos, por exemplo, na construção de subje-
tividades e reputações – o “cuidado com os prazos”, a “eficiência” dos asses-
sores, a divisão de trabalho entre os funcionários – permitem caracterizar
os documentos como produtores de relações, não apenas refletindo ou re-
presentando classificações e hierarquias preexistentes. Ainda, uma atenção
para a agência da forma documental, ou seja, para aquilo que ela permite ou
não fazer, como no caso dos documentos confidenciais, ilustra a formação
de posições e condições de intervenção governamental que são construídas
a partir da própria materialidade das práticas burocráticas.
Procurou-se mostrar que a materialidade ou as qualidades formais e es-
téticas dos documentos (Riles, 2011) são essenciais para a compreensão dos
limites e possibilidades enfrentados tanto por funcionários de organizações
– burocracias estatais, na maior parte das etnografias – quanto por cidadãos
que lidam com elas, além de serem constitutivas de regras, conhecimento,
práticas, subjetividades, objetos e resultados burocráticos, ou até mesmo
das próprias organizações (Hull, 2012b). Se as características estéticas dos
documentos restringem e permitem simultaneamente certas formas de en-
tendimento ou de associações, sua descrição torna-se fundamental para a
compreensão das práticas e dos efeitos de organizações as mais distintas.
Vale ressaltar um ponto quanto ao modo de lidar ou “mexer” com as for-
mas documentais. O processo de construção de associações, perspectivas e

18 Bruno Latour (1988, p.6) argumenta que o documento serve como “ferramenta de inscri-
ção” (inscription device), permitindo a construção de verdades epistemológicas (fatos), devi-
do ao seu caráter “móvel” porém também imutável e combinável, podendo também ser lido e
apresentado.

72 Etnografia de documentos
sentidos descrito anteriomente implica um grande conhecimento e familiari-
dade do burocrata com as formas/modelos e os conteúdos dos documentos
do CADE. Os efeitos produzidos na relação com documentos confidenciais
deste órgão, por exemplo, são compreendidos pelos funcionários levando-se
em consideração o tipo de informação que esses documentos carregam e os
limites que o “acesso restrito” impõe. Essa “expertise documental”, neces-
sária para o governo dos papéis e identificada na secretária do gabinete do
CADE, é formada, em grande parte, na própria rotina burocrática do órgão,
como pude experienciar na minha própria trajetória dentro do conselho.
Durante o período em que estive no CADE, fui aos poucos me transfor-
mando de pesquisador-observador das práticas de conhecimento da análise
processual para colaborador-analista do conselho. Paulatinamente, come-
cei a produzir documentos como ofícios, pareceres e relatórios auxiliando
o trabalho dos meus interlocutores. No segundo semestre de campo, passei
a trabalhar como se fosse um estagiário na Superintendência-Geral do ór-
gão, instruindo três processos do tipo PA. Como economista de formação,
encontrava uma série de dificuldades em interpretar as questões jurídicas
relativas a esses processos e não conseguia produzir relatórios ou pareceres
sólidos que possibilitassem continuar a instrução desses processos. Mesmo
conhecendo as formas documentais, o modo com que elas circulavam e seus
efeitos, tendo aprendido isso observando o trabalho dos funcionários do ga-
binete, não era possível ainda redigir e interpretar um texto coerente sobre
esses casos.
A impossibilidade de interpretar e produzir documentos tornava meu
novo estatuto como “estagiário” ou “colaborador” do CADE indefinido. Não
era mais apenas um pesquisador observador, mas também não poderia ser
considerado um estagiário pleno. Esse relativo fracasso demonstra como
que o trabalho dos analistas, assessores, estagiários, coordenadores e con-
selheiros do CADE exige interpretar, produzir e “mexer” com os documen-
tos. A expertise necessária para lidar com os documentos não prescinde de
um conhecimento de suas formas, sua estética e materialidade, assim como
de certa capacidade de compreender aquilo que está escrito. Muitos an-
tropólogos têm escolhido analiticamente, em recentes etnografias, ressaltar
aquilo que parece representar um dos lados de uma mesma moeda: a forma
ou o conteúdo dos documentos. Se cada uma das perspectivas gera possibi-
lidades diferentes para a compreensão antropológica desses artefatos (Riles,
2006), pode-se perguntar em que medida essas escolhas analíticas levam em

Documentando relações e relacionando documentos 73


conta as dificuldades e problemas enfrentados por interlocutores que roti-
neiramente se relacionam, ou “mexem”, com documentos os mais variados.
Argumentou-se que o foco nos documentos, tanto por parte dos bu-
rocratas quanto por parte do etnógrafo que os estuda, exige uma reflexão
sobre suas formas e também seus conteúdos (Hull, 2012a). A análise feita
no antitruste, exemplificada acima, exige concomitantemente práticas de
documentação de relações (concorrenciais, industriais, contratuais, finan-
ceiras, geográficas, entre outras) e práticas de relacionar e organizar docu-
mentos. As diferentes atividades que podem ser feitas com os documentos e
que estes permitem que se faça – enviar e receber, separar, copiar, interpre-
tar, corrigir, redigir, revisar, disponibilizar ou tornar confidencial – apontam
para diferentes relações possíveis entre as formas documentais e seus con-
teúdos. Documentar relações e relacionar documentos parecem ser igual-
mente imprescindíveis tanto na prática burocrática quanto na etnográfica.

74 Etnografia de documentos
Referências bibliográficas
COHN, Bernard. An Anthropologist among the Historians, and Other Essays. Nova
York: Oxford Univ. Press, 1987.

CONSIDERA, Claudio; CORRÊA, Paulo. The Political Economy of Antitrust in Brazil:


from Price Control to Competition Policy. In: Fordham Conference on Competition
Policy. Nova York, 2002.

FORGIONI, Paula. Os fundamentos do antitruste. 6. ed. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2013.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Petrópolis/Lisboa: Vozes/ Centro do Li-


vro Brasileiro, 1972 [1969]. 260p.

GOODY, Jack. The Domestication of the Savage Mind. Cambridge, UK: Cambridge
University Press, 1977.

GUPTA, A. Red Tape: Bureaucracy, Structural Violence, and Poverty in India. Durham,
NC: Duke Univ. Press, 2012.

HARPER, Richard. Inside the IMF: An Ethnography of Documents, Technology and Ac-
tion. Londres: Academic Press, 1998.

HOLMES, Douglas. Economy of words. Cultural Anthropology, v.24, n.3, p.381-419,


2009.

HOLMES, Douglas. Economy of Words: Communicative Imperatives in Central Banks.


Chicago: Chicago University Press, 2014.

HULL, Matthew. Government of paper: the Materiality of Bureaucracy in Urban Pakis-


tan. Berkeley: University of California Press, 2012a.

______. Documents and Bureaucracy. Annual Review of Anthropology, v.41, n.251-67,


2012b.

LATOUR, B. Visualization and Cognition: Drawing things together. In: H. Kuklick


(ed.). Knowledge and Society Studies in the Sociology of Culture Past and Present, Jai
Press, v. 6, pp. 1-40, 1988.

______. La fabrique du droit: une ethnographie du Conseil d’État. Paris: La Découverte,


2002. p 320.

______. Reassembling the Social: an introduction to actor-network-theory. Oxford:


Oxford University Press, 2005.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 37. ed. São Paulo: Malhei-
ros Editores, 2010 [1990].

MIOLA, Iagê. Law and Economy in Neoliberalism: The Politics of Competition Regula-
tion in Brazil. 2014. Tese (Doutorado em Direito e Sociedade) – Università degli Studi
di Milano, Milão, 2014.

Documentando relações e relacionando documentos 75


MITCHELL, Timothy. Society, economy, and the State Effect. In: Steinmetz, G. (ed.).
State/Culture: State-Formation after the Cultural Turn. Ithaca/Nova York/Londres:
Cornell University Press, 1999. p. 76-97.

MOTTA, Massimo. Competition policy: theory and practice. Cambridge: Cambridge


University Press, 2004.

ONTO, Gustavo. Da irrelevância do mercado ao mercado relevante: economistas,


teoria econômica e política antitruste no Brasil. 2009. Dissertação (Mestrado em Ad-
ministração Pública e Governo) – Escola de Administração de Empresas, Fundação
Getúlio Vargas, São Paulo, 2009.

POTTAGE, Alain. The Materiality of What?. Journal of Law and Society, V.39, n.1, p.
167-183, mar. 2012.

RILES, Annelise. Models and Documents: Artefacts of International Legal Knowledge.


The International and Comparative Law Quarterly, v.48, n.4, p.805- 825, 1999.

______. (ed.). Documents: Artifacts of Modern Knowledge. Ann Arbor: University of


Michican Press, 2006.

______. Collateral expertise: legal knowledge in the global financial markets. Current
Anthropology, v.51, n.6, p.795-818, 2010.

______. Collateral knowledge: legal reasoning in the global financial markets. Chicago:
The University of Chicago Press, 2011.

SHARMA, A.; GUPTA, A. Introduction: Rethinking theories of the State in the age of
globalization. In: SHARMA, A.; GUPTA, A. (ed.). The Anthropology of the State. Oxford:
Blackwell, 2006. p. 1-41.

WEBER, Max. Economía e Sociedad: esbozo de sociología comprensiva. México D.F.:


Fondo de Cultura Económica, 2005 (1922).

76 Etnografia de documentos
CAPÍTULO 3

Cartas reduzidas a termo


Processos de estado e trâmites do comando
na gestão das relações em uma penitenciária
feminina da cidade de São Paulo1
Natália Corazza Padovani

Apresentação
O Primeiro Comando da Capital, ou o PCC, já foi definido como um coletivo
de presos, criado na década de 1990, com o objetivo de melhorar a vida dos
presos no convívio dos pavilhões das prisões paulistas. As histórias sobre o
surgimento desse coletivo são bastante polissêmicas. Ele pode ter sido cria-
do na Casa de Detenção do Carandiru – cenário do Massacre do Carandiru
no qual, em 2 de outubro de 1992, morreram mais de cem presos –, mas
pode, também, ter sido idealizado na Casa de Custódia do Taubaté na for-
mação de um time de futebol (ver: DuRap e Zeni, 2002; Leite, 2005; Jozino,
2005; Biondi, 2009).
Autores como Feltran (2011), Hirata (2009) e Silva (2014) têm ilustrado, contu-
do, que mais do que um coletivo de presos, o Comando se capilarizou atra-
vés das tramas relacionais entre periferias e prisões de São Paulo. Por meio
dessas tessituras atravessadas não só pelos mercados ilegais, como também,
por ordenamentos morais, o PCC passou a constituir “outros aparelhos ju-
rídicos” aos quais moradores de bairros como Sapopemba, na Zona Leste de
São Paulo, também recorrem (Feltran, 2010a).

1 Agradeço à Letícia Ferreira e Laura Lowenkron pelo convite por participar dessa coletânea
e também pelas leituras cuidadosas. Agradeço a elas, principalmente, pelas trocas sempre pro-
dutivas e pela amizade cuidadosa.

Cartas reduzidas a termo 77


De mesmo modo, não poucas vezes ao longo de todo o período em que fiz
trabalho de campo em penitenciárias femininas de São Paulo2, o PCC foi
comparado com os aparelhos jurídicos prisionais. Uma delas aconteceu no
meu último ano de trabalho de campo, em 2013, quando várias das mulhe-
res em cumprimento de pena na Penitenciária Feminina de Santana (PFS)
me pediram ajuda para tentarem encaminhar ao Ministério Público uma de-
núncia sobre os atrasos nos pagamentos dos salários feitos pelas oficinas
de trabalho naquela prisão. Enquanto me apresentavam recibos de meses
anteriores, nos quais mesmo os pagamentos atrasados não haviam sido fei-
tos integralmente, reclamavam das funcionárias da prisão que, segundo elas,
haviam se recusado a ouvi-las e auxiliá-las sobre o caso. Perguntei, então, se
elas haviam apresentado o problema e todo aquele dossiê cuidadosamente
montado às irmãs do Comando, ou seja, àquelas presas reconhecidas como
integrantes do coletivo e que exercem alguma função política/administra-
tiva para o seu funcionamento. Perguntei ainda qual havia sido o posicio-
namento delas. A resposta, prontamente dada, foi uma repetição de outras
tantas que eu já havia ouvido antes.
Você já viu como anda a fila do fórum lá de cima? Tá maior que a
daqui de baixo! E as irmãs não querem saber disso, não. Só querem
mesmo saber quem ficou com quem, quem tá de caso com quem,
quem traiu o marido, quem tá de sapatão. É só fofoca, senhora. A
gente prefere fazer os corres sem passar pelo fórum, isso se a se-
nhora não se opor, claro.

Fórum lá de cima”faz referência à cela onde viviam as “irmãs do PCC”,


geralmente localizadas nos últimos andares dos prédios de moradia dos pa-
vilhões, enquanto “fórum daqui de baixo” é como foram chamadas as salas
de atendimento jurídico daquela unidade penitenciária localizada no térreo

2 A primeira vez que entrei em uma penitenciária feminina paulista foi em 2003, para a rea-
lização de minha pesquisa de Iniciação Científica sobre oficinas de trabalho na agora desativada
Penitenciária Feminina de Tatuapé, São Paulo, sob orientação do professor Rui Gomes Braga
Neto (Padovani, 2006). No mestrado, segui com o trabalho de campo em prisões na Penitenciá-
ria Feminina da Capital, também em São Paulo, sob a orientação de Maria Lygia Quartim de Mo-
raes (Padovani, 2010). Neste período participei, ainda, como voluntária na Pastoral Carcerária.
Minha última visita a prisões femininas foi em junho de 2013. O trabalho de campo feito para o
doutorado ocorreu através de visitas e atividades de pesquisa na Penitenciária Feminina da Ca-
pital. Estas foram aprovadas pela Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP)
e pela juíza corregedora da Vara de Execuções Criminais do Fórum da Barra Funda. Além disso,
desde 2009 realizei visitas semanais à Penitenciária Feminina de Santana como voluntária da
Pastoral Carcerária. Sobre minha inserção ao campo e a problematização desta, ver Padovani,
2015.

78 Etnografia de documentos
do pavilhão administrativo. A resposta dada coletivamente à minha pergunta
por meio destes mapeamentos, que diferenciavam e equalizavam o PCC e os
aparatos administrativos penitenciários, encerrava impressões e narrativas
colhidas em campo. Dados que me faziam olhar para a produção de justa-
posições entre processos jurídico-policiais e para o Comando de modo mais
atento. Dados que gritavam, inclusive, sobre as possibilidades de articulação
política que passavam ao largo do fórum, fosse ele o de cima ou o de baixo,
mesmo que estas articulações se direcionassem ao Ministério Público.
Também não era a primeira vez que eu ouvia que a principal atribuição
das irmãs do Comando na prisão feminina era “cuidar da vida das bandidas”,
e eu sabia que toda a tensão de Adelina, protagonista das páginas a seguir,
decorria dos cuidados que eram dispensados à vida íntima das mulheres
presas e com algum tipo de envolvimento com os homens do Comando. Vida
íntima a qual, em outro momento (Padovani, 2010), vi ser objeto administra-
tivo basal da manutenção e produção da instituição penitenciária feminina.
Dentro dos pavilhões, contendas e relações de poder eram produzidas pelas
tecnologias de gênero (Lauretis, 1984), que têm historicamente fundamenta-
do discursos de “verdade” acerca do que é ser “mulher” e, mais ainda, do que
é ser “mulher bandida”. Discursos articulados pelos cerceamentos e regula-
ções de práticas/prazeres/relações sexuais.
No embaralhamento desses processos de regulação e poderes relacio-
nais, a personagem deste artigo produz artifícios argumentativos que acio-
nam expertises calcadas tanto nos aparatos técnico-burocráticos de docu-
mentação, quanto nas sofisticadas tramas da argumentação oral, ferramenta
significativamente valorizada nas negociações com o Comando e nos seus
trâmites.
Os trâmites, assim como os “casos” – que pode se tratar do caso policial,
do caso que está na justiça, e, também, do caso com a companheira de cela,
o caso com o “correspondente” –, significam procedimentos documentais,
judiciais, policiais, e também os trâmites da vida íntima: contar ou não contar
ao marido sobre um caso, falar ou não à mãe sobre uma briga na prisão, um
castigo, uma retaliação. São os trâmites que enlaçam/desenlaçam pessoas e
histórias. “Fazer os trâmites”, nesse registro, significa refletir acerca da ati-
tude, ponderá-la, mas também, seguir o protocolo e, de acordo com ele, pe-
dir comprovações e esclarecimentos. Trâmites de processos de justiça que
funcionam também com o PCC.

Cartas reduzidas a termo 79


Em seus tensos debates ou na articulação dos trâmites com as irmãs
e os irmãos do Comando – com as torres do PCC –, Adelina fazia visíveis e
invisíveis palavras e letras impressas em cartas. As cartas, nas mãos dela, vi-
ravam documentos: complexos prontuários de comprovação da sua relação
a serem examinados nos processos que intentavam “saber”, ou produzir, a
verdade sobre a “caminhada” de Adelina.

Da produção dos papéis de caminhada reta por pés quebrados:


Adelina, advogada da vida
Num sábado frio de julho de 2011, fui ao pátio do terceiro pavilhão da Peni-
tenciária Feminina da Capital assistir ao jogo de vôlei que, costumeiramente,
acontecia naquele horário. Sentada em um dos bancos de cimento, estava
uma menina sozinha que gritava opiniões num processo divertido de quase
arbitragem da partida. Perguntei se podia ficar ali com ela, ao que me res-
pondeu que sim.
Com os cabelos compridos pretos bem enroladinhos e presos em uma
presilha de plástico, era Adelina. Assim que me sentei, perguntou o que eu
estava fazendo ali em pleno sábado, “se pudesse hoje eu ia estar em casa
assistindo filme e comendo pipoca debaixo das cobertas!”. Contei a ela sobre
minha pesquisa de doutorado e Adelina perguntou se eu tinha Facebook. Pe-
diu que eu escrevesse em um papel meu nome completo, tal como aparecia
na página da rede social. Sabia o que ela me pedia. Queria saber quem eu era,
queria me investigar por meio do Facebook que ela, ou alguém desde dentro
ou desde fora da prisão, ia acessar para saber se eu era mesmo quem dizia
que era3. Anotei meu nome em um papel e entreguei à Adelina, que se levan-

3 Aparelhos celulares são proibidos em todas as unidades prisionais da federação brasilei-


ra. Como é de conhecimento público, contudo, os telefones são artefatos comuns entre gran-
de parte dos corredores penitenciários. Ver, por exemplo: “Teste comprova que os aparelhos
de celular funcionam melhor dentro das prisões”, em http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/
videos/t/edicoes/v/teste-comprovoca-que-os-aparelhos-de-celular-funcionam-melhor-
-dentro-das-prisoes/2936811/. As políticas de repressão ao uso de aparelhos celulares nas
prisões coadunam com as políticas de repressão ao tráfico de drogas, já que, segundo Polícias
Civil e Militar, o celular funciona como tecnologia que possibilita a administração do mercado
de drogas dentro das prisões. O campo etnográfico, entretanto, desvela que o aparelho é usado,
principalmente, para outros fins: falar com mães, filhos, namorados, maridos, esposas. Manter
a comunicação entre “dentro e fora” das prisões, como ressalta o trabalho de Bruna Bumachar,
2012. Alguns telefones que circulam dentro das penitenciárias têm acesso à Internet, outros (ou
grande parte) não. Parte das transações econômicas que envolvem aparelhos celulares dentro
das prisões é o aluguel de minutos, créditos. Quando digo que alguém, desde dentro ou desde

80 Etnografia de documentos
tou e pediu que eu a esperasse um instante. Obedeci. Pouco tempo depois,
Adelina desceu de sua cela carregando saquinhos e uma caixa de sapatos
branca onde estavam guardadas cartas, cartões, fotos, desenhos, a sentença
publicada e números de processos ainda sem julgamento, em trâmite no tri-
bunal de justiça, portanto.Juntos, aqueles papéis carregavam as escritas da
vida de Adelina que era, assim, gestada na prisão. As cartas em que estavam
escritas suas relações eram, necessariamente, embaralhadas aos documen-
tos que legibilizavam seus processos criminais.
Os processos e andamentos, Adelina havia recebido de defensores pú-
blicos e assistentes sociais da prisão. As fotos e os cartões vinham de sua
mãe. As cartas e os desenhos ela recebera de seu marido, de seu irmão e
também de outro homem com quem ela, por algum tempo, havia se corres-
pondido e mantido uma relação através de correspondências. Marido, irmão
e amante de Adelina estavam, como ela, presos. Os papéis que me mostrava
teciam relações entre prisões, mas também entre a rede de manutenção e
produção das instituições penitenciárias: a casa de sua mãe, o fórum crimi-
nal, o pavilhão administrativo da unidade.
Fora da caixa, ainda sem registro a ser guardado nos saquinhos, estava
outra relação de Adelina que se fazia ver pela tatuagem que ela carregava no
antebraço. Esta a enredava aos “cafofos”, as celas da Penitenciária Feminina
da Capital e a enredaria, ainda, aos trâmites da Penitenciária Feminina de
Santana para onde havia sido transferido Guinu – sapatão com quem Adelina
começara a namorar durante sua estadia no terceiro pavilhão da PFC e de
quem o nome ela havia tatuado no braço.

Da caminhada de Adelina: sua história pregressa e seus


mapeamentos relacionais
Adelina foi presa ao tentar entrar com drogas na Penitenciária de Getulina,
prisão masculina onde seu marido cumpria pena sob a acusação de furtar
carros. Durante sua prisão, ela passou a responder também como cúmplice
em processos de assaltos e furtos nos quais seu marido era réu. Quando a
conheci, ela estava presa há pouco mais de três anos e não sabia ao certo
quanto tempo mais de pena teria para cumprir, já que ainda esperava pelo

fora da prisão, iria acessar meu perfil no Facebook é porque este acesso poderia ser feito via
ligação telefônica para alguém fora da prisão com conexão à rede ou aluguel de minutos de um
aparelho conectado à Internet.

Cartas reduzidas a termo 81


final dos julgamentos de processos a que respondia como corréu. Sua in-
certeza sobre os anos que ainda teria de passar na cadeia, contudo, não a
afligiam, pelo contrário. Desde o pátio da prisão, Adelina dizia estar feliz.
Sentada nos banquinhos do terceiro pavilhão da Penitenciária Femi-
nina da Capital, Adelina contava-me sobre seu caso com Guinu – “Sapatão
conhecido na prisão, como você nunca ouviu falar dele?”, me perguntava – e
sobre seu casamento com o antigo parceiro de “tacadinhas”.4 Casamento o
qual Adelina mantinha sem muito entusiasmo. Ela dizia não se importar mui-
to em saber se seguia mesmo casada com ele após os anos passados pelos
dois na prisão, mas que também não queria tomar a iniciativa de pôr fim à
relação de tanto tempo por meio das cartas que enviava a seu marido sem
muita recorrência – “Ele até me manda mais cartas, escreve quase sempre,
mas eu respondo uma aqui, outra ali...”Adelina mantinha seu casamento via
trocas esparsas de correspondências, que não eram suficientes para rechear
os saquinhos e a caixa que me trazia ao pátio. Estes eram preenchidos com
os papéis de seus casos em andamento na justiça, suas trocas com irmão e
mãe, seu caso mantido com o amante. Este último, sim, terminado em prol
do namoro com Guinu, por quem Adelina pleiteava ser também transferida
para a Penitenciária Feminina de Santana – o que aconteceu pouco tempo
depois de nosso primeiro encontro, no banco do pátio do terceiro pavilhão
da Penitenciária Feminina da Capital.
Sua transferência para a PFS fez com que nós nos desencontrássemos
por meses. Agora Adelina estava dentre as mais de 2.500 mulheres presas
na maior unidade penitenciária feminina da América Latina, a Penitenciária
Feminina de Santana. Só voltamos a nos encontrar em abril de 2012.

***

Sozinha, sentada no chão do pátio de um dos pavilhões da PFS, fiquei


observando o movimento dos pequenos pacotes circulando, cobranças e
mandos vindos de celas fechadas e movimentadas pelo entra e sai inces-
sante. Pernas andavam de um lado para o outro sem o uniforme, às vezes só

4 “Tacadinhas” é como são chamadas as pequenas ações ilegais. Um furto de moto, um assal-
to a um ônibus ou a um estabelecimento comercial, uma viagem carregando cocaína, maconha,
crack, são ações que não configuram envolvimento com mercado ilegal de drogas ou com uma
profissionalização na atuação de assaltos e sequestros, por exemplo, mas são tacadinhas: “bicos”
pontuais que ajudam a incrementar os ganhos financeiros em determinadas circunstâncias.

82 Etnografia de documentos
de camisola. Meninas transitavam levando baldes, rodos, cestas de roupas
limpas e sujas, tintura de cabelo, bacias e instrumentos para manicure e
pedicure. Deitada no chão do pátio, estava uma menina aparentemente in-
cólume ao intenso movimento do comércio de mercadorias e serviços de
limpeza e estética que acontecia a seu redor. Tomava sol com a camiseta le-
vantada até o início dos seios e mantinha as calças dobradas de tal modo que
deixavam à mostra suas pernas peludas pelos anos passados na prisão, anos
sem muita depilação. Mais uma vez, era Adelina. Como no dia em que nos
conhecemos, ainda na Penitenciária Feminina da Capital, fui ao seu encontro
e pedi para me sentar a seu lado. Quando me viu Adelina sorriu: “É você! Não
acredito que vou poder falar com alguém!” Desde nossa última conversa, ela
não parecia mais tão feliz na prisão. Sua exclamação carregava apreensão e
certo alívio.
Mais uma vez, Adelina queria mostrar suas cartas, que agora eram razão
de ansiedade. Aguardei enquanto ela entrava em sua cela e voltava ao pátio
carregando a mesma caixa de papelão branco e outros tantos saquinhos,
seus arquivos. Ventava muito aquele dia e os papéis voavam enquanto ela
tentava, freneticamente, me explicar que precisava falar com alguém. Pre-
cisava de ajuda para entender o que, afinal, estava acontecendo com a sua
vida, ou melhor, com o seu casamento. “Nem acredito que você está aqui,
que vou poder falar com alguém!” E começou a falar sobre seu marido.
Lembra que eu não dava a menor para ele quando fui presa?
Ele não era nada, era pobre, magrelo e feio. Fui na pedalada com
aquele cara. Mandava carta, mandava foto e ele me mandava uns
cigarrinhos, coisa assim... Caí no lesco com o Guinu! Olha só a ta-
tuagem enorme que fiz do nome dele no meu braço! Mano, nem
te conto do rolo dessa tatuagem... E não terminei com meu ma-
rido, mas também nunca me esforcei, né? Ó quanta carta ele me
enviou nesse tempo todo, eu respondia a uma aqui, a outra ali. Às
vezes nem respondia. Mas aí, recebi uma carta que me fez querer
mudar tudo.

Enquanto falava, Adelina procurava a carta que dizia ser a certa, o que
não a impedia de me entregar outras tantas correspondências pedindo que
eu as lesse prestando atenção nas palavras, “nos códigos do partido”, carim-
bos do Primeiro Comando da Capital. Quando achou a carta que procurava,
já tínhamos lido juntas três outras, todas escritas por seu marido. Em algu-
mas letras, alguns cantos das folhas, apareciam pequenos pingos ou dese-
nhos para os quais Adelina apontava dizendo: “Tá vendo só? São os símbolos

Cartas reduzidas a termo 83


do partido! É código, mano. Ele virou irmão!” Essa era toda a questão de Ade-
lina, razão de preocupação e ansiedade. Durante os anos passados dentro da
prisão, seu marido, antes magrelo, pobre e feio, havia conseguido crescer
dentro do PCC. Havia conseguido galgar posições de confiança e, por fim,
tornar-se irmão. Ser “batizado”5 e reconhecido como integrante do coletivo.
Nas cartas que lemos, ele dizia que a vez deles estava chegando, que era
para ela ter paciência, que se ela “pedalasse” com ele direitinho, ou seja, se
ela mantivesse um bom comportamento dentro do pavilhão, não ficasse de-
vendo para ninguém, não se correspondesse com outros homens nem caísse
no “lesco”, quer dizer, se não se relacionasse sexualmente com ninguém den-
tro da prisão feminina, tudo iria dar certo. Que ele não iria abandoná-la bem
naquele momento. Que ele não se esquecera dos anos passados com ela.
As letras de seu marido faziam Adelina sentir-se eufórica e temerosa.
Era a vez de assumir aquele que por tanto tempo não havia deixado de enviar
uma carta sequer. Era a vez dela se tornar “cunhada”, quer dizer, esposa de
irmão. “É, porque as irmãs são tudo lagartixa dos irmãos, né? Mas nós, não!
Cunhada é a mulher dos home! A gente é quem manda mesmo.” Dizia Adeli-
na, ansiosa e incrédula de que ela e seu marido, magrelos, pretos e pobres,
estavam em vias de se tornarem irmão e cunhada do partido. Fato que a dei-
xava orgulhosa e apavorada ao mesmo tempo.
No processo de tornar-se irmão ao qual seu marido estava inserido,
todos os segredos sobre a vida de Adelina durante os quatro anos passados
na prisão seriam, muito provavelmente, a ele revelados pelas irmãs da prisão.
Afinal, “entrar para a família” implicava “saber a caminhada” dos novos inte-
grantes. Ela sabia que, cedo ou tarde, ele descobriria tudo por intermédio
das “lagartixas dos irmãos”. Adelina resolveu, então, contar ela mesma sobre
os acontecimentos de sua vida nos últimos anos. Mandou uma carta falando
de todos os seus casos com mulheres, de Guinu (com quem terminou a re-
lação assim que começou a receber as cartas de seu marido escritas com os
tais códigos do Partido) e, também, do homem com quem trocava cartas por
cigarros, fotos... Era a resposta a esta carta que ela tanto queria me mostrar.

5 Batismo é o processo pelo qual alguém passa a integrar o coletivo do PCC como irmão/
irmã. A partir da nomenclatura irmão/irmã, são feitas outras nomeações, como cunhada, que
indica que a mulher é casada com um irmão e primos/as, sendo uma pessoa envolvida com o
partido, mas não batizada. Sobre esta gramática que trama ordenamentos familiares e princi-
palmente religiosos aos do coletivo e do “crime”, sugiro ver: Vitalda Cunha, 2008; Almeida, 2009;
Marques, 2013 e Takahashi, 2014.

84 Etnografia de documentos
Em linhas escritas com canetas de várias cores, ele dizia em vermelho
e em letras garrafais estar “decepcionado mesmo”. Mas em azul e em letras
corridas dizia que, apesar de tudo, iria perdoá-la com a condição de que ela
mantivesse “a caminhada” a partir dali. Por fim, a carta terminava com a frase
grifada: “Para provar teu amor, você vai passar uns venenos por uns tempos”.
Era isso que Adelina queria falar com alguém. Queria conversar sobre aquilo
para tentar entender de que venenos as letras do marido que ela não via há
tantos anos falava.
Você me ajuda a entender? O que você acha? Porque, ó, eu não
posso perguntar essas coisas para as irmãs. Ó, sei que, de uns
tempos pra cá, eu tinha uma dívida de quinhentos reais e nem me
puseram no vermelho, nem vieram me cobrar. Eu outro dia enfiei
o dedo na cara da irmã e ela nem relou a mão em mim. Mas aí
disseram que tiraram umas fotos da minha tatuagem [mostrando
o braço onde estava escrito o nome de Guinu] e mandaram por
mensagem de celular pra ele. Mano, fizeram isso! E tem também
essa menina que descobri que meu marido estava escrevendo
para ela. E ela é bonitona! E eu com a perna peluda e o cabelo
quebrado. Porque, véio, na rua eu não sou esse bagulho, não. Na
rua eu sou bonita pra caralho! Aí acho que ele começou a pedalar
com essa menina que mora com as irmãs daqui, entendeu? E ela
é bonita, nunca lescou, tem toda a caminhada certinha. Bandida
mesmo. Eu tô pirando? Meu marido fala que tá só comigo, mas eu
sei que ele também tá correndo com ela, entendeu? Eu sei, todo
mundo sabe. Ela mora com as irmãs! Ela vive na torre! Mano, aí
eu fui pros trâmites! Pedi pra irmã botar todo mundo na linha e ir
pros trâmites! A irmã riu da minha cara. Mas aí eu enfiei o dedo
na cara dela e disse que, se ela não queria resolver problema de
pé quebrado, que nem tinha de ter virado irmã. E aí que tá! Nin-
guém toca em mim. Ninguém me bate, mano! Aí eu fico pensando
que meu marido tá falando que tá me esperando para eu sair da
cadeia e ir lá visitar ele e ele raspar meu cabelo, entendeu? Ao
mesmo tempo fico pensando que ele já podia ter mandado me
baterem aqui... Véio, tô com medo de tudo. Tá foda, tô ficando
doida mesmo. Esse homem tá me deixando louca. Eu preciso sa-
ber logo se vou morrer ou se virei cunhada.

Do chão do pátio da Penitenciária Feminina de Santana, escutava a fala


nervosa de Adelina. Ela sentada de costas, e eu de frente para o grande pré-
dio dividido por janelas com grades que iam do térreo ao quinto andar: um
dos raios ímpares ou pares de um dos três pavilhões da PFS. A seu modo,
Adelina me contava que estava devendo dinheiro na prisão e que, ainda as-
sim, deixavam-na continuar comprando o que ela quisesse, ou seja, que não

Cartas reduzidas a termo 85


a haviam colocado “no vermelho”. Que, mesmo tendo “enfiado o dedo na
cara da irmã” e, assim, a desrespeitado, seguia inteira, sem apanhar ou sofrer
qualquer tipo de retaliação ou “cobrança”. Com as cartas de seu marido nas
mãos, Adelina tentava compreender qual era o veneno destilado em decor-
rência dos segredos que ela havia revelado. Queria saber, afinal, se o destino
dela era morrer ou se havia, enfim, “virado cunhada”, “mulher dos home”,
bem mais do que “as lagartixa dos irmãos”, portanto.
Adelina tinha os pés cansados, ou, em suas palavras, quebrados. Pé que-
brado de caminhadas tortas, disso se trata a expressão. Se “manter a cami-
nhada reta” implicava andar na fina linha da boa conduta da bandida, mãe
e esposa heterossexual, Adelina tropeçara e caíra com os pés nas navalhas.
Em sua caminhada, sua história pregressa, existiam amores com mulheres,
cartas trocadas por cigarros, favores, namoros, casos. Adelina ouvia falar
que mulheres de pés quebrados como ela, mulheres de caminhadas tortas,
tinham os cabelos e as sobrancelhas raspados: marca da traição. Uma “co-
brança”, uma retaliação às esposas que traem os maridos. Porém, mais do
que isso, Adelina ouvira falar que mulheres como ela, de caminhadas tortas,
pernas peludas e cabelos quebrados, não podiam desafiar a torre. Sequer
“subiam na torre” sem que tivessem algum trâmite para resolver.
Nas etnografias de Karina Biondi (2009) e Gabriel Feltran (2010b), torre
é definida como uma posição política relacional existente no PCC a qual não
pode ser “confundida com ‘chefia’ ou ‘gerência’, já que não responde a um
modelo piramidal de organização” (Feltran, 2010b, p. 63). Tanto Biondi como
Feltran, portanto, deslocam a palavra torre de qualquer arranjo facilmente
localizável numa arquitetura do Comando. Nas descrições das pessoas em
cumprimento de pena nos pavilhões da Penitenciária Feminina de Santana,
entretanto, a torre era apontada e situada pelas presas em termos arquite-
tônicos. Havia quem “vivia na torre” e quem sequer “podia subir” à torre. Mas
sobretudo era a torre a referência que definia quem sentava de frente ou de
costas para as janelas do pavilhão durante uma conversa no chão do pátio. A
torre de que falava Adelina e outras pessoas que circulavam pelos pavilhões
da PFS era a cela onde moravam as irmãs do Comando, as responsáveis pelas
orientações, fiscalizações e decisões que ordenam condutas e cotidianos das
presas: “o fórum de cima”.
Ao longo de todas as minhas visitas à unidade prisional de Santana, foi
comum que as interlocutoras me pedissem para se sentarem de costas para
a torre para contarem seus segredos. Elas sentavam-se de costas e eu de

86 Etnografia de documentos
frente. Este não era um ato simbólico, mas protetivo. Pediam que a nossa
disposição em relação aos edifícios dos pavilhões fosse assim para que nin-
guém pudesse “ler seus lábios”, “deduzir suas palavras”. Nesse registro, as
estratégias para escapar do “controle da torre” assemelhavam-se às formas
de esquiva produzidas cotidianamente em relação às agentes de segurança
e funcionárias da prisão. Tanto nas negociações com a “torre” quanto com
a “polícia”,6 era necessário saber usar (ou silenciar) as palavras e ferramen-
tas corretas. Percebendo isso, Adelina passou a usar artifícios que conhecia
desde suas negociações com os agentes de outro aparato jurídico: do fórum
e da prisão.

Cartas na juntada: dos trâmites e das palavras documentadas


por Adelina
Adelina, ao “pedir para a irmã botar todo mundo na linha e ir pros trâmites”,
demandava explicações a todos os envolvidos nos últimos acontecimentos
de sua vida por meio de uma “acareação”, um debate. Deste modo, convoca-
va a presença simultânea das irmãs do Comando, da mulher com quem ela
acreditava que seu marido estava tendo um caso e, claro, do marido – pre-
sente por um aparelho celular ligado no modo viva-voz – em uma mesma
cela.
Ela intentava, assim, esclarecer se ele era ainda “seu marido” como ele
dizia ser nas cartas – as quais Adelina levava em mãos –, ou se estava man-
tendo um relacionamento com ela e com a “menina que mora com as irmãs e
que tinha a caminhada toda certinha”. O resultado da solicitação de Adelina,
contudo, a deixara ainda mais confusa. Não havia esclarecimentos fáceis nos
trâmites do Primeiro Comando da Capital.
A solicitação de Adelina terminou com a palavra dada por seu mari-
do, na presença das irmãs e da suposta amante dele, de que ambos conti-
nuavam casados e que ele não mantinha relações ou correspondências com

6 Palavra também utilizada para fazer referência às agentes de segurança penitenciárias e


às funcionárias da prisão. Nas falas das pessoas em cumprimento de pena, todas aquelas que
estão “do lado de lá da grade”, que têm “a chave” e a “caneta” para “abrir ou fechar a cadeia”, eram
referenciadas pela palavra “polícia”, mesmo se não fossem policiais. “Polícia”, nesse registro, é
utilizada como referência de diferenciação entre quem está preso e os agentes dos dispositivos
de Estado que os enviam para a prisão e lá os mantêm. A utilização da palavra “polícia” para
referir-se aos funcionários da prisão já foi bastante ilustrada por autores como Biondi (2009),
Marques (2009), Barbosa (2005).

Cartas reduzidas a termo 87


mais nenhuma pessoa que não fosse ela, Adelina. Ao mesmo tempo, enquan-
to contava sobre o debate, Adelina me dizia que por várias vezes o telefone
havia sido retirado do modo viva-voz e que ele havia falado apenas com ela
em particular ou, ainda, com a “amiga das irmãs”.
Mano, era muito estranho. Ele falava comigo pelo telefone, de-
pois falava com ela, aí voltava pro viva-voz. E quando ele falava
com ela, eles ficavam de risinho. Ela dava umas risadinhas, uns
sorrisinhos. Aí eu pedia pra passar o telefone e perguntava: quê
cês tavam falando aí? Ele dizia que nada, que tava falando pra ela
que tava comigo. Botava a culpa na bateria do aparelho pra tirar
do viva-voz, mano... Aqui não é bagunça! Ele falou que tá comigo,
tem de correr comigo e deixar isso no claro. Ainda tô no veneno,
num vô aguentar ficar assim não, véio.

Uma semana após nossa conversa sobre as (não) resoluções decorren-


tes do trâmite demandado por Adelina, retornei à Penitenciária Feminina de
Santana, onde a encontrei. Naquele dia, ela disse ter criado uma forma de ao
menos se proteger do veneno, caso não saísse dele. Para tanto, Adelina iria
precisar de minha ajuda. Ela decidiu que, antes de enviar qualquer carta para
seu esposo, faria um cópia dela. Deste modo poderia montar um dossiê com
as duas partes da conversa, registrando tanto as suas palavras quanto as dele.
Tal ideia veio depois que Adelina recebera uma carta de seu irmão, também
preso, mas em uma “cadeia do Comando” diferente da que estava o seu mari-
do. Nesta, ele a apresentava para seu amigo de cela e dizia que, como Adelina
estava solteira em decorrência do término recente de seu casamento, ele
gostaria de apresentá-la para o seu amigo. “Um cara bom, tá entendendo?
Ele vai proteger a gente. Ele tá cuidando de mim aqui. Quero muito que você
conheça ele, tá entendendo?” Diante dessa carta, Adelina começou a se per-
guntar quem havia contado a seu irmão sobre sua separação do marido, que,
por sua vez, insistia em manter o casamento. Também questionava se tudo
aquilo, as conversas feitas durante o debate fora do modo viva-voz e a carta
que recebera de seu irmão, não era parte do veneno que teria de passar para
“provar o seu amor” pelo esposo. Mas, para além de seus questionamentos,
eram as palavras usadas por seu irmão que mais a afligiam. Afinal, por que ele
dizia que estava sendo cuidado por seu parceiro de cela? Do que seu irmão
precisava ser protegido?

88 Etnografia de documentos
Ao ler a carta que vinha do irmão, Adelina telefonou para a mãe com
a intenção de saber mais da situação dele dentro da prisão7. A mãe, então,
disse estar muito preocupada. Segundo ela, alguns parceiros da cela em que
o irmão de Adelina vivia o acusavam de ser homossexual e não ter avisado
nada aos demais presos sobre isso. As acusações dos parceiros de cela de seu
irmão motivaram a transferência dele para a cela de um dos “faxinas” do PCC
naquela cadeia, quer dizer, dentre outras coisas, de um dos responsáveis
pela mediação de conflitos naquela unidade8.
Como Boldrin (2014), Dias (2011) e Biondi (2009) ressaltam, homosse-
xuais em cumprimento de pena nas prisões masculinas “do Comando” (ou de
outras “facções”, como explicita mais especificamente Dias), são interditados
de dividirem copos, talheres ou outros utensílios cotidianos que possuam a
carga simbólica da “contaminação” (Douglas, 2012; Feldman, 1991). As etno-
grafias destes autores elucidam, ainda, que mesmo a presença de homos-
sexuais no “convívio”, ou seja, nos pavilhões de moradia, é tensionada nas
falas de seus interlocutores (Biondi, 2009, p.110-111). Deste modo, não inco-
mum o encaminhamento para celas e pavilhões exclusivos ou, até mesmo, no
caso das “monas”9, para penitenciárias neutras – “cadeias onde não existem
membros ativos de facções” (Boldrin, 2014, p.15)s.
Ao ser acusado de ter “escondido” sua orientação sexual, o irmão de
Adelina, na verdade, estava sendo acusado de expor os demais presos à

7 A prisão em que o irmão de Adelina cumpria pena não “estava no ar”, quer dizer, não
havia aparelhos celulares possíveis de serem conectados naquele momento que viabilizassem
a comunicação direta entre Adelina e ele. Seja pelo uso do bloqueio de sinais de telefonia ins-
talado ou por algum controle mais rígido da entrada e do uso dos aparelhos, algumas unidades
prisionais ficam contingencialmente “fora do ar”. Nas falas de minhas interlocutoras havia um
fluxo e uma constante atualização das penitenciárias que estavam “no ar” ou “fora do ar”.

8 “Faxina”, assim como “torre” e “piloto”, é mais um dos nomes atribuídos aos postos polí-
ticos do PCC. Ser faxina significa estar em uma posição de responsabilidade e confiança em
relação ao Comando. Parte das atribuições dos “faxinas” é distribuir a comida entre as celas dos
pavilhões, intermediar a comunicação entre presos e funcionários da unidade e perguntar aos
recém-chegados à prisão se eles têm algum problema com alguém que está preso na mesma
unidade para, assim, evitarem/intermediarem os conflitos. É significativo observar, contudo,
que nas prisões femininas onde fiz campo muito dificilmente encontrei a palavra “faxina” atri-
buída àquelas que tinham essas responsabilidades. A palavra “setor” era mais recorrente. Nesse
registro, a palavra “faxina” utilizada pela mãe de Adelina era facilmente substituída pelo termo
“setor” nas palavras da filha. Sobre os “faxinas” no PCC ver: Marques (2009), Biondi (2009) e
Mallart (2014). Sobre os “faxinas” postos no cotidiano de uma prisão em contexto bem anterior
ao PCC, ver Ramalho (1979).

9 Travestis e gays que corporificam atributos femininos (Boldrin, 2014).

Cartas reduzidas a termo 89


“contaminação”. Nesse registro, o “faxina” de seu pavilhão o aceitou como
parceiro de cela na condição de que o irmão de Adelina aprendesse a “se
portar” segundo as ordenações do “crime”. Ao saber das condições em que
estava seu irmão, Adelina decidiu responder a ele e, ao mesmo tempo, es-
crever uma correspondência para o “faxina” por quem seu irmão dizia estar
sendo ajudado, além, claro, de uma para o seu marido, na qual o colocava a
par de toda a situação. Antes de enviar as cartas, porém, Adelina pediu-me
que tirasse uma cópia delas e as entregasse em minha próxima visita à peni-
tenciária. Deste modo, ela ia produzindo arquivos que pudessem comprovar
todas as palavras trocadas por ela nessas tensas relações.
Então, tô te escrevendo para passar que recebi uma carta muito
estranha do meu irmão dizendo que ele tá sabendo que eu tô sol-
teira. Seguinte, como ele sabe que eu tô solteira se o que eu sei
é que eu tô casada? Ele quer me apresentar um cara aí, o nome
dele é_, puxa a caminhada. Parece que é irmão, faxina. Porque o
que cê me disse é isso, certo? É meu marido, não é isso? Então,
como sou tua mulher, tô passando a caminhada toda certinha,
correto? Porque o cara tá dizendo aí que eu tô solteira e que ele
vai cuidar de mim e do meu irmão... Como meu marido que você
é sei que você vai fazer a pedalada de cuidar do meu irmão, corre-
to? Porque tão falando que meu irmão faz umas coisas que quem
é do crime não faz. Então se você me ama e eu sou tua negui-
nha gostosa, tu vai cuidar do meu irmão, correto? A gente é tudo
da mesma família! Num tô na pedalada com o maluco, não, tô te
passando que recebi essa carta muito estranha e te falando que
o maluco tá dizendo por aí que eu tô solteira e que vai cuidar de
mim e do meu irmão. Tô na caminhada certinha porque sou tua
mulher e tu é o amor da minha vida. Tá sabendo, né? Eu tô nessa
mesma caminhada contigo, entendeu? Tô querendo saber, que cê
pode fazer pra ajudar meu irmão?10

Com o tempo, Adelina aprendeu a escrever cartas e a produzir provas


de fidelidade, amor e compromisso. A guardar em cópias todas as cartas
que recebia e que escrevia, antes de enviá-las aos destinatários. Mais do que
isso, Adelina empreendia em cada ponto de interrogação, em cada vírgu-
la, artimanhas retóricas que intentavam fazer com que os destinatários de
suas palavras escrevessem aquilo que ela almejava. Adelina tornou-se uma

10 Excerto retirado de uma das cartas de Adelina enviadas a seu marido. Procurei manter,
nesta reprodução, a grafia mais próxima possível das palavras de Adelina. Porém. algumas alte-
rações foram feitas para facilitar o entendimento do leitor e também para suprimir a possibili-
dade de identificações.

