Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
HISTÓRICOS
CAPÍTULO 4 - COMO ESCREVER A
HISTÓRIA?
Emilly Joyce Oliveira Lopes Silva
INICIAR
Introdução
Agora, é hora de aprender mais sobre a escrita da História. Quais são as fontes
usadas pelos historiadores em suas pesquisas? De que forma essa narrativa é
construída? Quais eventos do passado podem ser contados pelo historiador? E o
mais importante, quais estratégias permitem que a História seja considerada como
uma forma de conhecimento válido?
O conhecimento histórico recorre às fontes, ou seja, aos vestígios deixados pelo
passado para se legitimar. Esse é um dos principais fatores que o difere de outras
formas de narrativa, como o mito ou o romance.
Além disso, a História se refere a fatos, mas isso não corresponde a tudo o que
aconteceu. Quem escreve a narrativa histórica precisa fazer recortes, seleções sobre
o que irá contar. Tal procedimento nunca é neutro; ele é marcado por decisões e
posicionamentos que passam pelo crivo do historiador.
No entanto, a metodologia de produção do conhecimento histórico não é mera
interpretação. É preciso que esse modo de conhecer a realidade seja pautado pela
crítica e pelo rigor. Na prática, isso significa que a História não é uma ciência
opinativa. Cabe ao historiador amarrar, de forma coerente, argumentos e
intepretações acerca do passado com os sinais que permaneceram com o passar do
tempo. Para tanto, existem diferentes fontes e métodos que podem ser utilizados,
dependendo do que você pretende narrar e de que maneira.
No decorrer deste capítulo, buscaremos falar um pouco mais sobre cada um desses
pontos e, na medida do possível, responder às questões que deram início a este
capítulo. Boa leitura!
Figura 1 - A análise cuidadosa dos documentos é uma das tarefas mais importantes para o historiador.
Fonte: Kirill Smirnov, Shutterstock, 2018.
Todavia, essa relação com as fontes mudou tanto quanto as concepções de História.
A seguir, veremos como a diferenciação entre documento e monumento foi
compreendida no decorrer do tempo.
Tabela 1 - Tabela das principais instituições arquivísticas e seus documentos. Fonte: BACELLAR, 2005, p.
26.
Como você pode perceber, a lista feita por Carlos Bacellar (2005), destaca as
principais fontes documentais que você encontrará nos arquivos. Existem muitas
outras, é claro, mas as listadas nos dão um bom panorama acerca do tipo de
documento a ser utilizado na produção histórica.
VOCÊ SABIA?
A paleografia é um estudo complementar à História de suma importância. O termo “paleo” significa
antigo, enquanto “grafia” se refere a escrita. Dessa forma a paleografia consiste no estudo de escritas
antigas. De acordo com Marcelo Siqueira, a função do paleógrafo é “transformar a letra, a grafia, a
abreviatura, incompreensível aos nossos olhos, numa grafia atual, para que as pessoas possam ter
acesso ao conteúdo daquela informação” (ARQUIVO NACIONAL, 2017).
Ao longo de sua formação e também na prática profissional você lidará muitas vezes
com fontes documentais como as mencionadas acima. Além das fontes escritas,
existem também outras modalidades, promovidas pela Nova História, que tornam o
conhecimento histórico mais complexo e representativo.
Figura 3 - Impérios africanos, como Mali, perderam muito de sua história escrita com o processo de
colonização, restando apenas as fontes materiais, como é o caso da Mesquita de Djnné, em Saba. Fonte:
Michele Alfieri, Shutterstock, 2018.
Figura 4 - O selo em homenagem a Pedro Álvares Cabral nos lembra da chegada dos portugueses em
1500 como um fato histórico. Fonte: neftali, Shutterstock, 2018.