90 Etnografia de documentos
articuladora das palavras. Mas, mesmo através dessa expertise, ela não con-
seguiu sair do veneno, como almejava.
Seu marido retornou sua carta dizendo poderia interceder a favor do
irmão de Adelina, o qual, segundo ele, estava em vias de ser transferido para
uma “prisão neutra”. Na correspondência, seu marido dizia, ainda, para ela
não responder mais nem às cartas do irmão ou do “faxina”, pois eles ain-
da estavam casados e seu irmão não só havia escondido que era gay, como
também estava “passando a caminhada errada” – mentindo sobre o relacio-
namento de Adelina e seu esposo – para os irmãos da prisão onde ele estava
detido.
A resposta que Adelina recebeu do marido resultou num cansaço que a
fez pensar em desistir de seu casamento e de toda a euforia com a possibili-
dade de “virar cunhada”. Ela não queria mais todo este veneno que envolvia
tantos esforços retóricos, documentais e estratégicos. Adelina queria ir para
casa.

***

Junto de seu irmão mais novo, Adelina foi criada pela mãe em uma
cidadezinha do interior do estado de São Paulo, na divisa com Mato Grosso
do Sul, região de alta rotatividade de caminhoneiros. Sua mãe trabalhava na
estrada, numa zona de prostituição onde Adelina e o irmão se acostumaram
a passar as noites e a brincar. Ela contava que aos 10 anos conheceu o “tio do
caminhão”. Um homem que gostava dela e de quem ela gostava também. “Ele
era carinhoso, eu saía para comer com ele, ganhava roupas, arrumava o ca-
belo. Eu gostava dele.” Assim, Adelina me contava que ela e seu irmão faziam,
quando crianças, pequenos programas com os caminhoneiros, os quais, em
troca, davam-lhes brinquedos novos, sapatos e os levavam para comer.
Meu irmão não é gay, Natália. Não é isso. Ele não gosta de dar o
cu. Ele já fez isso. Ficou traumatizado. Ele é traumatizado! Eu sei
disso, mas ele não é bicha, mano! Ele é home! Já pensou o que é
prum home saber que já fez isso? Ele traumatizou, mano. Isso
come a mente dele. Eu preciso sair daqui pra poder ajudar ele e
a minha mãe. Ela tá desesperada porque não consegue mandar
uma comida, uma roupinha pra ele. Porque cê sabe, né? Eu me
viro, mas meu irmão, mano, ele é traumatizado. Ele depende mui-
to da minha mãe. Tá vendo, né? Minha vida dá um livro! Escreve
aí...

Cartas reduzidas a termo 91


Por fim, Adelina não estava mais feliz na prisão como quando a conheci.
Os venenos que passaram a regular sua vida íntima referiam-se não só à sua
caminhada, mas também à de sua família. Afinal, ela era filha de uma pros-
tituta de estrada, irmã de um menino que, como ela, fazia michês quando
criança. Em suas palavras, sempre em negociação, seu irmão “não era bicha”,
mas, sim, “traumatizado”. Por meio da produção retórica de seu irmão como
“vítima” de situações traumáticas (Fassin e Rechtman, 2009), Adelina procu-
rava limpar a caminhada da homossexualidade da qual o irmão era “acusa-
do”. Homossexualidade que, naquele momento, parecia ter uma carga muito
maior de contaminação do que os seus próprios casos com mulheres, seu
relacionamento com Guinu dentro da prisão. Mas, ainda assim, seu irmão
dependia dela e de sua mãe. Família a qual Adelina acionava agora que não
conseguiu articular laços familiares com o homem que insistia dizer ser seu
marido.
Diante deste quadro, ela tomou a decisão de escrever uma carta dando
fim ao seu casamento. Segura do que fazia, sequer me pediu que tirasse uma
cópia da correspondência. Para ela, as duas possibilidades haviam se esgo-
tado: certamente não morreria, mas também não iria “virar cunhada”. Ela só
não imaginava que, ao receber a carta contendo o pedido de separação, seu
marido iria solicitar mais um debate, no qual estariam presentes ela, as irmãs
e ele, sempre por meio do aparelho celular. Quando chamada para ir para
“a linha”, ela foi preparada. Levava em mãos todo o dossiê no qual continha,
registradas, as palavras dele, as dela e as de seu irmão. Palavras/letras que,
naquela instância de produção da autoridade, estavam postas assimetrica-
mente em relação à oralidade de seu ex-parceiro.
A “palavra final” foi a de que Adelina havia “caminhado pelo certo” ape-
nas depois de saber que seu marido poderia ser batizado pelo Comando. E
as cartas que ela levava em mãos atestavam somente isso: sua mudança de
conduta posterior à ascensão de seu companheiro. Mais ainda, eram provas
cabais de que ela não havia conseguindo sustentar sua relação. No veneno
de trâmites incertos, Adelina respondia não só pelos tropeços anteriores,
mas também pelos usos assimétricos que poderiam ser feitos dos registros
documentais por ela produzidos. Afinal, era disso que se tratava, do com-
plexo jogo de produção de sujeitos de autoridade da palavra. E este Adelina
havia perdido, a despeito de toda sua expertise em produzir documentos. O
debate terminou com “uma voadora na barriga” e dois chutes na altura dos

92 Etnografia de documentos
joelhos de Adelina, que apanhou “por uns três minutos”. Cobrança bem mais
leve do que a que ela já havia esperado anteriormente11.
Na semana seguinte do último trâmite de que Adelina havia tomado
parte, a encontrei ainda reclamando de dores na barriga e andando mais
devagar. Nesse dia, contudo, sentamos ela, eu e mais duas meninas com as
costas apoiadas para a parede olhando de frente para o edifício de moradia
do pavilhão. Diante de todas as janelas dos cinco andares do prédio, faláva-
mos sobre o final da história de Adelina e das vezes que Catarina, uma das
meninas sentadas ao nosso lado, havia apanhado do marido. Falávamos, de
frente para a torre, de uma vida ordinária que não era por ela regulada.
Ao mesmo tempo, falávamos sobre as informações impressas no extrato
de andamentos dos processos criminais respondidos por Adelina e publi-
cados pela Vara de Execução Criminal que eu havia levado para ela naquela
visita. O Regime Aberto de Adelina estava em trâmite no Ministério Público
e ela sabia que logo poderia ir para casa, afinal, tinha sido absolvida de al-
guns dos processos que respondia como corréu de seu ex-marido. Enquanto
discutíamos sobre a situação de seu processo, um advogado que caminhava
pelo pátio da prisão onde fazia trabalho voluntário escutou a nossa conversa
e tomou Adelina por colega de trabalho presa pelas contingências da vida.
No final daquele dia de visita, ele estava certo que Adelina era, como ele,
bacharel em direito e a chamou de doutora. “Doutora, não é? A senhora é
advogada não é mesmo?”; “Sou, sou doutora, doutor! Sou formada no direito
da vida. E você, senhor, tem certeza que é advogado?” Pego de surpresa com
a resposta, ele ainda tentou contestar, mas rindo disse que não, não tinha.
Perto de Adelina, a única certeza era que todos os pés eram mesmo
quebrados.

11 O tempo contado, aqui, em três minutos, faz referência ao “peguê”: uma surra aplicada
coletivamente às pessoas que, de alguma forma, foram contra as regulações de procedimento
do Comando. A utilização do peguê como punição a uma pessoa que não agiu segundo “o certo”
é decidida em debates que envolvem, no caso das prisões femininas, as irmãs do PCC presas na
unidade e, quase sempre, o telefone celular que coloca “na linha” o irmão de alguma peniten-
ciária masculina, que dá o aval definitivo. O tempo do peguê é geralmente calculado em quinze
minutos e trinta e três segundos fazendo referência ao 15.3.3, outro dos nomes do PCC. Dizer
que Adelina apanhou não mais que três minutos, nesse registro, indica a diferença entre um
“peguê” e a “cobrança leve” à qual Adelina foi sujeitada.

Cartas reduzidas a termo 93


Nas tramas das palavras: reduzindo a termo as (des)igualdades
A história de Adelina fala de escritas e palavras a serem postas em debate
com o PCC e sobre suas artimanhas de negociação com as instâncias estatais
e familiares, tramadas através de articulações de informações. É sobre, den-
tre outras coisas, gestão de informações posta em jogos relacionais assimé-
tricos de que trata sua história. Desde o Facebook acessado por Adelina para
saber, afinal, se eu era mesmo quem dizia ser, até as cópias das cartas que
compunham comprovações materiais de suas palavras. Os trâmites de Ade-
lina recaíam sobre o manejo de informações, seus acessos ou cerceamentos,
frente às duas redes de gestão da vida que correm, ao mesmo tempo, em-
baralhadas e paralelas na prisão: os processos jurídico-policiais do Estado e
do Comando.
A estratégia assumida por Adelina, de expor todas as informações so-
bre as faltas que constavam em sua história pregressa, sua caminhada, era
articulada com a produção de visibilidades/invisibilidades acerca de sua
boa conduta de mulher casada. As informações produzidas por ela, contudo,
eram cooptadas por toda uma rede de posições políticas da qual Adelina era
dependente tanto para a validação das informações que suas palavras car-
regavam, quanto para a manutenção/suporte de sua vida e a de seu irmão.
Estes eram os termos que envenenavam Adelina. Termos que representavam
uma assimetria radical dos lugares de enunciação (Foucault, 1979; 1984) ocu-
pados por ela, por seu marido e pelas irmãs as quais, postas no debate, não
eram “lagartixas dos irmãos”, mas, sim, detentoras dos aparatos tecnológicos
(aparelhos celulares) e das expertises retóricas necessárias para o manejo
das informações e, assim, da produção “da verdade” resultante dos debates a
que Adelina estava submetida.
Debates são discussões a partir das quais se intenta “saber” (produzir) “a
verdade” sobre acontecimentos e atitudes que possam ter ido contra o pro-
ceder regulado pelo Primeiro Comando da Capital. Os debates, como ilustra
Karina Biondi, são da ordem do “campo da argumentação oral”. Neles as pa-
lavras são os objetos por meio dos quais “busca-se chegar ao mais tênue dos
estados: a total transparência sem rupturas” (Biondi, 2009, p.100). Seguindo
essa lógica, as palavras são centrais nos debates do PCC. Mas não só. As et-
nografias de Adalton Marques (2009) e José Douglas Silva (2014) elucidam a
relação entre “ter palavra” e “ter proceder” nos ordenamentos do Comando.
Ter palavra pode ser agir segundo a “total transparência” de que fala Biondi,

94 Etnografia de documentos
ou seja, conseguir provar que os cumprimentos das ações seguem àquilo que
se falou: ter proceder é, nesse sentido, cumprir com as palavras proferidas,
escritas. Afinal, “palavra de malandro não faz curva”.
As cartas de Adelina carregavam informações e provas materiais que
podiam ser acionadas pelos sujeitos em debate como ferramentas que ates-
tavam (ou não) o argumento oral posto em discussão. Elas reuniam em um
dossiê documental as suas comprovações de que ela estava mantendo sua
palavra de atuar segundo a conduta, o proceder esperado pela esposa fiel, tal
qual seu marido demandara. Adelina, contudo, não conseguia ser ela deten-
tora das palavras que produziriam a verdade decorrente dos “trâmites”. Ela
não ocupava qualquer posição política dentro do Comando e, ainda, era uma
mulher de pés e cabelos quebrados, carregando vínculos familiares atraves-
sados pelo trabalho de prostituta de sua mãe e pela homossexualidade de
seu irmão. Nesse registro, as cartas eram para Adelina vias de acesso à pala-
vra, ferramentas de informes dos seus andamentos.
Adelina buscava utilizá-las tal como fazia com as certificações perma-
nentemente demandadas pela polícia, ou seja, suas cédulas de identidade,
seus registros de antecedentes criminais. Ela tentava tramar com as cartas
em sua analogia aos documentos, mas, como Groebner (2007) chama aten-
ção, estes apenas “identificam” os sujeitos por que são fundamentados na
palavra do emissor de autoridade. As cartas de Adelina, nesse sentido, po-
deriam ser utilizadas por ela como recursos argumentativos, jamais como
atestados de suas relações/suas palavras. Estes seriam, assim como foram,
produzidos pelos agentes emissores da verdade nos debates: as irmãs e o
seu marido.
Como Gabriel Feltran já analisou (2010a; 2010b), o PCC ascendeu nas
últimas décadas como instância de autoridade jurídica nas periferias de São
Paulo. Com relação às práticas de policiamento da vida e das relações nas pe-
nitenciárias do Estado, Biondi (2009) e Marques (2009) evidenciaram como
as questões mais cotidianas passam a ser orientadas pelo Comando por meio
da figura de seus irmãos e integrantes. São eles que examinam e definem
resoluções sobre contendas ou demais problemas decorrentes das relações
entre presos, fundamentadas, segundo Biondi, por um “ideal de igualdade”
que equaciona a todas as pessoas em situação de prisão sem, com isso, dei-
xar de reconhecer/produzir diferenças entre elas. Nas palavras da autora
O ideal de igualdade atravessa todos esses planos e pode ser con-
siderado um grande responsável pela manutenção do PCC em

Cartas reduzidas a termo 95


movimento. É o ideal de igualdade que concede aos participantes
do PCC certa liberdade de manifestar suas vontades justamen-
te quando retira o estatuto de obrigação que limita os impulsos
criativos. Na medida em que uns não podem limitar as ações dos
demais sem prejudicar o ideal de igualdade, estabelece-se uma
concessão para diferir. Mas, se por um lado, permite diferir, por
outro lado, aciona mecanismos para compensar as diferenças
que não cessam de aparecer. Um desses mecanismos é a desindi-
vidualização das decisões que, como descrevi acima, “não podem
ser isoladas”. Opera-se um descolamento, uma dissociação das
posições políticas de quem as está ocupando, quando as deci-
sões não são atribuídas a este ou àquele irmão, mas às torres,
ao Comando. Temos, com isso, decisões que não são resultados
de iniciativas individuais, mas de manifestações coletivas que se
expressam por meio das políticas do PCC divulgadas por meio
dos salves. Com isso, irmãos atuam como operadores de um PCC
que lhes é superior e no qual espelham suas ações (Biondi, 2009,
p.171).

O ideal de igualdade do Comando de que fala Karina Biondi e que, em


seu argumento, resulta de/em uma organização coletiva “maior que seus
operadores”, aparece nos dados de campo produzidos com base nas etno-
grafias em prisões femininas de São Paulo, contudo, bastante próximos de
fundamentos políticos calcados na “universalidade dos direitos” mantidos
por meio da “capa de neutralidade técnica” de seus operadores (Vianna,
2014, p.55).
Ao longo de sua dissertação de mestrado, Biondi retoma as ponde-
rações de Antônio Rafael Barbosa sobre o fato de que “nunca se está mais
dentro do Estado do que numa prisão” (Barbosa, 2001, p.173). Deste modo, a
autora reconhece a relação entre o PCC e aparatos de justiça estatal, já que
o Comando decorre dos processos de Estado que produzem a prisão. Meu
argumento, contudo, pretende ilustrar que o “ideal de igualdade”, sobre o
qual repousa grande parte da prática do Primeiro Comando da Capital no
argumento desta autora, está balizado no mesmo “ideal de universalidade de
direitos” que regula a produção “neutra”/“técnica” dos protocolos, relatórios
e despachos publicados no site do Tribunal de Justiça. Fundamentos que são
tensionados cotidianamente pelas diferenças e assimetrias produzidas pelos
próprios aparelhos estatais postos, na ordem dos discursos de autoridade,
como dispositivos de igualdade.
Como Foucault já argumentou (2001), o triunfo da forma-prisão na mo-
dernidade deve-se, sobretudo, ao fato de o encarceramento apresentar-se

96 Etnografia de documentos
como um castigo balizado por um ideal igualitário que quantifica a pena de
acordo com o tempo de privação da liberdade, “considerada ao mesmo tem-
po como um direito e como um bem” de todos os indivíduos (Foucault, 2001,
p.14). Por meio do desenvolvimento de sua exposição acerca de processos
de esquadrinhamento dos sujeitos, contudo, o autor elucida que a prisão,
mais do que resultado do reconhecimento da universalidade dos direitos que
interdita como punição, é um dispositivo de diferenciação (sujeição e subje-
tivação): “uma fábrica de criminosos”.
Assim posto o ideal de igualdade, reiterado por meio de práticas que
produzem diferenciações, sublevam a justaposição entre processos de Esta-
do e do PCC na regulação ordinária da vida e das relações das pessoas pre-
sas. A “palavra”, aí, aparece como mecanismo central para os dois aparatos
jurídicos. Afinal, como Das e Poole (2004) elucidaram, se “a maior parte do
Estado moderno está construído a partir de práticas de escrita” (p. 25), gran-
de parte das práticas do Comando está fundamentada na “palavra”.
Os dados etnográficos de José Douglas Silva (2014), produzidos a par-
tir de narrativas sobre “políticas estatais e criminais” na zona oeste da re-
gião metropolitana de São Paulo, ilustram que as posições políticas do PCC
são arranjadas através do entendimento de “quem tá na palavra”, quer dizer,
quem tem o respaldo e os aparatos de decisão/mediação entre as partes de
um conflito. Nesse registro, mesmo que resoluções e políticas do Comando
decorram de mecanismos preocupados em não produzir líderes individuais,
mas, sim, operadores de um “coletivo superior”, e que “estar com a palavra”
seja produto da ocupação de arranjos situacionais, como argumenta Biondi
(2009), são esses operadores organizados segundo a distribuição de postos
de autoridades fundamentados em quem tem ou não “palavra”.
De modo similar, é o que argumenta Adriana Vianna (2014). A autora, ao
se debruçar na produção de documentos pelos agentes do aparelho judiciá-
rio dos quais a definição de guarda de crianças e adolescentes resulta, ana-
lisa a autoridade de quem os escreve. Assistentes sociais, advogados, juízes,
nesse registro, são autores de textos que “reduzem a termo” (Lowenkron e
Ferreira, 2014) toda uma profusão de falas que são manejadas por meio da
expertise dos agentes especializados do Estado em tornar dramas singulares
em “atos burocráticos capazes, portanto, de certa padronização e dotados
de suposta neutralidade racional” (Vianna, 2014, p.56).
Ao fazer a relação entre posições políticas que têm palavra no PCC
e postos jurídicos estatais de produção de documentos, não ignoro as

Cartas reduzidas a termo 97


especificidades de ambos os processos. Afinal, enquanto reduzir a escrito
envolve o acúmulo de papéis a serem arquivados em prateleiras e prontuá-
rios que cristalizam biografias e fichas criminais (Nadai, 2012), os registros
dos debates são orais. As resoluções são tomadas através da expertise em
argumentar por meio da fala, e não da linguagem técnico-burocrática mi-
metizada por funcionários dos aparelhos estatais. Mas isso não quer dizer
que as resoluções produzidas oralmente nos debates deixem de implicar em
“visíveis e invisíveis – ou audíveis e inaudíveis” de que fala Adriana Vianna (p.
54).
Tanto quanto os documentos e resoluções publicadas pelas muitas va-
ras dos Tribunais de Justiça, a palavra final nos aparatos de gestão das rela-
ções do PCC determina “a verdade”. Em ambos os processos, o que está em
jogo é a produção de uma verdade a qual, ao ser definida, lança sombra sobre
as polissemias que a construíram. “E de que falam tais processos senão de
complexos jogos sociais de produzir autoridades?” (Vianna, 2014, p.49).
Com relação aos dados do campo apresentados neste artigo, a justapo-
sição entre os aparatos jurídicos estatais e do Primeiro Comando da Capital
se faz por meio das práticas dos agentes que ocupam postos – de trabalho
e/ou políticos – situacionais nomeados de modo “desindividualizado”, como
coloca Biondi. Postos os quais, entretanto, os fazem detentores de registros,
formulários, aparelhos celulares e palavras, que os definem como autorida-
des que determinam “a verdade” acerca dos andamentos múltiplos de dra-
mas vividos nas salas dos fóruns e nas celas das prisões. Dizer isso não sig-
nifica considerar o PCC “uma cópia malfeita do Estado” (Biondi, 2009, p.54),
antes significa voltar o olhar para os emaranhados que justapõem processos
polissêmicos de regulação dos corpos e das relações dentro das prisões.
Enfocar a articulação feita por cartas nos processos de gestão das re-
lações do PCC permite olhar mais atentamente para as assimetrias produ-
zidas por estes. Como as sentenças e processos tramitados nas Varas de
Execuções Criminais que terminam por determinar penas e quais sujeitos
são levados para as prisões, as cartas informam andamentos, ou melhor, ca-
minhadas, e agregam a elas observações sobre a localização e a data do envio
desta ou daquela correspondência, à qual atribuem-se, neste contexto, cer-
tos elementos de autoridade.
Laura Lowenkron e Leticia Ferreira (2014), ao etnografarem processos
de produção de inquéritos sobre tráfico internacional e de desaparecimen-
to de pessoas pelos policiais federais e civis do Rio de Janeiro, ilustram a

98 Etnografia de documentos
importância que “seguir os papéis” tem em suas pesquisas antropológicas
feitas dentro do aparato judicial/policial. As autoras argumentam que “como
diz o jargão jurídico, ‘o que não está nos autos não está no mundo’, de modo
que uma investigação [policial] não documentada é como se não tivesse
existido” (Lowenkron e Ferreira, 2014, p.84). Não é o que ocorre com os de-
bates do Comando. Neles, palavras não documentadas sãotambém levadas
em conta. Mas isso não significa que a ferramenta de explicitar por meio da
escrita os implícitos (Goody, 1987) seja ignorada neste processo. O jargão
policial ao qual Lowenkron e Ferreira se referem poderia ser traduzido para
a análise proposta neste capítulo da seguinte forma: “O que não está nas car-
tas está no mundo, mas o que está nas cartas pode ser posto em relevo sobre
o mundo.” As questões que se colocam, e que atravessam tanto as análises
de Ferreira e Lowenkron quanto as decorrentes dos dados de campo desta
pesquisa, são: sob que termos e em quais contextos podem ser postas cartas,
ou autos, sobre o mundo? E quem pode fazer isso?
Como argumenta Gabriel Feltran (2010c), as etnografias, ao se debru-
çarem sobre discursos e práticas, possibilitam uma “equação compreensiva
entre igualdade e diferença, em sua normatividade” (p.578). Deste modo, o
autor propõe que os “estereótipos” de categorização, como “quem é more-
no”, “quem é branquinho”, “quem é viado” (p.574), sejam levados a sério pela
análise etnográfica, pois estes organizam normativamente o cotidiano e o
coloca, ainda, em relação a outro plano normativo para o qual estas clivagens
seriam inexistentes: o plano jurídico-político que considera a todos “igual-
mente” cidadãos. A história de Adelina é exemplo da potência analítica da
etnografia para a qual Feltran chama atenção.
A personagem deste artigo articula suas práticas a partir da coexistên-
cia dos planos normativos de categorizações das diferenças e da (des)igual-
dade político-jurídica. Os debates dos quais Adelina participa estão funda-
mentados na ideia de que é necessário haver uma discussão para que todas
as partes do conflito possam ter os mesmos “direitos” de fala. Ao mesmo
tempo, o debate como dispositivo de igualdade leva em conta categoriza-
ções que diferenciam os sujeitos discursivamente. É o que ocorre também
com escritas e encaminhamentos de papéis às instâncias jurídicas estatais
de reconhecimentos de direitos.
É no nó das tensões entre diferenças e (des)igualdade que têm incidido
grande parte das etnografias sobre instituições e processos de Estado. Os
trabalhos de Regina Facchini (2005) e Silvia Aguião Rodrigues (2014) ilustram

Cartas reduzidas a termo 99


como os grupos de militância homossexual têm, historicamente, articula-
do as demandas por acesso a direitos considerados universais por meio dos
usos radicais das especificidades que diferenciam lésbicas, gays, bissexuais.
Diferenças profundamente intersectadas por atributos de classe e raça em
corpos socialmente identificados como transexuais, travestis, mulheres, ho-
mens.12 Nesta esteira, as pesquisas de Larissa Nadai (2012) e Fabiana Andrade
(2012) elucidam que o atendimento semanticamente igualitário da Delegacia
de Defesa da Mulher da cidade de Campinas é atravessado por categorias de
diferenciação materializadas nos corpos daquelas que chegam para prestar
(ou não) queixas. As vítimas de “violência doméstica”, argumentam as auto-
ras, são produzidas não “apenas” pelos depoimentos por elas oralizados, mas
também pelas roupas que vestem, pelas cores dos cabelos, pelouso ou não
de maquiagem. Ser vítima, portanto, envolve a performatividade das especi-
ficidades socialmente atribuídas a esta categoria normativa (Vianna e Farias,
2011).
No tocante dos dados de campo apresentados acima, “preto, pobre e
magrelo”, “bonita pra caralho”, “sapatão famoso” e “caminhada certinha”, apa-
recem como diferenças que ordenam as relações e os sujeitos sem que se-
jam visibilizadas nas resoluções das verdades que definem, por fim, quem é
cunhada, quem é pilota, quem é lagartixa e quais relações produzem quais
vínculos familiares.
Materializadas nos corpos por meio das pernas peludas e dos cabelos
quebrados, mas principalmente por meio dos vínculos familiares, sexuais e
afetivos, as diferenças de classe, gênero e sexualidade incidem diretamente
nos resultados das disputas acerca de quem é ou não “mulher bandida”. As-
sim como a constituição da “vítima de violência doméstica”, ou dos sujeitos
de direitos sexuais, a categorização sobre ser “mulher dos home” no Coman-
do acontece por meio de negociações assimétricas gestadas não só pelas
expertises retóricas, mas também pela performatividade das especificidades
socialmente atribuídas às “bandidas”.
Focar a análise no campo normativo da igualdade, portanto, compreen-
de lançar sombra para a difusão das diferenças que fazem funcionar os apa-
ratos jurídico-policiais. É como olhar para os papéis sem levar em conta as

12 Adriana Vianna (2005) argumenta que a criação de sujeitos de direitos especiais/diferen-


ciados é um processo histórico e político bastante amplo que ocorre no final do século XX, visi-
bilizado por movimentos políticos de demandas sexuais os quais têm, como fundo, a produção
de “direitos humanos” levando em conta as especificidades dos sujeitos.

100 Etnografia de documentos


camadas de contendas que os produziram, sem segui-los como explicitam
Lowenkron e Ferreira. É disso que se trata o esforço em lançar um olhar
etnográfico para os agenciamentos das cartas nas negociações jurídico-po-
liciais com o PCC, de levar a sério a tensão permanente entre especificidades
e igualdade nas várias arenas das palavras que reduzem a termo “a verdade”.

Cartas reduzidas a termo 101


Referências bibliográficas
ALMEIDA, Ronaldo. A Igreja Universal e os seus demônios. São Paulo: Editora
Terceiro Nome, 2009.

ANDRADE, Fabiana. Fios para trançar, jogos para armar: O fazer policial nos crimes
de violência doméstica e familiar contra a mulher. 2012. Dissertação (Mestrado em
Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Esta-
dual de Campinas, São Paulo, 2012.

BARBOSA, Antônio Rafael. Segmentaridade e tráfico de drogas no Rio de Janeiro. Al-


ceu: Revista de Comunicação, Cultura e Política, Rio de Janeiro, v.2, n.3, p.166-80,
2001.

BARBOSA, Antônio Rafael. Prender e Dar Fuga: Biopolítica, Sistema Penitenciário e


Tráfico de Drogas no Rio de Janeiro. 2005. 546f. Tese (Doutorado em Antropologia So-
cial) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.

BIONDI, Karina. Junto e Misturado: Imanência e Transcendência no PCC. 2009. 198f.


Dissertação (Mestrado em Ciências Humanas) – Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, 2009.

BOLDRIN, Guilherme. 2014. Monas, envolvidos e o crime: etnografia com Travestis


e homossexuais em uma prisão paulista. Monografia. Faculdade de Ciências Sociais.
Universidade Federal de São Carlos.

BUMACHAR, Bruna. Por meus filhos: usos das tecnologias de comunicação entre
estrangeiras presas em São Paulo. In: COGO, Denise; ELHAJJI, Mohammed; HUER-
TAS, Amparo (orgs.). Diásporas, migrações, tecnologias da comunicação e identidades
transnacionais. 1a. ed. Barcelona: Institut de la Comunicació, Universitat Autònoma
de Barcelona, 2012. v. 1, p. 449-468.

DAS, Veena; POOLE, Deborah. State and its margins: comparative ethnographies.
In: ______(orgs.). Anthropology in the margins of the State. Oxford: James Currency,
2004. p. 3-33.

DIAS, Camila Nunes. Da pulverização ao monopólio da violência: expansão e conso-


lidação do Primeiro Comando da Capital (PCC) no sistema carcerário paulista. 2011.
Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.

DOUGLAS, Mary. Pureza e Perigo. São Paulo: Perspectiva, 2012.

DURAP, André; ZENI, Bruno. Sobrevivente André DuRap do massacre do Carandiru.


São Paulo: Labortexto Editorial, 2002.

FACCHINI, Regina. Sopa de letrinhas?: Movimento homossexual e produção de iden-


tidades coletivas nos anos 90. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.

FASSIN, Didier; RECHTMAN, Richard. The Empire of Trauma: an Inquiry into the
Condition of Victimhood. Princeton, Nova Jersey: Princeton University Press, 2009.

102 Etnografia de documentos


FELDIMAN, Allen. Formations of Violence: The Narrative of the Body and Political
Terror in Northern Ireland. Chicago: The University of Chicago Press, 1991.

FELTRAN, Gabriel. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São


Paulo. São Paulo: Editora Unesp/CEM/Cebrap, 2011.

FELTRAN, Gabriel. The Management of Violence on the São Paulo Periphery: the
Repertoire of Normative Apparatus in the “PCC era”. Vibrant Review, v.7, n.10, p. 109-
134, 2010a.
FELTRAN, Gabriel. Crime e castigo na cidade: os repertórios da justiça e a questão do
homicídio nas periferias de São Paulo. Caderno CRH, Salvador, v. 23, n. 58, p. 59-73,
2010b.

FELTRAN, Gabriel. Periferias, direito e diferença: notas de uma etnografia urbana.


Revista de Antropologia da USP, São Paulo, v.53, n. 2, p. 565-610, 2010c.

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de aaber. Rio de Janeiro: Edi-


ções Graal, 1979.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução: Raquel Rama-


lhete. 24.a. ed. Petrópolis: Vozes, 2001.

GOODY, John. A lógica da escrita e a organização da sociedade. Lisboa: Edições 70,


1987.

GROEBNER, Valentin. Who are you?: Identification, Deception, and Surveillance in


Early Modern Europe. Nova York: Zone Books, 2007.

HIRATA, Daniel Veloso. Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida. 2010.


Tese (Doutorado em Sociologia) – Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

JOZINO, Josmar. Cobras e Lagartos. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

LAURETS, Teresa de. A tecnologia do gênero. In: Tendências e impasses: o feminismo


como crítica da cultura. Rio de Janeiro: Iser, 1994.

LEITE, Carla Sena. Ecos do Carandiru: Estudo comparativo de quatro narrativas do


massacre. 2005. Dissertação (Mestrado em Ciência da Literatura) – Faculdade de Le-
tras, Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro, 2005.

LOWENKRON, Laura; FERREIRA, Letícia. Anthropological perspectives on docu-


ments: Ethnographic dialogues on the trail of police papers. Vibrant, v.11, n.2, p. 75-
111, 2014.

MALLART, Fábio. Cadeias Dominadas: a Fundação CASA, suas dinâmicas e as trajetó-


rias dos jovens internos. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

MARQUES, Adalton. Crime, proceder, convívio-seguro: Um experimento an-


tropológico a partir de relações entre ladrões. 2009. Dissertação (Mestrado em

Cartas reduzidas a termo 103


Antropologia)– Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2009.

MARQUES, Vagner Aparecido. O irmão que virou irmão: rupturas e permanências na


conversão de membros do PCC ao pentecostalismo na Vila Leste – SP. 2013. Disser-
tação (Mestrado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2013.

NADAI, Larissa. Descrever crimes, decifrar convenções narrativas: uma etnografia en-
tre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de
estupro e atentado violento ao pudor. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Cam-
pinas, Campinas, 2012.

PADOVANI, Natália Corazza. A natureza da qualidade: considerações acerca das dife-


renças de gênero no trabalho prisional. Revista de Sociologia Jurídica, 3, 2006. Dis-
ponível em: http://www.sociologiajuridica.net.br/numero-3/173-a-natureza-da-
-qualidade-consideracoes-acerca-das-diferencas-de-genero-no-trabalho-prisional

PADOVANI, Natália Corazza. “Perpétuas espirais”: falas do poder e do prazer sexual


em trinta anos (1977-2009) na história da Penitenciária Feminina da Capital. 2010.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010.

PADOVANI, Natália Corazza. Sobre casos e casamentos: Das redes de afetos e dos rela-
cionamentos amorosos através das penitenciárias femininas das cidades de São Paulo
e Barcelona. 2015. Tese (Doutorado em Antropologia Social)– Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.

RAMALHO, José Ricardo. A ordem do crime o mundo pelo avesso. Rio de Janeiro:
Graal, 1979.

RODRIGUES, Silvia Aguião. Fazer-se no “Estado”: Uma etnografia sobre o processo


de constituição dos “LGBT” como sujeitos de direitos no Brasil contemporâneo. 2014.
Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2014.

SILVA, José Douglas. Se o irmão falou, meu irmão, é melhor não duvidar: políticas es-
tatais e politicas criminais referentes a homicídios na cidade de Luzia (2001-2013). 2014.
Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Centro de Educação e Ciências Humanas,
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.

TAKAHASHI, Henrique Yagui. Evangelho segundo Racionais MC’s: ressignificações


religiosas, políticas e estético-musicais nas narrativas do rap. 2014. Dissertação
(Mestrado em Sociologia) – Centro de Educação e Ciências Humanas, Universidade
Federal de São Carlos, São Carlos, 2014.

VIANNA, Adriana. 2005. Direitos sexuais: entre sujeitos e princípios (comunicação


oral). Seminário Regional Salud, Sexualidad y Diversidade en América Latina.

104 Etnografia de documentos


VIANNA, Adriana. Etnografando documentos: uma antropóloga em meio a processos
judiciais. In: CASTILHO, Ricardo Rodrigues; LIMA, Antônio Carlos de Souza; TEIXEI-
RA, Carla Costa (orgs.). Antropologias das práticas de poder: reflexões etnográficas
entre burocratas, elites e corporações. Rio de Janeiro: Contra Capa/Faperj, p. 43-70,
2014.

VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. A guerra das mães. Cadernos Pagu, Campinas, v.37,
p.79-116, 2011.
VITAL DA CUNHA, Christina. Traficantes evangélicos: novas formas de experimenta-
ção do sagrado. Plural, São Paulo,v. 15, p. 23-46, 2008.

Cartas reduzidas a termo 105


CAPÍTULO 4

Tempo, DNA e documentos na validação de


vínculos familiares
Claudia Fonseca, UFRGS1

Dezembro de 2012. Cerca de sessenta pessoas chegaram, ao cair da tarde, à


associação de moradores de Marituba, uma cidade satélite de Belém do Pará.
Nesta parte do Brasil, na foz do rio Amazonas, o calor é intenso. Algumas
mulheres montam uma mesa com bebidas no fundo da sala, enquanto os
recém-chegados se misturam, aguardando o início da reunião. Muitas pes-
soas vêm de perto e chegam a pé, carregando seus filhos. Outras dirigiram a
noite toda para estar aqui, atendendo a convocações por telefone e internet.
Seu objetivo comum: ouvir mais sobre possíveis reparações do Estado pela
violação dos direitos humanos destas pessoas.
Graças à incansável campanha política do movimento social Morhan
(Movimento Pela Reintegração de Atingidos de Hanseníase), os membros
mais velhos da plateia – aqueles que foram confinados à força em colônias
de leprosos do Brasil no século passado – receberam pedido oficial de des-
culpa do governo e também reparação financeira, sob a forma de pensão vi-
talícia. Desde então, os esforços foram canalizados para a causa dos filhos e
filhas dos pacientes – os “órfãos de pais vivos” cujos destinos, argumenta-se,
foram permanentemente amputados pela experiência traumática da sepa-
ração forçada de suas mães e/ou pais. Há rumores de que um projeto de lei
destinado a conceder uma compensação financeira a esta segunda geração
de vítimas deve chegar ao Congresso a qualquer momento. Portanto, um ar
de antecipação permeia o encontro, enquanto as pessoas procuram munição
para alcançar o reconhecimento e os benefícios que, elas esperam, o gover-
no federal lhes concederá num futuro muito próximo.

1 Além dos muitos colegas (a maioria dos quais são citados neste artigo) que de alguma for-
ma contribuíram para este trabalho, eu gostaria de agradecer aos meus revisores anônimos por
suas provocações inestimáveis.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 107


Hoje a convidada de honra é uma geneticista da Universidade Fede-
ral do Rio Grande do Sul. Sua supervisora ofereceu os serviços gratuitos
da equipe para ajudar a provar as conexões genealógicas necessárias para
as “crianças separadas” pressionarem suas reivindicações. A jovem explica
em detalhes claros a lógica genética básica do teste, como o material será
coletado (por meio de amostras de saliva) e quem exatamente vai precisar
dele. Aqueles que possuem carteiras de identidade nacionais que mostram
os nomes corretos do pai e da mãe podem prescindir de sua ajuda. Ali, o
laço de parentesco já está legalmente estabelecido. São os outros – os sem
documento ou os falsamente registrados como filhos biológicos de seus pais
adotivos – que vão precisar de um teste, desde que encontrem um pai, uma
mãe ou um irmão com quem possam comparar seus DNAs.
Depois de alguns segundos de murmurinho na plateia, um senhor cin-
quentão, visivelmente frustrado, levanta-se para fazer sua pergunta: “Meu
foi paciente na colônia muitos anos. Minha identidade mostra que eu sou
filho dele. Você quer dizer que eu não vou fazer um teste?” A geneticista ex-
plica com muita paciência que não há necessidade. A identidade dele já está
legalmente confirmada: “Ninguém pode tirar isso [a identidade] de você”. A
consternação do homem parece espelhar a de outras pessoas na plateia, que
também esperavam cuspir nos frascos de plástico preparados para os testes.
Estimulado pelo olhar atento das pessoas que o cercam, ele insiste: “Minha
irmã e eu dirigimos muitas horas para estar aqui. Sabemos que este teste é
importante. Como podemos ter certeza de que, dentro de alguns anos, os
documentos ainda vão valer alguma coisa? Eu estou achando que, no futuro,
a única prova válida de identificação vai ser o teste de DNA”.
Esta cena, assim como outras evocadas neste artigo, se baseiam princi-
palmente numa pesquisa de campo realizada entre 2012 e 2014, que consiste
no exame de arquivos documentais, breves incursões etnográficas em duas
ex-colônias, e entrevistas com ex-internados e com seus filhos e filhas nos
estados do Pará e do Rio Grande do Sul2. Nesta fase inicial da investigação,
trabalhei lado a lado com uma equipe de geneticistas do Rio Grande do Sul
e com o movimento social Morhan, ambos descritos em maiores detalhes a
seguir.

2 Glaucia Maricato, estudante de pós-graduação em Antropologia da Universidade Federal


do Rio Grande do Sul (ver Maricato 2013, 2014), colaborou de perto em todas as fases deste
trabalho.

108 Etnografia de documentos


Meu objetivo original na pesquisa era explorar a “agência” do teste de
DNA como ator de destaque em uma rede que faz a ligação de objetivos polí-
ticos para a reparação de violações dos direitos humanos com subjetividades
pessoais e relações familiares. No entanto, inspirada por preocupações como
as que foram formuladas pelo homem acima mencionado, achei necessário
fazer alguns ajustes no meu plano. A ansiedade do homem sublinhou o fato
de que as coisas mudam. Incontestavelmente, a produção de conhecimento
sobre o passado afeta o presente e o futuro das pessoas. No entanto, o que
se considera “prova” de eventos passados pode muito bem ser reformulado
por novas (e futuras) tecnologias. Assim, mais um elemento foi introduzido
em minha análise: temporalidade.
A ligação entre a política, o tempo e as relações familiares tem sido
tema de antropólogos desde que Evans-Pritchard colocou as genealogias
altamente maleáveis dos nuer em nosso mapa. Ainda assim, embora nos-
sos antepassados britânicos vissem o parentesco como inseparável das es-
truturas políticas, J. Carsten (2007) comenta como, nos últimos tempos, a
pesquisa tende a seguir dois caminhos divergentes. A análise antropológica
do parentesco, focada principalmente na experiência vivida das relações,
evitou consistentemente a dimensão política desses processos. Por outro
lado, os analistas interessados em temas políticos podem muito bem se con-
centrar em memória (por exemplo, da ditadura argentina ou no Holocausto),
enquanto passam ao largo da questão de parentesco e relações familiares.
Procurando um ponto de convergência entre essas duas abordagens, Cars-
ten propõe um tipo de análise que incide sobre a forma como as memórias
pessoais e familiares interagem com eventos políticos de grande porte e
também com estruturas coletivas institucionalizadas para produzir paren-
tesco como “um tipo particular de sociabilidade na qual são possíveis certas
formas de temporalidade e de criação de memória, e certas disposições em
relação ao passado, presente e futuro”(Ibid 2007: 5). Proponho-me a abraçar
esta abordagem com, no entanto, uma pequena reserva.
A noção de memória, não obstante o seu retorno recente entre os antro-
pólogos é uma ferramenta analítica de difícil controle. Como Berliner (2005:
201) nos lembra, muitos artigos acadêmicos usam “memória” para substituir
continuidade cultural, a capacidade da sociedade se reproduzir, um “passa-
do transmitido e armazenado (como em um computador sem que isso sig-
nifique lembrar-se)”. Minha identificação seria, em vez disso, com outra ver-
tente acadêmica, centrada nas dinâmicas fenomenológicas de recordações

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 109


vividas envolvendo os processos eminentemente intersubjetivos de regis-
trar, reter e revisitar as experiências do passado. Os artigos inspiradores do
livro de Carsten Ghosts of Memory (2007) contribuem muito para o tipo de
desobjetivação da memória (bem como do parentesco) que nos interessa. No
entanto, embora as etnografias estejam repletas da rica descrição de dispo-
sitivos mnemônicos (fotos, tapeçarias), bem como de presenças institucio-
nais que promovem ou inibem a transmissão do conhecimento, a lembrança
ainda aparece como um processo “interno” centrado no sujeito (seja ele um
indivíduo, um personagem ou um self psicológico).
A questão manifestada pelo homem na reunião convida-nos a buscar
uma abordagem um pouco diferente. A preocupação dele releva o fato de
que a identidade pessoal está amarrada a formas institucionais de reconhe-
cimento: a “prova válida” surge como parte de um sistema de tecnologias
concretas que medeiam (medem e calculam) o que as pessoas sabem e sen-
tem. Neste sentido, as lembranças das pessoas, momentaneamente fixadas
em fotos, cartas ou narrativas orais, são um dispositivo tecnológico que, jun-
to com outros – registros escritos, documentos legais, e o exame de DNA –,
coproduz maneiras de avaliar a identidade pessoal e os laços familiares. Aqui,
sem tomar a memória nem o sujeito como um dado a priori, a lembrança é
vista como uma ação que está sendo constantemente “ultrapassada” por vá-
rias agências, descentrando a possibilidade de qualquer ator único (Jasanoff,
2004; Latour, 2005). É com essas preocupações em mente que falo, neste
artigo, de avaliação e cálculo (reckoning), em vez de memória.
Reckoning3, um termo encontrado em análises antropológicas sobre
tempo, identidade étnica e pertencimento familiar, provou ser muito útil
para operacionalizar minhas preocupações de pesquisa. O gerúndio da pala-
vra chama a atenção para o caráter contínuo do processo, sempre em curso,
eternamente incompleto. Como substantivo, é facilmente pluralizado, subli-
nhando múltiplas e heterogêneas modalidades caracterizadas por possíveis
assimetrias de poder (Gingrich, Ochs; Swedlund, 2002). O que torna o termo
particularmente interessante, no entanto, é a maneira como ele, através de
múltiplos e muitas vezes ambíguos significados (cálculo, acerto de contas,
retribuição), combina instrumental com conotações morais.

3 Esta palavra tem vários significados em inglês, entre eles, a ação ou o processo de calcular
ou avaliar alguma coisa; ponto de vista; julgamento ou opinião pessoal; retribuição ou acerto de
contas; olhar ou considerar algo de uma maneira específica (N.T.).

110 Etnografia de documentos


Por um lado, aprendemos que os cálculos raramente deixam de ter im-
plicações políticas e morais. Strong e Van Winkle (1996), por exemplo, mos-
tram como os esforços para “calcular” (reckon) o quantum de sangue indí-
gena de um indivíduo no contexto norte-americano do final do século XX
envolvem a tensa interação entre políticas de governo, demandas tribais de
direitos coletivos e estratégias individuais. Por outro lado, em trabalhos aca-
dêmicos sobre atrocidades de guerra e ditaduras (Stern, 2010; Atencio, 2014),
somos lembrados como o “acerto de contas” (reckoning) também evoca uma
espécie de reconciliação coletiva com fatos que as pessoas não têm nenhu-
ma ânsia de recordar4. Diane Nelson (2010) explora as várias facetas desse
“acerto de contas” em sua análise provocativa sobre as consequências da
guerra na Guatemala. Sua descrição de como os mortos são contados se en-
trelaça com uma explicação de como as compensações são calculadas, mos-
trando as ironias das diversas formas de cálculo (reckoning) que convergem
para a produção de um tipo de julgamento final dos eventos moralmente
ambíguos do passado. Reckoning, neste caso, carrega a promessa de um dia
quase bíblico, semelhante ao Julgamento Final – a verdade unindo-se com a
virtude para garantir uma retribuição justa para todos.
Como veremos no caso dos brasileiros afetados pela hanseníase, objeto
deste estudo, é essa combinação de dura materialidade com moralidade sutil
que torna o termo “ajuste de contas” (reckoning) tão analiticamente rico.

Política e família nos estudos sociais da ciência


Curiosamente, encontrei nos estudos da ciência uma cisão semelhante àque-
la descrita por Carsten – entre os usos políticos do DNA e as consequên-
cias dessa tecnologia para as subjetividades pessoais e relações familiares.
Por um lado, não foi pequena a discussão acadêmica sobre o uso do DNA
como uma tecnologia de governo para a identificação legal dos indivíduos
em processos de paternidade (Machado e Silva, 2012; Rothstein et al., 2005;
Fonseca, 2014) ou investigações criminais (Machado e Moniz, 2014; Fonseca,
2012). Além disso, há um razoável número de estudos sobre usos de DNA em
ações coletivas ou de direitos humanos. A especulação esperançosa em tor-
no da reunião de provas de ancestralidade genética para validar várias rei-
vindicações de direitos de minorias (ação afirmativa nas áreas de educação,

4 É usado, por exemplo, para criticar leis de anistia que decretam o que é considerado por
muitos um encerramento prematuro dos debates sobre atrocidades perpetradas pelo Estado.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 111


emprego e direitos territoriais) pode ter tido, até agora, pouca relevância
nos tribunais (Kent, 2011) – aliás, no Brasil, isso serviu mais frequentemente
para argumentar contra tais alegações (Santos e Maio, 2005). Entretanto,
no trabalho com vítimas de assassinatos em massa, antropólogos forenses
ganharam grande reputação na luta pelo reconhecimento de violações dos
direitos humanos no Chile, na Colômbia e na Guatemala, entre outros locais
(ver Penchaszadeh, 2012). Nesses vários estudos, embora as implicações po-
líticas de tecnologias de DNA sejam muito claras, não houve quase nenhuma
tentativa de investigar como essas tecnologias podem ter reconfigurado no-
ções de tempo, identidades pessoais e relações familiares entre as pessoas
envolvidas. (A exceção notável a essa regra, o uso de testes de DNA para
“restituir a identidade roubada” de crianças sequestradas durante a ditadura
militar, será abordada mais adiante.)
Por outro lado, os antropólogos médicos têm feito um trabalho bri-
lhante ao analisar as repercussões da medicina genética para a identidade
pessoal e da família enquanto tocam apenas levemente em elementos polí-
ticos. Finkler (2005), por exemplo, em seu estudo sobre norte-americanos
preocupados com uma forma de câncer de cólon hereditário na família, fala
da “ideologia da herança genética”. Segundo este autor, o desenvolvimen-
to de informação sobre doenças com ligação genética levou muitas pessoas
não só a mergulhar com mais cuidado em seu passado genealógico (pergun-
tando “onde recebi este gene”?), mas também a reconfigurar sua percepção
de outros significantes (“quem mais tem isso?”). Ao mesmo tempo, o medo
de transmitir doenças mortais às gerações futuras fez as pessoas pensarem
muito sobre técnicas de rastreio e opções de procriação (“que legado eu
gostaria de deixar?”). Finkler, então, argumenta de forma convincente que a
tecnologia de DNA implica uma espécie de compressão do tempo-espaço, a
qual poderia “substituir o passado e prever o futuro”, servindo de “procura-
ção para a memória” e levando a novas formas de sociabilidade:
Ironicamente, quando é confrontado com a aflição, o indivíduo
solitário, independente e autônomo do século 21 está sendo uni-
ficado com pessoas com quem ele só pode partilhar DNA amoral
e associal. O indivíduo pode desfrutar de parentesco e relações
familiares e desenvolver novas curiosidades sobre antepassados
e parentes desconhecidos com obrigação, responsabilidade ou
sociabilidade apenas limitadas (Finkler, 2005, p.1069).

112 Etnografia de documentos


Hoje a maioria dos observadores críticos no campo de ECT concordaria
que não há tecnologias “amorais”. Como S. Jasanoff (2004) repete com tanta
propriedade, os artefatos científicos e tecnológicos alteram o nosso modo
de olhar o mundo, produzindo efeitos que são ao mesmo tempo morais, me-
tafísicos, políticos e simbólicos. Sahra Gibbon (2013), em sua discussão sobre
marcadores genéticos da possibilidade de câncer de mama no sul do Brasil,
comenta como, em certas publicações científicas, a nova tecnologia parece
exercer um efeito “telescópico” sobre as percepções do passado e do futuro.
Sintonizados em uma agenda global sensível às questões de raça e estudos
genômicos, os pesquisadores apresentam os resultados de seus estudos clí-
nicos em meio a especulações sobre a “ascendência europeia” e a “probabili-
dade de haplótipos caucasianos” entre certas populações atuais. Gibbon, no
entanto, demonstra por entrevistas com pesquisadores médicos e pacientes
que tais percepções não são lineares nem homogêneas. Em sua análise, são
as influências de mediação de regimes de vida específicos que ajudam a ex-
plicar o que, na prática, vem a ser modos altamente “mutáveis” e “plásticos”
de interpretar a informação genética fornecida por tecnologias globalizadas.
Um artigo recente sobre DNA Indígena (Kowal et al., 2013), discutindo a
criopreservação de tecidos do corpo – o congelamento e descongelamento
de amostras de sangue utilizadas em pesquisas científicas –, leva ainda mais
longe a análise de influências mediadoras que afetam o impacto do conhe-
cimento genético. Em vez de tratar o DNA como uma espécie de entidade
atemporal, os autores argumentam que o significado deste artefato “copro-
duzido” se transforma ao longo do tempo. Em sua proposta para demonstrar
uma “forma temporalizada de interrogar as negociações dinâmicas entre
ordens técnicas e sociais” (p. 471), eles evocam as várias temporalidades en-
volvidas no biovalor das amostras de sangue armazenadas no laboratório do
cientista. Ao longo das décadas, as atitudes políticas dos grupos indígenas
envolvidos na guarda ou liberação dessas amostras mudaram. Além disso,
muitos dos cientistas que estabeleceram os acordos originais relativos à co-
leta e utilização das amostras de sangue, tendo envelhecido, saíram ou estão
prestes a sair da cena de pesquisa. O que acontece quando uma nova geração
de pesquisadores assume o controle dos biobancos? Finalmente, os usos po-
tenciais do material foram multiplicados por desenvolvimentos tecnológicos
recentes. A “mutação biossocial” implícita na conjugação dessas diferentes
temporalidades, sugerem os autores, denuncia dicotomias simplificadas de

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 113


moderno/pré-moderno (ou pós-moderno), pró-ciência/anticiência, Norte/
Sul ou nós/eles.
As reflexões de Kowal et al. são, é claro, voltadas para uma finalidade
diferente da nossa. O esforço reflexivo deles visa colocar a ética da ciência e
dos cientistas sob o microscópio analítico. No entanto, as transposições para
o nosso tema são tentadoras. Evocando a temporalidade do DNA, os auto-
res afastam com uma varredura toda e qualquer pretensão ao fato científico
“pétreo”. Enfatizando várias formas de “feitiçaria científica” – ou seja, a rede
necessária para assegurar a utilidade científica de uma amostra de sangue –,
eles derrubam o DNA de seu pedestal, colocando-o ao lado de outras tecno-
logias (no nosso caso, as tecnologias de identificação). Nesse processo, eles
nos estimularam a examinar as “mutações” envolvidas nessas outras tecno-
logias – os documentos legais escritos, por exemplo. Enquanto Kowal et al.
falam de “compulsões imperiais” que tendem a colonizar “saberes subjuga-
dos”, nosso alvo será a burocracia estatal legal que compete com memórias
vividas. Em vez de pensar em biólogos propensos ao “otimismo tecnocrático”
e à crença em um passado bem definido, nós pensaremos em operadores
estatais e legais que dependem totalmente de documentação escrita. Em
vez do DNA criopreservado, descongelado e recuperado para novos fins,
nós consideramos artefatos escritos do passado – às vezes perdidos, muitas
vezes alterados – que são reencenados no palco contemporâneo dos direitos
humanos.
Levando adiante esse tipo de feedback de ECT para a análise de ou-
tros domínios temáticos, reconsideramos neste artigo algumas afirmações
de Finkler sobre DNA e parentesco. Alegar que a genética pode promover
um ajuste de contas (reckoning) “associal” do parentesco com a compressão
tempo-espaço é presumir que as tecnologias anteriores (documentos? me-
mória?) eram eminentemente “sociais” e com temporalidades lineares claras.
Quando posta à prova de uma análise comparativa, tal oposição consegue
manter-se de pé? Com elevada consciência da natureza dinâmica e interde-
pendente das diversas tecnologias de identificação, esperamos trazer à tona
novas maneiras de olhar as reconfigurações causadas por testes genéticos
que buscam verificar o pertencimento familiar.

114 Etnografia de documentos


A construção oportuna de uma causa de direitos humanos
O ponto alto da reunião em Marituba era para ser o anúncio dos resul-
tados do teste de DNA que iriam confirmar ou negar se duas mulheres na
comunidade era irmãs. A história delas – semelhante à de muitas outras pes-
soas submetidas ao teste em todo o Brasil – demonstra o esforço combinado
de uma série de atores importantes: pacientes ativistas, políticos, pesquisa-
dores acadêmicos e geneticistas. Para entender o papel de cada um, vamos
primeiro olhar mais de perto as duas mulheres testadas em Marituba.
A irmã mais nova, Iara5, nasceu na Colônia de Marituba, onde ambos os
pais estavam em tratamento. Com não mais do que algumas horas de idade,
ela foi devidamente registrada pelas parteiras em nome de seus genitores
e enviada para viver em um preventório – um orfanato especializado, onde
iria crescer com os filhos e filhas de outros pacientes internados na colô-
nia6. Neusa, a irmã mais velha, nascera anos antes de a hanseníase afetar a
vida de sua mãe. Fruto de um breve romance entre dois adolescentes, seu
nascimento teve lugar na modesta moradia rural de seus avós maternos e
ela foi “doada” logo depois para ser criada por um casal de tios de sua mãe.
Embora Neusa nunca tivesse sido adotada legalmente, todos os documentos
de identidade dela, a partir da certidão de nascimento, registravam a tia e o
tio como seus pais biológicos.
As irmãs tinham vivido de forma intermitente em diferentes cidades e
até mesmo em outros estados. Mas, envolvidas em uma rede similar de pa-
rentesco, haviam voltado a morar na comunidade de Marituba por ocasião
do teste de DNA. Agora, como elas se preparavam para receber os espera-
dos benefícios que seriam alocados aos “filhos separados”, a primogênita,
na esperança de provar legalmente uma ligação biológica com sua mãe há
muito falecida, necessitava da colaboração de sua irmã caçula. Como Iara
tinha documentos que comprovavam sua condição de filha de uma paciente
de hanseníase internada compulsoriamente, elas concluíram. Bastaria Neusa
provar, através de testes de DNA, que ela era de fato irmã da mulher mais
jovem.

5 Usei pseudônimos nos trechos deste artigo relacionados à observação etnográfica.

6 Em um relatório de 1944, a filantropa brasileira Eunice Weaver orgulhosamente anuncia


a existência de 22 desses “lares modernos” para as crianças saudáveis de vítimas da lepra, es-
palhados por dezoito estados e hospedando naquele momento cerca de 2.500 jovens (Weaver
1943).

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 115


Não obstante o aspecto caseiro e quase monótono da cena, a devolução
ritual dos resultados do teste de DNA foi fruto de décadas de atividade polí-
tica e coalisão de vários aliados importantes. O grupo-chave de pessoas res-
ponsáveis pela cena a que assistimos em Marituba é composto por ativistas
e voluntários do movimento social Morhan. Desde a sua fundação na década
de 1980, o Morhan mostrou grande habilidade na navegação dos agitados
mares políticos em direção às metas do movimento. Iniciado por ex-pacien-
tes de hanseníase que passaram a maior parte da vida em colônias de lepro-
sos, o movimento começou durante a “reabertura democrática” do início dos
anos 1980. Seus líderes rapidamente forjaram afinidades com muitos outros
movimentos de base da década, estabelecendo sede nacional em São Ber-
nardo do Campo – coração do moderno movimento sindical –, onde iriam
conquistar um aliado vitalício na pessoa de Luis Inácio da Silva, o Lula, futuro
presidente do país. Vencendo uma série de desafios – da morte de figuras-
-chave com mudanças de liderança até o clima político mais conservador
dos anos 1990 e, recentemente, a profissionalização das ONGs –, o movi-
mento conseguiu sobreviver e prosperar, mantendo solidamente suas raízes
na população, na sua esmagadora maioria de classe trabalhadora, daqueles
cujas vidas foram “afetadas” pela hanseníase. Eleito presidente do Brasil em
2002, Lula colocou os direitos humanos e a reparação de violações passadas
no alto da agenda de seu governo. Refletindo uma tendência internacional
de humanitarismo particularmente sensível a imagens de sofrimento, o novo
estado de espírito trouxe diversos tipos de “vítimas” para a ribalta (Fassin,
2012; Gatti, 2011). Aqui, ao lado de uma grande variedade de categorias com
uma causa legítima – quilombolas, grupos indígenas, pessoas com deficiên-
cia, mulheres agredidas, etc. –, o Morhan rapidamente encontrou um papel
de liderança.
Administrado quase inteiramente por voluntários não remunerados, o
movimento ocupa hoje um lugar importante em fóruns nacionais e interna-
cionais sobre questões de saúde, promovendo medidas de combate à ainda
alarmante incidência da hanseníase no Brasil7. Evidências das campanhas de
saúde pública encetadas pelo Morhan para erradicar a hanseníase e com-
bater todas as formas de discriminação podem ser encontradas no site e
nos blogs do movimento na internet. Ao mesmo tempo, o movimento, atuan-
do por meio de filiais regionais e locais em todo o país, tem como objetivo

7 Com mais de 30 mil novos casos diagnosticados a cada ano, o Brasil é superado apenas pela
Índia em número e proporção de casos nas estatísticas epidemiológicas.

116 Etnografia de documentos


promover a qualidade de vida dos pacientes e ex-pacientes de hanseníase.
No momento, os esforços estão concentrados nos “filhos separados” que fo-
ram privados de seus pais por causa das políticas de Estado. Em reuniões
periódicas realizadas nos arredores das ex-colônias, pessoas convocadas
através de redes sociais por telefone e internet se reúnem para ouvir relató-
rios sobre o andamento de sua causa, preencher formulários preliminares e
executar várias outras tarefas consideradas necessárias para reivindicar os
esperados benefícios. Com aliados poderosos, como o ex-ministro da Se-
cretaria-Geral da Presidência da República Gilberto Carvalho e a presidente
Dilma Roussef, que manifestaram publicamente seu apoio, o otimismo dos
filhos separados é compreensível.
Entre outros aliados não menos importantes, o Morhan inspirou ou co-
laborou com um bom número de acadêmicos como eu (por exemplo, Maciel
et al., 2003; Mendonça, 2009; Monteiro, 2003; Serres, 2009). Juntamente
com jornalistas que produziram nos últimos anos um conjunto formidável
de vídeos e artigos para o consumo de massa, esses investigadores desem-
penharam um papel importante na reconfiguração da imagem das colônias
– de uma utopia modelar para um aterrador holocausto – e da imagem dos
internados nessas colônias – de beneficiários da benevolência estatal bafe-
jados pela sorte a vítimas do terrorismo de Estado8.
Segundo a narrativa agora já bem estabelecida, é nesses hospitais-co-
lônias, construídos na maioria em áreas rurais isoladas, que a partir do início
dos anos 1940 e continuando durante quase meio século as pessoas diagnos-
ticadas com hanseníase foram confinadas pelos serviços de higiene brasilei-
ros. Nos primeiros anos, os “doentes” de todas as idades e classes, querendo
o tratamento ou não, eram levados e confinados. Há muitas histórias co-
moventes sobre mães arrancadas de seus filhos pela “polícia sanitária”, so-
bre jovens “sequestrados” nas escolas e levados para as colônias (Maranhão,
2005). Com o passar do tempo, as políticas de internamento tornaram-se
mais flexíveis, mas aqueles que permaneceram na instituição – às vezes por
décadas – foram submetidos a restrições draconianas.
No papel, o projeto era o ideal. Deveria haver uma aparência de vida
normal nessas cidadezinhas projetadas para a autossuficiência, que abriga-
vam de mil a três mil pessoas. Os pacientes seriam colocados a trabalhar no

8 Inspirei-me aqui nas análises de Alexander (2002) e Gatti (2011) sobre a reconfiguração do
massacre de judeus durante a Segunda Guerra Mundial – de “atrocidade de guerra” para “crime
contra a humanidade”.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 117


local – as mulheres lavando roupa, fazendo limpeza ou serviço de cozinha;
os homens produzindo arroz, feijão e outros produtos de primeira necessi-
dade nas áreas circundantes, ou construindo e reparando os muitos prédios
da colônia. Os pacientes mais especializados poderiam ajudar no hospital,
outros assumiriam responsabilidades administrativas ou dirigiriam a rádio
comunitária. Alguns poderiam receber um pequeno salário, pago com moe-
das especiais cunhadas exclusivamente para a vida institucional.
Na verdade, o apoio financeiro e administrativo nunca foi regular. Ex-
-pacientes descrevem consistentemente períodos em que faltavam alimen-
tos e não havia assistência médica, comparando sua experiência à de pri-
sioneiros de guerra confinados num campo de concentração. E, embora os
pacientes tenham eventualmente conquistado o direito de estabelecer laços
conjugais, sempre lhes foi negada qualquer possibilidade de uma vida fami-
liar normal. Em nome do bem-estar da criança, os filhos eram retirados de
suas mães assim que nasciam e levados para o preventório mais próximo. As
histórias dolorosas que descrevem essas separações forçadas das mães e de
seus filhos recém-nascidos são inumeráveis. De acordo com as políticas ins-
titucionais, a comunicação entre pais e filhos era a menor possível, restrita
na melhor das hipóteses a uma visita mensal durante a qual nenhum contato
físico era tolerado.
Nem todos os filhos cresceram num orfanato. Muitos, especialmente
aqueles que nasceram antes da internação da mãe ou do pai (como no caso
de Neusa) foram mandados para casas de parentes distantes ou amigos da
família. Alguns passaram apenas brevemente pelo orfanato antes de serem
dados em adoção legal, com ou sem o consentimento dos pais. Muitos dos
jovens institucionalizados acabaram sendo reintegrados às suas famílias de
origem quando seus pais – tendo sido ou considerados curados ou expulsos
de repente por causa de mudança política na administração da saúde – fo-
ram liberados da colônia. Mas os jovens continuaram a carregar as cicatrizes
físicas e psíquicas de anos de institucionalização em circunstâncias muito
distantes das ideais.
Para agravar ainda mais a situação, alguns jovens perderam os rastros
de sua identidade original. Por causa de fraude, incompetência ou pura indi-
ferença burocrática, eles não têm nenhuma prova legal das agruras que vive-
ram. E é aí que entra em cena um terceiro grupo de aliados de importância
fundamental para a reunião de Marituba: os geneticistas que ofereceram a
possibilidade de um teste de DNA.

118 Etnografia de documentos


A coordenadora do Inagemp (Instituto Nacional de Genética Médica
Populacional) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul é uma cola-
boradora voluntária do Morhan de longa data. Ela desempenhou um papel
primordial na articulação de um projeto anterior sobre a história das colô-
nias de hanseníase no Brasil (Schüler-Faccini, 2004). Em 2011, quando o mo-
vimento dos filhos separados ganhou força, ela e sua equipe propuseram um
novo tipo de parceria com o Morhan através do Projeto Reencontro. Desta
vez, com fundos de pesquisa fornecidos pelo Ministério de Ciência e Tecno-
logia (CNPq), a ideia foi usar DNA em prol dos direitos humanos, validando
a identidade desses filhos que, por causa de documentação incompleta ou
inexistente, foram incapazes de demonstrar seus laços familiares. Os orga-
nizadores estimam que cerca de mil dos 30 mil filhos separados vão precisar
desse tipo de validação.
Não há dúvida de que o uso de análises de DNA no Projeto Reencon-
tro inspira-se na experiência argentina das Avós da Plaza de Mayo (Abuelas,
2008; Regueiro, 2010). Assim como o DNA foi usado para restituir a “iden-
tidade suprimida” de crianças cujos pais foram assassinados pela ditadura
militar, agora ele está sendo usado para reestabelecer a identidade biológica
de brasileiros cujos pais, atingidos pela hanseníase, foram sequestrados pela
polícia sanitária brasileira. A ligação entre os dois movimentos é explicitada
pela coordenadora do projeto, tanto em palestras para o público leigo como
em artigos acadêmicos (Penchaszadeh e Schüler-Faccini, 2014). No entanto,
ao contrário do caso argentino, o projeto Morhan não é voltado à abertura
de processo criminal contra qualquer indivíduo em particular. O “acusado”
aqui é o próprio Estado, intimado a oferecer reparação pela violência que
perpetrou no passado. Todas as partes que estão sendo testadas aqui se
apresentaram voluntariamente. Não há nenhuma injunção legal obrigando-
-as a se submeter ao processo. Aqui, o teste tem o objetivo de ajudar as pes-
soas a processar judicialmente o Estado, como vítimas de um crime contra
os seus direitos humanos fundamentais.

As “pistas de papel” meio apagadas que documentam o passado


A uso de DNA começou tarde nesse movimento. A primeira geração confiara
inteiramente em provas documentais para se qualificar a benefícios como
vítimas de segregação compulsória. Entre a aprovação da lei de 2007 e janei-
ro de 2014, cerca de 12 mil processos tinham chegado a Brasília, onde uma

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 119


comissão interministerial de especialistas (incluindo pesquisadores, médi-
cos, administradores indicados pelo Estado e um representante do Morhan)
organizada pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
(SDH/PR) iria se debruçar sobre os documentos para decidir quem entre os
candidatos tinha legalmente o direito de receber a pensão vitalícia.
Teoricamente, o processo deveria ser simples. Um candidato ou candi-
data tinha apenas de provar que fora internada numa determinada institui-
ção (uma das colônias de hanseníase), num determinado momento (durante
os anos de segregação compulsória). Na verdade, foi preciso muito trabalho
para esclarecer quem tinha passado por qual experiência. As políticas varia-
vam de estado para estado. Em algumas regiões, a internação compulsória
parece ter sido afrouxada mais cedo, nos anos 1950, logo após os especia-
listas das Conferências Mundiais de Hanseníase terem declarado que, como
medida para combater a epidemia de lepra, a segregação era inútil. Em ou-
tras regiões, o confinamento parece ter continuado até a década de 1980,
muito tempo depois de a Lei 1.976 decretar o seu fim. Além disso, houve
alguma discussão sobre que tipo de lepra constava no registro de cada pa-
ciente, pois nem todos os tipos estavam vinculados à exigência de segrega-
ção compulsória (Maricato, 2014).
De qualquer forma, documentos escritos, necessários para comprovar
o lugar e o momento de experiências vividas quarenta anos atrás, não eram
necessariamente fáceis de encontrar e muito menos decifrar9. A Lei Geral de
Arquivos, aprovada em 1991, que torna as administrações responsáveis pe-
los registros por elas mantidos, é um novo elemento na cena. A maioria das
colônias não tinha nem equipe nem know-how para cuidar de arquivos. Se,
por algum milagre, o dossiê do paciente sobrevive a décadas de indiferença
administrativa, os formulários muitas vezes estão incompletos e cheios de
ambiguidades. Em alguns dossiês, os ex-pacientes só foram capazes de pro-
duzir uma declaração assinada pelo atual administrador, responsável pelo
ambulatório da região, afirmando que o peticionário esteve internado na co-
lônia local em uma determinada data.
Outro tipo de problema que a Comissão teve de enfrentar diz respeito
à identidade do peticionário – se ele ou ela era de fato a pessoa referida na
informação histórica fornecida pelos administradores da colônia. Existe um
documento de identidade nacional no Brasil, contendo a impressão digital,

9 Ver Scott et al. (2002), Herzfeld (1992, 2005) e Peirano (2009) para algumas das grandes
discussões sobre documentação escrita como parte das tecnologias de governança.

120 Etnografia de documentos


foto e data de nascimento da pessoa, bem como o nome de ambos os pais.
Mas o RG, como é conhecido, é geralmente estabelecido com base numa
certidão de nascimento, que não inclui nem foto nem impressões digitais.
Especialmente nas décadas do meio do século passado, estas as certidões
muitas vezes só eram expedidas anos após o nascimento da criança, tornan-
do quase impossível para o cartório exigir qualquer comprovação além da
palavra do declarante. Além disso, o sistema de emissão de documentos na-
cionais de identidade pelos diferentes estados carece de articulação federal.
Assim, uma pessoa pode ter vários RGs diferentes. Portanto, não é de estra-
nhar que especialistas do Instituto Nacional de Seguridade Social chamados
para examinar as demandas tenham detectado vários casos de fraude apa-
rentemente deliberados: uma pessoa, sob diferentes identidades, submetera
várias demandas de reparação financeira; outras pessoas assumiram a iden-
tidade de internados já falecidos, etc. No entanto, era muito mais comum
encontrar o que pareciam ser erros administrativos – nomes ligeiramente
alterados de um documento para outro; filiação ou data de nascimento no
registro hospitalar diferente do informado na carteira de identidade, etc.
Nesses casos, os historiadores e ex-administradores de colônias que traba-
lharam na Comissão foram mais solicitados do que nunca para interpretar a
incongruência de dados nos dossiês.
As complicações documentais que já representam um desafio para a
primeira geração de ativistas, formada pelos internados nas colônias, são
agravadas para a geração dos filhos. Nos casos ideais, os pais ainda estão
vivos e já realizaram os procedimentos necessários para comprovar que fo-
ram institucionalizados por hanseníase durante o período crítico da repres-
são. As crianças, tendo sido declaradas ao nascer como filhos biológicos de
seus pais, sendo capazes de provar esta filiação e mostrando a identificação
correta, são informadas de que não terão nenhum problema em reivindicar
benefícios. Mas, na maioria dos casos, os pais morreram antes da lei de 2007
ser aprovada, e os filhos vão ter de fazer seu próprio trabalho de detetive,
indo atrás dos documentos empoeirados que eles esperam ter sido mantidos
em algum lugar nos arquivos da colônia. Com sorte, talvez eles encontrem os
formulários de internação de seus pais, ainda que tais documentos possam
conter informações perturbadoras.
Embora o estado mental e físico dos novos pacientes apareça na maio-
ria desses formulários classificados como razoável ou bom, o nível intelec-
tual é geralmente definido como “nulo” (outro item no formulário é “sabe ler

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 121


e escrever”). Na categoria “Indigente?” há mais marcas de sim do que de não.
Nas linhas reservadas a comentários pode haver alguma referência escrita
à mão sobre o número de filhos do paciente, mas raramente qualquer outra
coisa – nenhuma menção de idade ou sexo, e muito menos de nome das
crianças. Para provar sua filiação, o filho separado deve, portanto, apresen-
tar-se com uma certidão de nascimento original – algo mais fácil de ser dito
do que de ser feito, tratando-se de registro de meados do século XX, uma
época em que grande parte do Brasil era rural, a maioria das crianças nascia
em casa, e muitas delas só eram registradas anos mais tarde.
A circulação de crianças entre as casas dos pais, avós, padrinhos, vizi-
nhos e conhecidos – uma prática de criação de filhos já comum em popu-
lações de classe trabalhadora no Brasil (Fonseca, 1995) – aumentou no caso
dos filhos separados. Aqui, a doença apenas se somava a uma longa lista de
dificuldades (pobreza, migrações, mortes e instabilidade conjugal) que exi-
gia recorrer a variados recursos. A maioria dos pais adotivos, se não eram
analfabetos, tinham pouca familiaridade com a burocracia estatal, e assim,
quando precisavam tirar os documentos da criança (para apresentá-los em
uma escola ou em um hospital, por exemplo), simplesmente tomavam o ca-
minho mais conveniente, registrando-se no documento como se fossem eles
os genitores. Essa prática, embora tecnicamente ilegal, era extremamente
comum e, na maioria dos casos, parecia satisfatória para todos os envolvi-
dos. No entanto, com o passar do tempo, a “falsa” filiação poderia apresentar
problemas.
O caso de Neusa é exemplar. Ela admite que, quando era criança e cir-
culava entre as famílias de diferentes parentes, sua certidão de nascimento
incorreta parecia ter pouca importância. Praticamente tudo o que ela sabia
sobre a mãe biológica era que a mulher tinha sido confinada em uma colô-
nia por causa do mal de Hansen. Mas, com o projeto de lei de reparação aos
“filhos separados”, de repente a exatidão de seu registro de nascimento as-
sumiu uma nova importância. O problema agora era: tendo nascido em casa,
como iria provar sua “verdadeira” identidade? Testemunhas do seu nasci-
mento, mesmo se ela conseguisse localizá-las, não teriam peso suficiente
para alterar uma certidão de nascimento legalmente estabelecida. Um teste
rápido de DNA como os comumente feitos hoje nos serviços judiciais para
resolver disputas de paternidade estava fora de cogitação, pois seu pai e sua
mãe já tinham morrido. A sorte de Neusa era ter uma irmã viva que havia
sido corretamente registrada em nome de uma mãe cujo confinamento na

122 Etnografia de documentos


colônia fora legalmente demonstrado. Sem os registros documentais corre-
tos de Iara, a prova de sua irmandade teria sido inútil. Aqui, o DNA não é um
substituto, mas sim um complemento da documentação.
Em certos casos, os filhos consideram desnecessárias quaisquer preo-
cupações com a identificação de seus pais. Por exemplo, Edmundo, líder de
uma sede regional do Morhan, explica que, embora os nomes de seus pais
estejam na sua carteira de identidade, isso não lhe serve de ajuda necessa-
riamente. Como seus pais morreram antes da lei de 2007, eles nunca pedi-
ram benefícios e Edmundo não sabe se eles teriam encontrado prova do-
cumental para se qualificar. No entanto, ele não tem dúvidas sobre a prova
legal de seus direitos: “Minha certidão de nascimento diz que eu nasci na
maternidade da colônia durante os anos de segregação compulsória. Isto é o
bastante”. Ironicamente, são esses filhos nascidos na maternidade da colônia
que têm a maior chance de provar sua herança parental, pois, na maioria dos
casos, o pessoal administrativo cuidava de garantir o registro de nascimento
adequado no próprio hospital ou no cartório de registros mais próximo.
Como os preventórios eram reservados exclusivamente para os filhos
dos internados nas colônias, um filho ou filha pode também provar seu direi-
to à reparação, demonstrando ter residido algum tempo durante a infância
em um desses orfanatos. No entanto, se os arquivos médicos das colônias
são precários, a documentação escrita produzida nos orfanatos é ainda mais
problemática. Muitas dessas instituições mudaram de mãos ao longo dos
anos, alternando entre diferentes ordens religiosas da Igreja Católica. Já no
início dos anos 1980, com o fim da segregação compulsória, as instituições
estavam sendo canalizadas para outras populações: os sem-abrigo, idosos,
etc. Durante a década seguinte, com o movimento antimanicomial fortale-
cido10 e a condenação geral dos grandes orfanatos adotada pelo Estatuto
da Criança e do Adolescente de 1990, a maioria dos edifícios que tinham
abrigado filhos separados foi demolida. Assim, quem tenta seguir as “pistas
de papel” para comprovar seu status geralmente relata que não foi capaz
de encontrar qualquer vestígio de registros da instituição, muito menos um
administrador legalmente responsável por esses arquivos. Alguns investiga-
dores, diante de reportagens sobre escândalos em orfanatos católicos do
passado, afirmam que a Igreja teme ter de pagar indenizações milionárias, e

10 Refiro-me aqui ao movimento que se espalhou da Europa e América do Norte em direção


a outras partes do mundo durante os anos 1960 e 1970, para desinstitucionalizar os doentes
mentais e outros pacientes que viviam em asilos.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 123


propagam murmúrios de que a “perda” de documentos é deliberada: “Dizem
que houve um incêndio, mas, no meu entender, o fogo não começou por
acidente.”
Vemos, então, que documentos podem ser difíceis de serem loca-
lizados, pois são facilmente dispersos ou destruídos, frágeis e até mesmo
perecíveis. E, quando se materializam, eles podem ser objeto de suspeita de
fraude. Na verdade, fora da rede tecnológica necessária para a padronização,
conservação e classificação de documentos acessíveis, os registros escritos
têm pouco valor. No entanto, uma vez considerados «em ordem» – com cer-
tificados devidamente carimbados –, eles ganham ar de duradoura legitimi-
dade. A geneticista citada na reunião de Marituba parece firme na sua ga-
rantia de que, quando a identidade (e filiação) de uma pessoa foi legalmente
estabelecida, “ninguém pode tirar de você essa identidade”.
Ainda assim, em todo o mundo ocidental, a tecnologia de DNA provo-
cou recentemente a “mutação” de uma série de prerrogativas legais ante-
riormente consideradas irrevogáveis. Dolgin (2009), por exemplo, fala das
maneiras como a genética “desequilibrou a tradição” nos tribunais dos Es-
tados Unidos ao destronar a “presunção marital” em casos de paternidade11.
Na França, adoções “irrevogáveis” foram igualmente revertidas em nome do
direito de um pai biológico reivindicar uma criança dada em adoção por sua
genitora (Fonseca, 2009). Parafraseando Kowal et al., gostaríamos de sugerir
que esses casos são exemplos de como a ordem jurídica retrabalha o passa-
do e o futuro de forma não linear ao acompanhar presentes politicamente
carregados (2013, p.472).
Resta, no entanto, a pergunta: até que ponto essas mudanças na tec-
nologia de identificação falam de (ou espelham) as relações sociais reais?
Aproximando-nos, no próximo item, dos sujeitos em questão, esperamos
delinear alguns pontos que podem fornecer uma resposta.

Lembranças: a importância das tecnologias de apoio


Enquanto me guia pelas ruas do seu bairro, acenando para as pessoas senta-
das nas varandas, Tamara, 50 anos, comenta: “Somos todos uma família por
aqui.” Na verdade, a maioria dos filhos separados de qualquer região parece
se conhecer bem. Por exemplo, a reunião acima descrita ocorreu em uma

11 Ver Fonseca (no prelo) para mudanças em uma direção semelhante na lei e na jurisprudên-
cia brasileiras.

124 Etnografia de documentos


área que antes pertencia à Colônia de Marituba. Quase todas as pessoas que
moram nas avenidas circundantes pertencem a alguma rede extensa de pa-
rentesco de descendentes de antigos pacientes da colônia. A maioria delas
também tem parentes que até hoje vivem na Colônia do Prata, uma institui-
ção ainda mais antiga, isolada em uma área rural a cerca de cem quilôme-
tros dali. Embora algumas dessas pessoas tenham conseguido emprego no
comércio local, ou em alguma oficina mecânica, ou em serviços de faxina em
Belém, muitas ganham a vida como ajudantes na única unidade institucional
que restou da antiga colónia, uma casa residencial e clínica ambulatorial de-
dicada a pessoas que sofrem as sequelas da hanseníase. Nos pequenos apar-
tamentos geminados, habitados quase exclusivamente por ex-internados
idosos, uma geração mais jovem é empregada para cuidar de seus “tios” e
“tias” – pessoas que carregam lembranças de certas conexões genealógicas.
Para as pessoas que ainda estão na vizinhança, as recordações narra-
das – especialmente por membros mais velhos da comunidade – são as fon-
tes mais confiáveis de informação sobre o passado. Pela narrativa de suas
próprias experiências, parteiras, funcionários do hospital ou simplesmente
vizinhos e parentes da geração mais velha são fundamentais para preen-
cher as lacunas deixadas por certidões de nascimento erradas, paternidade
desconhecida ou adoção informal. Mesmo para aqueles que já não moram
na área, as lembranças de algum burocrata podem ser mais úteis do que os
registros oficiais.
Alba, uma jovem adotada na infância por uma família de classe média
de Belém, nunca tinha pensado em procurar sua família biológica. Mas, na
checagem de sua certidão de nascimento para retirar nova via de uma car-
teira de identidade perdida, ela foi pega de surpresa quando o funcionário
público, que trabalha numa cidade próxima da colônia em que ela nasceu,
exclamou: “Minha nossa! Então você é a filha de X e Y. Fui eu que fiz o ca-
samento de seus pais. E assim, logo depois aconteceu o reencontro – bem-
-vindo, embora não procurado – de Alba com sua família de nascimento.
A história de Alba fala de uma espécie de “tecnologia de suporte” que
pode ativar narrativas e produzir ou alterar sentimentos de pertencimento
familiar – fragmentos de conhecimento fornecidos por testemunhas ocula-
res. Mas, em muitos casos, a morte e a distância geográfica criam obstáculos
para a coleta desse tipo de informação. No caso a seguir vemos como foram
necessários anos, assim como a proliferação de modernas tecnologias de co-
municação e transporte, para vagas memórias virem realmente a funcionar.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 125


Marília, uma jovem mãe de três filhas pequenas que mora em Belém, é
uma das crianças separadas que, apesar de nunca ter sofrido pessoalmente
de hanseníase, incorporou a doença como parte de sua saga familiar. Ela
conta que sua mãe tinha apenas 9 anos de idade e vivia numa área rural de
Macapá quando a família que ela tinha lepra. Primeiro eles construíram uma
cabana separada, onde ela iria viver isolada dos outros. Mas seu irmão mais
velho, sentindo pena dela, decidiu levá-la para a cidade na esperança de en-
contrar algum tratamento. E ele a colocou num serviço doméstico na cidade
de Belém, sem nada mencionar aos empregadores sobre a aflição de sua
irmãzinha. Cinco anos mais tarde, a doença não podia mais ser escondida e,
quando os patrões descobriram, eles levaram imediatamente a menina de 15
anos para a Colônia do Prata. Logo depois a mãe da menina, tendo notícia de
seu paradeiro, viajou até a colônia para tentar levar a filha de volta para casa,
“mas os médicos explicaram que elas não deveriam viver juntas – por causa
do contágio”. E assim, a menina amadureceu, casou, teve filhos, envelheceu
e morreu nos limites da colônia, sem nunca mais ver ninguém de sua família
de origem.
Marília continuou a contar que, no verão anterior, tinha levado os filhos
para passar uns dias na casa do tio paterno dela, numa comunidade rural
construída nos arredores das ruínas da Colônia do Prata;
... e, lá fora, em frente à igreja, eu vi esse casal que não reconheci.
Achei estranho, porque aqui todo mundo se conhece. Eles esta-
vam tirando fotos. Pensei que um de vocês [ jornalistas e pesqui-
sadores que passam por lá]. O sujeito perguntava a todo mundo
sobre uma tal de Dona Sebastiana, mas ninguém fazia ideia de
quem ele estava falando. Até que alguém se lembrou – “Você quer
dizer Dona Babá? Parece que o nome dela era Sebastiana. Talvez
você devesse falar com a Marília.” Então, ele veio e falou comigo.
Eu disse: “Sim, Sebastiana, era esse o nome da minha mãe.” E, ain-
da meio confusa, eu respondi às perguntas dele: “Sim, ela tinha
família no Amapá, e sim, ela tinha três filhas.” Foi quando ele co-
meçou a chorar. Ele pegou o telefone celular e eu ouvi ele dizer:
“Mãe. Eu descobri eles. Eu encontrei a família da tia.”

Para a narradora dessa estória é absolutamente lógico que a mãe de


seu primo estivesse tentando há anos descobrir algo sobre a sua querida
irmãzinha mandada embora havia décadas. A importância das relações de
sangue foi incutida em Marília por ter ela crescido em torno dos parentes de
seu pai – um verdadeiro clã. Quatorze dos dezesseis irmãos de seu pai tive-
ram “essa doença”, e a maioria deles, se não vivia na colônia, estava ligada a

126 Etnografia de documentos


ela de alguma forma. Alguns de seus tios eram capazes de manter empregos
regulares nas docas da cidade, outros ficavam na colônia, ocupando cargos
de influência reservados aos internados, como o de xerife. Depois de passar
grande parte da infância com uma mãe adotiva que morava na vizinhança
e a levava regularmente para visitar os parentes, Marília manteve um forte
sentido de família. Hoje ela mantém contato com essa vasta rede de parentes
pelo Facebook, onde posta, entre instantâneos seus e de suas filhas, os regis-
tros visuais de eventos familiares repletos de primos pelo lado paterno. Mes-
mo assim, a jovem me diz que a curiosidade sobre os parentes de sua mãe
nunca a abandonou. Ao dizer “eu não me pareço com ninguém da família de
meu pai”, ela plantou uma série de interrogações que só seriam expressas (e
respondidas) depois de ter se reunido com seus parentes maternos.
A mãe de Marília, internada na década de 1960, obviamente não teve o
benefício da Internet. Aliás, ela provavelmente não teve nenhum dos outros
suportes materiais de identificação. Como já dissemos, muitas pessoas, se
não a maioria delas, não tiveram certidão de nascimento – principal docu-
mento de identidade na época – antes de uma longa incursão pela vida adul-
ta. Fotos eram praticamente inexistentes. De vez em quando eu via, pen-
durada na parede de uma sala de visitas, a desbotada fotografia em preto
e branco de antepassados – por exemplo, um casal no dia do casamento
exibindo trajes simples e rostos sem sombra de sorriso, retratando na pose a
estética solene daqueles dias.
Mas, mesmo no caso improvável de a mãe de Marília ter conseguido
encontrar e manter tesouros como uma dessas fotos – ou mesmo os nomes
corretos de seus pais –, isso possivelmente pouco teria ajudado. A mulher
não tinha meios para viajar, os telefones eram praticamente inexistentes
e, no caso dessa população majoritariamente analfabeta, endereços eram
irrelevantes.
Ouvi falar de apenas uma ocasião em que o contato com uma parente
perdida há muito tempo foi restabelecido por carta – contato iniciado pela
parente, que tinha sido legalmente adotada na Alemanha. Depois de ras-
trear sua mãe biológica por meio de registros legais numa corte de justiça,
a adotada escreveu-lhe uma longa carta, dirigida aos cuidados dos serviços
sociais locais e devidamente entregue à destinatária. No entanto, como me
relata a irmã da adotada, ninguém na família se lembra muito bem do acon-
tecimento – se a carta veio em alemão ou em português, qual era o endereço
da irmã alemã, etc. ... A mãe delas morreu há muito tempo e a carta parece

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 127


que se perdeu quando a família mudou de residência. O fracasso da adotada
alemã na tentativa de reatar laços com seus parentes brasileiros sugere que
uma relação de sangue não é suficiente para “pertencer” a uma família. Pa-
rece que aqui, para as “reconciliações (reckonings) familiares” terem alguma
importância, elas precisam incluir mais do que a memória e o reconheci-
mento dos laços biológicos.

Reconciliando o parentesco, narrando o passado


Lembranças, como podemos ver na história de Marília, ajudam a preencher
os espaços pontilhados, colocando os indivíduos dentro daquilo que eles
percebem como a dada estrutura de seus parentes de sangue. Eles também
realimentam as noções de parentesco “prático” ou “performático” – isto é, as
relações familiares criadas através de experiência compartilhada. Aqui, mais
uma vez, nós invocamos o trabalho de Carsten, que com base em ideias de
David Schneider, perspectivas em antropologia feminista e teoria da prática
sublinha a criatividade de experiências não procriativas do relacionamento
construído através de atos cotidianos, como corresidência, comensalidade,
cultivo dos mesmos campos, etc. Essas práticas de participação, reveladas
através de particularidades etnográficas em contextos específicos, são inu-
meráveis. No entanto, elas têm em comum a ideia de que o relacionamento
está em construção constante. É o resultado cumulativo do trabalho duro
envolvido na fabricação e manutenção de relações (Carsten, 2000, p.26).
Lambek, explorando a mutualidade de memória e parentesco, aponta
para a noção de “cuidado” como uma maneira de entender a “temporalidade
profunda” deste duro trabalho: “Cuidar é a maneira de lembrar geralmente
característica do ethos e da prática de parentesco em todos os lugares “(2007,
p. 220). De fato, em nossas explorações etnográficas, o cuidadoso carinho de
um com o outro provou ser crucial para determinar quem se inclui entre as
relações íntimas. No entanto, insistimos: os atos e experiências de cuidar
tornam-se relevantes através de referências narrativas explícitas. Narrações
do passado são, nesse sentido, reconciliações de parentesco. O sentimento
de família é nutrido por estórias contadas e recontadas (Van Vleet, 2008).
Enquanto eu conversava com um grupo de filhos separados, sentados
em torno de uma mesa de cozinha na Colônia do Prata, me espantei com o
número infindável de histórias que podiam ser contadas coletivamente. O
sentimento de parentesco parecia ser alimentado não só pela experiência

128 Etnografia de documentos


compartilhada de pessoas de uma comunidade muito unida, mas também
pelo reconhecimento mútuo de como elas haviam sofrido sob as duras con-
dições da institucionalização. Alguns dos filhos separados têm a reputação
de carregar a marca do orfanato no próprio corpo, na forma de suas cabeças
“tampa de panela”. (Supostamente, para facilitar o trabalho, os bebês eram
dopados e deixados dormindo de barriga para baixo por tanto tempo que
suas cabeças assumiam a planura da cama.) No entanto, o sentimento de
parentesco é mais evidente na lembrança de atos específicos de cuidar um
do outro.
Embora a maioria das “crianças separadas” tivessem irmãos na mesma
instituição, suas lembranças parecem dizer respeito a outras crianças, as
mais próximas em idade, que trabalharam juntas no campo ou que sofreram
nas mãos dos mesmos guardiões. Durante nossas conversas, eles convida-
vam uns aos outros para confirmar suas histórias: “Lembra como as freiras
ficavam furiosas, como elas nos castigavam quando a gente pulava o muro
para apanhar tangerina?”, “Lembra como eu cuidei de você quando você
quebrou o braço?”, etc. A proximidade com outros da mesma faixa etária pa-
rece aumentar pelo sentimento que muitos filhos separados compartilham,
de terem sido abandonados pelos pais.
Havia pacientes nas colônias que faziam de tudo para manter conta-
to com os filhos institucionalizados – desafiavam restrições e fretavam seu
próprio transporte coletivo para visitá-los “todo segundo domingo do mês”.
Marília lembra como conseguiu “escapar” do orfanato quando tinha 5 ou 6
anos de idade, graças a esse esforço coletivo. “Foi o pai de outra menina que
viu o que estava acontecendo, mas quando era dia de visita todo mundo que
vinha era pai e mãe.” O pai visitante contou aos pais de Marília que ela pare-
cia dopada, que deviam tirá-la de lá antes que ela se tornasse débil mental,
como muitas das outras crianças institucionalizadas. E assim, a menina de 6
anos de idade deixou o orfanato para ir morar com um amigo de seus pais.
No entanto, muitos jovens passaram anos sem nenhum contato com a
mãe ou com o pai. Dizem alguns que, entre os pacientes internados na colô-
nia, apenas aqueles que não tinham lesão na pele eram autorizados a visitar
os filhos, “para não assustar as crianças”. Outros afirmam que os pais tinham
de conceder uma “prova de negativo” – isto é, ser considerados curados –
antes de serem autorizados a se aproximar do orfanato. De um jeito ou de
outro, os adultos normalmente eram proibidos de tocar em seus filhos – o
que explica a referência constante nas narrativas das pessoas às muretas de

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 129


tijolo (ou, dependendo da colônia, aos painéis de vidro) que mantinham as
duas gerações fisicamente separadas durante as visitas. Não é de se estra-
nhar que, junto com a doença e a penúria, as circunstâncias frustrantes do
dia de visitas levassem os pais a desistir desse esforço.
E assim, quando anos mais tarde as crianças foram sumariamente re-
integradas às suas famílias (seja por terem atingido a maioridade ou, como
no caso dos filhos mais novos, o orfanato ter fechado), muitos pais, e tam-
bém as crianças, tiveram a impressão de estar sendo condenados a viver
em companhia de completos estranhos. As inúmeras histórias bizarras de
retorno ao lar refletem ainda outra experiência que as “crianças separadas”
têm em comum. Para ilustrar, voltemos a Edmundo. Durante uma de nos-
sas entrevistas em sua confortável residência de tijolos, expressei admiração
pela casa. “Construída por meu pai”, ele me disse, “mas nós nunca moramos
aqui juntos”:
Mamãe deu o primeiro filho dela. Não sabemos nada sobre ele. En-
tão, nós três (dois irmãos e uma irmã) nascemos enquanto nossos
pais estavam na colônia. Eu fui levado embora da maternidade
com apenas algumas horas de vida – dentro de uma cesta, com
dois outros bebês. Eu tinha 8 anos de idade quando o governo de-
cidiu desinstitucionalizar. O pessoal do orfanato disse para minha
mãe que estavam devolvendo as crianças às suas famílias. Meu
pai trabalhava em Santarém naquela época. Quando mamãe ligou
para dizer que os seus filhos iam voltar para casa, a resposta dele
foi: “Que filhos? O governo tirou eles de nós, deixe que o governo
crie.” E meu pai ameaçou ela com uma surra daquelas de nunca
mais esquecer se ela nos aceitasse de volta.

Vemos aqui como certas experiências desativam o que outros podem


considerar relações naturais de parentesco. Não só o pai de Edmundo não
se considera mais vinculado a seus filhos, como ele próprio também encon-
tra uma maneira de minimizar as conexões com o seu pai. Vimos anterior-
mente como ele insiste que não precisa demonstrar um laço filial com seus
pais para ter acesso aos benefícios de filho separado. (Basta ele provar que
nasceu no hospital-colônia porque, naquele momento, todos os pacientes
eram internados e todas as crianças eram enviadas para o orfanato.) Pode-
mos deduzir que, da mesma forma que as pessoas com história familiar de
doença genética têm uma maneira de reinterpretar suas genealogias segun-
do contingências locais, nosso interlocutor atribui significado a sua identi-
dade documental segundo sua própria experiência de vida: minimizando a

130 Etnografia de documentos


importância das conexões genealógicas e sublinhando informações indivi-
dualizantes, como o local de nascimento.
Há, por outro lado, experiências que ativam formas inesperadas de pa-
rentesco. Edmundo passa a explicar que, após a liberação do orfanato, ele
e seus irmãos e a irmã foram morar com os pais “adotivos” de sua irmã por
cerca de seis meses. Nesse período, sua mãe tinha morrido de complicações
da hanseníase e Edmundo começou a “circular” entre as casas de diferentes
pessoas – tanto de ex-internados da colônia quanto das freiras que ajudavam
a vizinhança.
Como mencionado acima, essa maneira de socializar as responsabili-
dades de criação dos filhos não era incomum em populações da classe tra-
balhadora brasileira. Muitos dos filhos separados têm irmãos e irmãs mais
velhos que, como Neusa, foram colocados ainda crianças em outras famílias,
geralmente de parentes ou de vizinhos, antes que seus pais biológicos fos-
sem enviados para a colônia. Outros, como Marília, nascida durante a in-
ternação de sua mãe, foram criados ou no orfanato ou num lar adotivo de
escolha dos pais. Outros ainda, como Edmundo, ampliaram sua rede de ou-
tros significantes depois de sair do orfanato. Alguns jovens dados em adoção
ainda bebês talvez nunca descubram que foram adotados. Na maioria dos
casos as pessoas crescem bem cientes da diferença entre um par de “pais” e
outro. No entanto, indiferentes às distinções que dizem respeito a relações
de sangue ou status legal, elas continuarão a mencionar esses vários pais
adotivos (sejam eles chamados de “mãe” e “pai” ou “tia” e “tio”) sempre que
solicitados a elaborar sobre sua história de família.
Não existe uma regra firme nessas situações. Esse tipo de pertenci-
mento familiar não é um fato, mas sim um processo reativado e desativado
tanto por lembranças quanto por interações sociais hodiernas. Portanto, é
compreensível que exatamente esse tipo de parentesco “representado” seja
amplamente ignorado pelas instituições legais. Quando chamado a prestar
serviços ao sistema de justiça formal, a contribuição do DNA parece inclinar-
-se em outras direções.

À espera de um dia de juízo final (reckoning)


Grande parte do rigor tecnológico utilizado no caso dos filhos separados é
semelhante ao usado na Argentina para localizar os filhos de presos políti-
cos e desaparecidos sequestrados durante a ditadura militar. Lá, um índice

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 131


de abuelidad, ou seja, de parentesco de avós, foi desenvolvido em meados
da década de 1980 para que a relação genética entre gerações alternadas
pudesse ser verificada, mesmo na ausência dos pais. Os critérios utilizados
hoje no Projeto Reencontro para verificar germanidade é uma extensão ló-
gica disso. No entanto, a tecnologia tornou-se ao mesmo tempo mais sim-
ples e mais sofisticada do que quando as abuelas (Avós da Plaza de Mayo)
iniciaram as suas atividades. Hoje, ambos os projetos usam kits de teste da
Applied Biosystems, envolvendo um número alto de short tanden repeats
loci – no Brasil, são 23. Com o material analisado passando de sangue a sali-
va, as amostras são recolhidas com relativa facilidade em diferentes pontos
geográficos e os frascos são transportados em bolsas leves, em temperatura
ambiente, para o laboratório da universidade onde é feita a análise. Com
os ativistas do Morhan preparando a documentação necessária – inclusi-
ve fotocópias da carteira de identidade e do comprovante de residência da
pessoa –, bastam dois técnicos para coletar até cem amostras em um dia.
Já no início de 2014, 196 testes tinham sido realizados, confirmando-se re-
lações entre irmãos em 158 casos. Nos outros testes, com menos de 80%
de coincidência de STRs, os resultados foram considerados inconclusivos,
sugerindo relações de meio-irmãos ou ainda mais distantes (Penchaszadeh e
Schüler-Faccini, 2014). Houve, até agora, apenas duas “exclusões” definitivas
de relações consanguíneas.
Para os objetivos legais dos filhos separados, todavia, os resultados de
DNA ainda estão na fase preliminar do “fato jurídico duro”. A lei que exige
prova de pertencimento familiar ainda não foi aprovada e, quando isso acon-
tecer, teremos de saber qual a importância atribuída aos testes genéticos.
Esses testes, por enquanto, embora sob rigoroso controle desde a coleta
de amostras de saliva até a última assinatura do laudo laboratorial, não têm
ainda o status oficial do teste feito por ordem judicial. Só o tempo dirá, se e
quando a nova lei for promulgada, se os tribunais validarão esses testes ou
exigirão outros.
Mas os testes genéticos parecem exercer outros efeitos importantes,
independentemente de seu valor legal. Coordenadores do Morhan, referin-
do-se à tremenda popularidade do DNA, descrevem como o teste aumenta
a cobertura nos meios de comunicação e garante um bom público nas reu-
niões da organização. Ele é, assim, um princípio ativo na versão coletivamen-
te construída de acontecimentos passados (Fonseca e Maricato, 2013). Ele
serve ainda como força agregadora, literalmente aproximando as pessoas.

132 Etnografia de documentos


Irmãos e irmãs afastados durante anos são colocados em contato porque
um deles precisa documentar legalmente seu vínculo familiar. Em muitas
circunstâncias, os anos de separação nutriram ressentimento contra uma
situação vista como de abandono. Para alguns de meus interlocutores, ser
“esquecido” por um irmão ou uma irmã parece tão condenável quanto ser
“abandonado” pelos pais. Os ativistas estão convencidos de que uma com-
preensão das circunstâncias excepcionais que causaram a separação da fa-
mília ajuda a curar essas feridas, “aumenta a autoestima” e promove relações
mais cordiais entre parentes. Como podemos ver, o teste parece alimentar a
mística genética predominante (Nelkin e Lindee, 1995).
Talvez o efeito mais marcante provocado pela introdução do DNA tenha
a ver com uma forma de sociabilidade que abarca vida e morte e estende-
-se para o futuro. Ao descobrirem o potencial dos testes de DNA, as abuelas
argentinas reagiram com entusiasmo, doando suas amostras genéticas ao
“banco” na esperança de que, mesmo muito tempo depois de sua morte,
as vítimas de identidade reprimida ainda possam descobrir a verdade sobre
suas origens. Assim, também no caso dos filhos separados, agora existe um
banco de dados composto por amostras genéticas retiradas de indivíduos vi-
vos, na esperança de que algum parente ainda desconhecido um dia apareça.
A esperança é ainda mais pungente no caso de parentes supostamente
mortos há muito tempo. Durante os anos de internação, não era incomum
os pais receberem a notícia de que sua criança enviada para o orfanato tinha
morrido. Mesmo assim, as pessoas me dizem, nenhuma prova tangível da
morte da criança lhes era apresentada – nenhum atestado de óbito, nem um
tumulozinho para ser visitado. Meus interlocutores aprenderam através de
histórias na imprensa como, naquela época, os orfanatos podiam conduzir
operações secretas, fornecendo crianças para adoção em troca de grandes
somas de dinheiro. E eles se perguntam se o relatório da morte da criança
feito pelo orfanato não era simplesmente uma dissimulação para esse tipo
de operação ilegal.
Assim como no caso argentino, também aqui há uma certa urgência
na coleta de material genético da geração dos pais. A maioria dos primeiros
pacientes internados à força nas colônias de leprosos já morreram, mas al-
guns ainda estão vivos. Como a equipe do Inagemp não realiza exumações,
as amostras genéticas desses sobreviventes podem acabar sendo cruciais na
identificação de filhos separados “perdidos”. No entanto, muitas das amos-
tras relacionadas com os sessenta registros excedentes no banco foram

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 133


doadas por pessoas em busca de irmãs ou irmãos perdidos – um forte indi-
cador da importância da relação entre irmãos nesse contexto.
Na verdade, a reabertura de fatos aparentemente resolvidos mostra até
que ponto a noção de “família” extrapola as relações diádicas entre pais e
filhos, afetando uma grande variedade de parentes em gerações sucessivas.
Durante os eventos públicos organizados pelo Morhan, pode-se deparar
com um grupo de adultos de meia-idade – todos de alguma forma relacio-
nados e alguns acompanhados por seus próprios filhos adolescentes – que
vem investigar a história de uma irmã, tia ou primo perdido. Antes do mo-
vimento que literalmente criou os filhos separados como uma coletividade
reconhecida e que se reconhece, as mortes de crianças tinham sido pratica-
mente esquecidas, assimiladas em vagas lembranças sem implicações claras.
Os bancos de DNA, até um certo ponto, trouxeram esses membros falecidos
da família de volta à vida. De repente as circunstâncias do nascimento, a
provável idade e outros elementos definidores, colhidos das lembranças da
geração mais velha, tornam-se fatos sólidos na história da família. E a ine-
xistência de qualquer prova documental (de morte e, às vezes, até mesmo
de vida da criança) só aumenta o mistério que as amostras de DNA um dia,
espera-se, hão de resolver.
Neste caso, o teste de DNA opera um tipo de acoplamento moral entre,
por um lado, o reconhecimento dos “fatos” das conexões dos filhos sepa-
rados e, por outro, o reconhecimento da violação dos direitos fundamen-
tais dos filhos separados pelo Estado. O ponto culminante deste processo
é projetado para o futuro – uma espécie de juízo final (reckoning): quando
o supostamente morto voltará à vida, as famílias serão reunidas, e os filhos
separados receberão finalmente sua justa compensação. É interessante ob-
servar como, nessa expectativa de retribuição moral, o reckoning – antes
definido como um processo sempre incompleto – reduz-se a algo parecido
com uma verdade absoluta. Assim como o DNA revela a verdade inelutável
das conexões familiares, o direito de reparação, finalmente, também trará à
tona a “história que o Brasil queria ignorar”. Ciência e moralidade unem-se
em triunfo final, relegando aos bastidores as frágeis conexões que tornaram
tudo isso possível: os cálculos genéticos produzidos através de técnicas la-
boratoriais escrupulosamente observadas, bem como os duros investimen-
tos políticos envolvendo décadas de ativismo.

****

134 Etnografia de documentos


Descrevemos neste trabalho um movimento político que busca a re-
paração legal por violações de direitos humanos perpetradas pelo governo
brasileiro contra os filhos de pacientes de hanseníase compulsoriamente
institucionalizados. Optamos por realizar nossa investigação explorando a
ação de tecnologias entrelaçadas – lembranças narradas, documentos es-
critos, e o teste de DNA –, empregadas pelos principais atores para “avaliar”
(reckon) as conexões familiares no núcleo deste drama. A utilização da noção
de tecnologias nos permitiu sublinhar não apenas a materialidade de certos
processos, mas também as complexas temporalidades em jogo. Os registros
escritos são criados, falsificados e destruídos de acordo com novas situa-
ções, exigindo uma estrutura burocrática organizada que garanta a preser-
vação, a validação e o acesso antes que qualquer documento possa assumir
valor legal. As narrativas pessoais retrabalham os fatos e relacionamentos
em função das possibilidades oferecidas pelas novas circunstâncias sociais,
políticas e tecnológicas. Desde o recrutamento de sujeitos para teste pelos
ativistas até a coleta e análise das amostras pelos cientistas e a validação
(esperada) dos testes pelos juristas, os testes de DNA implicam uma rede
mais elaborada ainda, a fim de produzir “fatos sólidos”. Em outras palavras,
nenhum desses modos de ajuste de contas (reckoning) parece ser intrinse-
camente mais consistente ou de longa duração do que os outros. A utilidade
dessas diferentes tecnologias depende muito das várias mediações que lhes
dão vida.
Em suma, o modo particular como essas tecnologias interagem e evo-
luem na avaliação (reckoning) dos laços familiares depende muito de mais
uma temporalidade – a do contexto político. Em meados de 2014, quando
eu terminava este artigo, o movimento político, orquestrado através de en-
tusiásticas sedes locais do Morhan, reuniu os filhos separados, reabrindo
episódios há muito esquecidos do passado de cada indivíduo e ajudando
também a consolidar um sentimento de comunidade. Foi este movimento
político que trouxe os testes de DNA para a vida das pessoas, criou ampla
audiência para as narrativas pessoais e transformou a documentação legal,
do passado e do presente, numa questão vital.
Retornando o olhar à tese de Carsten, vê-se claramente, neste caso,
como os acontecimentos políticos e também as estruturas institucionali-
zadas coletivas – operando através da mediação dessas diversas tecnolo-
gias – produziram um tipo especial de socialidade, entrelaçado com novas
percepções de família e comunidade. As forças políticas foram cruciais para

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 135


se chegar a um realinhamento dos diferentes modos de ajuste de contas
(reckoning), que levam até o passado e projetam no futuro elementos cons-
tituintes da forma como as pessoas se situam no mundo. Nesse processo,
fatos se reorganizam e relacionamentos se consolidam ou, eventualmente,
desfazem-se. Mas, em todo o processo, pulsa e expande uma ideia constante
de autoridade moral que dá esperança de um propósito comum – um objeti-
vo que evoca e remodela noções tanto de pertencimento familiar quanto de
ideais de justiça social.
Traduzido do inglês por José Fonseca

136 Etnografia de documentos


Referências bibliográficas
ABUELAS de la Plaza de Mayo. Las abuelas y la genética: el aporte de la ciencia en
la búsqueda de los chicos desaparecidos. Buenos Aires: Los Talleres Gráficos Gut-
tenPress/APM, 2008.

ALEXANDER, Jeffrey. On the social construction of moral universals. The ”Holocaust”


from War Crime to Trauma Drama. European Journal of Social Theory, v.5, n.1, p.5-85.

ATENCIO, Rebecca. Memory’s turn: reckoning with dictatorship in Brazil (Critical Hu-
man Rights). Madison: University of Wisconsin Press, 2014.

BERLINER, David. The Abuses of Memory: Reflections on the Memory Boom in Anth-
ropology. Anthropological Quarterly, v.78, n.1, p. 197-211, 2005.

CARSTEN, Janet. Cultures of relatedness: New approaches to the study of kinship.


Cambridge: Cambridge University Press, 2000.

______. Ghosts of memory: essays on remembrance and relatedness. Oxford: Blackwell


Pbs, 2007.

CHAUMONT, Jean-Michel. La concurrence des victimes: Génocide, identité,


reconnaissance. Paris: La Découverte, 2002.

DOLGIN, Janet. Biological evaluations: blood, genes, and family. Akron Law Review,
v.41, p.347-398, 2009.

FASSIN, Didier. Humanitarian reason: a moral history of the present. Berkeley: Uni-
versity of California Press, 2012.

FINKLER, Kaja. Family, kinship, memory and temporality in the age of the new genet-
ics. Social Science & Medicine, v.61,p.1059-1071, 2005.

FONSECA, Claudia. Caminhos da adoção. São Paulo: Cortez, 1995.


______. Abandono, adoção e anonimato: questões de moralidade materna suscitadas
pelas propostas legais de ‘parto anônimo”. Sexualidade, Saúde, Sociedade: Revista La-
tinoamericana, n.1, p.30-62, 2009.

______. Mediações, tipos e configurações: reflexões em torno do uso da tecnologia


DNA para identificação criminal. Anuário Antropológico, 2012(1): 9-33.

______. Parentesco, tecnologia e lei na era do DNA. Rio de Janeiro: Editora da UERJ,
2014.

FONSECA, Claudia; MARICATO, Glaucia. Criando comunidade: Emoção, reconheci-


mento e depoimentos de sofrimento. Interseções, v.15, n.2, p.252-274, 2013.

GATTI, Gabriel. De un continente al otro: el desaparecido transnacional, la cultura


humanitaria y las víctimas totales en tiempos de guerra global. Política y Sociedad,
v.48, n.3, p.519-536, 2011.

GIBBON, Sahra. Re-examinando a “genetização”: árvores familiares na genética do


câncer de mama. Política e Trabalho, v.20, p.35-60, 2004.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 137


______. Ancestry, temporality, and potentiality: engaging cancer genetics in Southern
Brazil. Current Anthropology, v.54, suppl.7, p.S107-S117, 2013.

GINGRICH, Andre; OCHS, Elinor; SWEDLUND, Alan. Repertoires of timekeeping in


anthropology. Current Anthropology, v;43, p.S3-S4, 2002.

HERZFELD, Michael. The social production of indifference: exploring the symbolic


roots of Western bureaucracy. Londres: University of Chicago Press, 1992.
______. Political optics and the occlusion of intimate knowledge. American Anthropo-
logist, v.107, n.3, p.369-376, 2005.

JASANOFF, Sheila. The life sciences and the rule of law. Journal of Molecular

Biology, v.319, p.891-899, 2002.

______. (org.). States of knowledge: the co-production of science and social order. Lon-
dres/Nova York: Routledge, 2004.

______. Just evidence: the limits of science in the legal process. The

Journal of Law, Medicine and Ethics, v.34, n.2, p.328-341, 2006.

KENT, Michael. A importância de ser uro: movimentos indígenas, políticas de identi-


dade e pesquisa genética nos Andes peruanos. Horizontes Antropológicos, v.17, n.35,
p.297-324, 2011.

KOWAL, Emma; RADIN, Joanna; REARDON, Jenny. Indigenous body parts, mutating
temporalities, and the half-lives of postcolonial technoscience. Social Studies of
Science, v.43, p.465-483, 2013.

LAMBEK, Michael. The cares of Alice Alder: recuperating kinship and history in Swit-
zerland. In: J. Carsten (org.). Ghosts of memory: Essays on remembrance and related-
ness. Oxford: Blackwell Pbs, 2007. p. 218-240.

LATOUR, Bruno. Reassembling the social: an introduction to actor-network-theory.


Oxford: Oxford University Press, 2005.

MACHADO, Helena; MONIZ, Helena. Bases de dados genéticos forenses tecnologias de


controlo e ordem social. Coimbra: Coimbra Editora, 2014.

MACHADO, Helena; SILVA, S. (orgs.). Testes de paternidade: ciência, ética e sociedade.


Lisboa: Edições Húmus, 2012.

MACIEL, LAurIndA rosA; oLIVEIrA, MArIA LEIdE WAnd-dEL-rEy dE; GALLo, MArIA
EuGênIA n.; dAMAsCo, MArIAnA sAntos. MEMórIA E hIstórIA dA hAnsEníAsE no
BrAsIL AtrAVés dE dEpoEntEs (1960-2000). História, CiênCias, saúde-ManguinHos,
V.10, suppL.1, p.308-336, 2003.

MARANHÃO, Carlos. Maldição e glória. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

MARICATO, Glaucia. Filhos separados, reparação já: economia moral e a produção de


direitos. In: REUNIÃO DE ANTROPOLOGIA DO MERCOSUL, 10., 2013, Córdoba. Anais
[…]. Córdoba: Editora da Universidade Nacional de Córdoba, 2013. Mimeografado.

138 Etnografia de documentos


______. Direitos Humanos, papéis e hanseníase: múltiplos testemunhos na produção
de provas da internação compulsória. In: REUNIÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLO-
GIA, 29., 2014, Natal. Anais […]. Natal, 2014. Mimeografado.

MENDONÇA, Ricardo. Reconhecimento e deliberação: as lutas das pessoas atingidas


pela hanseníase em diferentes âmbitos interacionais. 2009. Tese (Doutorado em Co-
municação Social) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2009.

MONTEIRO, Y. N. Profilaxia e exclusão: o isolamento compulsório dos hansenianos


em São Paulo. História, Ciências, Saúde. Manguinhos, v.10, suppl.1, p.95-121, 2003.

NELKIN, Dorothy; LINDEE, M. Susan. The DNA mystique: the gene as a cultural icon.
Nova York: W. H. Freeman e Cia, 1995.

NELSON, Diane. Reckoning the aftermath of war in Guatemala. Anthropological


Theory, v.10, n.1-2, p.87-95, 2010.

PEIRANO, Mariza. O paradoxo dos documentos de identidade. Horizontes Antropoló-


gicos, v.15, n.32, p.53-80, 2009.

PENCHASZADEH, Victor. Genética y derechos humanos: encuentros y desencuentros.


Buenos Aires: Paidós, 2012.

______.; SCHULER-FACCINI, Lavinia. Genetics and human rights. Two histories: Re-
storing genetic identity after forced disappearance and identity suppression in Ar-
gentina and after compulsory isolation for leprosy in Brazil. Genetics and Molecular
Biology, n.37, suppl. 1, p.299-304, 2014.

REGUEIRO, Sabina A. Análisis genético para la identificación de niños apropia-


dos: construcción política y científica de la “naturaleza” y el parentesco. Revista de
Estudos Feministas, n.18, p.1, p.11-32, 2010.

RICHTER, Vitor. Seguindo as vias: declaração de nascido vivo, identificação e mediação.


2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciên-
cias Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

ROTHSTEIN, Mark; MURRAY, Thomas; KAEBNICK, Gregory; MAJUMDER, Mary A.


(orgs.). Genetic ties and the family: the impact of paternity testing on parents and chil-
dren. Baltimore: John Hopkins Press, 2005.

SANTOS, Ricardo Ventura; MAIO, Marcos Chor. Race, genomics, identities and poli-
tics in contemporary Brazil. Critique of Anthropology, v.24, p.347-378, 2004.

______. Antropologia, raça e os dilemas das identidades na era da genômica. História,


Ciências, Saúde – Manguinhos, v.12, n.2, p.447-68, 2005.

SCHÜLER-FACCINI, Lavinia. 2004. Projeto global sobre história da hanseníase: Pro-


jeto Acervo – Morhan. Cadernos do Morhan, v.6, p.9-13.

SCOTT, James C.; TEHRANIAN, John; MATHIAS, Jeremy. The production of legal iden-
tities proper to states: the case of the permanent family surname. Comparative Stu-
dies in Society and History, v.44, n.1, p.4-44, 2002.

Tempo, DNA e documentos na validação de vínculos familiares 139


SERRES, Juliane. Memórias do isolamento: trajetórias marcadas pela experiência de
vida no Hospital Colônia Itapuã. 2009. Tese (Doutorado em Estudos Históricos Latino
Americanos) – Unisinos, São Leopoldo, 2009.

STERN, Steve J. Reckoning with Pinochet: the memory question in democratic Chile,
1989-2006. Durham: Duke University Press, 2010.

STRONG, Pauline Turner; VAN WINKLE, Barrik. 1996. “Indian blood”: reflections on
the reckoning and refiguring of native north American identity. Cultural Anthropo-
logy, v.11, n.4, p.547-576.

VAN VLEET, Krista E. Performing kinship: narrative, gender, and the intimacies of
power in the Andes. Austin: University of Texas Press, 2008.

WEAVER, Eunice. Social service in the fight against leprosy in Brazil. Leprosy News
and Notes, v.11, p.74-75, 1943.

WORLD HEALTH ORGANIZATION. World health statistics, 2011. Geneva: WHO Pu-
blications, 2012.

140 Etnografia de documentos


CAPÍTULO 5

Burocracias e violências de Estado


Analisando a trajetória documental de um caso
de execução sumária
Juliana Farias

Morro do Russo, Zona Sul do Rio de Janeiro – junho de 2008


Durante uma incursão da Polícia Militar realizada no fim da tarde de um
dia de semana no Morro do Russo, alguns dos agentes que participavam da
operação se esconderam em um dos becos da favela e ali permaneceram.
Ao saírem do esconderijo, os policiais, encapuzados, atiraram e mataram
Fernando Sabino de Figueiredo, Jonathan Freitas Murtinho, Pedro Henrique
de Almeida Lopes, Rodrigo Firmino da Silva e Hugo Venâncio de Souza no
momento em que Emanuel se dirigia para um bar próximo do local onde ha-
via sido preparada a emboscada. Outros moradores que se encontravam nas
proximidades viram quando Emanuel Cardoso da Conceição foi abordado.
Contam que ele chegou a levantar os braços, dizendo que estava voltando
do trabalho, pedindo que mostrasse os documentos, mas os policiais o le-
varam ao chão e atiraram na sua cabeça. Algumas pessoas que não viram as
execuções, mas que estavam próximas do local e também prestaram depoi-
mento na delegacia encarregada do inquérito, afirmaram que ouviram um
“rajadão”1, depois vários tiros bem alternados, e depois outro “rajadão” – e
todos os depoentes explicaram que aquele não era o mesmo som que ouvem
quando há troca de tiros no morro.
Os familiares de Emanuel acompanharam a investigação desde o iní-
cio, entraram em contato com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-
-RJ e com a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência, para a

1 Expressão reproduzida do “Termo de declaração” produzido pela Delegacia de Polícia res-


ponsável pelo inquérito.

Burocracias e violências de Estado 141


continuidade dos encaminhamentos. Quatro policiais militares foram de-
nunciados pelo Ministério Público, acusados pelo homicídio2 de Emanuel e,
aproximadamente um ano após sua morte, foi marcada a primeira audiência
de instrução e julgamento do caso, dando o seguimento esperado pela famí-
lia ao processo judicial, que passou a correr na 2ª Vara Criminal da Comarca
da Capital.
O processo relativo à execução de emanuel vinha sendo acompanhado
pelo Nudedh, o núcleo de direitos humanos da defensoria pública do rio de
janeiro e, durante o período do trabalho de campo que realizei para a pes-
quisa da minha tese de doutorado3, o profissional deste núcleo responsável
pelo caso era o defensor público frederico chagas, também chamado de dr.
Frederico, ou apenas de Chagas, pelos familiares de vítimas4. Dentre os fa-

2 Os quatro policiais militares foram acusados por homicídio qualificado. Na capa do proces-
so do caso, registra-se o artigo do Código Penal referente ao crime, que copio aqui adicionando
as respectivas definições entre parênteses: Art. 121 (“Matar alguém”), parágrafo 2º (“Se o homi-
cídio é cometido”), incisos I (“mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo
torpe”) e IV (“à traição, de emboscada, ou mediante dissimulação ou outro recurso que dificulte
ou torne impossível a defesa do ofendido”). A ação empreendida é caracterizada, então, como
uma pena de competência do júri.

3 A tese intitulada “Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas


no Rio de Janeiro” foi realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/IFCS/UFRJ), sob a orientação de Luiz Antonio
Machado da Silva, com apoio do CNPQ e da Faperj.

4 Considerando a pertinência da discussão realizada por um segmento forte do campo de


defesa dos Direitos Humanos (que se expressa de forma muito contundente através do posi-
cionamento político de Cecília Coimbra – nas suas atuações mescladas entre academia e movi-
mento social, a partir de sua inserção no Grupo Tortura Nunca Mais – RJ) sobre as conotações
negativas que o termo “vítima” carrega, faz-se necessária a seguinte explicação: muitos dos
familiares da Rede realizaram ou ainda realizam atividades de apoio psicológico com integran-
tes do GTNM-RJ – que compartilham desse posicionamento contrário ao termo “vítima” – e aí
está em questão muito menos o tratamento que outros (incluídos aí pesquisadoras/es, como
eu) dão ao termo e muito mais a maneira como cada familiar se reconhece subjetivamente e se
apresenta publicamente após esses “eventos críticos” (Das, 1995). Baseando-me em uma defini-
ção de Furet (1989) para a Revolução Francesa – como um “evento por excelência”, porque, se-
gundo Das (1995, p.5), “instituiu uma nova modalidade de ação histórica que não estava inscrita
no inventário dessa situação” –, Veena Das explica que nenhum dos eventos analisados por ela
podem ser comparados à Revolução Francesa, mas que eles possuem um traço em comum: após
esses eventos, novos modos de ação redefinem categorias tradicionais como códigos de honra
e pureza, como o significado de martírio, como a construção de uma vida heroica; assim como
novas formas são adquiridas por uma variedade de atores políticos, como coletivos internos
a castas específicas, comunidades religiosas, coletivos de mulheres, bem como a nação como
um todo. Das afirma, ainda, que os terrenos nos quais se dão esses eventos críticos podem ser
localizados via o entrecruzamento de diferentes instituições, atravessando família, comunida-
de, burocracia, tribunais de justiça, a profissão médica, o Estado e corporações multinacionais

142 Etnografia de documentos


miliares de Emanuel mais atentos ao processo judicial, dois de seus irmãos
– João Luiz e Mário –, e também sua irmã Alexandra, mostraram-se mais
dispostos a acompanhar de perto os devidos encaminhamentos. Foi através
deles e dela que se aproximaram do caso outros profissionais capazes de
somar forças aos encaminhamentos relativos ao processo, como Dr. Saul, um
perito legista aposentado da Polícia Civil que, em função de uma atuação en-
quanto pesquisador do seu próprio ofício, realizou um parecer técnico com
base na documentação relativa à execução de Emanuel. Até o momento de
conclusão deste texto, o processo ainda se encontrava na etapa de audiên-
cias de instrução e julgamento.

Pessoas, papéis e situações: sobre decisões metodológicas,


logo políticas5
Motivada pelo interesse em compreender algumas das angulações menos
explícitas da engrenagem que compõe a gestão governamental das mortes
dos moradores de favelas ocorridas durante ações militarizadas nesses ter-
ritórios, decidi acompanhar de forma mais detida os encontros entre agen-
tes de Estado e alguns familiares de vítimas articulados no âmbito da Rede
de Comunidades e Movimentos contra Violência, movimento com o qual eu
realizava trabalhos (acadêmicos e de militância) desde 2004. Partindo de um
enquadramento teórico-metodológico que articula o controle de corpos ao
controle de populações e territórios, entendo que a gestão dessas mortes

(Das, 1995, p.6). Segundo Das (1995), a descrição de eventos críticos proporcionam a elaboração
de uma etnografia que produz uma incisão sobre todas essas instituições ao mesmo tempo e,
assim, suas respectivas implicações nos eventos são trazidas para o primeiro plano da análise.
Dito isso, aciono neste trabalho o termo “vítima” para me referir especificamente às pessoas que
foram mortas ou feridas por agentes de Estado, enquanto aciono o termo “familiares de vítimas”
para me referir às mães, irmãs, irmãos, enfim, parentes dessas vítimas em geral, enfocando, em
uma abordagem antropológica, o fato de esses “familiares de vítimas” terem experimentado
situações aproximadas do que Das (1995) chama de “eventos críticos”.

5 A discussão apresentada neste texto é resultado não só das reflexões que compõem mi-
nha tese de doutorado, mas também decorre das trocas realizadas no âmbito do SPG “Pers-
pectivas etnográficas sobre documentos: possibilidades analíticas e desafios metodológicos”,
realizado na Anpocs 2014 sob a coordenação de Laura Lowrenkon e Leticia Ferreira. Agradeço
sinceramente às coordenadoras e aos colegas de SPG pela interlocução, e também às questões
e comentários colocados pelas professoras Adriana Vianna e Maria Filomena Gregori. Para a
produção desta versão final, tive o privilégio de contar com a leitura e os comentários de Tássia
Mendonça, a quem também deixo registrados meus agradecimentos.

Burocracias e violências de Estado 143


envolve forças de Estado que exercem seu poder sobre os corpos de todos
os moradores de favelas – os mortos e os vivos.
A partir de 2009, então, iniciei um trabalho de campo pautado de forma
mais direta pela agenda dos próprios familiares de vítimas, cujo roteiro su-
geria uma espécie de peregrinação institucional – composta por suas idas a
delegacias, quartéis, batalhões, ao núcleo de direitos humanos da defensoria
pública (Nudedh), à subprocuradoria-geral de justiça de direitos humanos e
terceiro setor do ministério público (MP-RJ), ao fórum de justiça, a comis-
sões de direitos humanos da Alerj e da OAB-RJ, diferentes secretarias muni-
cipais e estaduais, ongs de direitos humanos, enfim, uma lista considerável
de instituições e organizações através das quais essa rede de familiares esta-
belece relações com determinados setores da sociedade civil e com o poder
público em diversos níveis6.
A abertura da agenda dos familiares de vítimas se deu através de con-
vites variados (alguns mais formais, outros menos), que tanto partiam dos
familiares relacionados ao caso específico que motivou a atividade (uma au-
diência judicial no Fórum, por exemplo), quanto surgiam via demandas mais
gerais por apoio e solidariedade, como acontece com frequência nas ações
convocadas pela Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência7. To-
das essas atividades foram registradas em caderno de campo e parte delas
registradas também em áudio – às vezes no gravador que eu levava, às vezes
pelo gravador levado pelos próprios familiares (que adquiriram esse hábito
para documentar o passo a passo dos seus respectivos casos e, eventual-
mente, poder acionar declarações de agentes de Estado como recurso de
pressão política)8.

6 Para a elaboração da tese não foi feita uma escolha pré-definida de recorte analítico
sobre este ou aquele órgão ou instância estatal, o que faz com que o presente estudo apresente
discussões que transitam entre um segmento de Estado e outro, assim como o próprio percurso
dos familiares de vítimas que tive a possibilidade de acompanhar durante a realização do
trabalho de campo. Vale registrar que esta decisão por estruturar a própria forma do texto da
tese com base em movimentações observadas/realizadas em campo junto aos familiares de ví-
timas se deve especialmente à interlocução com Tássia Mendonça, cuja etnografia (Mendonça,
2014) expressa não só no conteúdo, mas também na forma, os enfrentamentos políticos de seus
interlocutores na favela do Batan.

7 A todas e todos os familiares que compõem (ou já compuseram) a Rede de Comunidades e


Movimentos contra Violência, deixo registrado, mais uma vez, um agradecimento sincero por
sua interlocução e pela confiança depositada no meu trabalho.

8 vale destacar que foram concedidas autorizações prévias para as gravações em áudio de
reuniões fechadas: as reuniões no Nudedh foram registradas com a concordância do defensor

144 Etnografia de documentos


Além das trocas de registros de áudio, diversas foram as trocas – polí-
ticas, intelectuais e afetivas – que pude realizar com os familiares de vítimas
com os quais estabeleci as interlocuções mais fundamentais desta pesquisa.
Para não perder o foco, no entanto, dou continuidade à descrição do inter-
câmbio de materiais e tarefas que marcaram este trabalho de campo. Através
destes familiares, tive acesso ao processo judicial (inteiro ou parcial) dos ca-
sos que acompanhei de forma mais detida, visto que os mesmos solicitaram
ao defensor público que acompanhava os casos a autorização para que eu
tirasse cópia de toda a documentação.
O mesmo posso dizer a respeito dos arquivos dos casos elaborados pe-
los familiares, contendo fotografias, recortes de jornal e outros documentos
(que haviam sido incluídos ou não nos respectivos processos judiciais), como
abaixo-assinados que circularam entre os moradores da favela onde a vítima
morava e foi executada, exigindo respostas das autoridades públicas a res-
peito daquela morte; cartas e solicitações escritas à mão pela mãe da vítima
ou outros familiares, dentre outros9.
Considero pertinente registrar o fato de ter feito a opção por não rea-
lizar nenhuma entrevista durante o trabalho de campo realizado a partir de
2009: tal decisão se deve ao fato de concentrar a observação nos encontros
entre familiares e agentes de Estado, explorando essas situações de pesquisa
enquanto fonte principal de informação. A partir dos encontros,em vez de
agendar entrevistas com os interlocutores, priorizei um percurso que ainda
não havia experimentado: dar continuidade à investigação através dos do-
cumentos – em especial os documentos produzidos pelo Estado utilizados
ou mencionados durante os encontros em questão, entendendo que nesse
“governo de mortes” os papéis são imprescindíveis10.

público responsável pelos casos na época da realização do trabalho de campo – a quem também
deixo registrado meu agradecimento.

9 Para a redação da tese, utilizei além do material já referido meus arquivos relativos ao
acompanhamento das atividades do Movimento Posso me identificar? e da Rede de Comunidades
e Movimentos contra a Violência (entre 2004 e final de 2008). Trata-se de fotografias, mate-
riais de campanhas e de divulgação de manifestações, recortes de jornal, notas de campo e
entrevistas.

10 Ainda que o enquadramento teórico-analítico desta pesquisa seja diretamente orienta-


do pelos estudos de Michel Foucault, a atenção dada aqui a especificidades dos processos de
produção de sujeitos e populações e de formação de Estado quando se trata de investigações
envolvendo documentos de rotina de instituições públicas é resultado da leitura dos trabalhos
de Letícia Ferreira, em especial Ferreira (2009, 2011, 2013). Seguindo a linha analítica adotada
por esta pesquisadora, entendo que os “documentos podem ser encarados como artefatos que

Burocracias e violências de Estado 145


Essas decisões estão diretamente conectadas com o entendimento de
que essa pesquisa foi realizada junto aos familiares, mantendo o foco nos
segmentos de Estado11 e nas situações através das quais seria possível com-
preender mais algum elemento da relação Estado-favelas. A captura, por-
tanto, de determinadas “práticas de governamentalidade” (Foucault, 2008b)12
não poderia ser viabilizada por meio de entrevista (fosse com os familiares
de vítimas, fosse com agentes de Estado); e, sim, com a observação dos en-
contros entre familiares de vítimas e agentes de Estado e encontros regis-
trados em “papéis” (entre agentes de Estado e as próprias vítimas ou entre
agentes de Estado e os familiares das vítimas).
Para a construção deste texto, então, aciono situações e documentos
que constituem o caso de Emanuel, executado em 2008 durante incursão
da Polícia Militar no Morro do Russo, conforme relatado na seção anterior.
Tanto para a descrição do caso quanto para as demais seções do texto, foram
utilizadas algumas estratégias de alteração ou ocultação de informações: o
nome da favela foi substituído por nome fictício, assim como os nomes das
vítimas fatais e de seus respectivos familiares; a data (mês e ano, especifica-
mente) do episódio também sofreu modificações; as profissões das vítimas
fatais foram substituídas; o número do batalhão no qual estavam lotados os
policiais militares que participaram da operação em questão foi ocultado
das descrições, bem como os nomes dos agentes indiciados; por fim, foram

exercem mais do que a função meramente referencial de registrar ou representar graficamente


algo que existiria no mundo à sua revelia. […] Funcionam, em suma, não como artefatos estéreis
e autocontidos, e, sim, como objetos materiais do direito, da administração e da governança”.

11 Refiro-me a segmentos de Estado tendo como referência a análise de Souza Lima (2002)
sobre formas administrativas de “gestar e gerir desigualdades”, através da qual o autor nos in-
centiva a enxergar nuances nos exercícios de poder de “um estado segmentado e conflituoso”.

12 Em função do enquadramento teórico-analítico empreendido neste estudo, é imprescin-


dível dizer que a definição de Estado aqui adotada decorre da renúncia à realização de uma
teoria do Estado, sendo acionada a argumentação de que “o Estado não tem essência”; “O Esta-
do não tem em si uma fonte autônoma de poder” (Foucault, 2008b): “O Estado nada mais é que
o efeito, o perfil, o recorte móvel de uma perpétua estatização, ou de perpétuas estatizações,
de transações incessantes que modificam, que deslocam, que subvertem, que fazem deslizar
insidiosamente, pouco importa, as fontes de financiamento, as modalidades de investimento, os
centros de decisão, as formas e os tipos de controle, as relações entre as autoridades locais, a
autoridade central, etc. Em suma, o Estado não tem entranhas, como se sabe, não só pelo fato
de não ter sentimentos, nem bons nem maus, mas não tem entranhas no sentido de que não tem
interior. [...] O Estado não é nada mais que o efeito móvel de um regime de governamentalida-
des múltiplas.” (Foucault, 2008b, p.106). É baseando-se nessa definição que Foucault incentiva
a interrogação do problema do Estado pelo lado de fora, a investigação deste problema a partir
das práticas de governamentalidade (Foucault, 2008b).

146 Etnografia de documentos


substituídos também os nomes dos profissionais ligados a outros órgãos es-
tatais envolvidos com o processo judicial do caso.
Gostaria de dizer ainda que desidentificar os casos não é apenas um
recurso para evitar interferências indesejadas nos processos judiciais em
questão, mas é também uma forma de reforçar um dos argumentos susten-
tados ao longo do meu estudo: não existe nenhuma favela no Estado do Rio
de Janeiro – tendo sido instalada em seu território uma Unidade de Polícia
Pacificadora ou não – na qual o direito à vida da população local seja respei-
tado e garantido. Ainda que as favelas sejam muito diferentes entre si, ainda
que a presença do Estado em cada uma delas também se dê de diversas
maneiras, há algo na relação do Estado com as favelas que não muda: a pos-
sibilidade de governar as mortes de seus moradores.

Perseguindo a leitura da papelada do Estado junto com os


familiares
A peregrinação institucional realizada pelos familiares de vítimas aqui re-
feridos é entendida neste trabalho como parte da reconstrução cotidiana
de um Estado encravado em práticas, linguagens e lugares considerados às
margens do Estado nacional – lendo essas margens no sentido proposto por
Das e Poole (2004), como: 1) periferias habitadas por pessoas tidas como in-
suficientemente socializadas de acordo com as leis e a ordem vigentes; 2)
lugares onde os direitos podem ser violados através de dinâmicas distintas
de interação das pessoas com documentos, práticas e palavras do Estado; e
3) um espaço localizado entre corpos, leis e disciplina (2004, p.8-10).
Como argumentam Das e Poole (2004), estamos diante de um Estado
que se reconstrói continuamente nos intervalos do cotidiano – proposta
teórico-metodológica central para o desenvolvimento desta pesquisa: no in-
tuito de compreender o processo de gestão das mortes dos moradores de
favelas no Rio de Janeiro, priorizei a construção de um trabalho de campo
que tornasse possível capturar o que vem acontecendo em alguns desses in-
tervalos do cotidiano através dos quais o Estado se constrói e se reconstrói.
Seguindo as formulações que embasam a linha de pesquisa da “antro-
pologia nas margens do Estado” (Das e Poole, 2004), esse intervalo sobre o
qual estou me referindo é mencionado durante uma das passagens do texto
nas quais as autoras se posicionam contra o entendimento do Estado en-
quanto falho, fraco, ou parcial: sustentam o argumento de que as margens

Burocracias e violências de Estado 147


do Estado não são espaços nos quais esse Estado ainda deve penetrar, mas
justamente configuram lugares nos quais ele é continuamente construído
nos intervalos do cotidiano.
Para a reflexão que desenvolvo neste estudo, é fundamental pensar
esses intervalos considerando tanto o cotidiano dos familiares de vítimas,
quanto o cotidiano de repartições públicas, órgãos governamentais e tipos
diversos de segmentos de Estado que estejam relacionados aos casos de
execução de moradores de favelas por agentes de Estado – entendo que é
através desses cotidianos que se abrem as possibilidades de captura e inter-
pretação dos intervalos nos quais o Estado se constrói e se reconstrói.
Durante a pesquisa que realizei para a tese, a perseguição desses inter-
valos aconteceu tanto pelos encontros com pessoas, quanto pelos encontros
com os papéis (e através dos papéis) – e no presente texto trago para a dis-
cussão trajetórias documentais (Ferreira, 2009) que são compostas por (e às
vezes também compõem) intervalos do cotidiano. As situações, os momen-
tos, os instantes e os documentos explorados a seguir dizem respeito a um
conjunto muito heterogêneo de intervalos do cotidiano através dos quais o
Estado se constrói e se reconstrói.
Entendendo o momento da efetuação do disparo da arma de fogo que
atinge o morador de favela como marco inicial para se produzir um recorte
analítico do processo de gestão dessas mortes que incluísse também pa-
péis e registros oficiais, elegi o laudo cadavérico como documento a par-
tir do qual são acionadas outras movimentações (burocráticas ou não) que
compõem o inquérito policial e o processo judicial de um caso de homicí-
dio ocorrido durante uma intervenção militar na favela. Como construo essa
análise tomando como referência a execução de Emanuel, as situações e a
documentação aqui acionadas se referem a encontros e papéis que consti-
tuem este caso específico. Vamos a eles.

***

[Outubro de 2010, 2º andar do prédio da Defensoria Pública Geral do


Estado do Rio de Janeiro.] Alexandra, irmã de Emanuel, foi me buscar no
corredor. Eu tinha chegado alguns minutos atrasada para uma reunião que
os familiares de Emanuel marcaram com antecedência com Frederico Cha-
gas, com o objetivo de apresentar ao defensor um perito legista aposentado

148 Etnografia de documentos


da Polícia Civil que havia concordado em realizar um novo estudo – com
estatuto de parecer técnico-científico – sobre o homicídio em questão. Como
o defensor ainda não tinha podido atendê-los, alexandra e joão luiz aguar-
davam numa espécie de sala de recepção do Nudedh, junto com dr. Saul, o
perito legista. João luiz me apresentou a ele (como “uma companheira que tá
junto com a gente nessa luta”) e, em pouco tempo, a secretária do Nudedh
informou que poderíamos entrar, que dr. Frederico Chagas já poderia nos
receber. Mal entramos na sala, o defensor perguntou: “Temos uma audiên-
cia, né?” Chagas referia-se à próxima audiência do caso, que estava marcada
para dezembro. Familiares, defensor e perito conversaram bastante sobre
essa próxima audiência e sobre a possibilidade da utilização do parecer téc-
nico-científico no desenrolar do processo. Defensor e familiares aproveita-
ram o encontro para tirar dúvidas com o perito a respeito de alguns detalhes
da documentação produzida pelo Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto no
dia seguinte da morte de Emanuel. Chagas perguntou: “Pelo laudo, o tiro teria
sido disparado a curta distância. Vê se não é isso, Dr. Saul?” O perito respon-
deu afirmativamente, mas fez questão de anunciar uma série de críticas à
forma como o laudo cadavérico havia sido preenchido. Pegou a cópia das
folhas do processo do caso nas quais encontrava-se o laudo de Emanuel e
realizou uma leitura em voz alta de um trecho da descrição da necropsia:
INSPEÇÃO EXTERNA: Cadáver de um homem de cor parda, que
mede cerca de 1,66 cm de altura, em rigidez muscular generali-
zada com livores violáceos nas regiões posteriores do corpo; é de
compleição física boa, bom estado de nutrição e cerca de 42 anos
de idade; cabelos pretos, curtos e anelados; olhos com córneas
transparentes, íris castanhas, escleróticas esbranquiçadas; barba
e bigode por fazer; dentes naturais em regular estado de conser-
vação; genitália externa masculina normal; apresenta ferimento
de bordos regulares e invertidos, com características de entrada
de projétil de arma de fogo (PAF), localizado na região occipital,
assinalado no esquema 2 pela letra E; apresenta ferimento de
bordos irregulares e evertidos, sangrantes, com características
de saída de PAF. Localizado em região frontoparietal, assinalado
no esquema 1 pela letra S; apresenta orla de tatuagem no membro
superior esquerdo, acometendo parte do braço e toda a extensão
ao antebraço nas faces Anterolateral posterior, assinalados nos
esquemas 1 e 2 pela letra T; os demais segmentos corporais estão
normais.

Uma das marcas encontradas no corpo de Emanuel, registrada nes-


ta parte da necropsia como orla de tatuagem, tomou um bom tempo da

Burocracias e violências de Estado 149


conversa entre familiares, perito e defensor. Respondendo à pergunta feita
anteriormente por Frederico Chagas, Dr. Saul explicou que essa marca, cujo
termo correto seria zona de tatuagem, “é necessariamente produzida a tiro
de curta distância”, ratificando a afirmação com uma espécie de demons-
tração sobre como, a partir de um tiro que atingiu a cabeça, foi possível
a formação da zona de tatuagem no braço da vítima. Dr. Saul solicitou que
João Luiz se posicionasse de joelhos no chão, com as duas mãos na cabeça,
como se estivesse rendido – posição na qual provavelmente encontrava-se
Emanuel no momento em que foi atingido, como argumentava o perito. A
explicação técnica teve sequência a partir da simulação da posição na qual
se encontrava o fuzil de onde se efetuou o disparo que atingiu Emanuel na-
quele episódio do Morro do Russo: Dr. Saul demonstrou como a extremidade
final do cano deveria estar próxima à parte de trás da cabeça, lembrando que
os fuzis utilizados pelos policiais militares possuem eventos laterais, através
dos quais, no momento do disparo, são expelidos grânulos da pólvora que,
em contato com a superfície da pele, produzem a marca caracterizada como
zona de tatuagem. Daí a dedução de que Emanuel deveria estar com as mãos
na cabeça (provavelmente algemado, seguindo a interpretação do perito),
pois esta é a posição sugerida pela presença da zona de tatuagem no braço
esquerdo da vítima. Após essa espécie de “reconstituição da cena do crime”
ali na sala do defensor Chagas, João Luiz deixou a posição de joelhos na qual
permaneceu durante toda a explicação, sentou-se novamente na cadeira que
ocupava em volta da mesa e a conversa seguiu. Ao final do encontro, perito,
defensor e familiares já haviam chegado a um acordo quanto à anexação do
parecer técnico-científico ao processo, assim que o mesmo fosse concluído
por Dr. Saul.
Gostaria de iniciar esta etapa do debate trazendo para a reflexão o mes-
mo destaque que teve durante o encontro entre os familiares, o perito e o
defensor essa marca específica encontrada no corpo de Emanuel: registrada
na descrição acima como orla de tatuagem (mas tratada como zona de tatua-
gem nos estudos sobre traumatologia médico-legal), tal marca “é produzida
pelos grânulos de pólvora, queimada ou não que, partindo com o projétil,
percutem o contorno do orifício de entrada e se incrustam mais ou menos
profundamente na região atingida” (Fávero, 1991)13. No caso de Emanuel, a

13 Há variação nas definições da zona de tatuagem em relação à presença de pólvora com-


busta. Alguns especialistas mencionam apenas o efeito produzido pela incrustação de grânulos
de pólvora incombusta, como é o caso do perito legista que acompanha o caso do Morro do

150 Etnografia de documentos


zona de tatuagem aparece assinalada nos esquemas que compõem o laudo
cadavérico através da anotação da letra “T”, realizada à mão.
Trata-se de uma marca fundamental por permitir ao especialista esti-
mar a distância entre atirador e vítima e também a distância entre o cano
da arma e a vítima. O ponto a ser destacado, então, é que a importância
atribuída a essa marca durante a reunião na Defensoria Pública está direta-
mente conectada aos encaminhamentos do caso que ela tem o poder de de-
terminar. A justificativa do Nudedh, por exemplo, para solicitar ao delegado
responsável pelas investigações que fossem colhidos depoimentos de todos
os policiais militares que participaram da operação foi também a presença
da zona de tatuagem no esquema de lesões do laudo de Emanuel:
Conforme consta do Laudo de Exame de Necropsia
IMLRJ[inscrição], a vítima foi atingida mortalmente por PAF na
região occipital, apresentando “ORLA DE TATUAGEM” no mem-
bro superior esquerdo, evidenciando disparo à curtíssima dis-
tância, o que descaracteriza, de pronto, qualquer possibilidade
de confronto entre policiais e supostos traficantes, alegação esta
comuníssima por parte das forças policiais quando o objetivo é
camuflar execuções.14

A anotação “T”, ao indicar a localização da zona de tatuagem, demarca a


posição na qual se encontrava a vítima no momento em que foi atingida, en-
caminhando a investigação do homicídio de Emanuel para uma direção dife-
rente daquela sugerida pelo registro de ocorrência realizado na delegacia da
região pelos policiais que participaram da incursão em pauta. No entanto, a
crítica do perito independente convocado pela família de Emanuel enfatizou
que a anotação desacompanhada de um correto preenchimento do laudo,
em vez de revelar dados importantes a respeito daquela morte, estaria os
ocultando. Daí a proposta de realizar o parecer técnico-científico.
A possibilidade da assessoria técnica da perícia independente para uma
releitura do laudo cadavérico não foi comemorada somente pelos familia-
res. O defensor público, desde aquele primeiro encontro, enxergou no perito

Russo aqui abordado. Tal forma de definição assemelha-se à de Greco (2013), para quem a zona
de tatuagem decorre da “incrustação de grânulos e fragmentos de pólvora não combusta pelo
disparo na região atingida, não sendo removível”. Já de acordo com o estudo de Eisele e Campos
(2003), a zona de tatuagem “é composta por partículas de carvão (pólvora combusta) e de grâ-
nulos de pólvora incombusta, dispersas em torno do orifício de entrada, de bordas deprimidas,
cujo diâmetro cresce progressivamente até perder-se a energia cinética de cada corpúsculo,
assim como a aceleração de que está animado”.

14 Requerimento enviado pelo Nudedh à DP na qual seguiam as investigações sobre o caso.

Burocracias e violências de Estado 151


legista um aliado nos esforços para os encaminhamentos do caso – valori-
zando a realização do parecer técnico-científico, Frederico Chagas declarou:
“Eles tão dizendo que o cara é traficante, pô, vamos mostrar que não é. É
importantíssimo.”
Na seção a seguir, então, reconstruo um trecho da “trajetória documen-
tal” (Ferreira, 2009) do caso, tomando como contraponto narrativo a troca
de tiros e as composições políticas articuladas a essa versão, para depois
dar continuidade à reflexão sobre as potencialidades do laudo cadavérico
enquanto plataforma de registro oficial.

Do registro de ocorrência à decisão do juiz: o vaivém das


disputas de versões sobre a morte
Neste caso do Morro do Russo, assim como na grande maioria dos casos de
execuções sumárias de moradores de favelas cometidas por policiais milita-
res, o registro de ocorrência traz a versão da troca de tiros entre traficantes
e policiais. Segue a dinâmica do fato, segundo um dos policiais que partici-
param da operação:
Segundo o comunicante [patente e nome] informa que hoje por
volta de 18:30 cumprindo determinação superior juntamente
com seus colegas de farda do batalhão fizeram incursão no mor-
ro do Russo com vistas a reprimir o tráfico local, sendo os mes-
mos recebidos a tiros por traficantes do local. Que na localidade
conhecida como [nome] após serem recebidos com disparos de
arma de fogo revidaram a justa agressão, ocasião em que alveja-
ram seis indivíduos, sendo quatro identificados e que após pres-
tarem socorro os mesmos vieram a falecer. Que no local foram
apreendidas armas de fogo, além de material entorpecente. 15

Configura-se, assim, o conhecido registro do “auto de resistência”16, que


neste – como também em muitos outros casos semelhantes – vem acompa-
nhado da informação de que os policiais presentes na operação prestaram

15 Trecho do registro de ocorrência do caso, peça do inquérito policial incluída no processo


judicial em questão. Sobre os procedimentos administrativos relacionados a um inquérito poli-
cial, ver Misse et. al (2010) e Misse (2011). Especificamente sobre o inquérito policial baseado no
registro de auto de resistência, ver Misse et. al (2013).

16 Diferentes aspectos do registro são explorados ao longo da tese, bem como em Farias
(2008 e 2009), tendo como fonte primeira de consulta as análises de Verani (1996). Abordagens
mais recentes sobre o tema também informam a presente reflexão, com destaque para Nasci-
mento, Grillo e Neri (2009), Leite (2012), Líbano (2010), Ferreira (2013) e Misse et. al (2013).

152 Etnografia de documentos


socorro à vítima, levando-a para o hospital municipal mais próximo, local
onde ela, então, teria falecido.
A versão da troca de tiros preenchida no RO aparece em outros docu-
mentos relativos ao inquérito policial, que posteriormente seria acionado,
no decorrer do processo judicial. No relatório final do inquérito, o confronto
é justificado porque os policiais, na iminência de serem alvejados por tantos
disparos, não tiveram outro modo de agir, a não ser fazer uso das armas de
fogo que traziam consigo, em legítima defesa e como forma de fazer cessar a
resistência oposta pelos infratores17.
Tal versão da troca de tiros, no entanto, além de não encontrar eco
nos depoimentos das pessoas que moram no Morro do Russo e que estavam
próximas ao local da execução, como descrito no início do texto, também é
negada na denúncia18 apresentada pelo Ministério Público pelo promotor de
justiça responsável pelo caso, ao Juiz Presidente do Tribunal do Júri da Co-
marca da Capital, no intuito de iniciar o processo:
No dia 4 de junho de 2008, por volta de 17 horas e 30 minutos,
no Morro do Russo, bairro do Atalaia, no local em que se situa o
Bar do Sergio, os denunciados, com vontade livre e consciente de
matar, efetuaram disparos de arma de fogo contra Emanuel Cas-
tilho da Silva, Fernando Sabino de Figueiredo, Jonathan Freitas
Murtinho, Pedro Henrique de Almeida Lopes, Rodrigo Firmino da
Silva, Hugo Venâncio de Souza, causando nas vítimas as lesões
corporais descritas nos autos de exame cadavérico de fls. 268,
243, 237, 251, 264 e 259, respectivamente.
Tais ferimentos, por sua natureza e sede, em sua grande maioria
na cabeça e pelas costas, foram a causa das mortes das vítimas.
Os denunciados, todos policiais militares em serviço – segundo
alegaram por determinação superior –, realizavam incursão no
citado morro, tendo em dado momento detido as vítimas e as
levado para o local em que decidiram consumar os homicídios.
As provas orais e testemunhais colhidas ao longo da investigação
rechaçaram a tese de legítima defesa lançada pelos policiais em
seus depoimentos por ocasião da apresentação da ocorrência em
sede policial, tendo se demonstrado que agiram com violência
imoderada e desnecessária, sem que tenham comprovado haver
sofrido qualquer ataque.

17 Trecho do relatório de inquérito final.

18 “O processo penal, tanto nos crimes como nas contravenções, inicia-se pelo recebimento
da denúncia, com a descrição dos fatos, a imputação da autoria, a classificação do crime e o rol
de testemunhas (art. 41 do CPP). Iniciada a ação, não pode o Ministério Público dela desistir (art.
42 do CPP)” (Führer e Führer, 2009).

Burocracias e violências de Estado 153


Ainda buscando dar aparência de licitude aos atos violentos que
cometeram e sob o pretexto de prestar socorro às vítimas, os de-
nunciados transportaram os cadáveres para o Hospital Municipal
[mais próximo], não obstante a evidente letalidade dos ferimen-
tos que haviam provocado, demonstrada com abundância nos
esquemas de lesões que ilustram os autos de exames cadavéricos.
Agiram os denunciados por motivo torpe, eis que se vingaram das
vítimas indiscriminadamente sob o falacioso fundamento de que
seriam traficantes, o que ainda que verdadeiro jamais os autori-
zaria a praticar o “justiçamento sumário” que perpetraram.
Do mesmo modo, a descrição minuciosa dos ferimentos suporta-
dos pelas vítimas demonstra que os denunciados agiram de for-
ma a não lhes permitir qualquer chance de defesa e nem mesmo
a tentativa de fuga ou rendição.
A participação de cada um dos denunciados no conjunto de ho-
micídios, ainda que em relação a alguma das seis vítimas tenha
consistido numa atitude corporal inerte, redundou em força mo-
ral cooperativa, pela certeza da solidariedade entre todos, tendo
eles mantido odiodo pacto de silêncio da verdade ao longo de
toda a investigação.
Estão assim os denunciados incursos nas penas do artigo 121, §2º,
incisos I e IV (6 vezes), na forma do artigo 69, todos do Código
Penal.
Isto posto, requer à V.EX.a. que, recebendo a presente, determine
a citação dos acusados para responderem à imputação ora dedu-
zida, esperando vê-la, ao final, julgada procedente com a prola-
ção de sentença de pronúncia, levando os réus a julgamento pelo
Tribunal do Júri desta Comarca.19

No primeiro parágrafo do texto assinado pelo promotor, já são mencio-


nados os exames cadavéricos como fonte central da informação a ser de-
nunciada. É por aqueles registros que se sabe quais foram as lesões corpo-
rais, quais foram os ferimentos que, seguindo a denúncia, foram a causa das
mortes das vítimas. O documento produzido no MP também informa que as
vítimas estavam detidas, reforçando a leitura dos fatos realizada por Dr. Saul,
que, como já descrito, se apoiou na localização da zona de tatuagem anotada
no laudo cadavérico de Emanuel para deduzir que o mesmo poderia estar
algemado, com as mãos na cabeça, no momento em que foi atingido.

19 Neste trecho da denúncia produzida pelo Ministério Público, além das modificações já
anunciadas, foram modificados também o nome do bairro onde se localiza a favela em questão,
o nome do bar próximo ao local dos crimes e os números das folhas do processo relativas às
cópias dos laudos cadavéricos das vítimas fatais da operação.

154 Etnografia de documentos


Ao se referir ao transporte dos cadáveres para o hospital – ação inter-
pretada como tentativa de dar aparência de licitude aos atos violentos come-
tidos –, o MP menciona a evidente letalidade dos ferimentos. Mais uma vez
os exames cadavéricos são acionados enquanto fonte documental central,
sendo feita referência direta ao conteúdo imagético desta documentação,
pois são destacados os esquemas de lesões que ilustram os autos.
Quanto à remoção dos corpos, há que se destacar que trata-se de uma
prática frequente em casos de execuções e chacinas em favelas, motivo pelo
qual uma das demandas dos movimentos sociais e organizações voltados
para os familiares de vítimas de violência institucional no Rio de Janeiro é
que se cumpra a determinação da Portaria PCERJ no 553 de 7 de julho de
2011. O Artigo 1o desta portaria, que trata das diretrizes básicas a serem segui-
das pela autoridade policial em caso de ocorrência que lhe seja apresentada
como ensejadora da lavratura do denominado “auto de resistência”, traz no
inciso I a seguinte diretriz: acionamento imediato de equipe de apoio policial,
para fins de isolamento e preservação do local, acaso ainda não tenha sido
providenciado, determinando que não seja alterado o estado e a conservação
das coisas.
A aparência de licitude à qual se refere o MP também pode ser lida
por outro ângulo: mesmo que as pessoas atingidas pelos disparos das ar-
mas de fogo portadas pelos policiais em operação não estivessem mortas,
seu transporte não poderia ser realizado nas viaturas utilizadas por esses
agentes neste tipo de atividade. Segundo Resolução no 116/97 do Conselho
Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro, dentre os seis tipos de
ambulância autorizados a realizar o transporte médico, o veículo destinado
ao atendimento de socorro seria a ambulância de resgate, que deve conter
não só equipamentos necessários à manutenção da vida e equipamentos de
salvamento, mas também deve ser tripulada por médico, motorista e técnico
de enfermagem20. Durante os trajetos das favelas para os hospitais públicos
mais próximos, os veículos utilizados são as viaturas da PMERJ e os profis-
sionais presentes são os próprios policiais que atiraram nas vítimas.
Esta prática de desfazer o local do crime é mais uma peça na constru-
ção da versão da troca de tiros que ao longo do desenvolvimento da denúncia

20 Tal resolução determina ainda que o motorista e o técnico de enfermagem devem ser
treinados em curso técnico de emergência médica de nível básico e devem ter conhecimentos
específicos de resgate. Portaria disponível no site do CREMERJ no endereço http://old.cremerj.
org.br/skel.php?page=legislacao/resultados.php .

Burocracias e violências de Estado 155


vai sendo contestada. Essa desconstrução também se vale dos depoimentos
orais das testemunhas do caso, qualificados como provas orais e testemu-
nhais nesta denúncia. No intuito de trazer à reflexão o devido peso deste
tipo de prova, trago o trecho de um morador do Morro do Russo que viu e
ouviu parte da ação dos policiais no dia em que Emanuel foi executado:
[...] escutou o barulho de muita água descendo pela rua e que viu
essa água suja de sangue; conta que ouviu um policial gritando
de forma debochada e rindo “Tá morrendo afogado? Morre, mor-
re, afogado desgraçado!”. Conta que soube depois que o cano foi
estourado por um tiro dos policiais e que eles mesmos fecharam
o registro da CEDAE. Observou que os policiais estavam muito
eufóricos, rindo muito e que tinham a fala meio “embolada” e que
gritavam “sob nova direção! Não tem mais arrego!”. Conta que
nesse momento não viu quantos policiais estavam ali, mas que
eles não deixavam ninguém subir nem descer o beco; conta ainda
que pela janela da sua casa viu uma arma (fuzil 762 cromado) no
chão do beco; que também ouvia vozes dos policiais conversando
em tom alto e que depois disso houve um grande silêncio; por
fim, conta que, quando já estava escurecendo, viu policiais farda-
dos da PM – talvez uns 6 ou 7 – recolherem os corpos.21

Para além da atitude dos agentes em relação às vítimas e ao tratamento


dado àquelas mortes, que discuto a seguir, gostaria de chamar atenção para
a descrição da cena que antecede o recolhimento dos corpos – visto que
torna evidente o fato de aqueles moradores estarem mortos, não cabendo,
portanto, qualquer tentativa de socorro, conforme mencionado anterior-
mente. Qualifica-se no texto da denúnciatambém a violência que caracteri-
zou a ação dos policiais: violência imoderada e desnecessária – exercida em
contexto no qual os policiais não teriam ao que reagir, visto que não com-
provaram haver sofrido qualquer ataque.
Ainda que na denúncia aqui transcrita tenham sido utilizadas expres-
sões como vontade livre e consciente de matar para caracterizar o momento
de efetuação dos disparos, é fundamental ressaltar que esses disparos par-
tiram de fuzis adquiridos pela corporação por meio de investimentos gover-
namentais na área da segurança pública22. Com esta colocação não pretendo

21 Trecho final de um dos depoimentos que constam do processo do caso em questão.

22 Como destacam Misse et al. (2013, p.15), “o governo do Estado do Rio de Janeiro adotou,
a partir de meados dos anos 90, a estratégia de investir, cada vez mais, em recursos materiais
e humanos principalmente para a polícia militar, através da aquisição de armas de alto poten-
cial letal, como os fuzis .762, da contratação de membros para a corporação e da expansão
considerável de sua frota de viaturas, incluindo veículos blindados, apelidados de ‘caveirões’.

156 Etnografia de documentos


retirar as qualificações de imoderada e desnecessária atribuídas pelo MP à
ação violenta dos agentes de Estado que participaram da operação no Morro
do Russo aqui discutida – a referência aos investimentos no armamento da
corporação da PMERJ tem o objetivo de demarcar as condições de possibili-
dade daquele disparo, visto que no debate aqui proposto ele é compreendi-
do enquanto produto e produtor dessa lógica militarizada característica das
políticas de segurança pública que vêm sendo implementadas no Estado do
Rio de Janeiro, especialmente a partir da década de 1990.
Vale lembrar aqui que foi na década de 1990 que se consolidou a legiti-
midade do enfrentamento militarizado à favela e seus moradores, por serem
estes entendidos por diferentes setores da sociedade residente no Rio de
Janeiro como o foco irradiador da violência urbana que assolava a cidade
(Leite, 2000; Machado da Silva, 2002; Machado da Silva, Leite e Fridman,
2005). Assim se pautaram políticas de segurança pública para todo o Estado
– marcadas pela diferença entre a atuação das polícias no “asfalto” e na fave-
la. Configurava-se um contexto político pautado pela “metáfora da guerra”,
noção através da qual Leite (2000) explora os diferentes ângulos da aceita-
ção de uma divisão do Rio de Janeiro em dois polos social e geograficamente
demarcados:
Presumindo que se vivia de fato uma guerra que opunha morro e
asfalto, favelados e cidadãos, bandidos e policiais, os partidários
desta perspectiva aceitavam a violência policial em territórios dos
e contra os grupos estigmatizados e assistiam passivos ao envolvi-
mento de policiais militares em várias chacinas (Leite, 2000, p.75).

Dentre as diferentes frentes de ampliação desse quadro político a partir


dos anos 2000, aciono mais uma vez um ícone desses investimentos para
uma segurança pública mais militarizada: o caveirão, veículo blindado ad-
quirido para ser utilizado pelo Batalhão de Operações Policiais Especiais da
Polícia Militar (BOPE) em operações nas favelas. Vale lembrar que a intensi-
ficação das operações militares em favelas com a utilização do caveirão fez
com que se iniciasse em 2006 uma campanha contra o uso do veículo23. Se-

Também houve investimento na capacitação dos policiais para atuar em contextos de ‘guerrilha
urbana’, aumentando-se o efetivo do Batalhão de Operações Especiais (BOPE) e do Batalhão
de Policiamento de Choque (BPCHq), além de se criarem Grupamentos de Ação Tática (GAT)
nos batalhões convencionais. Todo este aparato de guerra foi empregado em operações de in-
cursão cada vez mais frequentes em favelas com o objetivo de fazer frente ao poder local dos
traficantes.”

23 Para uma análise desta campanha, ver Magalhães (2007).

Burocracias e violências de Estado 157


gundo Ramos (2010), o ano seguinte (2007) pode ser considerado um marco
do que ele chama de política Caveirão.
Tratando o veículo enquanto aparelho de caça e o alocando no centro
da política de segurança pública que promoveu naquele ano a chacina do
Alemão, Ramos (2010) relembra duas declarações importantes para a dis-
cussão aqui travada. A primeira que destaco foi proferida por José Mariano
Beltrame, desde então secretário de segurança pública do Estado do Rio de
Janeiro, sobre a marca de dezenove pessoas mortas na megaoperação rea-
lizada na Vila Cruzeiro: o remédio para trazer a paz, muitas vezes, passa por
alguma ação que traz sangue24.
As dezenove pessoas mortas não configuram o único número impres-
sionante a respeito daquela operação: essas dezenove pessoas mortas foram
atingidas por um total de 78 tiros, dos quais 32 foram disparados pelas costas
das vítimas, como registrado nos laudos cadavéricos examinados por perito
legista independente a pedido da Comissão de Direitos Humanos da OAB-
-RJ25. Adiciono ao debate, então, a declaração de um policial civil sobre o
fato de os agentes terem chegado a determinados pontos do Complexo do
Alemão considerados inacessíveis escoltados por caveirões e, portanto, em
posição que facilitou a execução do ataque que tinham planejado: Foi igual a
dar tiro em pato no parque de diversões26. Enquanto no Alemão foi igual a dar
tiro em pato, no Morro do Russo o morador já atingido gravemente teve que
engolir a água que lavava o sangue do seu próprio corpo, ouvindo o policial
dizer: Morre, morre, afogado desgraçado, como relatou uma das testemunhas
do caso, no trecho destacado anteriormente.
A declaração do secretário e a declaração do policial da ponta podem
ser lidas como exemplos do entrelaçamento entre o posicionamento institu-
cional a respeito das mortes dos moradores de favelas e o que o MP denomi-
nou vontade livre e consciente de matar. Não há como (e esse não é um obje-
tivo deste estudo) negar a implicação do policial que efetua o disparo fatal na
engrenagem governamental que faz a gestão dessas mortes – a insistência
dessa argumentação é para que não se deixe de enxergar a engrenagem.

24 Jornal O Globo, edição de 29 de junho de 2007, p. 14.

25 Relatório da Sociedade Civil para o Relator Especial das Nações Unidas para Execuções
Sumárias, Arbitrárias e Extrajudiciais. Rio de Janeiro, 2007.

26 “Secretário nega excessos da polícia no Complexo do Alemão”. Carta Maior, 29 jun.


2007. Disponível em: <http://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Direitos-Humanos/
Secretario-nega-excessos-da-policia-em-operacoes-no-Complexo-do-Alemao/5/13631>.

158 Etnografia de documentos


Afinal, há trechos da documentação do processo judicial que abrem
espaço para uma leitura das execuções como ações orientadas especifica-
mente pelo campo afetivo/pessoal, como a passagem da denúncia que traz
a compreensão de que os policiais denunciados agiram por motivo torpe,
que se vingaram das vítimas indiscriminadamente. Ainda que sentimentos de
vingança e revanchismo habitem dimensões de ordem pessoal, há proces-
sos de institucionalização da vingança que não podem ser ofuscados neste
debate – institucionalização declarada, inclusive, por quadros da PMERJ que
atuaram na ponta enquanto agentes de segurança pública.
Em entrevista realizada durante as filmagens do documentário Notícias
de uma guerra particular27, em 1997, com Rodrigo Pimentel (à época capitão
do BOPE), essa institucionalização da vingança aparece no mesmo discurso
que defende a interpretação de que acontece uma guerra nos morros do
Rio. Após Pimentel dizer que se ele estivesse nas Forças Armadas talvez não
tivesse a oportunidade de participar de uma ação real, ele é surpreendido
pela pergunta: Você sente falta de ter participado de uma guerra? Transcrevo
abaixo a resposta, seguida de outros trechos da entrevista que merecem es-
paço no debate aqui travado:
Eu estou participando de uma guerra, acontece que eu tô voltan-
do pra casa todo dia. É a única diferença. Nossa guerra é diaria-
mente nesses morros do Rio. Esse mês no Batalhão de Operações
Especiais nós tivemos quatro policiais feridos a bala. Só esse mês.
Então eu tenho consciência de que eu estou participando de uma
guerra. [...] De seis meses pra cá, eu poderia dizer que 100% das
nossas missões foram em favelas, com exceção de uma ocorrên-
cia num estabelecimento prisional, com refém. [...] Quando mata?
Quando mata a sensação é só de dever cumprido, né. Dizer que
cheguei em casa e não dormi, eu vou estar mentindo. Mas logi-
camente sem sadismo, é porque houve a necessidade. O BOPE é
uma unidade consagrada até por não matar muito na polícia. A
maioria das nossas grandes prisões, o bandido nem baleado esta-
va. O BOPE prendeu o Escadinha, o BOPE prendeu o Meio Quilo,
o BOPE prendeu o Marcinho VP e nenhum deles o BOPE matou.
[...] Nenhum deles nem baleado foi. E eles estavam armados. Com
exceção do Marcinho VP que tava desarmado, os outros estavam

27 Utilizo aqui trechos da entrevista completa realizada com Rodrigo Pimentel, então capi-
tão do BOPE, durante as filmagens do documentário Notícias de uma guerra particular (1999),
dirigido por João Moreira Salles e Katia Lund. Disponibilizada nos extras do DVD do filme, a
entrevista completa (dividida em duas partes) também pode ser acessada pelos links: <http://
www.youtube.com/watch?v=h9Jngj99NlI> e <http://www.youtube.com/watch?v=ZAvoKor-
-XjQ>. Acesso em: 20/08/2013.

Burocracias e violências de Estado 159


armados atirando contra a equipe. [...] Durante 17 anos de vida da
unidade, nós tivemos 4 policiais mortos, feridos à bala em con-
fronto. [...] É uma guerra sem fim. Por mais que toda noite você vá
lá... Durante duas semanas o BOPE quase toda noite matava um
traficante ali [aponta para o Morro da Mineira]. Apreendia uma
pistola, matava um traficante, apreendia um fuzil, matava um tra-
ficante. [...] A nossa guerra já se tornou particular, é uma guerra
de polícia com traficante. A sociedade tá alheia a isso tudo. [...] A
polícia vive essa guerra particular, onde você mata um traficante,
o traficante fica com ódio da polícia. Aí eles matam um policial,
você fica com ódio do traficante, essa coisa vai nesse nível, é uma
guerra quase que particular já. [...] A política é de combate.

Esse agente de Estado, à época capitão do BOPE, se refere, portanto,


ao sentimento de ódio que um policial pode ter de um traficante na mesma
entrevista em que diz que matar é cumprir um dever. Se a guerra à qual se
refere o capitão é particular, é de polícia com traficante, se o policial sente
ódio do traficante, se essa guerra é gerida por uma política de combate na
qual matar é cumprir seu dever, estamos diante de um quadro no qual essa
mesma vingança, que pode habitar cada policial que sentiu ódio, é uma vin-
gança que está institucionalizada.
Considerando ainda a leitura do MP sobre o fato de os policiais denun-
ciados pela ação no Morro do Russo terem matado aqueles seis moradores
por vingança sob o falacioso fundamento de que seriam traficantes, gostaria
de chamar atenção para a perenidade desse sentimento de vingança. Nessa
operação do Morro do Russo nenhum policial foi morto, sequer ferido – caso
contrário, tais informações constariam dos autos do processo em diferentes
documentos examinados ao longo deste estudo. Assim sendo, a possibilida-
de de vingança dos policiais denunciados estaria então relacionada à supos-
ta morte de um policial ocorrida em momento anterior àquele.
Dando continuidade a esta linha de raciocínio, aciono novamente a en-
trevista do capitão da tropa de elite para recuperar dois trechos, não neces-
sariamente na ordem em que aparecem: 1) a justificativa de que se trata de
uma guerra porque em dezessete anos de vida da unidade, quatro policiais
foram mortos, feridos à bala em confronto; 2) o fato de o BOPE ter realizado
incursões diárias durante duas semanas no Morro da Mineira, período no
qual, segundo o capitão, quase todas as noites um traficante foi morto por
um policial. Considerando que quase todas as noites, em uma conta por bai-
xo, poderia corresponder a uma morte a cada dois dias, em duas semanas o
total de mortes de moradores de favelas (visto que não se sabe – e, no limite,

160 Etnografia de documentos


não importa – se eram traficantes ou não) equivaleria a sete mortes em duas
semanas de operação militar.
O que nos é apresentado em números, então, em menos de 20 minutos
de entrevista, é o seguinte quadro: nos dezessete primeiros anos de atuação
do BOPE nas favelas do Rio de Janeiro, quatro policiais foram mortos por tra-
ficantes locais, enquanto em duas semanas de operação do BOPE no Morro
da Mineira, sete moradores foram mortos por policiais. Quando me referi à
perenidade do sentimento de vingança, pensava em assimetrias como essa
e, finalizando essa minha brevíssima incursão no campo da análise (quase)
quantitativa, faço questão de utilizar como unidade de medida a locução ad-
verbial de tempo que o capitão usou em sua entrevista: quase toda noite.
Afinal, não é preciso trazer aqui o número de moradores de favelas mortos
por agentes do BOPE durante os dezessete primeiros anos de atuação deste
batalhão para entendermos que os tais quatro policiais mortos no mesmo
período foram e ainda são vingados quase toda noite em operações policiais
– realizadas pelo BOPE ou outras unidades da PMERJ – nas favelas do Rio de
Janeiro. A vingança à qual se refere o MP na denúncia é produzida institu-
cionalmente; a vontade livre e consciente de matar, mencionada no mesmo
documento, também é institucional – cada disparo efetuado por um policial
durante uma operação na favela está atravessado pelo Estado28.
Retorno à entrevista de Pimentel uma última vez nesta seção, para re-
fletir sobre o posicionamento firme do MP a respeito de os policiais denun-
ciados não estarem autorizados a matarem aqueles seis moradores do Morro
do Russo, ainda que os mesmos fossem traficantes. O termo utilizado pelo
MP para qualificar as ações letais dos agentes foi justiçamento sumário. Re-
lembro, então, a afirmação do capitão do BOPE de que quando um agente
da sua unidade mata é por necessidade. Em seguida, o entrevistado apresen-
ta uma lista de bandidos cariocas conhecidos que foram presos sem serem
baleados, fazendo questão de dizer que eles estavam armados e atirando
contra a equipe.
O que o entrevistado não explicou foi sob quais argumentos, portanto,
se sustenta a necessidade de matar. Pelas pistas oferecidas por ele mesmo, é

28 Esta leitura compartilha do posicionamento explicitado na análise de Leite (2012), que ar-
gumenta que as execuções dos moradores de favelas devem ser compreendidas “não como pro-
duto de ‘desvios de conduta’ ou ‘excessos’ praticados por agentes das instituições estatais, ou
por ‘maus policiais’, mas como resultantes dos dispositivos de gestão das favelas e de suas popu-
lações que estão inscritos nas próprias concepções e práticas estatais na sociedade brasileira”.

Burocracias e violências de Estado 161


possível entender que essa necessidade estaria atrelada ao cumprimento do
dever (já que matar traz a sensação de dever cumprido) – esse seria, então,
outra possibilidade de caminho interpretativo para a leitura das mortes em
questão como produtos de uma orientação institucional, cumprida pelo pro-
fissional da ponta que tem a necessidade de realizar bem sua missão. Como
propaga uma das músicas de treinamento do BOPE mais difundidas, a mis-
são da tropa de elite é entrar pela favela e deixar corpos no chão.
Dito isto, retorno ao enquadramento demarcado no texto assinado pelo
promotor de justiça ao ressaltar que os denunciados – todos policiais militares
em serviço –, segundo alegaram por determinação superior, realizavam incur-
são no citado morro. Aqui, na própria denúncia em discussão, a corporação
está presente enquanto determinação superior e a institucionalidade da ação
é ratificada pela redação de duas palavras: em serviço. Após a identificação
e descrição de todos os atos condenatórios, o texto condensa em um único
parágrafo essas duas dimensões – a individual e a corporativa – mencionando
o fato de que a participação de cada um dos denunciados no conjunto de homi-
cídios, ainda que em relação a alguma das seis vítimas tenha consistido numa
atitude corporal inerte, redundou em força moral cooperativa. Tal afirmativa se
vale do fato de que havia certeza da solidariedade entre todos, tendo eles manti-
do odiodo pacto de silêncio da verdade ao longo de toda a investigação.
Conforme se encaminha para o encerramento, no entanto, a denúncia
torna a focalizar especificamente os policiais que participaram na incursão
no Morro do Russo. Em seis linhas de texto, três denominações são utiliza-
das para se referir a esses agentes: os denunciados (incursos nas penas do ar-
tigo 121); os acusados (para responderem à imputação deduzida) e os réus (que
serão julgados pelo Tribunal do Júri). Na sequência desse texto, que cor-
responde à apresentação do fato delituoso, o documento é encerrado com
um requerimento da oitiva, realizado em apenas uma frase seguida da lista
nominal das oito testemunhas ouvidas naquela fase do inquérito.
Assinada por um promotor de justiça – que explicita que o documen-
to é produzido no uso de suas atribuições legais –, essa denúncia chega ao
Fórum para ser entregue às mãos do juiz em três folhas de papel timbrado
do MP. A chegada ao destino é protocolada com um carimbo na primeira
das folhas da denúncia, o qual traz acima do nome do juiz e do espaço para
preenchimento da data dois itens informativos: 1) D.R.A., que corresponde a
“distribua-se, registre-se, autue-se”, e 2) Decisão de recebimento da denún-
cia em separado.

162 Etnografia de documentos


Neste outro documento, então, nomeado decisão, o juiz afirma que a
denúncia oferecida pelo MP preenche os pressupostos legais para o seu re-
cebimento, afirmação ratificada pela listagem dos seguintes componentes:
exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação
dos acusados, a classificação do crime e rol de testemunhas. A decisão é curta e
cifrada (não só por citar artigos do Código de Processo Penal, mas especial-
mente pela composição lexical que marca o campo jurídico), mas ainda assim
se faz evidente o status que ocupa no desenvolvimento do caso o resultado
dos exames realizados no IML:
Há justa causa para a deflagração da ação penal, consubstanciada
na materialidade delitiva, que se encontra positivada pelos Au-
tos de Exames Cadavéricos anexados às fls. 268/269, 243/244,
237/238, 251/252, 264/265 e 259/260 e nos indícios de autoria,
que exsurgem do teor dos depoimentos prestados pelas teste-
munhas [nomes das testemunhas ouvidas na oitiva].

Este trecho da decisão do juiz ao aceitar a denúncia do MP não dei-


xa dúvidas quanto à centralidade do laudo cadavérico para a condução do
caso: a apresentação da documentação produzida no IML juntamente com
os depoimentos das testemunhas ratifica não apenas o peso do laudo en-
quanto prova, mas a equivalência entre inscrições que marcam no corpo sua
própria morte e relatos orais que trazem informações fundamentais para a
investigação.
Um mês após a divulgação da decisão, a Defensoria Pública do Estado
do Rio de Janeiro envia ao juiz o posicionamento da defesa escrita preliminar,
criticando a generalização da autoria descrita na denúncia apresenta pelo
MP e solicitando a rejeição da mesma por parte do juiz:
[...] Emérito Julgador, assim ante ao exposto, espera a defesa a re-
jeição da inicial, dada a inépcia, como a própria generalidade das
narrativas envolvendo os policiais militares que eventualmente
estiveram em atividade de segurança pública.
Ausência de justa causa se faz a todos os olhos!!! A presunção do
atuar dos réus na forma da peça acusatória se faz pelos locais das
lesões. Ora, como admitir a conjectura para exercício acionário,
quando a norma processual federal requer indícios de autoria
como exigido?

Assim, então, a defesa dos policiais mobiliza o resultado dos exames ca-
davéricos para dizer que com eles não é possível sustentar aquela denúncia.
Ainda que o ponto da crítica resida na ausência de provas que permitam

Burocracias e violências de Estado 163


determinar a autoria dos crimes de forma individual, importa o fato de que
a reação aos locais das lesões enquanto prova tenha sido precedida por uma
expressão que se refere ao órgão da visão. Se a ausência de justa causa se faz
a todos os olhos, qualquer um que estivesse interessado no caso enxergaria
aquela ausência de prova anunciada pela defesa, mais ainda um especialista.
Certamente foi a busca pela argumentação especializada que orientou a
elaboração de uma nova listagem de testemunhas a serem ouvidas: das sete
pessoas escolhidas, solicitou-se um perito em armamento do Instituto de
Criminalística Carlos Éboli e também um perito legista. A defesa requisitou
ainda que fosse incorporada aos autos publicação jornalística da atividade
ilícita em comunidades cariocas, dentre as quais o Morro do Russo – requi-
sição que expõe um dos caminhos utilizados pelos operadores do direito
que atuam na defesa de policiais acusados durante a elaboração da inversão
operada nas audiências de instrução e, em especial, no dia do julgamento
dos policiais em casos como esse.
Tal inversão, como trabalhamos Adriana Vianna e eu a respeito do julga-
mento de policiais militares envolvidos em um caso semelhante ao do Morro
do Russo, acontece da seguinte forma:
o réu deixa de ser o alvo das acusações daquele julgamento, pois
estas são direcionadas pela defesa para as vítimas da chacina [...],
fazendo com que o promotor e o assistente de acusação tivessem
que se esforçar para defender as próprias vítimas. Nesse senti-
do, a equipe responsável pela acusação dos policiais é obrigada a
usar a maior parte do tempo das audiências de instrução e julga-
mento “limpando moralmente”29 as vítimas e, por extensão, seus
familiares. A inversão completa do quadro, portanto, faz com que
durante o julgamento de um processo deste tipo a defesa acuse e
a acusação defenda. (Vianna e Farias, 2011, p.100)

Para fortalecer ainda mais essa linha argumentativa, a defesa solicitou


ainda que o Batalhão da Polícia Militar responsável pela operação no Morro
do Russo enviasse cópia do IPM (Inquérito Policial Militar). Ao me referir
ao fortalecimento da linha argumentativa, estou informada pelo Relatório
de Inquérito Final – documento que fornece muitos dados que sustentam a

29 Para a análise em questão, foi acionada a ideia de “limpeza moral” elaborada por Machado
da Silva e Leite (2008) durante investigação sobre estratégias de enfrentamento de estigmas e
de distanciamento moral dos moradores de favelas em relação aos traficantes que atuam nessas
localidades.

164 Etnografia de documentos


versão da troca de tiros relatada pelos policiais ao preencherem o Registro
de Ocorrência.
Oito dias após o posicionamento da defesa dos policiais denunciados, a
promotoria se manifestou mais uma vez, encaminhando ao juiz documento
de resposta à defesa inicial: verifica-se que em nenhum momento foi levanta-
da alguma questão relevante que possa conduzir à extinção do feito de forma
prematura. O promotor que assinava tal resposta já não era o mesmo que
assinou a denúncia, mas tal substituição não alterou o posicionamento do
MP sobre o caso do Morro do Russo. Consta do documento, inclusive, crítica
severa à defesa apresentada, qualificando como impossível o pedido da de-
fesa e como inadequada a via escolhida para propor o trancamento da ação
penal em questão.
Finalmente o vaivém de papéis relativos ao início do processo se encer-
ra com a divulgação da última decisão do juiz, dois dias após a resposta da
promotoria à defesa dos acusados. É ratificada a primeira decisão, são repe-
tidos os motivos pelos quais deveria ser instaurada a ação penal e designa-se
o dia da primeira audiência do caso – para dali a três meses.

Releitura dos fatos com a lente da perícia independente


Em meio às disputas descritas na seção anterior, registrei a centralidade dos
exames cadavéricos para a condução do caso do Morro do Russo a partir
dos textos de outros documentos mobilizados na composição do processo.
Agora, dedico atenção especial ao laudo cadavérico enquanto plataforma de
registros oficiais – elaboro uma descrição analítica com base no que foi dito
pelo perito legista durante a reunião no Nudedh, adicionando à reflexão o
conteúdo do parecer técnico-científico por ele produzido.
Cabe explicar que este parecer começou a ser produzido quando o pro-
cesso já estava em andamento, mas como é permitido que ambas as partes
apresentem documentos em qualquer fase do processo30, após as negocia-

30 “Salvo os casos expressos em lei, as partes poderão apresentar documentos em qualquer


fase do processo (art. 231 do CPP). Não é permitida a exibição ou leitura de documento no plená-
rio do Júri sem a ciência antecipada da parte contrária (art. 479). Documento é qualquer objeto
que contenha marca ou sinal, como superfícies escritas, papéis, cartas, fotografias, filmes, gra-
vações sonoras etc. As cartas particulares, interceptadas ou obtidas por meios criminosos, não
serão admitidas em juízo (art. 233 do CPP). O mesmo ocorre com as fitas magnéticas e a escuta
telefônica. Não é permitida a apreensão do documento em poder do defensor do acusado, salvo

Burocracias e violências de Estado 165


ções entre os familiares de Emanuel, Dr. Saul e Frederico Chagas31, decidiu-
-se pela juntada do estudo ao processo. Como disse anteriormente, todos
os presentes na reunião dedicaram atenção especial a uma anotação nos
esquemas do laudo cadavérico de Emanuel, a tal zona de tatuagem. A exis-
tência desta zona no corpo da vítima e, mais especificamente, seu adequado
registro no laudo cadavérico, somado às informações acerca da entrada e da
saída do projétil são informações capazes de comprovar que o tiro fatal foi
dado pelas costas e à curta distância.
Informações que, segundo o perito legista convocado pelos familiares,
deveriam aparecer articuladas na continuidade do preenchimento do laudo
cadavérico no momento da perícia no IML, através da seção do laudo re-
servada para as respostas aos quesitos, constituída de cinco perguntas, que
reproduzo aqui com as respectivas respostas preenchidas no documento re-
lativo à vítima Emanuel:
Houve morte?
SIM.
Qual foi a causa da morte?
FERIMENTO TRANSFIXIANTE DE CRÂNIO COM LESÃO DE
ENCÉFALO.
3) Qual foi o instrumento ou meio que produziu a morte?
AÇÃO PERFUROCONTUNDENTE.
4) Foi produzido por meio de veneno, fogo, explosivo, asfi-
xia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel (resposta
especificada)?
SEM ELEMENTOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A DI-
NÂMICA DO FATO.
5) Outras considerações objetivas relacionadas aos vestígios pro-
duzidos pela morte, a critério do Senhor Perito Legista.
SEM OUTRAS ALTERAÇÕES. (sic)

Segundo as explicações de Dr. Saul para os familiares e o defensor, ape-


sar da referência à zona de tatuagem na descrição da necropsia e a indicação
da marca no esquema que compõe o laudo cadavérico, a maneira como os

quando constituir elemento do corpo de delito (Art. 243, § 2o , do CPP). São inadmissíveis, no
processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da CF).” (Führer e Führer, 2009).

31 Nesta seção me refiro a Frederico Chagas também como “o defensor”. Gostaria de lem-
brar que se trata de um dos defensores que atua enquanto assistente de acusação do caso, não
podendo ser confundido, portanto, com o defensor público que atua na defesa dos policiais
acusados. Na tentativa de evitar qualquer mal-entendido nesse sentido, busquei utilizar na re-
dação deste texto o termo “defesa” para me referir à defesa dos réus, sem apresentá-la através
do profissional que a desempenha.

166 Etnografia de documentos


cinco quesitos foram respondidos prejudicam de forma concreta a investi-
gação do caso32, como fica explícito através do trecho do parecer técnico-
-científico produzido posteriormente. A crítica deste profissional ao traba-
lho realizado no IML Afrânio Peixoto acompanha a ideia de que há situações
em que o perito não vê e o que vê não descreve (recuperando uma passagem da
explicação durante a reunião no Nudedh). O posicionamento do perito con-
vocado pelos familiares de Emanuel poderia ser resumido com outra frase
que anotei no meu caderno de campo – o problema do laudo é que é um so-
matório de incompetências – no entanto, vale complementar a argumentação
com a versão formal (e técnica) da crítica:
Quando o perito legista não encontra sinais cadavéricos que
expressem o emprego de “veneno, fogo, explosivo, asfixia ou
tortura ou outro meio insidioso ou cruel”, resta absolutamen-
te errôneo prejudicar o QUARTO QUESITO, sob a alegação de
“PREJUDICADO”, ou “SEM ELEMENTOS DE CONVICÇÃO PARA
RESPONDER”, ou “SEM ELEMENTOS POR DESCONHECER A DI-
NÂMICA DO EVENTO”, ou mesmo, como se pode ler no Laudo de
Exame Cadavérico em comento, “SEM ELEMENTOS PARA RES-
PONDER POR DESCONHECER A DINÂMICA DO FATO”. Ora, se
o perito quer ter informações sobre a dinâmica do evento, ele
poderá solicitar ao delegado de polícia que preside o inquérito
policial, ou mesmo ao INSTITUTO DE CRIMINALÍSTICA CARLOS
ÉBOLI, informações sobre a Perícia de Local de Crime. E, ainda,
quando o cadáver provém de unidade hospitalar, solicitar infor-
mações hospitalares, sobre o atendimento prestado, ou, no caso
de morte no ingresso da unidade hospitalar, o que foi eviden-
ciado pelos médicos. E, como vimos, o perito legista independe
de informações adicionais, de Local de Crime, para afirmar ou
negar se houve emprego de “VENENO, FOGO, EXPLOSIVO, AS-
FIXIA OU TORTURA OU OUTRO MEIO INSIDIOSO OU CRUEL”.
[...] Em suma, “PREJUDICAR” a resposta ao QUARTO QUESITO é
pura tergiversação capaz de deixar pairarem dúvidas inaceitáveis
sobre os fatos, que obrigatoriamente têm de ser determinados
por meio de um Exame Cadavérico corretamente realizado, o que
trará prejuízos para o processo penal. Respondê-lo corretamente
é dever de ofício do perito legista. (sic)33

32 Vale ressaltar que, nesta situação, prejudicar a investigação do caso não é uma frase neu-
tra, mas posicionada, e que indica uma acusação de mau uso da “verdade técnica”.

33 Trecho do laudo de exame de necropsia de Emanuel, produzido no Instituto Médico-Legal


Afrânio Peixoto, no dia seguinte de sua morte.

Burocracias e violências de Estado 167


Neste parecer técnico-científico, o foco da crítica do perito legista
acionado pelos familiares de Emanuel não se prende à maneira de respon-
der o quarto quesito – ao contrário, se espalham pelas páginas do estudo
apontamentos sobre cuidados que não foram tomados e que, da mesma for-
ma que ocorre com a resposta ao quarto quesito, acabam deixando “dúvi-
das inaceitáveis sobre os fatos”. Desta lista, destaco mais dois exemplos: 1) a
ausência de uma mensuração completa das duas feridas por PAF (projétil de
arma de fogo) – mensurações imprescindíveis para a estimativa do calibre
do projétil (para conferir se o calibre coincidia ou não com os calibres das
armas utilizadas pelos policiais durante a “operação”) e que, vale ressaltar,
deveriam acontecer através da utilização de instrumentos de medição es-
pecíficos, como o paquímetro digital ou mesmo uma régua milimetrada; 2)
a ausência de descrição da forma da ferida de entrada do projétil – que, se-
gundo o estudo, poderia esclarecer a trajetória do projétil, dado que poderia
ser utilizado para inferir em que posições estavam atirador e vítima.
Justapondo-se, portanto, à porção “visível” do preenchimento do laudo,
percebe-se que há uma série de perguntas a serem respondidas pelo perito
que não estão impressas no documento (da forma como estão os cinco que-
sitos citados anteriormente). Se somássemos as perguntas não impressas (e
não respondidas) às perguntas impressas com respostas incompletas, pode-
ríamos compor uma lista considerável de ausências neste laudo cadavérico
– ausências que correspondem a informações que não foram registradas no
devido documento pelo profissional capaz de fazê-lo, ou seja, informações
invisíveis aos olhos dos não especialistas.
Este tipo de produção do laudo cadavérico pode ser entendido, então,
como um procedimento orientado por uma espécie de negativo da reve-
lação; não porque esconde informações, mas porque revela a força de um
indizível burocrático, porque explicita a intimidade do especialista com uma
economia de palavras em um documento crucial para o prosseguimento de
investigações, para o encaminhamento de acusações, para o tratamento
jurídico/legal de violações e crimes de Estado. Aqui reside, portanto, o ca-
ráter de (i)legibilidade desta documentação, nos termos trabalhados por Das
e Poole (2004) em suas reflexões sobre processos de construção e recons-
trução do Estado através das suas práticas de escrita – (i)legibilidade que
pode ser compreendida, ainda, pela chave interpretativa de que governar é
também não fazer, conforme sugerem os trabalhos de Vianna (2002) e Lu-
gones (2012).

168 Etnografia de documentos


Seguindo a chave analítica proposta por Das e Poole (2004), o problema
da (i)legibilidade da documentação do Estado é encarado como uma das ba-
ses de consolidação do controle estatal sobre populações, territórios e vidas.
Os opostos legibilidade/ilegibilidade abrem espaço para possibilidades de
interpretação pautadas por contrastes e/ou escalas do visível e do legível,
como no caso dos desdobramentos de leitura do laudo a partir da zona de
tatuagem aqui discutida. Por se tratar de uma marca no corpo e uma ano-
tação no esquema gráfico que compõe o laudo que podem ser enxergadas
por leigos (e inclusive compreendidas, se devidamente explicadas), a zona de
tatuagem pode sugerir a garantia da legibilidade deste documento para além
da esfera da perícia estatal.
Uma simples anotação “T”, feita à mão pelo perito de plantão no IML no
dia seguinte da morte de Emanuel, carrega consigo uma determinada versão
dos fatos, e o devido preenchimento desta informação na documentação em
questão orienta, correlaciona ou confronta diversas outras informações a
respeito da morte deste morador de favela – tanto informações que habitam
ou deveriam habitar o mesmo laudo cadavérico, quanto informações produ-
zidas via outros registros e situações no decorrer das investigações, como
discutido na seção anterior.
É possível explorar nesta documentação de Estado uma informação
visual (mesmo que o conteúdo imagético e seu potencial comunicativo se-
jam radicalmente distintos de fotografias e outros suportes utilizados pelos
familiares). Mas é também indiscutível o fato de que não peritos (ou seja,
leigos, como eu) possam enxergar a anotação “T” no laudo. O ponto a ser
destacado a partir desta leitura é que o fato de não peritos enxergarem (e
até entenderem) a anotação “T” não faz do laudo cadavérico um documento
completamente “legível”.
Aqui entra em debate a questão das especializações, afinal, mesmo que
muitos possam enxergar a anotação referente à zona de tatuagem, não são
todos que podem realizar esta anotação no documento e não são todos que,
dentro do tribunal do júri, podem construir argumentações com base nes-
ta anotação durante o julgamento do policial que efetuou o disparo. Neste
pequeno (mas determinante) trajeto burocrático, estão conectados saberes
de áreas distintas que se entrecruzam na engrenagem estatal que se supõe
soberana e rearticula cotidianamente estes saberes específicos a fim de re-
novar e perpetuar tal soberania.

Burocracias e violências de Estado 169


No caso em questão, o domínio do campo da medicina legal tanto pos-
sibilitou o esclarecimento de informações, quanto sua omissão – e o contro-
le dessas informações passou por especialistas que trabalham produzindo
registros oficiais. Provavelmente foi considerando o peso desta oficialidade
que Dr. Saul, enquanto perito legista independente, explicitou seu julgamen-
to nas páginas do parecer técnico-científico elaborado para o caso do Morro
do Russo:
A Ciência Forense prescinde de peritos legistas que, proposital-
mente escudados da evasiva resposta ao QUARTO QUESITO –
“SEM ELEMENTOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A
DINÂMICA DO FATO” –, lavam suas mãos (mãos claramente irres-
ponsáveis), como se PILATOS pós-modernos fossem, diante de
fatos científicos, de suma importância para a Justiça; e mais que
para esta, para a própria sociedade, ao final de tudo. [...] O povo,
pelo geral, atribui a impunidade à Justiça; mas nesse caso, em
particular, a impunidade fora referendada por exame cadavérico
malfeito, desidioso, incompleto, falho, omisso e incompetente.34

Apesar do enfoque dado à perícia na discussão aqui travada e de uma


possível interpretação da escolha da citação acima como aglutinadora de
posicionamentos políticos afins, considero fundamental enfatizar que este
estudo é produzido a partir da compreensão de que no percurso deste caso
de execução de Emanuel (e dos demais casos de violações cometidos por
agentes do Estado nas favelas e periferias do Rio de Janeiro) há múltiplas
esferas e agências de Estado intercaladas. Não se trata de arrastar para cima
de determinado perito legista ou para o IML-RJ holofotes (ou acusações) que
recaem com maior frequência sobre ações individuais de policiais ou sobre
a instituição da Polícia Militar como um todo, ou sobre o sistema de Justiça
em curso.
Em relação a este ponto da discussão, gostaria de ressaltar que não é
desconsiderado aqui o fato de o Instituto Médico-Legal Afrânio Peixoto fazer
parte da estrutura da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, alocado es-
pecificamente no Departamento de Polícia Técnico-Científica da instituição.
No entanto, não seria analiticamente coerente deslocar o foco de acusação
de uma polícia para a outra, visto que no presente estudo as polícias são
compreendidas enquanto integrantes da engrenagem que faz a gestão das
mortes dos moradores de favelas.

34 Trecho do parecer técnico-científico produzido por Dr. Saul para ser anexado ao processo
do caso do Morro do Russo.

170 Etnografia de documentos


Como indiquei anteriormente, foi a importância dada ao laudo cadavé-
rico na conversa entre os familiares de Emanuel, o perito legista e o defensor
público responsável pelo caso no Núcleo de Direitos Humanos na Defenso-
ria Pública que orientou a escolha de trazer para a análise essa discussão.
Dentre as situações vivenciadas durante o trabalho de campo, aquele foi um
dos encontros mais instigantes, especialmente por anunciar um conjunto de
informações sobre as mortes dos moradores de favelas ao qual eu ainda não
tinha tido acesso.
Esse conjunto estava sob os domínios de um campo de saber que, em-
bora tão fundamental para a compreensão da gestão dessas mortes, até
aquele dia não tinha se apresentado enquanto possibilidade, enquanto via
de acesso a outras fontes de investigação. Não me refiro apenas ao parecer
técnico-científico produzido por Dr. Saul, mas ao próprio laudo cadavérico
– documento insólito que não fazia parte da lista de papéis oficiais sobre os
quais eu planejava me debruçar.
Mas as reflexões de Dr. Saul sobre o laudo e o entusiasmo dos fami-
liares com a possibilidade da assistência de uma perícia independente, que
contaria inclusive com a produção de um parecer especial sobre a morte de
Emanuel se apresentaram quase como uma intimação do campo para pes-
quisadora35. Se estava me propondo a identificar e perseguir analiticamente
as imbricações institucionais que marcam a reconstrução cotidiana do Es-
tado através das relações estabelecidas com suas margens, não seria coe-
rente deixar de lado a explicação sobre a formação da zona de tatuagem no
braço esquerdo de Emanuel, ou ignorar o fato de que laudos cadavéricos são
preenchidos de forma inadequada.
Afinal, se a forma de responder aos cinco quesitos do laudo pode pre-
judicar concretamente a investigação do caso, a produção deste documento
não pode ter seu lugar diminuído na engrenagem de gestão dessas mortes.
Seguindo as pistas oferecidas por Ferreira (2009) em seu estudo sobre o pro-
cesso de identificação dos corpos não identificados no IML-RJ, entendo que
assim como “cada identificação de um não identificado confere vigor a um
modo específico de gerir estes corpos e suas mortes” (Ferreira, 2009, p.34),

35 Algumas reflexões sobre a incorporação de documentos produzidos pelo Estado no con-


junto mais amplo de materiais de pesquisa no qual predominavam objetos que privilegiavam as
estratégias de visibilidade dos movimentos sociais formados por familiares de vítimas encon-
tram-se em Farias (2015).

Burocracias e violências de Estado 171


o mesmo pode ser dito para cada zona de tatuagem inadequadamente ano-
tada, ou para cada quarto quesito respondido de forma evasiva.
A análise aqui empreendida sugere que não só o momento de preenchi-
mento do laudo cadavérico pode ser entendido como mais um intervalo do
cotidiano no qual o Estado se reconstrói, como a própria forma de preenchi-
mento produz intervalos nas respectivas fichas – espaços deixados em bran-
co e informações deliberadamente ocultadas, que fazem parte do cotidiano
burocrático através do qual o Estado se constrói e se reconstrói.
Esses microintervalos do cotidiano são produzidos no interior desse
intervalo correspondente ao momento de preenchimento do laudo. A leitura
do preenchimento do laudo cadavérico enquanto um intervalo do cotidiano
anuncia um intervalo ainda mais englobante, visto que o próprio ambiente
no qual se realiza a necropsia pode ser considerado um intervalo, um espaço
obscuro, praticamente intransitável, deliberadamente protegido e genuina-
mente evitado.
A discussão teria percorrido, então, microintervalos espaciais e do
oculto (do espaço em branco e da informação não registrada), um intervalo
temporal (do momento do preenchimento) e um intervalo espacial englo-
bante (a sala onde se realiza o exame de necropsia) – todos aqui compreendi-
dos como intervalos do cotidiano nos quais o Estado, nessa relação com sua
margem, se faz Estado. Somam-se a esses os intervalos discutidos na seção
anterior: podem ser lidos como intervalos de tempo englobantes o período
que separa o término do inquérito policial do início da ação penal, o momen-
to de apresentação da denúncia pelo MP e a primeira audiência, bem como
os períodos de espera entre uma audiência e outra36.
Em relação a este intervalo que separa uma audiência da outra, vale
mencionar um documento que integra o processo do caso do Morro do Rus-
so, intitulado Atos da Serventia, através do qual um escrivão alocado no Car-
tório da 2ª Vara Criminal comunica ao juiz da respectiva vara que o dia da
próxima audiência do caso teria que ser remarcado visto que um Ato Exe-
cutivo determinava que naquele mesmo dia não haveria expediente forense.
No mesmo dia o juiz recebeu os Atos da Serventia e produziu um Despacho:
I – Tendo em vista a certidão cartorária de fls. [número], remarco
a continuação da audiência de instrução para o dia [data], às 13:30

36 Sobre dimensões subjetivas desses períodos pré-audiências e outras temporalidades que


marcam as trajetórias dos familiares de vítimas de violência institucional, consultar Vianna
(2011).

172 Etnografia de documentos


horas, nos termos do art. 411 do Código de Processo Penal, com a
redação dada pela nova Lei no 11.689/08.
II – Renovem-se as diligências, observando-se o despacho de fls.
[número].
III – Dê-se ciência ao MP e à Defesa.37

É necessário informar que esse adiamento significou a adição de um


período de três meses entre uma audiência e outra. Cada dia, então, sem ex-
pediente forense, pode corresponder a um aumento muito significativo nes-
ses intervalos englobantes entre audiências – período de tempo que precisa
ser considerado ao se refletir sobre a engrenagem governamental de gestão
das mortes dos moradores de favelas.

Perfurações enquanto registros burocráticos


Perseguir a leitura dos documentos – em especial a leitura do laudo cada-
vérico – junto aos familiares de Emanuel, portanto, me permitiu dar conti-
nuidade à análise dessa engrenagem de gestão das mortes dos moradores
de favelas enxergando também os exercícios de poder de Estado através da
polícia enquanto modernidade administrativa (Foucault, 2008). Articulo ao
ato da execução sumária aqui discutida o preenchimento do laudo cadavé-
rico da vítima, refletindo sobre as imbricações entre o ofício do agente da
polícia militar e do agente da polícia civil enquanto potencialidades para a
administração da população residente em favelas via controle, classificação
e identificação de suas mortes. A partir deste recorte analítico, a zona de
tatuagem pode ser entendida também enquanto registro burocrático inde-
xador dessa população, sendo consideradas as especificidades do processo
de oficialização desse registro.
Tal processo de oficialização da zona de tatuagem enquanto registro de
Estado é produzido por pelo menos dois agentes: 1) um policial militar (ou,
eventualmente um policial civil) que tenha efetuado o disparo e 2) o perito
legista do IML (agente da polícia civil) para o qual o corpo da vítima tenha
sido levado. O primeiro agente produz a marca diretamente no corpo do
favelado ainda vivo, o segundo reproduz a marca na silhueta de corpo pa-
dronizada que integra a ficha correspondente ao laudo cadavérico, a partir
da necropsia do corpo do favelado. Os dois agentes têm acesso àquele corpo

37 Trecho do Despacho assinado pelo juiz titular da vara em questão, documento também
incluído no processo do Morro do Russo.

Burocracias e violências de Estado 173


durante um período de tempo que, não importa número de horas que se
passem, engloba a demarcação da fronteira entre a vida e a morte.
Considerando essas etapas do processo de oficialização da zona de ta-
tuagem, é possível identificar uma dupla marcação governamental: trata-se
de uma lesão produzida no corpo do favelado ao ser executado que vira re-
gistro através de uma anotação num papel timbrado de IML. As duas formas
da mesma inscrição são “feitas à mão” pelos agentes de Estado já menciona-
dos, sendo que um utiliza o fuzil como instrumento de marcação, enquanto
o outro, a caneta. Enxergo em ambas as ações componentes de reedição da
rotina desencantada do funcionário que carimba documentos como cumpri-
mento de seu dever, mas que assim o faz exercendo o poder decisório atri-
buído a todo funcionário público que na repartição onde trabalha é respon-
sável por preencher, carimbar e assinar papéis – poder que, como destaca
Ferreira (2009; 2011; 2013), está revestido de autoridade.
Ao abordar especificamente a trajetória burocrática de corpos não
identificados no IML-RJ, Ferreira (2009) explica que “carimbos e assinaturas
não remetem às pessoas que os conduziram e registraram, mas são investi-
dos de validade por sua simples anotação, por funcionários oficiais, em fo-
lhas de papel igualmente oficiais” (Ferreira, 2009, p.33). Pautando o debate
sobre o anonimato dos funcionários de quadros administrativos com base
nas formulações de Herzfeld (1992), a antropóloga torna evidente a assime-
tria inerente aos processos de classificação de corpos como não identifica-
dos: funcionários nomeados para ocuparem cargos em repartições públicas
agem sob a proteção do anonimato possível dos atos burocráticos enquanto
nomeiam como não identificados corpos que tiveram vida e morte anônimas.
A linha de argumentação desenvolvida neste texto se alimenta desse
ensinamento trazido pelas reflexões de Ferreira (2009) sobre como a desim-
portância atribuída à documentação de populações específicas corresponde
também a uma desimportância sobre os corpos aos quais essa documenta-
ção está relacionada. Os laudos cadavéricos dos corpos daquelas pessoas
que foram/são executadas nas favelas também são produto de uma ges-
tão burocrática específica dessa administração pública atravessada pelo que
Foucault (2005) denominou mecanismos mudos de um racismo de Estado.

174 Etnografia de documentos


Referências bibliográficas
DAS, Veena; POOLE, Deborah. State and its Margins: Comparative ethnographies.
In:______. Anthropology in the Margins of the State. Novo México: School of American
Research Press, 2004.

DAS, Veena. Critical Events: An Anthropological Perspective on Contemporary India.


Nova Déli: Oxford University Press, 1995.

EISELE, Rogério; CAMPOS, Maria L. Manual de medicina forense e odontologia legal.


Curitiba: Juruá Editora, 2003.

FARIAS, Juliana. Da capa de revista ao laudo cadavérico: pesquisando casos de vio-


lência institucional em favelas cariocas. In: BIRMAN, P.; LEITE, M.; MACHADO, C.;
CARNEIRO, S. Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências. Rio
de Janeiro: FGV, 2015.

______. Governo de mortes: uma etnografia da gestão de populações de favelas no


Rio de Janeiro. 2014. Tese (Doutorado em Sociologia e Antropologia) – Universidade
Federal do Rio de Janeiro, 2014.

______. Da política das “margens”: reflexões sobre a luta contra violência policial em
favelas. In: HEREDIA, Beatriz; ROSATO, Ana. Política, instituiciones y gobierno: abor-
dajes y perspectivas antropológicas sobre El hacer política. Buenos Aires: Antropo-
fagia, 2009.

______. Quando a exceção vira regra: os favelados como população “matável” e sua
luta por sobrevivência. Teoria & Sociedade, Belo Horizonte, v. 15.2, p. 138-171, jul.-dez.
2007.

FÁVERO, Flamínio. Medicina legal: introdução ao estudo da medicina legal. Identida-


de, traumatologia, infortunística, tenatologia. 10a. ed. Belo Horizonte: Vila Rica, 1991.
FERREIRA, Letícia. Dos autos da cova rasa: a identificação de corpos não identifica-
dos no Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: E-papers/LACED/
Museu Nacional, 2009. 198 pp.

______. Uma etnografia para muitas ausências: o desaparecimento de pessoas como


ocorrência policial e problema social. 2011. Tese (Doutorado em Antropologia Social)
– Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

______. Apenas preencher papel: reflexões sobre registros policiais de desapareci-


mento de pessoa e outros documentos. Mana, Rio de Janeiro, v.19, n.1, abr. 2013.

FERREIRA, Natália Damazio. Testemunhas do esquecimento: uma análise do auto de


resistência a partir do estado de exceção e da vida nua. 2013. Dissertação (Mestrado
em Direito)– Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2013.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo:


Martins Fontes, 2005.

Burocracias e violências de Estado 175


______. Segurança, território e população: curso dado no Collège de France (1977-
1978). São Paulo: Martins Fontes, 2008a.

______. Nascimento da biopolítica: curso dado no Collège de France (1977-1978). São


Paulo: Martins Fontes, 2008b.

FÜHRER, M.C.A.; FÜHRER, M.R.E. Resumo de Processo Penal. 24a. ed. São Paulo: Ma-
lheiros Editores, 2009.
FURET, François. Pensando a Revolução Francesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.

GRECO, Rogério. Medicina legal à luz do Direito Penal e do Direito Processual Penal.
11a. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.

HERZFELD, Michael. The Social Production of Indifference: Exploring the Symbolic


Roots of Western Bureaucracy. Chicago: The University of Chicago Press, 1992.

LEITE, Márcia. Entre o individualismo e a solidariedade: dilemas da política e da ci-


dadania no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v.15, n.44,
2000.

______. Da “metáfora da guerra” ao projeto de “pacificação”: favelas e políticas de se-


gurança pública no Rio de Janeiro. Revista Brasileira de Segurança Pública, São Paulo,
v.6, n.2, p.374-389 ago.-set. 2012.

______. La favela et la ville: de la production des “marges” à Rio de Janeiro. Brésil(s):


Sciences Humaines et Sociales, v.3, p.109-128. Paris: CRBC-Mondes Américains/
EHESS; Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 2013.

LÍBANO S., Taiguara. Constituição, segurança pública e estado de exceção permanente:


a biopolítica dos autos de resistência. 2010. Dissertação (Mestrado em Direito Cons-
titucional) – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica, Rio de Janei-
ro, 2010.

LUGONES, Maria Gabriela. Obrando en autos, obrando en vidas: formas y fórmulas de


protección judicial en los tribunales prevencionales de menores de Córdoba, Argen-
tina, a comienzos del siglo XXI. Rio de Janeiro: E-papers/LACED/Museu Nacional,
2012.

MACHADO DA SILVA, Luiz Antonio. A continuidade do “problema favela”. In: OLIVEI-


RA, Lúcia Lippi (org.). Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: FGV, 2002.

______; LEITE, Márcia Pereira; FRIDMAN, Luís Carlos. VVAA, Matar, morrer, civilizar:
o problema da “segurança pública”. In: MAPAS: monitoramento ativo da participação
da sociedade. Rio de Janeiro: IBASE/Ford Foundation/ActionAid, 2005.

______; LEITE, Márcia. Violência, Crime e Polícia: o que os favelados dizem quando fa-
lam desses temas? In: Machado da Silva, L. A. (org.). Vida sob cerco: violência e rotina
nas favelas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FAPERJ/Nova Fronteira, 2008.

MAGALHÃES, Alexandre. A campanha contra o “caveirão” no Rio de Janeiro. Estudos


e Pesquisas em Psicologia, v.7, n.2, 2007.

176 Etnografia de documentos


MENDONÇA, Tássia. Batan: tráfico, milícia e “Pacificação” na Zona Oeste do Rio da
Janeiro. 2014. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Uni-
versidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.

MISSE, Michel. O papel do inquérito policial no processo de incriminação no Brasil:


algumas reflexões a partir de uma pesquisa. Revista Sociedade e Estado, v.26, n.1, p.15-
27, abr. 2011.

______. et al. O inquérito policial no Brasil: uma pesquisa empírica. Rio de janeiro:
Booklink, 2010.

______.; GRILLO, C.; TEIXEIRA, C.; NERI, N. Quando a polícia mata: homicídios por
“autos de resistência” no Rio de Janeiro (2001-2011). Rio de janeiro: necvu/Booklink,
2013.

NASCIMENTO, Andrea; GRILLO, Carolina; NERI, Natasha. Autos com ou sem resis-
tência: uma análise dos inquéritos de homicídios cometidos por policiais. In: Encon-
tro Anual da Anpocs, 33., 2009, Caxambu, MG. Anais […]. São Paulo: Anpocs, 2009.

RAMOS, Tomás. “Vim buscar sua alma”: a governamentalidade da política Caveirão.


2010. Dissertação (Mestrado em Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito)
– Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

SOUZA LIMA, Antonio Carlos. Sobre gestar e gerir a desigualdade: pontos de in-
vestigação e diálogo. In:______ (org.). Gestar e gerir: estudos para uma antropolo-
gia da administração pública no Brasil. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Núcleo de
Antropologia da Política/UFRJ, 2002.

VERANI, Sérgio. Assassinatos em nome da lei: uma prática ideológica do Direito Pe-
nal]. Rio de Janeiro: Alderbarã, 1996.

VIANNA, Adriana. Limites da menoridade: tutela, família e autoridade em julgamento.


2002. 334p. Tese (Doutorado em Antropologia Social) Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.

VIANNA, Adriana; FARIAS, Juliana. A guerra das mães: dor e política em situações de
violência institucional. Cadernos Pagu, Campinas, n.37, 2011.

Burocracias e violências de Estado 177


CAPÍTULO 6

Fazer falar os pedaços de carne


Comparações entre laudos periciais
em casos seriais produzidos
pelo Instituto Médico-Legal (IML)
de Campinas e de Juiz de Fora
Larissa Nadai e Cilmara Veiga

Motosierra. Fernando Botero (2003)


Lápis e tinta sobre o papel (15 X 19 cm)

Como um documento de responsabilidade da Polícia Técnico-Científica, um


laudo de corpo de delito formulado pelo Instituto Médico-Legal, antes de
qualquer coisa, é um tipo particular de papel. Papel que guarda em sua tex-
tura as indeléveis marcas de sua impressão. Guarda, ainda, riscos de tinta
que se confundem com as palavras/termos digitados e/ou datilografados
com precisão em caixas de texto independentes e sequenciais ou em texto
corrido separado em diferentes setores e linhas a serem completadas se-
gundo o crivo e a análise de cada médico-legista. Papel impresso, assinado,
datado, carimbado e convertido em documento oficial. Nos casos de exame
de conjunção carnal e ato libidinoso, a função da perícia é responder a uma
requisição redigida pelo delegado de polícia civil, através da inspeção dos

Fazer falar os pedaços de carne 179


genitais e, em especial, do hímen de vítimas de estupro e atentado violento
ao pudor. Já nos relatórios de necropsia, é o corpo morto que será perscru-
tado e descrito com minúcias com objetivo de responder a causa médica da
morte e o que a provocou. No primeiro caso, as descrições ginecológicas,
assim como as perguntas e respostas, ocupam um total de duas páginas.
No segundo caso, detalhes narrados pelo legista por intermédio do corpo
do cadáver se estendem ao longo das quatro páginas do documento. Cada
um desses laudos de corpo de delito e relatório de necropsia fala sobre um
corpo, um crime.
Seus cabeçalhos trazem em destaque o brasão do Estado de São Pau-
lo ou do Estado de Minas Gerais1. Trata-se, aqui, de uma polícia específi-
ca, técnica e científica, que em resposta a requisições comparece tanto nos
documentos anexados ao inquérito policial, quanto nos autos do processo
penal2 por meio de suas conclusões médicas e periciais. A introdução digi-

1 Neste artigo preterimos apresentar o processo pelo qual os Institutos Médico-Legais


tomaram forma institucional tanto em Campinas como em Juiz de Fora. Essa escolha corresponde
ao fato de termos poucas informações substanciais que nos permitissem adensar as possíveis
similitudes e diferenças gestadas pelo caráter local desses expedientes burocráticos e técnicos.
Dessa forma, escolhemos apresentar esses laudos em comparação, apostando numa espécie de
semelhança que ligaria essas práticas de exame mais pela disseminação da medicina legal no
Brasil do que pela sua especificidade em cada cidade. Tal aposta encontra-se sustentada pelo
fato de percebermos, por essa documentação, um tipo de procedimento rotineiro referente às
técnicas de trabalho. Além disso, nos dois estados da federação o Instituto Médico-Legal é parte
da Polícia Técnico-Científica, sendo esta autônoma em relação à Polícia Civil e à Polícia Militar.

2 Durante a pesquisa de mestrado de Larissa Nadai, ela pôde acompanhar de maneira mais
detida o desenrolar das investigações realizadas na Delegacia de Defesa da Mulher (DDM)
de Campinas, e que tomam parte da constituição de um inquérito policial (IP). Entre tais
procedimentos ela destaca: os depoimentos de vítima, autor (quando conhecido) e de possíveis
testemunhas, bem como diligências e papéis protocolares endereçados a setores internos
da DDM ou externos a ela (IML, Setor de Criminalística ou ao Fórum). A esses inquéritos são
agregados ainda os laudos periciais da vítima, os antecedentes criminais do autor, os laudos
de peças, local e armas (quando existem), remetidos pelo Instituto de Criminalística, e os
pedidos de prisão preventiva executados durante a investigação policial. Em seguida, mediante
Relatório Final da delegada, essa peça policial é remetida ao Fórum (NADAI, 2012). Quanto à
pesquisa de Cilmara Veiga, realizada entre processos penais no Fórum de Juiz de Fora, além dos
documentos constitutivos dos Inquéritos Policiais, é possível ainda encontrar os depoimentos
de testemunhas e acusado (oitivas), os documentos e papéis arrolados ao processo penal por
advogados e promotores correspondentes à denúncia do Ministério Público e à sentença do
juiz, que finaliza os casos de latrocínio estudados por ela. A escolha analítica para este artigo,
contudo, não será de pensá-los a partir de seus circuitos institucionais, ou seja, colocá-los em
relação a outros documentos que constituem inquéritos policiais e processos penais. Nesse
sentido, buscaremos lançar mais luz às convenções narrativas desses documentos do que aos
efeitos que esses laudos podem produzir quando etnografados em seus contextos de produção
e circulação.

180 Etnografia de documentos


tada no papel não deixa dúvidas. Logo na página de abertura, centralizado
no cabeçalho pode-se ler “Secretaria de Segurança Pública de São Paulo ou
SESP/MG; Superintendência da Polícia Técnica-Científica, Núcleo de Perícias
Médico-Legais de Campinas, ou Instituto Médico-Legal de Campinas ou Juiz
de Fora”. Abaixo, o número do Boletim de Ocorrência e o número do laudo
são seguidos, em letra maiúscula, pelo termo “Remeter para: [Distrito Poli-
cial] – Campinas/SP ou Juiz de Fora/MG”. O título do documento, também
centralizado e em caixa-alta, delimita do que tratam os laudos fotocopiados
e analisados nesse artigo: “Laudo de Exame de Corpo de Delito” e “Exame
de Conjunção Carnal” e/ou “Exame de Ato Libidinoso” e “Exame de Corpo de
Delito”/“Relatório de Necropsia”3.
As páginas seguintes desses laudos de corpo de delito e de necrop-
sia anunciam, assim, formas particulares de narrar o corpo. Por meio dos
papéis, descrevem-se o corpo e seus pedaços. Nos documentos periciais
destinados aos crimes de estupro e atentado violento ao pudor, a ideia de
pedaço se apresenta de antemão. Ou seja, o exame formalmente requisitado
já faz um recorte em relação à totalidade do corpo. São os genitais, o ânus
e as mamas os pedaços que importam. O restante do corpo só receberá a
atenção do legista caso diferentes lesões sejam enunciadas pela vítima. Ns
necropsias realizadas nas vítimas de latrocínio4 aqui analisadas, a descrição

3 Neste artigo seguiremos as seguintes padronizações no que diz respeito às grafias de


escrita utilizadas: optamos por deixar em itálico os nomes dos personagens criados a partir dos
documentos oficiais apresentados, os trechos de narrações, expressões e noções construídas
por nós. Por exemplo: Uma Madalena, Dona Margarida e pedaços de carne. As frases, expressões
e termos retirados dos documentos oficiais, assim como das entrevistas realizadas durante
nossas pesquisas, ficarão grafadas entre aspas e em itálico. Quanto às citações bibliográficas,
estas estarão grafadas apenas entre aspas. Também, em alguns casos específicos, com vistas a
promover efeitos estilísticos, identificar algumas expressões coloquiais ou que merecem ênfase,
utilizaremos aspas simples. O negrito será utilizado somente como forma de dar ênfase a certas
passagens que julgamos importantes. Por fim, toda uma economia textual, ora grafada pelo
plural, ora pelo artigo indefinido uma ou dona em itálico, tem a intenção de expor a generalidade
e o recorte etário que atravessa os casos aqui analisados. Trata-se de nomes ficcionais, bem
como de números, protocolos e datas também inventados.

4 Entendido, de forma superficial, como “roubo seguido de morte” ou “crime de matar para
roubar”, o crime de latrocínio não possui nenhuma especificação no Código Penal brasileiro.
Proveniente do termo em latim latrocinium, a palavra já apresenta, na raiz de seu significado,
uma controvérsia. De maneira unânime, se traduz o prefixo latro como “ladrão”, mas seu sufixo
cinium é traduzido como derivado de canere, que significa “cantar”, ou como caedere, cujo
sentido é “bater, golpear, matar”. Ou seja, latrocínio pode caracterizar o anúncio de um roubo
à mão armada (sentido primeiro dado à palavra), mas também matar para roubar. Ainda que
este termo não se encontre no atual Código Penal brasileiro, de 1940, no parágrafo terceiro do
artigo 157, a morte aparece como “qualificadora” ou “agravante” do crime de roubo. O artigo 157

Fazer falar os pedaços de carne 181


do cadáver é feita através de um desmembramento do corpo. Cada seção
do laudo destina-se a falar de um pedaço: a cabeça, o tórax e o abdômen.
Entretanto, é por meio desse retalhamento que se forja a própria totalidade
do corpo: da externalidade da pele e de sua superfície às entranhas, órgãos
e ossos, tudo ganha relevo.
Os documentos do Instituto Médico-Legal reúnem, a um só tempo,
corpos e papéis. Como na imagem de Botero (2003), que abre esse artigo,
evocam, justamente por essa justaposição, a descrição de pedaços. Longe do
contexto de guerra, que serviu de inspiração ao pintor, as pernas, dorsos,
cabeças por ele traçados a lápis e tinta no quadro Motossierra, são também
descritos nos laudos pelos legistas. Mas esses documentos de perícia vão
além. Por meio de um tipo de carne interna que se pronuncia em orifícios,
membranas, órgãos e cartilagens, eles fazem falar o corpo, que é visto, apal-
pado, descrito, investigado e, por fim, documentado.

Sobre himens, roturas e outros buracos de “interesse


médico-legal”
Na folha envelhecida de sulfite, lê-se “Secretaria de Segurança Pública de
São Paulo/Superintendência da Polícia Técnico-Científica/Núcleo de Perícias
Médico-Legais de Campinas”. Abaixo do número do boletim de ocorrência e
do número do laudo fotocopiado, encontra-se o título do documento: “Lau-
do de Exame de Corpo de Delito” e “Exame de Conjunção Carnal”.
Com o objetivo de responder à requisição redigida pela Delegada
[Nome], lotada na Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas, o laudo nº
XXX/04, produzido pelo IML nos dias 15 de outubro de 2004 e 18 de julho
de 2008, foi assinado por dois médicos-legistas. Outra, dentre tantas Mada-
lenas, teve novamente seus dados pessoais descritos, agora, no documento
produzido pelo IML. Branca, solteira e nascida no Estado do Paraná, uma

– “subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça ou violência” – se
encontra na chamada “Parte Especial” do Código Penal, no seguimento “Título II – Dos crimes
contra o patrimônio”. Dessa forma, o latrocínio estaria no interstício do que é determinado
pela justiça como “crime contra a pessoa” e “crime contra o patrimônio”. Se colocarmos nessa
perspectiva também a ideia de crime em série, que caracteriza os casos ocorridos em Juiz de
Fora, chama atenção a desproporcionalidade dos valores atribuídos à vida e ao patrimônio, uma
vez que os objetos levados da cena do crime, pelo criminoso, eram insignificantes perante a
repetição sistemática da crueldade e da tortura imputadas às vítimas do Maníaco Matador de
Velhinhas.

182 Etnografia de documentos


Madalena tinha 26 anos e era assistente administrativa, segundo os dados
descritos pelo legista. Procedendo ao exame, logo depois de expostos os
quesitos obrigatórios por lei5 em seu “Histórico”, podia-se ler “Informa a
examinada que teria sido vítima de estupro em 08/10/04”. A frase vinha se-
guida, no canto esquerdo, de uma figura representada por um círculo dividi-
do em quadrantes. Nesta figura nada foi anotado. No canto direito, dois itens
foram preenchidos sem precisão: “Menarca: XXXX” e “Última menstruação:
XXXXX”.
Na página seguinte, na lacuna denominada “Descrição”, o médico-le-
gista afirmou, curiosamente, “sem lesões de interesse médico-legal”. Passou,
então, a discorrer sobre suas observações, aquelas que, “supostamente”, se-
riam de interesse médico-legal, enquanto uma Madalena se encontrava na
posição ginecológica6:
“1- Monte de Vênus7: pelos negros / 2- Genitais externos de con-
formação: normal para a idade / 3- Hímen: anular carnoso, de orla
baixa, óstio de média amplitude, apresentando rotura / 4- Altura
Uterina: sem lesões / 5- Mamas: sem lesões / 6- Ânus: sem lesões
de interesse médico-legal” (Caderno de Campo).

O legista relatou, ainda, que não foram realizados exames laboratoriais


e apresentou sua “Conclusão”: “Do observado e acima exposto concluímos que
a examinada apresenta hímen com rotura antiga”. (Caderno de Campo).
Em seguida partiu à resposta dos oito quesitos obrigatórios por lei.
Depois respondeu com o termo “Prejudicado” às perguntas: 3) Era virgem a
paciente?; 4) Houve violência para essa prática?; 5) Qual o meio dessa violên-
cia?; 6) Da violência resultou para a vítima incapacidade para ocupações por
mais de trinta dias ou perigo de vida, ou debilidade permanente de mem-
bro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade permanen-
te para o trabalho ou enfermidade incurável, ou perda ou inutilização de

5 1) Houve conjunção carnal?; 2) Qual a data provável dessa conjunção?; 3) Era virgem a
paciente?; 4) Houve violência para essa prática?; 5) Qual o meio dessa violência?; 6) Da violência
resultou para a vítima incapacidade para ocupações por mais de trinta dias ou perigo de vida, ou
debilidade permanente de membro, sentido ou função, ou aceleração de parto, ou incapacidade
permanente para o trabalho ou enfermidade incurável, ou perda ou inutilização de membro,
sentido ou função, ou deformidade, ou aborto?; 7) É vítima alienada ou débil mental?; 8) Houve
qualquer outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir?

6 A pessoa fica deitada de costas, com as pernas flexionadas em suportes (perneiras). http://
pt.scribd.com/doc/54083090/49.

7 É a proeminência situada entre as virilhas, e que externamente é recoberta por pelos


púbicos. Ver: Atlas de Anatomia Humana e Saúde. Bolsa Nacional do Livro: Curitiba, 1998.

Fazer falar os pedaços de carne 183


membro, sentido ou função, ou deformidade, ou aborto?; 8) Houve qualquer
outra causa que tivesse impossibilitado a vítima de resistir? As três pergun-
tas restantes foram respondidas por meio de outros termos:
“Primeiro: Houve conjunção carnal? Sim”
“Segundo: Qual é a data provável dessa conjunção? Data não
recente”
“Sétimo: É vítima alienada ou débil mental? Não”. (Cadernos de
Campo).

Assinado por dois médicos-legistas, o exame de uma Madalena foi en-


viado para a DDM e, depois de fotocopiado, passou a integrar o seu inquérito
policial.

Entre cadáveres, entranhas e pedaços de carne


Como parte dos inquéritos policiais agora integrados aos autos de um pro-
cesso penal, os laudos de necropsia das vítimas do Maníaco Matador de Ve-
lhinhas8 recebem a marcação, no canto superior direito de todas as quatro
folhas que compõem o exame, de um visto e/ou carimbo da secretaria cor-
respondente à vara criminal em que o crime foi julgado. O visto e o carimbo
circular têm por função determinar a quais folhas do processo se referem os
documentos.
Na primeira página, o brasão do Estado de Minas Gerais, localizado no
canto superior esquerdo e seguido imediatamente abaixo pela sigla SESP/
MG, marca o caráter oficial do documento. O cabeçalho, na mesma caixa de
texto e em letras maiúsculas, também deixa claro de qual órgão da Secretaria
de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais se trata: “Superintendên-
cia de Polícia Técnico-Científica”. Em negrito, logo abaixo, lê-se “Instituto
Médico-Legal” e, datilografado na máquina de escrever, o “Laudo no XXXX/
PMLJF/ANO” dá nome ao documento. Da mesma maneira, nas duas linhas
seguintes, os títulos “Exame de corpo de delito/noXXXXX” e “Relatório de Ne-
cropsia”, também em letras maiúsculas, delimitam o teor do laudo.
É a padronização que determina os tons e traça os contornos pelos quais
os corpos e seus pedaços irão, ou melhor, poderão, contar sobre os crimes
perpetrados pelo assassino às vítimas. Assim, em resposta ao requerimento
do Delegado de Polícia da “Delegacia Adjunta de Crime Contra a Pessoa – 7a

8 Maníaco e Matador de Velhinhas foram alguns dos nomes que o assassino recebeu da
imprensa local no período da descoberta dos corpos e ao longo das investigações.

184 Etnografia de documentos


DRSP/MG/JF9”, o laudo no XXXX/PMJF/95 começou a ser produzido “às
21:30 horas do dia 19, do mês de junho de 1995”, por dois médicos-legistas. Os
dados datilografados informam que o exame foi realizado em “um cadáver do
sexo feminino” e que o mesmo foi, então, identificado e qualificado. Tratava-
-se de “Dona Rosa, de 76 anos de idade, de cor branca, estado civil viúva, pro-
fissão aposentada, naturalidade Juiz de Fora – MG, residente em Juiz de Fora à
rua [endereço], filiação [pai] e [mãe]”.
Dispostos os quesitos oficiais10, os legistas deixaram registrado no es-
paço “Histórico” a data e o horário de entrada do corpo de Dona Rosa no
necrotério da cidade: “aos 19 dias do mês de junho de 1995, pelas 16:00”. Além
disso, informaram sem rodeios: “consta ter sido a mesma vítima de homicídio
em sua residência. Não temos outras informações”.
Na seção “Descrição”, que abre a segunda página do laudo, o médico-
-legista passou ao detalhamento das vestimentas e dos sinais de morte no
“cadáver” de Dona Rosa:
“camisa de malha, mangas compridas, cor branca. Sutiens de lycra
cor bege. Blusa de malha, mangas compridas (amarrada no punho
direito)”; “Livores de hipóstases ventrais, fixos. Circulação póstuma
de Brouardel. Mancha verde abdominal”. (Caderno de Campo).

Dito isso, concluem a hora da morte: “cerca de 48h”.


Nu, o “cadáver” de Dona Rosa segue, agora, identificado/esquadrinhado
em uma nova caixa de texto, “Exame Externo”, dividida em duas seções. Na
primeira delas, com campos padrões a serem preenchidos, o legista afirma
em “Sinais Particulares” a máxima “não os tem”, e o subtópico denominado
“Genitália Externa (hímen nos casos indicados)” segue não preenchido. Além
disso, declara apenas um impreciso “não pesquisado” para o grupo sanguíneo
e fator Rh. Contudo, mesmo sem “sinais particulares” que mereçam ser in-
dicados, o “cadáver” de Dona Rosa nos conta e nos faz saber sobre seu sexo
“feminino”, sua cor “branca”, seus “1,60 centímetros de estatura”, seus cabelos
“lisos, castanhos e grisalhos”, seus olhos “castanhos”, seus dentes “ausentes” e
seu biotipo “normilíneo”. Com isso, o legista arremata afirmando que, dian-
te de todas as informações acima elencadas, “o cadáver” aparenta “a idade
alegada”.

9 Delegacia Regional de Segurança Pública, Minas Gerais, Juiz de Fora.

10 1. Houve a morte?; 2.Qual a causa da morte?; 3. Qual o instrumento ou meio que produziu
a morte?; 4. A morte foi produzida com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia, tortura ou
outro meio insidioso ou cruel ou de que se podia resultar perigo comum?(Resposta especificada).

Fazer falar os pedaços de carne 185


Não mais condicionada às restrições impostas pelo formato de formu-
lário, a descrição ganha, a partir da segunda seção “Lesões Externas”11 a forma
de texto corrido e uma linguagem ainda mais técnica. Falando de tamanhos,
formas e aspectos, o legista enumera cada uma das lesões superficiais en-
contradas ao longo do corpo de Dona Rosa:
“–Equimose arroxeada, em placa, em ambas as faces vestibulares
dos lábios (superior e inferior)/ -Ferida contusa, medindo 1,5cm
de comprimento, localizada na face vestibular do lábio superior./
-Equimose arroxeada, em placa, na região periorbitária direita.
Hemorragia conjuntival homolateral./ -Escoriação em placa,
com crostas hemáticas avermelhadas, medindo 10,0 cm de com-
primento por 3,0cm de largura, localizada na região dorsal direi-
ta/ -Equimose avermelhada, em placa, medindo 5,0cm de diâme-
tro, localizada na face anterior da coxa direita, no terço médio.”.
(Caderno de Campo).

Dito isso, o legista faz uma última anotação pertinente aos “Exames
Externos”. Diante da hipótese de violência sexual, ventilada pela polícia no
momento em que Dona Rosa foi encontrada em sua casa, morta e desnuda,
informa:
“ao exame macroscópico da região vulvar, observamos hiperemia,
escoriações superficiais e fissuras nos grandes lábios, pequenos lá-
bios e vestíbulo, compatíveis com prática de ato libidinoso. Sangra-
mento na região vulvar”. (Caderno de Campo).

Sem mais, na terceira página o legista dá continuidade ao seu relatório


por meio do preenchimento da caixa de texto “Exames Internos”. Assim, um
novo quadro descritivo e estético aparece. A narrativa passa a falar do corpo
morto de Dona Rosa por meio de seus pedaços. As seções “Cabeça”, “Tórax” e
“Abdômen” são as telas nas quais serão, através de palavras, desenhados ór-
gãos, entranhas, fluidos, traumas e marcas da morte. São esses os pedaços de
“interesse médico-legal” dentre tantos outros pedaços de carne.
Na primeira seção, o legista apresenta as explicações em relação ao
pedaço “Cabeça”, que, “examinada por incisão bimastóidea vertical, seguida
do rebatimento do couro cabeludo, para a frente e para trás”, apresentou uma
“extensa hemorragia (sufusão) subgaleal, interessando toda região perietotem-
poral direita e porção direita da região frontal”. Além disso,

11 Entre parênteses, o formulário indica ao legista o que é preciso ser descrito: “(tamanho,
forma, sede, aspecto, etc)”.

186 Etnografia de documentos


“seccionados os ossos do crânio com serra manual, seguida do le-
vantamento da calota craniana e retirada das estruturas encefá-
licas, observamos hemorragia subaracnóidea em toda região tem-
poral direita e tronco cerebral. Retiradas as meninges, nenhuma
fratura óssea foi constatada”. (Caderno de Campo).

Em seguida, na seção reservada à investigação e inspeção do pedaço


“Tórax”, os médicos-legistas discorrem suas observações:
“examinado por incisão mediana anterior, desde a fúrcula esternal
até a extremidade distal do processo xifoide, seguida do rebatimen-
to das partes moles para os lados, notamos a sufusão hemorrágica
nas partes moles (tecido celular subcutâneo e muscular) na região
esternal e paraesternal”. (Caderno de Campo).

Através do procedimento seguinte – a “costotomia bilateral, com levan-


tamento do plastrão condro-esternal e com exposição ampla da cavidade torá-
cica”-, a curiosa conclusão a que chegam os legistas é de que “nenhuma lesão
de interesse médico-legal foi observada”.
Por sua vez, o pedaço “Abdômen” também é esquadrinhado por meio da
“técnica de rotina” não especificada no relatório. Encerrando a terceira pági-
na do laudo, mais uma vez a curiosa máxima é formulada: “nenhuma lesão de
interesse médico-legal foi constatada”.
Na última página somos informados, com dois riscos em diagonal cru-
zando a caixa de texto destinada aos “Exames Complementares”12, de que ne-
nhum exame laboratorial foi realizado. Também a caixa de texto seguinte,
“Anexo”, não é preenchida e é atravessada pelos mesmos riscos. Diante de
todos os “dados colhidos durante a necropsia e dos resultados”, o legista pôde
apresentar suas “Conclusões” na respectiva caixa de texto:
“a morte deu-se por traumatismo crânio-encefálico com hemor-
ragia subaracnóidea e de tronco cerebral, devido à agressão”. (Ca-
derno de Campo).

Por fim, em respostas aos quesitos oficiais e obrigatórios elencados nas


primeiras páginas do Relatório de Necropsia, os legistas concluem na quarta
e última página:
“Ao 1o [Houve morte?]: Sim.
Ao 2o [Qual a causa da morte?]: Vide conclusão acima.

12 Esse tópico é subdividido em três caixas de texto. A primeira é destinada a exames


“Anátomo Patológicos”, a segunda, a exames “Toxicológicos”, enquanto a terceira é discriminada
como “Outros”.

Fazer falar os pedaços de carne 187


Ao 3o [Qual o instrumento ou meio que produziu a morte?]: Ins-
trumento Contundente.
Ao 4o[A morte foi produzida com emprego de veneno, fogo, explo-
sivo, asfixia, tortura, ou outro meio insidioso ou cruel ou de que
se podia resultar perigo comum?]: Sim para meio cruel, conside-
rando-se as lesões produzidas no corpo da vítima e sua idade (76
anos). Não para os demais itens do quesito”. (Caderno de Campo).

Assinado com data e local (Juiz de Fora, 27 de junho de 1995), o laudo


é despachado para a delegacia e passa a ser parte não apenas do inquérito
policial do crime empreendido contra Dona Rosa, mas também de todo o
fluxo judicial e burocrático que atravessa – e constitui – as etapas de seu
processo penal.

Como falar dos “corpos” e de seus pedaços: dissecando


documentos oficiais
Embasada pelo Código de Processo Penal (1941), no Livro I, sob o título de-
signado “Da Prova”, no Capítulo II – “Do Exame de Corpo de Delito e das
Perícias em Geral”, o exame de corpo de delito, direto ou indireto, é indis-
pensável quando a infração deixa vestígios. Tal exame deve ser realizado por
um perito oficial e portador de diploma de curso superior. Essa exigência
procedimental regulamentada pela atual legislação de Processo Penal (1941),
entretanto, apenas reafirmava aquilo que, já em 1830, o primeiro Código Pe-
nal brasileiro tornava obrigatório – que juízes de direito ouvissem os peritos
antes de proferirem suas sentenças.
Como consequência disso, desde 1832 já havia diretrizes de atuação
desses profissionais no Código de Processo Penal (Ferreira, 2009). Contudo,
como salienta Corrêa (1998), ainda que os peritos já estivessem incorporados
desde meados de 1800 aos procedimentos penais, fosse pelas necropsias que
realizavam, fosse pelos exames toxicológicos que ministravam, a formação
como especialista não correspondia a sua atual acepção do termo. O que se
podia entrever era um aglomerado de saberes que em torno das práticas de
perícia – análises químicas, índices osteométricos, estigmas físicos/psíqui-
cos dos pacientes/acusados – serviam como técnicas de auxílio à justiça.
Tomando como referência a tese de Antunes (1995), três grandes áreas
parecem ter despertado o interesse da medicina legal no Brasil: crime, sexo
e morte. Os casos que interessam a esse artigo se localizam exatamente na
intersecção dessas áreas. Se tomarmos Foucault (1987/1988) por inspiração,

188 Etnografia de documentos


poderíamos pensá-las como costuras a serem desfiadas, fazendo emergir
dos laudos periciais os discursos que compõem uma larga dispersão de apa-
relhos inventivos que falam sobre os corpos e o seu sexo. Fazem-no falar
para, enfim, escutar, registrar, transcrever, redistribuir e documentar o que
dele dizem.
Como um especialista que está entre o direito e a medicina, o médico-
-legista deve saber “ler” corpos, ou melhor, os danos impingidos a certos
corpos, que passam a existir por meio de descrições de interesse médico-
-legal e conclusões médicas. Provas cabais de atos que transgridem a lei13.
A ”mágica” desses documentos está em produzir descrições técnicas
sobre esse tipo de sofrimento que marca a carne, conseguindo, no entanto,
fazer com que os discursos que falam de materialidades corpóreas, feridas,
sangue, sofrimento, manifestem-se por intermédio de terminologias médi-
cas. Assim, transformam o horror dos cenários e dos atos perpetrados em
conclusões assépticas, e em alguma medida cifradas à leitura de não espe-
cialistas. O legista transforma o acontecimento estupro e o acontecimento
morte, como afirma Medeiros (2012), em “fato médico-legal”. O faz conver-
tendo aquilo que foi observado no corpo commo lesões, traumas, perfura-
ções, rompimentos, fraturas, entre outros.
Assim, em um laudo de conjunção carnal/ato libidinoso e em um re-
latório de necropsia não é possível entrever a carne, naquilo que Deleuze
(2007) descreveu como vianda14. Essa carne “acrobática” que guarda em suas

13 Diante de suas atribuições, nas palavras de Corrêa (1998), os modelos jurídicos e médicos
deixavam de ser heterogêneos entre si, e, absorvendo um ao outro, florescia uma nova área
de saber situada exatamente na intersecção desses modelos: a medicina legal. Tratava-se
da constituição de um terceiro saber que deveria se concentrar em diagnosticar e indicar
tratamento adequado, de acordo com os parâmetros jurídicos e médicos, aos atos que insidiam
contra a normalidade da vida social.

14 Segundo Deleuze (2007), falando sobre a obra do pintor Francis Bacon, a vianda não pode
ser compreendida como uma carne (corpo) morta. Ao contrário, ela conserva todas as cores e
todos os sofrimentos de uma carne viva. Nas pinturas de Bacon, vianda é um estado do corpo
no qual carne e osso se confrontam, mas não se adéquam estruturalmente: a carne se origina
dos ossos, ao mesmo tempo que os ossos dela se elevam. Vianda seria uma espécie de zona
de indiscernibilidade, de indecisão entre o homem e o animal, um estado no qual o pintor “se
identifica com os objetos de seu horror e de sua compaixão” (Deleuze, 2007,p. 31). Citando um
romance de Moritz, Deleuze (2007) descreve essa carne, que é vianda, por meio da imagem de
uma personagem que experimenta a sensação de horror, de insignificância, ao ver a execução
de quatro homens que, exterminados e esquartejados, têm seus pedaços jogados na rua.
Gregori (2010), falando sobre os usos de sex toys, aponta também como a ideia de carne pode
ser compreendida mediante um outro sentido: a carnalidade. Por esse termo, a autora mostra
como carne também pode evocar o corpo como objeto erotizado e sexualizado.

Fazer falar os pedaços de carne 189


entranhas a vivacidade do sofrimento, não pode mais ser alcançada depois
que nos enredamos em aparatos técnicos e quadros descritivos produzi-
dos pelo médico-legista. Ao contrário, o que se avista é uma carne pálida
apresentada mediante terminologias médicas. Carne pálida transmutada
pelo profissional que, responsável por traçá-la por meio de papéis e con-
clusões médicas, faz aparecer pedaços falantes que se autonomizam desse
corpo-organismo sistêmico e integral.
Portanto, trata-se aqui de descrever um tipo de olhar que, sobre o cor-
po – sobre a carne –, se constitui como saber médico. Um olhar que, desde
sua constituição em relação ao crime, esteve envolto nessas múltiplas técni-
cas de produção de provas materiais: desde a análise de fluidos até a minu-
ciosa descrição dos corpos.
Central para a medicina legal, esse olhar, nomeado por Foucault (1980)
como anatomoclínico, vai se constituir pelas frestas, trazendo à tona a ma-
nipulação do corpo e sua dissecação como prática médica legítima. Prática
essa que repousa sobre um “formidável” postulado: “todo o visível é enun-
ciável e [...] é inteiramente visível, porque é integralmente enunciável”. (Fou-
cault, 1980, p.131).
Seria, portanto, uma “leitura diagonal do corpo, que se faz segundo
camadas de semelhanças anatômicas que atravessam os órgãos, os envol-
vem, dividem, compõem e decompõem, analisam e, ao mesmo tempo, ligam”
(Foucault, 1980, p. 146). Esse olhar anatomoclínico deverá atingir as duas di-
mensões – a dos sintomas e a dos tecidos –, constituindo uma rede entre
esses dois termos, em que o olhar médico deverá ir da superfície sintomática
à superfície tissular em profundidade15.
A prática médica/clínica, que vê por meio dos olhos fazendo aparecer a
doença, é semelhante a que deixa seus rastros nos laudos de corpo de delito
que analisamos neste artigo. Contudo, nesses papéis periciais não acessa-
mos o momento no qual médico (legista) e paciente (vítima) se encontram.
Ao contrário, trabalhamos com seus “quadros”16, aquilo que, sob a forma de
escrita, o olhar médico fez aparecer como texto, como prova documental.

15 Foucault (1980), entretanto, nos alerta que não devemos tomar o acesso do olhar médico
ao interior do corpo como uma continuação de um movimento, que, cada vez mais, leva a
medicina ao interior desses corpos doentes. Ao contrário, trata-se de uma reformulação ao
nível do próprio saber e não de um movimento de acumulação, de conhecimentos que são
afinados e ajustados a novas realidades.

16 Por quadro, Foucault (1980) está preocupado em delimitar uma representação espacialmente
legível e coerente, na qual a doença possa ser descrita por meio de um instrumento analítico

190 Etnografia de documentos


Assim, o aparato técnico que deve ser respondido durante um laudo de cor-
po de delito permite aos médicos-legistas, também por métodos inquisi-
toriais e cartoriais, interrogar, fazer falar e documentar o que se fala sobre
o corpo. No entanto, isso se faz por meio de membranas, órgãos, lesões de
interesse médico-legal; pedaços de carne.
Seguindo o argumento foucaultiano de que a anatomoclínica exige uma
espécie de triangulação sensorial na qual o olhar deve demarcar um “volu-
me”, nesses exames de corpo de delito o legista faz aparecer não só o visível
e o legível, mas tudo aquilo que os ouvidos e o tato podem detalhar. Nesse
sentido, os formalismos técnicos dos laudos – os quesitos legais, as des-
crições empreendidas e as conclusões transcritas em papel – são índices
indexadores daquilo que será formulado como o “volume” desses corpos. O
que ocorreu, as marcas, o histórico da vítima, tudo isso será fundamental
num quadro em que, na lacuna “Conclusão”, o legista possa explicitar suas
considerações “com certeza”.
Entre essas muitas entradas médicas estão os olhos que descrevem o
visível: himens, ânus, escoriações e lesões de “interesse médico-legal”. Olhos
que descrevem vestes, “equimoses”, feridas, “protusões”, putrefações e cadá-
veres em decomposição. Estão, também, os ouvidos atentos às descrições e
aos históricos das pacientes, mesmo aqueles contados por policiais milita-
res. Querem saber os legistas: o que trouxe mulheres como Madalenas, Már-
cias e Joanas às salas de exames do IML? Quando e de que forma mulheres
como Dona Rosa, Dona Margarida, Dona Violeta, Dona Camélia e Dona Dália
deram entrada ao necrotério de Juiz de Fora? Ao mesmo tempo está o tato,
que apalpa a carne, que “procura” as marcas deixadas nos corpos em peda-
ços: cabeça, tórax, abdomens, órgãos genitais, mesmo aquelas “escondidas”
por entre os pelos pubianos, cartilagens, “rebatimentos do couro cabeludo”, ou
ocultas na “pele descolando do corpo”. Tato, por fim, que se prolonga por meio
de aparatos como cotonetes, seringas e tudo aquilo que culmina em lâminas
e amostras importantes aos exames laboratoriais, sejam aqueles realizados
em uma entre tantas Joanas, ou aqueles oriundos das análises anatomopa-
tológicas realizadas em fígados, rins e estômagos de mulheres como Dona
Dália. Todos esses diferentes e importantes elementos sensoriais servem de
anteparo para a finalização “precisa” dessas provas documentais.

(prontuário ou ficha clínica) que conjuga o percebido na superfície do corpo pelo olho clínico, e
aquilo que é ouvido por esse mesmo clínico por meio da interação médico/paciente.

Fazer falar os pedaços de carne 191


Entretanto, nos laudos periciais as correlações desses três sentidos – o
olhar, o ouvido e o tato – ganham contornos específicos. Por meio desses
sentidos, um procedimento inquisitorial é posto em ação nesses exames.
Isso ocorre tanto nos laudos de conjunção carnal/ato libidinoso que tomam
como objeto de investigação o corpo vivo, quanto nos relatórios de necrop-
sia que buscam perscrutar os corpos sem vida.
Nos laudos de conjunção carnal/ato libidinoso o legista deve perguntar
com destreza às vaginas se elas foram penetradas, quando foram, se eram
ainda virgens em tal data, se houve violência na prática do ato, seja ela a
penetração ou não. Deve-se perguntar ao corpo, que dirá através da sua car-
ne, algo sobre a “violência”: qual o “meio” utilizado para feri-la, se ficou na
carne marcas dessa ação, que debilidade lhe foi imposta, se disso resultou
restrições parciais ou permanentes de movimentos, forças, aptidões, função.
Houve aborto? Parto prematuro? Por fim, deve-se interrogar as causas que
puderam impedir a “honesta” resistência da vítima. É alienada? Débil mental?
Outras causas existiram para que a vítima fosse impedida de resistir?
Por comparação, nos laudos de necropsia também os quesitos obriga-
tórios por lei inquirem. Mas o fazem perguntando ao corpo: “Houve morte?”
Interrogam a carne sem vida com a esperança que ela responda a causa da
morte, o meio ou o instrumento que a produziu. Além disso, em vista do cor-
po inerte, proliferam-se os questionamentos sobre outros meios que pode-
riam ter produzido a morte: “veneno, fogo, explosão, asfixia, tortura ou outro
meio insidioso ou cruel ou que poderia resultar perigo comum”.
O corpo deve pronunciar-se, deixar-se olhar pelo especialista, que deve
responder mediante palavras inscritas em papéis o que esses pedaços de car-
ne podem “informar” sobre o crime ou tudo aquilo que escapa a ele. Eis a
curiosa importância legal das perguntas, que fica expressa logo na ordem
elencada por esses quesitos “estabelecidos por lei”. Nos casos de estupro,
por que saber sobre a virgindade da vítima é relevante? Ou por que essa
informação é respondida antes, inclusive, da pergunta a qual indicaria a vio-
lência empreendida durante o ato?
É nesse sentido que interrogar e perscrutar ganham diferentes nuances
e convenções narrativas nessa reflexão. Nos corpos vivos que adentram as
salas de perícia clínica, com vistas a produzir o crime, se interroga/investiga
o sexo17 de mulheres como Madalenas, Joanas e Márcias. Nos corpos sem

17 Apesar da ambiguidade contida no termo, optamos por manter o termo sexo em vez de
sexualidade. Seu uso aqui não remete apenas à ideia de sexo biológico, mas está inspirado nos

192 Etnografia de documentos


vida os exames de necropsia visam, nos termos de Medeiros (2012, p. 70), a
“confirmar aquilo que muitas vezes já é sabido”. Usando a metáfora da autora,
significa transformar a morte em fato médico: “matar o morto, que já está
morto, é o objetivo dos que estão realizando o exame” (Medeiros, 2012, p.
71-72).
É dessa forma que, na sala de perícias clínicas, uma membrana, antes
desprezada pela fisiologia, encontrou seu valor na medicina legal18. Por meio
dos discursos intersticiais entre a medicina e o direito, o hímen surge como
um pedaço de carne decisivo. Uma Madalena possui “hímen: anular carnoso,
de orla baixa, óstio de média amplitude, apresentando rotura”. Dito isso, o
legista expressa seu dito sentencioso, na lacuna “Conclusão”: “Do observado
e acima exposto concluímos que a examinada apresenta hímen com rotura
antiga”.
Além disso, enquanto o corpo inteiro de uma Madalena é descrito por
meio da máxima “sem lesões de interesse médico-legal”, sua região genital,
observada em posição ginecológica, é apresentada com muitos detalhes. Na
caracterização transformada em papel, o médico-legista se preocupa em
elucidar os pelos “negros” que recobrem o Monte de Vênus, a conformação
“normal para a idade” de seus genitais externos, seu ânus, mamas e altura
uterina. Em suas conclusões, o médico não infere nada sobre a relação entre
esses pedaços descritos e o ato de estupro alegado pela vítima e anotado
na lacuna “Histórico”. Ao leitor que desconhece o cotidiano do IML, ficam
curiosidades: haveria marcas nessas partes genitais que poderiam falar da
materialidade do estupro? Qual a coloração, qual o aspecto das mucosas, da
pele, da carne? Haveria lesões traumáticas compatíveis com a violência ale-
gada pela vítima, e que a levou às salas de exame clínico no IML?
Se retornássemos àquilo que Vigarello (1998) descreveu como a centra-
lidade da fisionomia do criminoso, nas primeiras décadas do século XIX, fi-
caríamos surpresos com as semelhanças nos procedimentos. Como salienta

trabalhos de Foucault (1988) e Butler (1993). Para a autora, a categoria sexo é desde sempre
normativa porque não só funciona como uma norma, como também produz os corpos que
governa. Em outras palavras, sexo é um discurso de natureza que opera como marcador e
diferenciador dos corpos por ele produzidos. Nesse sentido, o que Butler (1993) aponta é que
sexo, portanto, não é algo que alguém tem, antes é uma das normas mediante as quais “alguém”
torna-se viável e inteligível. Como se interroga Foucault (1988, p. 77), “que injunção é essa? Por
que essa grande caça à verdade do sexo, à verdade no sexo?”.

18 Segundo Fávero (1954, p. 210), hímen é “uma membrana mucosa, mais ou menos permeável,
excepcionalmente imperfurada, que se apresenta no orifício interior da vagina”.

Fazer falar os pedaços de carne 193


Mariza Corrêa é evidente a relação de influência de autores como o italiano
Cesare Lombroso e Alexandre Lacassagne e sua equipe de Lyon na consti-
tuição da medicina legal no Brasil, através dos ensinamentos ministrados por
Nina Rodrigues na Faculdade de Medicina na Bahia. Segundo a autora, Nina
Rodrigues dedicou seu primeiro livro a ambos estudiosos, indo, inclusive,
visitá-los pouco antes de falecer em 1906. A admiração de Nina Rodrigues
pelos principais teóricos da antropologia criminal italiana e pela escola mé-
dico-legal francesa permite intuir algumas proximidades no esforço classi-
ficatório e analítico empreendido pelos célebres médicos-legistas formados
por Nina Rodrigues. Se, no caso dos criminosos, os médicos procuravam por
medidas antropométricas que diziam respeito, preponderantemente, a ân-
gulos faciais e circunferências cranianas, no caso dos himens, ainda hoje, por
sua vez, fala-se sobre seus entalhes e formas: se são mirtiformes, carnosos,
anulares, suas amplitudes etc.
Tendo em vista o argumento de Rago (2008), ao se referir a Vênus de
Hotentote19, acreditamos que, no caso do corpo feminino vasculhado pelo
legista, a genitália também se autonomiza dos corpos e ganha lugar de des-
taque se constituindo como prova material, símbolo desse corpo esquadri-
nhado e mapeado. Se, no caso de Sarah Baartman a genitália ganharia lugar
no Museu de História Natural de Paris suprimida de seu corpo e conservada
em formol, no caso de uma Madalena, mas não somente no dela, a genitália
ficará “conservada” por meio da escrita, com relevo para seu hímen tão subs-
tancialmente “decifrado” pelo médico-legista: “anular” e “carnoso”.
É mediante esses mesmos esquadrinhamentos e exatamente por isso
que himens de mulheres como uma Márcia20 figuram quase autônomos da
totalidade de seu corpo. Totalidade essa que se dá a conhecer apenas por
meio de reiteradas frases “sem interesses médico-legais”. Seu hímen “anular,
carnoso, de orla alta, óstio de média amplitude, apresentando rotura comple-
ta, cicatrizada, localizada em junção de quadrantes anterior e posterior direi-
to” eclipsa aquilo que lhe trouxe às salas de perícia e que foi perguntado e

19 Vênus de Hotentote foi como ficou conhecida Sarah Baartman, nascida na África do Sul,
com 1,35m de altura, pertencente ao povo Hotentote, ou dos Bushmen. Sarah foi capturada e
levada para a Europa em 1810 pela configuração exótica de seu corpo: nádegas salientes e lábios
genitais de grandes proporções. Por sua corporalidade “exótica”, Sarah passou a participar de
feiras, exposições e espetáculos itinerantes. Morreu em 1825, aos 26 anos (Rago, 2008).

20 Uma Márcia foi qualificada no laudo pericial como uma jovem de 22anos, natural de Minas
Gerais, solteira e balconista. Seu laudo de corpo de delito foi realizado no dia 18 de outubro de
2004, apenas dois dias depois de ter sido abordada e violentada, na cidade de Campinas.

194 Etnografia de documentos


registrado pelo legista na lacuna “Histórico”21. Em dissonância ao seu “Histó-
rico” e à requisição redigida pelo “Sr. Delegado [Nome] do 3º Distrito Policial
de Campinas”, somente o exame de conjunção carnal foi realizado, não cons-
tando, portanto, laudo específico de ato libidinoso22. Assim, do exame desti-
nado ao ânus de uma Márcia fica expresso unicamente a máxima: “sem lesões
de interesse médico-legal”. Na “Conclusão”, os médicos-legistas que assina-
ram ao laudo oficial são enfáticos: “do observado e exposto concluímos que a
examinada apresenta roturas e se ato libidinoso houve marcas não ficaram...”.
A ideia de esquadrinhar o corpo já aparecia como central nas técnicas
desenvolvidas por célebres médico-legais em casos envolvendo estupro. A
obra de Flamínio Favero denominada Tratado de Medicina Legal, publicada
no ano de 1918 em três volumes e com mais de onze reedições, é bastante
interessante em se tratando das técnicas de perícias a serem utilizadas nos
casos de defloramento, atentado violento ao pudor e/ou estupro (Salla e
Marinho, 2008). Seu Tratado (1954), ainda utilizado em boa parte das emen-
tas ministradas nas aulas de medicina legal no Brasil, traça os aspectos dou-
trinários (definição e conceito) que embasam cada um desses tipos penais.
Além disso, o tratado apresenta também as regras que norteiam a realização
da perícia – desde a utilização de luz adequada ao exame, passando pela des-
crição da sala de perícia, chegando aos instrumentos e procedimentos que
deveriam ser executados.
Assim, para além das revisões necessárias a cada nova edição publicada
da obra de Flamínio Fávero (1954) devido às mudanças das tipificações pe-
nais formuladas no Código Penal, chama atenção uma espécie de compên-
dio descritivo e de imagens (fotográficas e desenhos anatômicos) realizadas
em torno da membrana himenal. Por meio das “Classificações da membrana

21 O legista declarou: “informa a examinada que teria sido vítima de ato libidinoso (sexo oral e
tentativa de coito anal) sob ameaça de revólver em 16 de outubro de 2004”. (Caderno de Campo).

22 No boletim de ocorrência registrado na Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas, a


violação sofrida por uma Márcia foi tipificada em dois artigos penais distintos: o artigo 213 e
o artigo 214. O artigo 213 está redigido no Código Penal de 1940 como estupro – “constranger
mulher a conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça”. Já o artigo 214, está definido
pelo mesmo ordenamento jurídico como “constranger alguém, mediante violência ou grave
ameaça, a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção
carnal”. Apenas em 2009, pela aprovação da Lei 12.015, essa diferença foi suprimida do
Código Penal. Assim, em 2004, ano em que o crime contra uma Márcia foi registrado, era de
responsabilidade do delegado de polícia requisitar dois tipos diferentes de exame de corpo de
delito: um de conjunção carnal e outro de ato libidinoso. Procedimento realizado pelo mesmo.
No inquérito policial, contudo, só foi anexado o exame de conjunção carnal.

Fazer falar os pedaços de carne 195


e do orifício”23 que levam como adjetivação o nome dos famosos médico-
-legais Afrânio Peixoto e Oscar Freire, respectivamente, o que seu “manual”
de medicina médico-legal formula, por meio dessas figuras, é uma infindável
coleção de anatomias do hímen.
Como aponta Duarte (1999) em sua discussão sobre representações de
virgindade a partir de processos judiciais de sedução entre os anos de 1960
e 1970, Afrânio Peixoto, já a partir dos anos 1920, publicava os resultados de
seus estudos sobre a grande variedade de himens24. Data da mesma época os
trabalhos de Oscar Freire nos quais, utilizando técnicas de um médico fran-
cês (Lacassagne), começa, segundo Antunes (1995), a localizar exatamente os
entalhes e rupturas no hímen. Disso resulta o círculo trigonométrico – até
hoje utilizado, como aparece no exame de mulheres como Madalenas, Már-
cias e Joanas – com todas as angulações possíveis que poderiam ser aplicadas
durante a perícia realizada na região pélvica. A finalidade era que a inspeção
da “singela” membrana fosse mais fácil e criteriosa. Seus estudos ainda tor-
nariam possível datar e diferenciar nos laudos os defloramentos ocorridos
recentemente, assim como aqueles que se consumaram há muito tempo.
Dessa maneira, transpondo as distâncias temporais entre esses ma-
nuais de medicina legal e os procedimentos técnicos empreendidos nos lau-
dos de conjunção carnal e ato libidinoso apresentados nesse artigo, rupturas
e continuidades poderiam ser traçadas. Mesmo uma Madalena tendo uma
descrição criteriosa de seu “hímen com rotura antiga”, na lacuna “Histórico”
nada é inscrito na figura geométrica, formulada por Oscar Freire e que ainda
ilustra os laudos de conjunção carnal. De fato, o que o legista deixa anotado
é que uma Madalena “teria sido vítima de estupro em 08/10/2004”. Contudo,

23 Segundo Fávero (1954), o hímen morfologicamente apresentaria o que pode ser chamado
de “membrana” e aquilo que ficou denominado como “óstio” (que seria limitado pela borda
livre da membrana). A membrana apresentaria duas faces, uma vaginal e outra vestibular, e
duas bordas (uma inserção vaginal e outra livre). A classificação de Afrânio Peixoto teria se
dedicado a classificar o hímen pelo aspecto da membrana. Daí Peixoto ter traçado linhas de
junção que dariam origem a ângulos ou fendas na inserção da membrana no óstio vaginal. É por
meio dessas aberturas que Peixoto classificou os himens a partir de três grupos: acomissurados
(imperfurados), comissurados (com número variado de pontos de junção) e os atípicos. Já a
classificação empreendida por Oscar Freire estava ligada ao óstio, uma vez que a borda livre da
membrana apresenta dimensões e aspectos variáveis. Sua classificação dividia o hímen em três
classes: sem orifício, com orifício e os atípicos.

24 Outro exemplo, apresentado na tese de Antunes (1995), é o levantamento do médico baiano


Dr. Álvares Borges dos Reis, que classificará as formas himenais mais frequentes na Bahia de
acordo com distinções raciais.

196 Etnografia de documentos


seguem sem preenchimento as informações básicas indicadas nos formalis-
mos do laudo, como a data de sua menarca ou a última vez que uma Mada-
lena menstruou. Mesmo no caso do hímen de uma Márcia, tão bem esqua-
drinhado pelo médico-legista (“apresentando rotura completa, cicatrizada,
localizada em junção de quadrantes anterior e posterior direito”), a figura tri-
gonométrica não é hachurada, ainda que as informações sobre sua menarca
e sua última menstruação tenham sido descriminadas: “15 anos e 22/10/04”.
Com implicações diversas, também o laudo “Indireto” de uma Joana
apresenta outras formas narrativas. Sem acessar o corpo de uma Joana com
seus próprios olhos, o legista faz aparecer em seu laudo formas narrativas
muito mais próximas do resumo, deixando para suas conclusões aquilo que
já fica evidente no processo sucinto de sua descrição. Seu laudo nos dá in-
dícios de uma tensão entre a função de perito “oficial” e as práticas médicas
realizadas por outras instituições, também médicas, como o Centro de Apoio
Integrado à Saúde da Mulher (CAISM). Logo no início, no “Histórico”25, o le-
gista deixa formulado que o laudo indireto foi feito “de acordo com a cópia
xerográfica do prontuário – HC XXXX-X/ do HC/Unicamp”.
A “Descrição” empreendida pelo legista especifica que não foi ele quem
“viu” o corpo de uma Joana, uma vez que a “Descrição” ganha um comple-
mento: “Do Exame”. Sem rodeios, o que foi visto e revertido em descrição
clínica é, então, retraduzido em termos de “interesse médico-legal”: “fissu-
ra no ânus; mamas/genitais externos e internos: sem alterações e presença
de escoriação no quadril esquerdo”. Somam-se às intervenções realizadas no
corpo de uma Joana os exames sorológicos, todos negativos, sem menção de
qualquer análise de fluidos corpóreos. Diante do exame indireto, o legista
adiciona ao laudo, antes de sua “Conclusão”, num item discriminado pelo
termo “Discussão” o motivo pelo qual chegou a tal desfecho. Em resposta,
talvez, a uma disputa profissional26, a saber, a oficialidade da opinião do mé-
dico-legista lotado no IML, o legista dirá:

25 Por contraste ao que ocorre com os outros casos aqui apresentados, a caracterização do
ocorrido com uma Joana é muito mais detalhada, acrescentando, inclusive, novas informações
ao caso, uma vez que em nenhum dos depoimentos de uma Joana havia ficado descrito que ela
teria sido abordada por um desconhecido “no caminho para o cursinho”. O motivo pelo qual
caminhava pela rua, na qual Ricardo Dias lhe abordou, é indicado exclusivamente em seu laudo
indireto.

26 Em entrevista realizada com alguns dos médicos legistas do IML de Campinas, ficou ainda
mais evidente que os laudos feitos de forma indireta habitam uma espécie de limbo semântico.
Além da necessidade de serem requisitados pelo próprio interessado, no caso a vítima, esses

Fazer falar os pedaços de carne 197


“embora a presença de fissura anal possa ser compatível com o
histórico, outras causas de etiologia não traumática, mas patoló-
gica, podem apresentar esse mesmo achado do exame” (Caderno
de Campo).

Dito isto, resta apenas ao legista dizer, na lacuna Conclusão, que nada
pode “afirmar ou infirmar” sobre os fatos descritos.
É por meio de outros expedientes técnicos do detalhe e da precisão que
a morte ganha seu lugar nos exames periciais analisados nesse artigo. Por
meio de termos por vezes indecifráveis, outras formas narrativas são postas
em operação. A linguagem através da qual os corpos nas mesas de necropsia
se convertem em documento pode parecer ao leitor ainda mais enigmática.
Se, nos casos de estupro e ato libidinoso, a carne se faz entrever me-
diante membranas “valiosas” e genitais com “conformações” diversas, os cor-
pos de idosas como Dona Rosa, vitimados mortalmente pelo Maníaco Ma-
tador de Velhinhas de Juiz de Fora, são descritos com um rigor técnico que
torna a leitura algo difícil. Tanto a descrição externa de seu corpo coberto
por pele, quanto de suas partes inundadas por sangue e cartilagens, depois
que a carne é irrompida pelos instrumentos da necropsia, exigem que a lei-
tura seja feita com o auxílio de dicionário[, ou de um guia médico. O mesmo
acontece quando, entre “larvas e moscas”, cabe ao legista descrever estados
de putrefação e estágios de decomposição.
A dedicação aos exames cadavéricos parece responder às pretensões
científicas dos médicos fundadores da disciplina no Brasil, mas também a
imagem que foi sendo tecida sobre o tipo de trabalho realizado nos Institu-
tos Médico-Legais. Segundo Antunes (1995), a participação desses profissio-
nais em perícias necroscópicas foi tão impactante que a necropsia e a me-
dicina legal tornaram-se quase expressões sinônimas. O site oficial do IML
de São Paulo ajuda a ilustrar essa reputação ao salientar que a manipulação
de corpos mortos encontra-se como uma das mais conhecidas funções da
instituição27.

laudos acabam restritivos exatamente pelo efeito de cópia que enredam. Ou seja, diante do
prontuário médico, resta ao legista descrever e proferir as conclusões de outro profissional, o
que limita ainda mais sua possibilidade de “concluir”. Além disso, tais exames realizados através
de prontuário médico estendem o tempo de conclusão da perícia, o que por sua vez trava o
cotidiano de trabalho do IML.

27 Segundo dado fornecido atualmente pelo site da Polícia Científica do Estado de São Paulo,
isso continua muito evidente: “a mais conhecida das funções do IML é a necropsia, vulgarmente
chamada de autópsia, que é o exame do indivíduo após sua morte. Porém, este tipo de exame

198 Etnografia de documentos


Por isso, não causa surpresa que os estudos de “entomologia médica e
fauna cadavérica” tivessem como referência médicos de renome como Os-
car Freire, o qual dá nome ao Instituto Médico-Legal de São Paulo (Antunes,
1995). Mas não somente ele. Também no Tratado de Medicina Legal, publi-
cado por Flamínio Fávero (1954), mais de 120 páginas são compiladas sobre
a rubrica Tanatologia. Chama atenção, em especial, a descrição minuciosa
empreendida pelo discípulo de Oscar Freire daquilo que ele formula como
“esquema dum laudo de necropsia”. Sua formulação, em meados dos anos
1950, já tinha por interesse criar uma espécie de padronização dos procedi-
mentos técnicos importantes a serem realizados no corpo morto. Como um
manual de procedimentos, Fávero (1954) elenca todas as lesões e traumas
encontrados no corpo sem vida, desde os membros periféricos até as entra-
nhas mais tissulares. Também enumera o mínimo material necessário para
uma execução satisfatória da necropsia: luvas, lâminas, bisturis, tesouras,
pinças, serras, martelo, compasso, agulhas, linhas de sutura, seringa, tubos
de ensaio, etc. Elenca e descreve a forma como devem ser processados casos
específicos de morte (envenenamentos, infanticídio, etc.). Também formula,
para efeitos de “saber científico”, como deve ser feito o diagnóstico da morte,
a descrição dos fenômenos cadavéricos, dos estágios de putrefação e de-
composição do cadáver, e de cronologia da morte do corpo sem vida.
Retomando aquilo que descrevemos sobre o olhar anatomoclínico, é
somente com a abertura de cadáveres que a morte tomou seu lugar numa
tríade técnica e conceitual28: ela está no ápice do triângulo permitindo ao
médico ver e analisar as dependências orgânicas e as sequências patológicas
(Foucault, 1980). Daí a centralidade do cadáver nos casos que analisamos de
mulheres como Dona Rosa, Violeta, Camélia, Dália ou Margarida, e de como
esses corpos constituem uma via de acesso que permite à medicina ver “a
vida” e a “verdade” da doença, ou de como as lesões produzem uma espécie
de decalque do crime nos corpos dessas idosas.

constitui apenas 30% do movimento do Instituto. A maior parte do atendimento (70%) é dada
a indivíduos vivos, pessoas que foram vítimas de acidentes de trânsito, agressões, acidentes de
trabalho etc”. (http://www.polcientifica.sp.gov.br/institucional_superintendencia.asp).

28 A tríade técnica e conceitual de que fala Foucault (1980) é: a vida, a doença e a morte.
Contudo, não se trata mais da “velha continuidade das obsessões milenares que colocava, na
vida, a ameaça da doença e, na doença, a presença aproximada da morte” (p.165). Ao contrário, o
que o autor mostra é uma nova articulação entre esses termos, agora, mediante a imagem de um
triângulo. Um triângulo que tem em seu vértice superior a morte, que ilumina e pode desvelar
“tanto o espaço do organismo quanto o tempo da doença”. (Foucault, 1980, p. 165).

Fazer falar os pedaços de carne 199


O relatório de necropsia de Dona Rosa tem como efeito um corpo com
volume, orgânico e organizado em sistemas que são, por um lado, tomados
na contramão da figura de Botero e da ideia de pedaços de carne falantes. En-
tretanto, por outro lado levam às últimas consequências esse mesmo efeito
narrativo. No primeiro caso, a integralidade corpórea é mantida e visibilizada
pelo legista. As lesões espalhadas por toda a superfície do corpo, assim como
características físicas das vítimas, são narradas e anotadas detidamente nos
laudos necroscópicos. No segundo caso, ao mergulhar em direção à profun-
didade tissular do cadáver, os pedaços tornam-se protagonistas. Cabeças (em
especial, Pescoços), Tórax e Abdomens ganham autonomia e passam a falar
sobre meios e causas da morte.
Assim, tendo sido “vítima de homicídio em sua residência”, Dona Rosa
deu entrada no necrotério de Juiz de Fora no dia 19 de junho de 1995 às
16h, vestida com uma camisa de malha branca de mangas compridas, um
sutiã bege e uma blusa branca sobreposta, amarrada no punho direito. O
“cadáver” de Dona Rosa já apresentava naquele momento, com o avançar das
horas de sua morte, manchas avermelhadas, com o desenho reticulado das
veias, que permaneceram robustas e aparentes devido ao sangue acumulado
depois de cessada a circulação de seu corpo. A mancha esverdeada que se
alastrava por seu abdômen precisava as “48 horas” de sua morte. Assim, com
cabelos grisalhos e dentes ausentes, Dona Rosa “aparent[ava] a idade alega-
da”, 76 anos de idade.
Na pesquisa de Medeiros (2012), metade das necropsias realizadas pelo
IML do Rio de Janeiro não se transforma em inquérito policial. Em sua maio-
ria, trata-se somente de confirmar que o cadáver que deu entrada na ins-
tituição morreu de causas naturais e não por algum tipo de violência. Em
geral, esse tipo de caso diz respeito a idosos que, solitários, faleceram devido
a causas naturais em suas residências. Essa poderia ser a realidade de Dona
Rosa, Violeta, Dália, Margarida e Camélia, mulheres também idosas e soli-
tárias, não fosse pela reiterada nudez de seus corpos descrita com esmero
pelo legista, ou ainda pelos indícios de “tortura” ou “meio cruel” impingidos
às suas partes corpóreas: o fio que permaneceu preso no pescoço de Camé-
lia; os pulsos e tornozelos amarrados no caso de Dália. Por tudo isso, essas
idosas facilmente se transformaram em vítimas de “um contexto homicida”
“sem sombra de dúvidas”.
Esses mesmos efeitos narrativos vão sendo sobrepostos a cada nova
idosa que, sem vida, dava entrada ao Instituto Médico-Legal de Juiz de Fora.

200 Etnografia de documentos


Depois de serem removidas de “suas residências”, essas idosas tiveram as
características de suas vestes preenchidas à exaustão (“sutien de lycra bege”,
“camisa de malha de mangas compridas”, “camisola branca”, “calcinha íntima
de jersey bege”, “vestido estampado de cor rosa”). Feito isso, alguns legistas
seriam ainda mais detalhistas: deixariam ali, por descuido, tanto na lacuna
“Histórico”, quanto na lacuna “Descrição”, os sinais de sofrimento e avilta-
mento a que foram expostas essas mulheres.
Dona Margarida, “morta e nua”, foi vista dias antes viva e “morava so-
zinha”. Vestia apenas uma “camisa de algodão xadrez azul e vermelha”. Seu
“soutien bege” estava “abotoado”, mas levantado, o que deixava suas “mamas
descobertas”. Com as partes inferiores do seu corpo desnudas devido à “au-
sência de vestes”, não foi difícil perceber “as bolhas pelo corpo” e a “man-
cha verde” em seu abdômen, sinal do início adiantado de sua decomposição.
Também Dona Dália, encontrada morta “amarrada em cima de sua cama”,
teria sido vista três dias antes viva. Removida em “adiantado estado de pu-
trefação”, certificou-se o legista de relatar na lacuna “Exame Externo”, no
subtítulo “Genitália Externa (hímen nos casos indicados)”, o porquê dele não
proceder ao exame de conjunção carnal requisitado: “vulva, hímen e vagina
em adiantado estado de putrefação. Sem condições de exame de conjunção
carnal”.
Assim, é pelo mesmo mecanismo do detalhe que o legista deve pers-
crutar/investigar o corpo, sem, contudo, deixar saber aos leigos o “segredo”
guardado pela/na carne. Das “Descrições” e “Históricos”, somos enredados
em “Lesões Externas”. O corpo em sua integralidade é posto a “falar”. Como
nos antigos manuais de medicina, tratava-se de sentir “o cheiro da doença”,
aqui brincando com o próprio efeito de decomposição dos corpos dispostos
nas mesas de necropsia. Em se tratando do corpo desmanchando ou aquele
ainda quente, também é preciso “tocar”, “abrir”, “observar” e “analisar”. Os
técnicos de necropsia e os médicos-legistas estão nos laudos dessas “so-
litárias” senhoras, nos termos de Medeiros (2012), a meio caminho entre as
técnicas de “matar o morto” e aquelas que remetem a uma ideia de que ali
esses profissionais também estão “fazendo ciência”29.

29 Em sua pesquisa no IML do Rio de Janeiro, Medeiros (2012) nos conta sobre a necropsia
realizada em seis baleados de Manguinhos. Nessa seção, autora conta sobre os procedimentos
realizados pelo profissional Thiago, que, dando sequência às manipulações no cadáver de um
dos baleados, resolve “rebater o couro cabeludo” do morto sob a justificativa de que o cabelo, por
vezes, pode ocultar alguma lesão relevante. Contudo, ao realizar tal procedimento é perguntado

Fazer falar os pedaços de carne 201


Na contramão da escassez de descrições produzidas sobre os corpos de
mulheres como Joanas, Madalenas e Márcias, os laudos cadavéricos dessas
idosas parecem forjar um efeito narrativo excessivo em termos descritivos.
“Equimoses”, “escoriações”, “feridas contusas”, “protusões”, “deformidades”,
“hemorragias”, “olhos apodrecidos”, “corpos revestidos por larvas de mos-
cas”, “circulação póstumas de Brouardel”, “pele descolada do corpo”, “cortes
profundos” ganham precisões ainda mais técnicas. O sangue que ficou in-
crustado no corte; os centímetros de cada lesão, arranhão ou mancha de-
marcada na epiderme; suas formas e as marcas deixadas pelo processo de
pressão e contrição do objeto utilizado para provocar o trauma. Todas as
idosas apresentam inúmeras manchas roxas e avermelhadas em suas faces
e ao longo de seus corpos. Algumas, como Violeta, Dália e Margarida, ti-
veram descritos a pele que se descolava de seus corpos, o movimento de
distensão de suas línguas, o apodrecimento de seus olhos, o aumento do
volume de seus corpos pelos efeitos gasosos da decomposição, e, inclusi-
ve, a impossibilidade de descrição de suas partes genitais e de lesões que
dali poderiam ser evidenciadas. Ainda assim, mesmo “o exame ginecológico
se encontra[ndo] prejudicado pelo período gasoso de putrefação, [e] não se
notando equimoses internas”, a legista fez falar e deixou anotado no exame
de Dona Margarida a “presença de manchas de sêmen”. Fluido destacado por
ela em razão de seu “aspecto seco, brancacento, colado nas regiões crurais [na
região da coxa] e vulva”30. Entretanto, nada sabemos sobre possíveis análises
químicas das manchas secas e brancas encontradas pela médica. Também
no caso de Dona Rosa, a “Região Vulvar” é descrita com atenção por meio da
máxima: “ao exame macroscópico da região vulvar, observamos hiperemia, es-
coriações superficiais e fissuras, nos grandes lábios, pequenos lábios e vestíbu-
lo, compatíveis com prática de ato libidinoso. Sangramento na região vulvar”.
Saindo dos “Exames Externos” e dando continuidade às seções do lau-
do, uma nova rota é traçada. O corpo perscrutado em uma totalidade – da
face aos pés – é fragmentado e esquadrinhado através das “Lesões Internas”.

pelo colega de profissão que com ele realizava a perícia: “Vai fazer ciência agora?” (Medeiros,
2012, p. 69).

30 Vale ressaltar, que o relatório de necropsia realizado no cadáver de Dona Margarida foi
o único que teve como médica legista uma mulher. Ainda que não seja possível fazer uma
discussão mais detida a isso, parece interessante destacar que a mudança do legista que assina
o laudo produz uma mudança no conteúdo e nos efeitos narrativos do mesmo. As descrições
empreendidas pela médica legista são muito mais minuciosas, tanto em relação às vestes e sua
disposição, quanto às lesões, suas dimensões e fluídos encontrados.

202 Etnografia de documentos


Descrito à exaustão nas lacunas através de seus pedaços “Cabeça”, “Tórax”
e “Abdômen”, estamos em meio a bisturis, serras e instrumentos de corte. A
incisão “bimastoide vertical” rompe a pele e o couro cabeludo. A serra ma-
nual secciona os ossos cranianos. No pedaço “Cabeça”, surgem as lesões e
os traumas: “extensas hemorragias”, “sufusão hemorrágica”, “hematoma sub-
dural”, “fratura do osso da cabeça”. O bisturi, sem folga, segue sua incursão
pelos pedaços de carne. A incisão “mediana anterior” rompe o tórax até a
região pubiana e, no caso de Margarida, por meio de um corte “mento-pu-
biano” (que vai do queixo até seu ventre), aumenta a pele e as “partes moles”
que serão afastadas. Por meio do pedaço “Tórax”, o “corpo fala” ao legista.
Afastadas as costelas, através do “processo xifoide”, encontramos “hemorra-
gias”, “lesões traumáticas”, “fraturas”, “manchas de Tardieu nas pleuras vis-
cerais”, “coração com sangue escuro e muito fluído”. Resta ainda o pedaço
“Abdômen”, que, “examinado pela técnica de rotina”, encontrou, apenas em
Camélia, “lesões de interesse médico-legal”: “congestão do fígado e baço
com sangue de cor escurecida”.
Por fim, os legistas ainda fizeram aparecer um pedaço de carne, que
sem lacuna específica permaneceu descrito com destaque nas “Lesões Ex-
ternas”. Em letras garrafais, o pedaço “PESCOÇO” informa que “cordas de
algodão”, “fios condutores de eletricidade” ou “linhas argentinas” foram en-
contradas circulando a região cervical de Dona Violeta, Dona Camélia e Dona
Dália, com nós simples e “fazendo intensa constrição”.
Com vistas a dar um final às incursões cadavéricas realizadas aos cor-
pos dessas idosas, traçando um pontilhado entre o externo e o interno da
carne, os legistas, “diante dos dados colhidos durante a necropsia e dos re-
sultados, conclu[em]”: a morte de Dona Rosa “deu-se por traumatismo cra-
nioencefálico com hemorragia subaracnoidea e de tronco cerebral, devido à
agressão”. Violeta, assim como Dália, tem as causas de sua morte “indetermi-
nadas”. A morte de Margarida “se deu por hemorragia subdural secundária
e fratura de crânio devido a latrocínio, segundo consta”. Por fim, a morte de
Camélia “deu-se por asfixia mecânica devido a estrangulamento, num con-
texto homicida”.

Fazer falar os pedaços de carne 203


Entre “Prejudicados” e “Vide Conclusão”: tramando diferentes
(in)conclusões
“Esses casos vêm quase sempre precedidos da palavra ‘suposto’
em sua apresentação: ‘Suposto caso de defloramento...’, ‘suposta
tentativa de homicídio...’, ‘suposta cerebrorragia traumática cri-
minosa...’ etc. E concluem inevitavelmente com uma apreciação
da perícia anterior, onde se leem frases do tipo: ‘O exame de cor-
po de delito constante no documento que analisamos foi incom-
pleto, insuficiente e feito com preterição das regras fundamen-
tais admitidas em Medicina Legal (...)’”. (Corrêa, 1998, p. 123-124).

Gostaríamos de começar essas notas finais relembrado Nina Rodrigues.


Sem dúvida, a epígrafe coloca sob rasura boa parte dos exames de corpo
de delito que apresentamos nesse artigo. Falando sobre os laudos de cor-
po de delito formulado por “não especialistas”, Nina Rodrigues foi, segun-
do Corrêa (1998), um acusador implacável dos erros praticados por esses
“leigos” não “especialistas na matéria” (p.123), que durante um bom tempo
respondiam pela feitura desses exames periciais. Almejando exercer uma
“missão saneadora” desses “supostos” que reinavam entre os documentos de
corpo de delito, Nina Rodrigues fundava uma disciplina. Tratava-se de lim-
par dos laudos periciais a incompletude, a insuficiência e as análises feitas
com “preterição das regras fundamentais em Medicina Legal (...)”.
Em vista disso, um corte se faz necessário nos alinhavos finais que gos-
taríamos de tramar nessa reflexão. O termo (in)conclusos nos pareceu ex-
pressivo por nos permitir nuançar aquilo que na lacuna “Conclusão” o mé-
dico-legista depreende dos casos dos laudos acima apresentados. Mais do
que isso, ponderar quais dessas conclusões permitiram ao médico-legista
responder “com certeza” aos quesitos legais obrigatórios requisitados pela
autoridade policial e pelo Judiciário, tanto nos crimes de estupro, quanto nos
crimes de assassinato aqui analisados.
Os laudos de conjunção carnal/ato libidinoso acima apresentados mos-
tram que a clareza e a precisão exigidas pelos consagrados médicos-legistas,
como Rodrigues, mas também Peixoto e Freire, não foram concretizadas nos
termos almejados por eles. Sem dúvida, a inclusão de sinais de violência, a
detecção de gravidez ou a pesquisa de traços de esperma nas roupas e na
vagina, foram responsáveis diretos pela abertura de novos campos técnicos

204 Etnografia de documentos


de atuação da medicina legal31. Contudo, por contraste, o que boa parte da
bibliografia que tem discutido a violência sexual no Brasil32 ressalta é exa-
tamente a dificuldade de se provar a ocorrência do crime de estupro. Isso
porque para esses autores as marcas de violência são quase sempre invisí-
veis ou se perderam devido à demora da investigação da polícia. Segundo
Ardaillon e Debert (1987), o que se faz é um exame muito mais ginecológico
do que atento às marcas de violência espalhadas pelo corpo. Todavia, é mais
do que isso. Em entrevista com um médico-legista sediado no Núcleo de
Perícias em pessoas vivas de Campinas, o profissional é enfático em alertar
que, diante de um estupro ocorrido em mulheres que apresentam himens
roturados em “data não recente”, como é o caso de Madalenas, Márcias e Joa-
nas, é muito difícil visualizar algum tipo de lesão traumática que seja “com-
patível” com a violação. Perguntado sobre a possibilidade de inferir sobre
um estupro vivenciado por esse tipo de vítima, ele salienta: “É, você não vai
conseguir. Pode até encontrar vestígios se o cara não usou preservativo, mas
se o cara usou... já era!”Dessa forma, é de se notar o excesso de preocupação
com as áreas genitais (internos/externos e ânus) e com as mamas, em detri-
mento de áreas periféricas do corpo, descritas superficialmente. No caso de
mulheres como uma Joana, isso fica explícito pelos sinais de escoriações em
seu quadril esquerdo, os quais não foram registrados em fotos33 nem deta-
lhados por meio de descrições mais sistemáticas. O mesmo parece acontecer

31 Exemplos semelhantes podem ser encontrados na análise de autores como Ortega e


Zorzanelli (2010), quando falam da nossa crença de que as visualizações médicas – seja pela
história da anatomia, seja pela criação de novos instrumentos que permitem observar ou ver o
corpo em sua interioridade – mostrariam a matéria corpórea “assim como ela realmente é”. A
mesma crença nos faria pensar que é possível acessar a doença e, nós diríamos, as lesões, nos
casos de violência, como revelações autoevidentes.

32 Entre os trabalhos relevantes destacaríamos: Ardaillon & Debert (1987); Vargas (1997);
Coulouris (2004) e Vieira (2011).

33 Vale ressaltar que o uso de foto nos exames de corpo de delito é raro, independentemente
do caso de morte ou estupro a que se faça referência. Em nenhum dos casos acessados durante
nossas pesquisas vimos qualquer menção a esse tipo de recurso visual. Essa característica pode
ter a ver com a época na qual os relatórios de necropsia investigados aqui foram realizados
(no final da década de 1990), uma vez que outras pesquisas recentes em torno dos expedientes
técnicos e burocráticos realizados em corpos sem vida já salientam o sistemático uso de
máquinas fotográficas nas salas de necropsia. Sobre isso ver: Medeiros, 2012. Todavia, como se
constata nas entrevistas que realizamos, o ato de fotografar e o uso dessas imagens fica a cargo
do legista e de suas escolhas pessoais. Além disso, todos salientaram a não existência de um
banco de dados para armazenamento dessas fotos. Todas elas ficam com o legista, normalmente
nos computadores e celulares de uso pessoal.

Fazer falar os pedaços de carne 205


com uma Márcia. Diante de todo seu corpo, o médico-legista se detém so-
bretudo ao seu hímen, o qual, apresentando “rotura antiga”, acabou como
personagem principal do exame pericial, enquanto nada foi formulado sobre
o ato libidinoso alegado por ela e registrado no 3º Distrito Policial, que havia
requisitado e protocolado seu pedido de corpo de delito.
Em contraposição, o mesmo não parece acontecer com os relatórios
de necropsia. Esquadrinhados à exaustão, os corpos de Dona Rosa, Camé-
lia, Margarida, Violeta e Dália são descritos em sua integralidade. Tudo fica
anotado com precisão: as informações das vestes, a aparência dessas idosas
(cabelo, olhos, dentição, sexo e idade), o horário e a entrada de seus corpos
no necrotério, o histórico de onde e como seus corpos foram encontrados,
as horas contabilizadas desde a morte e os primeiros estágios de decompo-
sição a que estavam expostas. Seguem listando com rigor as lesões, feridas,
manchas avermelhadas e roxas e escoriações. Por meio de cortes e incisões,
sem rodeios órgãos, vísceras, cartilagens, ossos são analisados e descritos
em detalhes.
Em seguida, o legista condensa a um pedaço de carne, dentre essa so-
brecarga de informações anotadas e certificadas, a causa para a morte des-
sas idosas. Do corpo todo, milimetricamente perscrutado, quase sempre faz
aparecer a causa da morte. Para algumas o pedaço Cabeça é projetado: “trau-
matismo cranioencefálico, com hemorragia subaracnoidea e de tronco cere-
bral” ou “hemorragia subdural secundária à fratura de crânio”. Para outras é o
pedaço Pescoço que se destaca: “asfixia mecânica devido a estrangulamento”.
De forma distinta, diante de corpos em “adiantado estado de putrefação”,
como os de Dona Violeta e Dália, apresentam outras estratégias de conclu-
são. Em resposta à máxima “Diante dos dados colhidos durante a necropsia e
dos resultados colhidos” de forma intrigante afirmam: “concluímos que a morte:
deu-se por causa indeterminada”. Intrigante porque não só descrevem com
rigor a “corda de algodão” encontrada no pescoço de Dona Violeta e de Dona
Dália – “com cerca de 3 a 4 mm (milímetros), num comprimento de cerca de 110
cm (centímetros), com um nó simples fazendo intensa contrição do pescoço (a
corda circulava o pescoço num diâmetro de 7,5 cm)” –, como, curiosamente, na
caixa de texto “Outros” deixam entrever suas possíveis conclusões:
“devido ao adiantado estado de putrefação do cadáver, não foi pos-
sível verificar as lesões que traduzem asfixia mecânica (no caso,
enforcamento). Entretanto, a vítima poderia ter falecido momen-
tos antes da constrição do pescoço, devido ao intenso estresse

206 Etnografia de documentos


emocional sofrido. Mas com certeza tal constrição foi suficiente
para matá-la”. (Caderno de Campo).

Portanto, chama atenção uma espécie de jogo narrativo que tem seus
resultados já sabidos antes mesmo de terminado o ”tempo da necropsia”.
Ou seja, esses profissionais da polícia científica engatam as suas conclusões
àquilo que teria levado os corpos de Dona Rosa, Violeta, Dália, Margarida e
Camélia ao necrotério da cidade de Juiz de Fora. Estranguladas por “asfixia
mecânica” ou mortas por “traumatismo craniano”, as idosas têm, reiterado
nas conclusões de seus laudos periciais, que tais causas da morte se deram
“devido à agressão”, “devido a latrocínio segundo consta” e “num contexto ho-
micida”. Daí a impossibilidade de separar das conclusões médicas certifica-
das pelo legista, a requisição fornecida pelo Delegado de Polícia e enviada
junto ao corpo dessas idosas quando removidas de suas residências para as
mesas do necrotério de Juiz de Fora. Como aparece no caso de Dona Rosa,
o legista busca em suas conclusões expor em detalhes a causa médica que
teria levado a idosa a óbito: “traumatismo cranioencefálico com hemorragia
subaracnoidea e de tronco cerebral”. Mas, informado pelo contexto no qual a
vítima foi encontrada morta, seja por requisição ou pelo perito que esteve
no “local dos fatos”, o legista atrela a causa da morte àquilo que será em Juízo
formulado como a causa jurídica do óbito: “devido à agressão”. Como escla-
rece em entrevista o médico-legista sediado em Campinas:
“A causa jurídica do óbito, você precisa de alguns elementos que
nem sempre você encontra na hora da necropsia. (...) Um estran-
gulamento, por exemplo, você tem um fio, uma corda que passa
pelo pescoço e a força que age é uma força externa, não é o peso
do corpo como num enforcamento. Um estrangulamento você pode
ter tanto num contexto homicida, quando alguém vem e estrangula
uma pessoa, quanto você pode ter um estrangulamento acidental.
(...) Então, para isso você precisa lançar mão da perícia [do local,
das requisições encaminhadas, etc.]. (Entrevista realizada em 23
de janeiro de 2015).

Vistos à luz da necropsia dessas idosas, quando voltamos nossa atenção


aos laudos de Joanas, Márcias e Madalenas, outras considerações ganham
relevo. As conclusões da perícia se tornam curiosas, uma vez que dos corpos
estuprados dessas mulheres, as técnicas médicas legais existentes no Brasil34

34 Em entrevistas realizadas no primeiro semestre de 2011 com profissionais da Delegacia da


Mulher, todas as escrivãs responsáveis por um cartório foram unânimes em dizer que, ao longo
de dez anos (ou mais) de carreira, raras foram as vezes em que fizeram a requisição de material

Fazer falar os pedaços de carne 207


quase nada podem “escutar” sobre o estupro. Assim, focados nos himens e
roturas dessas mulheres, os legistas terminam em suas conclusões produ-
zindo um deslocamento entre a requisição do exame de corpo de delito e
a conclusão médica anotada e certificada. Ou seja, mesmo no caso de uma
Joana, em que o exame foi feito de forma indireta mediante prontuário clí-
nico, produzido apenas horas depois de seu estupro ter ocorrido, o legista
concluiu: “De acordo com os dados médicos fornecidos não temos elementos de
certeza que permitam afirmar ou infirmar ter ocorrido ato libidinoso”35. E na
lacuna “Descrição” certifica-se de indicar os motivos que o teriam levado a
tal conclusão:
“embora presença de fissura anal possa ser compatível com o his-
tórico, outras causas de etiologia não traumática, mas patológi-
cas, podem apresentar esse mesmo achado do exame”.(Caderno de
Campo).

Expostas suas conclusões, finalmente os legistas passam a responder os


quesitos obrigatórios. Quase sempre se apresentam a resposta “sim” quando
perguntados se “houve conjunção carnal” e permanecem enigmáticos quanto
à data de tais conjunções. Prolifera-se, assim, a imprecisa afirmação “não re-
cente” em resposta à questão. Além disso, mesmo depois de esquadrinharem,
descreverem e apresentarem nos documentos oficiais os himens dessas mu-
lheres, estes terminam por escolher o termo “prejudicado” em quase todos

de DNA colhido pelo CAISM. Em compensação, quando exigido por juízes, a lâmina foi enviada à
DDM por meio de carta endereçada à polícia, via correio, para então ser reenviada ao IML. Além
do tempo decorrido entre o início dos trâmites até o laudo emitido pelo IML, a lâmina enviada
era o único exemplar. Ou seja, qualquer tipo de extravio comprometeria irreversivelmente a
feitura do laudo. Também, as análises que exigem laboratório ou outras técnicas de detecção
como DNA ou fluidos corpóreos só são feitas em São Paulo. Isso significa que o Núcleo de Perícia
do IML de São Paulo recebe material para análise do estado todo. Além disso, em entrevistas
realizadas recentemente com médicos-legistas na cidade de Campinas, todos foram unânimes
em alegar a demora e a lentidão no envio dos resultados da maioria dos laudos periciais
concluídos pelo Núcleo de Perícia do IML de Campinas que exigem resultados fornecidos pelo
IML de São Paulo. Muitos salientaram que evitam requerer exames toxicológicos, patológicos
e de DNA porque acabam atados aos laudos que permanecem sem finalização em suas mesas.

35 Aos desavisados, essas formas de conclusão médica poderiam corresponder ao tipo de


hierarquização interna pelos quais crimes de estupro poderiam ser classificados: a diferença
entre crimes envolvendo desconhecidos e conhecidos, principalmente aqueles que têm o
espaço doméstico como cenário. Ou ao fato de atos libidinosos serem de difícil comprovação,
em grande parte pelas poucas marcas que alguns atos libidinosos como sexo oral, toques,
assédios, deixam no corpo físico. No entanto, nenhum dos casos acima pode ser associado às
histórias de Joanas, Márcias e Madalenas. Ambas foram estupradas por desconhecidos. Além
disso, tratava-se de crimes em série que tinham Ricardo Dias já reconhecido e preso.

208 Etnografia de documentos


os exames que realizaram quando buscam responder à pergunta “Era virgem
a paciente?”. O hímen do tipo “anular carnoso, orla baixa, óstio de média am-
plitude, apresentando rotura” não fala “nada” sobre a virgindade de uma Ma-
dalena, segundo os legistas que procederam e assinaram o seu laudo pericial.
Ou ainda, como no caso de mais uma dentre tantas Márcias – um dos laudos
periciais mais impactantes analisados nesse trabalho devido à tamanha pre-
cisão de entalhes, quadrantes e formatos de himens anotados e certificados
pelos legistas. Contudo, mesmo declarando que seu hímen apresentava “ro-
tura completa e cicatrizada”, os legistas mantiveram a resposta “Prejudicado”
para a pergunta “Era virgem a paciente?”.
Além disso, o termo “Prejudicado” se multiplica nas páginas desses lau-
dos. Por meio dessa terminologia, os médicos-legistas reafirmavam não sa-
ber determinar se do ato de violação resultou debilidades e incapacidades
permanentes, partos prematuros ou abortos. Também não tinham certeza
se “a vítima era alienada ou débil mental”36. Mas, na falta de certos marca-
dores etários37, nada podiam confirmar ou afirmar sobre “algo” que pudesse
ter impedido a resistência de Joanas, Madalenas ou Márcias. Nem a arma de
fogo, citada no “Histórico” de mulheres como uma Márcia, é contabilizada
como “causa” que possa ter “impossibilitado a vítima de resistir”. Ou seja, o
que se pode apreender desses casos é que, seja prática de rotina, seja por
entenderem que não há “elementos suficientes” que permitam uma resposta
assertiva ao quesito, a resolução escolhida através do termo “prejudicado” é
em si mesma (in)conclusa.
Nesse sentido, nos casos tramitados em Juiz de Fora outras (in)con-
clusões ganham cena, mas dessa vez nos laudos de necropsia. Questiona-
dos pelos quesitos finais e obrigatórios, os legistas são unânimes em afirmar
que “Sim”, “Houve morte”, e, em seguida, direcionar a causa da morte para
suas conclusões técnicas anteriores. Afinal, o termo “Vide conclusão acima”

36 A pergunta “7) É vítima alienada ou débil mental?” nem sempre é respondida pelo termo
“Prejudicado”. Nos casos analisados aqui, com exceção de uma Madalena, tanto uma Márcia,
quanto uma Joana tiveram tal termo anotado em resposta ao quesito obrigatório por lei.

37 Sem dúvida, ao contrastar esses laudos com alguns exames realizados em crianças, e
mesmo envolvendo as idosas personagens dos processos aqui investigados, fica evidente que a
idade é um marcador central no que diz respeito às convenções narrativas empreendidas nos
laudos periciais, independente do contexto local em que esses papéis oficiais foram redigidos
e oficializados. A “tenra idade” de certas crianças justificam a impossibilidade de resistirem ao
abuso (para ver mais: Nadai, 2013). Também, no caso de Dona Rosa, a crueldade foi atestada e
legitimada por meio da frase: “sim para meio cruel, considerando-se as lesões no corpo da vítima
e sua idade (76 anos)”.

Fazer falar os pedaços de carne 209


remete e certifica seu saber sobre a causa da morte, cifrando para leitores
leigos a resposta ao quesito 2, “Qual a causa da morte?”. A terceira pergunta,
“Qual instrumento ou meio produziu a morte?”, e o quarto e último quesi-
to – “A morte foi produzida com emprego de veneno, fogo, explosivo, asfixia,
tortura, ou outro meio insidioso ou cruel ou de que podia resultar perigo co-
mum?” – convocam os médicos-legistas a trazerem de volta ao relatório de
necropsia o corpo em sua integralidade. A resposta: “Sim para tortura pelo
espancamento e para cruel pelo ato libidinoso imposto a força”, no caso de
Dona Margarida, por exemplo, não coloca em evidência os pedaços de carne
nos quais a violência deixou marcas. Ao contrário, condensam em uma única
sentença as lesões e traumas infligidos a todo o corpo.
Em razão do quesito imputar ao legista a decisão a respeito de serem
os meios empregados insidiosos, cruéis ou torturantes, chama atenção que
aflore nas respostas um espaço possível para as idiossincrasias desses pro-
fissionais. Assim, foi o ato libidinoso imposto à força que atestou a crueldade
com que Dona Margarida foi morta, e o espancamento de seu corpo elemen-
to suficiente para se determinar a tortura. Fundamentado em outros senti-
mentos morais, o laudo de Dona Rosa afirma que sua morte se deu por meio
cruel, “considerando-se as lesões produzidas no corpo da vítima e sua idade
(76 anos)”. Dona Camélia, encontrada morta com um fio flexível de uma ex-
tensão de tomada elétrica circundando seu pescoço, teve a resposta sucinta
“sim para asfixia e para meio cruel”.
Nos laudos de Dona Violeta e Dona Dália, o legista faz aparecer pela pri-
meira vez, em resposta ao quesito 4, o termo “Prejudicado”, ainda que esses
mesmos profissionais tenham anotado com esmero as cordas que prendiam
os pulsos e pés de Dona Dália, e tenham salientado, também, que a causa da
morte de Dona Violeta pudesse ser fruto de um intenso estresse emocional.
É curioso notar que nenhuma dessas observações resultem em possíveis for-
mas de crueldade ou tortura para algumas idosas, mas resultem para outras.
No que se refere à resolução do terceiro quesito, nos casos de Dona
Rosa e Dona Margarida – mortas devido a traumatismo craniano – nova-
mente, as (in)conclusões se multiplicam nos laudos com a utilização do termo
“Instrumento contundente”. Tal afirmativa, ao mesmo tempo que responde
à pergunta exigida por lei, deixa a critério do leitor supor a que se refere o
adjetivo “contundente”. Também o laudo de Dona Camélia deixa a serviço do
leitor a correlação entre o “meio” e o “instrumento” que causaram sua morte.
Sua “asfixia mecânica” deu-se, segundo o legista, por “meio físico-químico”.

210 Etnografia de documentos


Mas nada é anotado em resposta ao quesito sobre a “extensão de tomada
elétrica” responsável pelo seu “estrangulamento”. Além disso, dessa vez no
caso de Dona Violeta, morta por “causa indeterminada”, o termo “prejudi-
cado” volta a aparecer como resposta nos laudos. O mesmo acontece com o
laudo de Dona Dália que, tendo a mesma causa da morte de Dona Violeta, faz
referência, outra vez, à ideia expressa pelo termo “prejudicado”. Mas agora
através da expressão equivalente “causa indeterminada”. Nesses dois últimos
casos, marcados pela decomposição dos corpos, o que se pode notar é a ên-
fase reiterada da impossibilidade de se observar. Em ambas “vulva, hímen e
vagina [estavam] em adiantado estado de putrefação”. Dessa forma, de acordo
com os legistas, não havia “condições de exame de conjunção carnal”. O laudo
de Dona Violeta é ainda mais emblemático, pois, além do exame de conjun-
ção carnal, em seu “cadáver não foi possível verificar as lesões que traduzem
asfixia mecânica (no caso, enforcamento)”.
Por fim, uma última observação merece destaque. Ela diz respeito aos
exames laboratoriais e anatomopatológicos38. Dona Camélia teve lesões
constatadas em suas pleuras viscerais e no seu coração, enquanto Dona Dá-
lia não teve nenhuma hemorragia ou lesão dos órgãos internos observadas.
Todavia, apenas as vísceras da segunda foram mandadas ao laboratório para
“Exames Complementares”. Resultado esse discriminado em uma folha sepa-
rada em texto corrido. Quanto a Dona Camélia, seu sangue foi colhido com
o “lavado vaginal com solução salina”, os quais foram remetidos à delegada
responsável pelo caso por meio de ofício. Dona Rosa, Dona Margarida e Dona
Violeta não tiveram “Exames Complementares” realizados ou documentados.

Considerações finais
Iniciamos este artigo visando comparar duas convenções narrativas. A saber,
os documentos de corpo de delito em casos de estupro e ato libidinoso, e os
relatórios de necropsia em casos de latrocínio, ambos em contextos seriais.

38 Também nos casos de estupro e atentado violento ao pudor de Madalenas, Joanas e Márcias,
há uma lacuna a ser preenchida pelos possíveis exames complementares. Contudo, raras vezes
esses exames são pedidos. E quando o são, não foram sequer descritos, muito menos tiveram
suas cópias anexadas ao inquérito policial, que permanece nos arquivos da DDM.

Fazer falar os pedaços de carne 211


Inspiradas pela fala da legista Megan Hunt, personagem da série Body of
Proof39, acreditávamos que seria função do médico-legista extrair do corpo
morto e/ou vivo “elementos” conclusivos sobre os motivos que levaram à
morte Dona Rosa (e outras idosas) e uma Madalena (bem como outras tan-
tas mulheres) ao IML para serem submetidas a exame clínico. O diálogo
entre Dra. Hunt e o detetive Bud Morris, elucida parte do imaginário que
carregávamos:
“As respostas estão aqui. É o que nós fazemos. Honro o corpo,
pelo que ele me revela da vida dela [a vítima] e como chegou ao
fim. O corpo é a prova. Será revelado o que precisa, se tiver pa-
ciência para olhar” (Body of Proof, Episódio 1, tradução livre).40

Ingenuamente, mirávamos nossas apostas para uma ideia de conclusão


na qual o legista iria, a partir de um corpo, produzir um laudo pericial oficial,
cujo objetivo seria fazer falar a materialidade do crime (“o corpo é a prova”)
e indicar uma possível autoria para o mesmo. Na cena de Body of Proof da
qual retiramos a fala de Hunt, é possível ver presentes na sala de necropsia
e no cotidiano daquele departamento, detetives de polícia, um investiga-
dor médico-legal (cuja função é fotografar o corpo, mas também o local em
que o mesmo foi encontrado) e, finalmente, completando a equipe, outros
médicos-legistas especializados em técnicas laboratoriais (análises químicas
e anatomopatológicas).
No Brasil, no entanto, de acordo com as entrevistas realizadas com os
profissionais no IML de Campinas, e também pelo acompanhamento de pa-
lestras com peritos criminais e médicos-legistas, fica evidente a desconexão
presente no cotidiano de trabalho dessas instituições. Ou seja, se um cri-
me ocorre na cidade, teoricamente, deve ser mandado ao “local dos fatos”,
o delegado, um perito criminal sediado no Instituto de Criminalística e um
funcionário responsável pela remoção do cadáver ao IML (que não é o médi-
co-legista). Cada um desses profissionais fará seu relatório de investigação.

39 A série conta a história de uma renomada neurocirurgiã americana, que após sofrer um
acidente de carro, passa a ter uma sequela motora de diagnóstico desconhecido. Não podendo
mais realizar cirurgias devido aos tremores constantes de suas mãos, a personagem assume
um cargo como médica-legista em sua cidade. Produzida em 2011 pela ABC Studios, a série teve
três temporadas, com aproximadamente vinte episódios cada. No Brasil ela foi transmitida pelo
canal AXN.

40 Na cena Dra. Hunt começava uma minuciosa descrição do corpo de uma possível vítima
de homicídio encontrada em um rio com uma lesão na cabeça. O diálogo foi em resposta à
obsessão do policial Bud Morris por qual teria sido a possível arma do crime.

212 Etnografia de documentos


Entretanto, nada os obriga a trocarem informações, a não ser alguma mo-
tivação individual. No final, segundo um dos nossos entrevistados, um in-
quérito policial será produzido juntando “as peças do quebra-cabeça”, cujo
destino será o Judiciário.
Dessa maneira, o que podemos apreender é que, se nos casos de estu-
pro e ato libidinoso a perícia produz conclusões sobre o observado no corpo
das vítimas, isso não se transforma necessariamente em uma resolução so-
bre a materialidade do crime – a conjunção ou qualquer outro ato libidinoso
mediante violência ou grave ameaça –, ou, então, sobre a autoria do mesmo.
Nada pode ser imputado a Ricardo Dias por meio das lesões e fluidos revela-
dos pelos pedaços de carne de Madalenas, Joanas e Márcias.
Por outros expedientes técnicos, nos casos de latrocínio, a perícia é
contundente em determinar a materialidade do crime que está nos corpos
e nos seus pedaços – as cordas de algodão, os fios de extensão elétrica, as
feridas e lesões evidentes, em especial no pedaço “Pescoço”. Basta “ser ca-
paz de olhar”. No entanto, ao fazê-lo, o legista dá sobrevalor à causa médica
do óbito, deixando apenas indicado, “segundo consta”, que Dona Rosa, Dália,
Violeta, Margarida e Camélia foram vítimas de um “homicídio”. Quanto à au-
toria, assim como nos casos de estupro, nada pode ser dito. Não há fluidos,
digitais ou material genético que relacione o Maníaco Matador de Velhinhas
à tortura e ao sofrimento físico e sexual vivido por essas idosas.
Talvez seja preciso pensar: o que terminamos por inferir quando usa-
mos a palavra (in)conclusão? Iniciamos a primeira seção deste artigo, “Como
falar dos ‘corpos’ e de seus pedaços: dissecando documentos oficiais”, lan-
çando luz ao caráter necessário e obrigatório da feitura de um laudo de cor-
po de delito quando da “infração resultar vestígios”. Os casos aqui apresen-
tados respondem exatamente a esse princípio normativo estabelecido pelo
Código de Processo Penal de 1941. Dessa maneira, diante da comunicação
das infrações/crimes de estupro/ato libidinoso e homicídio, os delegados
responsáveis requisitaram os exames periciais adequados. Esses papéis ofi-
ciaisforam “fabricados” no Instituto Médico-Legal de Campinas e de Juiz de
Fora e passariam a ter, dali por diante, uma forma material tanto na Polícia
Técnico-Científica, quanto na Polícia Civil e no Judiciário.
Ao dizermos que esses documentos resultam em (in)conclusões, esta-
mos buscando enfatizar que a “não conclusão” é por si só uma produção
de vestígios. Ou seja, não há em (in)conclusão uma ideia de falta. Ao con-
trário, o termo busca inferir exatamente o que resulta do contraste entre a

Fazer falar os pedaços de carne 213


documentação forjada por meio de corpos vivos e estuprados e aquela fabri-
cada a partir das salas de necropsia. É somente nesse processo de espelha-
mento e comparação que o termo (in)concluso ganha força e rentabilidade
analítica. Esses papéis terminam dizendo que a conclusão possível “do visto e
observado” é, justamente, a inconclusão. Nesse sentido, uma forma narrativa
particular é posta em prática por meio desses expedientes administrativos
nos quais os “vestígios” referentes a crimes de estupro/atentado violento
ao pudor e homicídio serão convertidos em “segundo o observado”, “o visto”,
“nada podemos afirmar ou infirmar”, “vide conclusão acima” ou “prejudicado”.
Essas serão as fórmulas narrativas usadas pelos Institutos Médico-Legais de
Campinas e de Juiz de Fora para documentar vestígios.
Por fim, o termo (in)conclusos também não carrega em si a ideia de ine-
ficiência nem de impunidade. O Maníaco Matador de Velhinhas está preso.
Ricardo Dias também. Com a cena protagonizada por Megan Hunt, podería-
mos supor que do corpo teria sido “revelado” tudo aquilo que é preciso saber
sobre o crime e aquele que o cometeu. Mas o que fica evidenciada com os
casos aqui analisados é outra realidade. Diferente das séries policiais ame-
ricanas, o que marca a Polícia Civil, o Instituto Médico-Legal, o Instituto de
Criminalística e o Judiciário no Brasil é a segmentação do serviço realizado
por essas instituições. No final das contas, os laudos de corpo de delito pro-
duzidos pelos Institutos Médico-Legais de Campinas e de Juiz de Fora são
apenas uma das peças de toda uma engrenagem que, nos termos de Corrêa
(1983), transforma “atos em autos”.

214 Etnografia de documentos


Referências bibliográficas
ANTUNES, José Leopoldo Ferreira. Crime, sexo e morte: avatares da Medicina no Bra-
sil. 1995. Tese (Doutorado em Sociologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo,1995.

ARDAILLON, Danielle; DEBERT, Guita. Quando a vítima é mulher. Brasília: Conselho


Nacional dos Direitos da Mulher, 1987.

BRASIL. Código Penal Brasileiro: Decreto-Lei nº 2848 de 07 de dezembro de 1940. 4a. ed.
São Paulo/SP: Saraiva, 1998.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Institui o Código Processo Penal


Brasileiro. Brasília, DF: Presidência da República, [1941]. Disponível em: . http://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm.

CORRÊA, Mariza. Antropologia e medicina legal: variações em torno de um mito. In:


Caminhos Cruzados: linguagem, antropologia e ciências naturais. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1982.

CORRÊA, Mariza. Morte em família: representações jurídicas de papéis sexuais. Rio de


Janeiro: Edições Graal, 1983.

_____. As ilusões da liberdade: a Escola Nina Rodrigues e a antropologia no Brasil. Bra-


gança Paulista: Universidade São Francisco, 1998.

COULOURIS, Daniella Georges. A construção da verdade nos casos de estupro. In: En-
contro Regional de História ANPUH/SP, 27., 2004, Campinas. Anais […]. Campinas:
Unicamp, 6-10 set. 2004. Disponível em: http://www.cfemea.org.br/pdf/constru-
caodaverdade_daniellacoulouris.pdf.

DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

DUARTE, Luís Cláudio. Representações da virgindade. Cadernos Pagu, Campinas, n.14,


p. 149-179, 1999.
FÁVERO, Flamínio. Tratado de medicina legal. 5a. ed. Editora Martins, 1954. v. 2.

FERREIRA, Letícia Carvalho de Mesquita. Uma etnografia para muitas ausências:


o desaparecimento de pessoas como ocorrência policial e problema social. 2011. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.

_____. Dos autos da cova rasa: a identificação dos corpos não-identificados no Instituto
Médico-Legal do Rio de Janeiro, 1942-1960. Rio de Janeiro: E-papers: Laced/Museu
Nacional, 2009.

FOUCAULT, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Editora Forense Univer-


sitária, 1980.

_____. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

_____. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro. Edições Graal,


1988.

Fazer falar os pedaços de carne 215


GREGORI, Maria Filomena. Prazeres perigosos: erotismo, gênero e limites da sexua-
lidade. 2010. Tese (Pós-doutorado em Livre-Docência) – Universidade Estadual de
Campinas–, Campinas, 2010.

NADAI, Larissa. Descrever crimes, decifrar convenções narrativas: uma etnografia en-
tre documentos oficiais da Delegacia de Defesa da Mulher de Campinas em casos de
estupro e atentado violento ao pudor. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia
Social) – Universidade Estadual de Campinas–, Campinas, 2012.
MEDEIROS, Flavia. “Matar o morto”: a construção institucional dos mortos no Instituto
Médigo-Legal do Rio de Janeiro. 2012. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social)
– Universidade Federal Fluminense, 2012.

RAGO, Margareth. O corpo exótico, espetáculo da diferença. In: Labrys – Études Fé-
ministes/Estudos Feministas, 2008. Disponível em: http://www.tanianavarroswain.
com.br/labrys/labrys13/perspectivas/marga.htm.

SALLA, Fernando, MARINHO, Maria Gabriela S. M. C. Medicina Legal e perícias mé-


dicas em processos criminais. Constituição de saberes e aplicação de procedimentos
médico-legais. Campo, personagens e práticas periciais: São Paulo e Bragança (1890-
1940). In: Encontro Regional de História: Poder, Violência e Exclusão, 19., 2008, São
Paulo. São Paulo: USP, dez. 2008.

VARGAS, Joana Domingues. Fluxo do sistema de justiça criminal para crimes sexuais:
a organização policial. 1997. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas, Unicamp, Campinas, 1997.

VIEIRA, Miriam Steffen. Categorias jurídicas e violência sexual: uma negociação com
múltiplos atores. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2011.

VIGARELLO, Georges. História do estupro: violência sexual nos séculos XVI-XX. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.

216 Etnografia de documentos


Sobre os autores

Cilmara Veiga é doutoranda CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento


Científico e Tecnológico) do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre em Antropologia
Social pela mesma instituição. Suas principais áreas e temas de atuação e pes-
quisa são gênero, sexualidade, violência, crimes seriais e práticas estatais e de
documentação.

Claudia Fonseca é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia


Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Doutorado em An-
tropologia (Idaes) da Universidad Nacional de San Martín, naArgentina.  Seus
interesses de pesquisa incluem parentesco, gênero, antropologia do Direito e
Estudos de Ciência e Tecnologia.

Gustavo Onto é pós-doutorando PNPD-CAPES do Programa de Pós-Graduação


em Sociologia e Antropologia (PPGSA-IFCS) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Pesquisador do Núcleo de Cultura e Economia (NuCEC, www.nucec.net)
da UFRJ e pesquisador visitante da Copenhagen Business School (Dinamarca).
Membro do Núcleo de Estudos Comportamentais (NEC) da Comissão de Valores
Mobiliários (CVM-MF). Atua principalmente nas seguintes áreas: antropologia
da regulação (e política) econômica, antropologia dos mercados e do dinheiro,
antropologia do Estado, antropologia da ciência e conhecimento.

Juliana Farias é cientista social formada pela Universidade do Estado do Rio de


Janeiro (UERJ). Atualmente realiza pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Gê-
nero PAGU/Unicamp, com bolsa Fapesp (processo nº 2017/17910-0, Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Assina, em coautoria com Natasha
Neri, roteiro e argumento do documentário Auto de resistência (2018).

Larissa Nadai é pós-doutoranda na Fundação de Amparo à Pesquisa do Es-


tado de São Paulo (Fapesp) do Programa de Pós-Graduação em Antropologia

Fazer falar os pedaços de carne 217


Social da Universidade de São Paulo (USP). É Doutora em Ciências Sociais e
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (Uni-
camp). Também atua como Pesquisadora do Núcleo  de Etno-História da USP
e pesquisadora colaboradora do Ateliê de Produção Simbólica e Arte (APSA) da
Unicamp. Seus principais campos de atuação e pesquisa são gênero, sexuali-
dade, práticas estatais e poder político, ordenamentos jurídicos e processos de
documentação e arquivamento.

Laura Lowenkron é antropóloga, professora adjunta do Instituto de Medicina


Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ) e pesquisadora
do Centro Latino-americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM). Pos-
sui mestrado (2008) e doutorado (2012) em Antropologia Social pelo Museu
Nacional/UFRJ e pós-doutorado pelo Núcleo de Estudos de Gênero PAGU, da
Unicamp (2015). Tem atuado nos campos dos estudos de gênero e sexualidade
e da Antropologia do Estado, tendo experiência com etnografias de instituições
e de documentos a partir de pesquisas sobre os seguintes temas: violência
sexual, infância/menoridade, pedofilia e tráfico de pessoas. É autora do livro
«O Monstro Contemporâneo: a construção social da pedofilia em múltiplos pla-
nos», publicado pela EdUERJ (2015).

Letícia Ferreira é professora adjunta do Departamento de Antropologia Cultural


(DAC) e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA)
da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Dedica-se a pesquisas no
campo da antropologia do Estado, privilegiando os seguintes temas: documen-
tos e burocracia; inscrição política de grupos e problemas sociais; formalidades
e moralidades.

Natália Corazza Padovani é pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero


Pagu, UNICAMP e professora colaboradora dos Programas de Pós-Graduação em
Ciências Sociais e Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas.
Sua pesquisa em andamento enfoca fluxos transnacionais relacionados ao
mercado transnacional de drogas, egressas/os “estrangeiras/os” e imigrantes
egressos dos sistemas prisionais de São Paulo e da Catalunha. Tem desenvol-
vido pesquisa em penitenciárias femininas desde 2003. Orienta trabalhos de
graduação e pós-graduação que estejam na interface dos estudos de gênero,
afetos, governamentalidade, transnacionalidade, prisões, processos de Estado,
documentos.

218 Etnografia de documentos

Você também pode gostar