O segundo ponto observado por Carr (1982) em relação ao senso comum sobre o
fato histórico é a falsa ideia de que os fatos falam por si sós. Na perspectiva do autor,
é somente quando alguém olha para esses eventos do passado que eles se
transformam em fatos. Assim, a chegada dos portugueses ao Brasil, em 1500, não é
por si um fato; ele passou a ser considerado como tal a partir do momento que uma
pessoa, ao olhar para o passado, deu a esse evento o caráter de importância
histórica. A sua chegada em casa ontem, depois do trabalho, também aconteceu no
passado, mas dificilmente terá a mesma relevância para o estudo da História que o
episódio do “descobrimento”, conforme a historiografia brasileira. Aqui, temos uma
importante distinção, pois, como foi dito anteriormente, nem todos os eventos do
passado são abordados pela narrativa histórica. Nas palavras de Carr (1982, p. 39):
“os fatos falam apenas quando o historiador os aborda: é ele quem decide quais os
fatos que vêm à cena e em que ordem ou contexto”.
VOCÊ O CONHECE?
Paul Veyne é um arqueólogo e historiador francês, conhecido por suas produções no âmbito da História
Antiga. No livro Como se escreve a história (1998), ele reforçou o caráter narrativo da História,
aproximando-a da literatura. Porém, após entrar em contato com as teorias de Foucault, Veyne reviu
muitas de suas ideias. Vale a pena conhecê-lo mais!
O que deve ficar claro, portanto, é que os fatos não são apenas os eventos
comprovados do passado; mais do que isso, sua existência depende das decisões de
quem vai contar a História.
Com esse panorama mais geral, você deve ter percebido que os fatos históricos são
bem importantes para o estudo da História, mas não podemos nos prender ao senso
comum quando tratamos do tema. Um jornal, ao noticiar um acontecimento de
forma neutra, pode atestar que aquilo é um fato incontestável. Todavia, Edward H.
Carr (1982) nos alerta: todo jornalista sabe que a melhor forma de convencimento é
a seleção e disposição adequada de alguns fatos. Vemos isso o tempo todo, seja na
internet, nas notícias de TV ou mesmo nos livros de História. Por isso, é fundamental
o olhar crítico para tudo aquilo que é apenas tomado como fato.
Figura 5 - O trabalho do historiador guarda profunda relação com a função do detetive. Fonte: Dvo,
Shutterstock, 2018.
Assim, o método proposto se relaciona com o trabalho de detetive, pois se centra
nos detalhes para compreender uma situação complexa. A imagem de um detetive,
inclusive, é ótima para a compreensão do trabalho do historiador. Segundo Marc
Bloch (2001), farejamos tudo aquilo que é humano. Seguimos por essa intuição de
que os assuntos relacionados aos homens e mulheres do passado importam.
Coletamos vestígios, rastros, sinais, para depois dar a eles um sentido narrativo. Por
isso, a escrita da História requer crítica, como veremos no próximo tópico.
VOCÊ SABIA?
Langlois e Seignobos pertenciam à chamada Escola Metódica. Assim como os positivistas, esta
corrente defendia, no século XIX, a História como ciência. Para tanto, era necessário método preciso
e a neutralidade de quem pesquisa em relação ao objeto. Mesmo contribuindo enormemente para o
que hoje conhecemos como História, muitos aspectos defendidos pelos metódicos são hoje
duramente criticados como, por exemplo, a imparcialidade do historiador.
Figura 6 - De acordo com Langlois e Seignobos, o trabalho histórico se diferencia do químico porque o
pesquisador de História não pode observar seu material de estudos em um laboratório. Fonte:
Macrovector, Shutterstock, 2018.
não é comum aceitarmos, na vida de cada dia, com indiferença, sem qualquer
verificação, informações anônimas e sem garantias, espécies de
"documentos" de medíocre ou de mau quilate? Uma razão especial é
necessária para nos darmos ao trabalho de examinar a procedência e o valor
de um documento de história de ontem; muito ao contrário, a não ser que
haja uma inverossimilhança que toque às raias do escândalo e desde que o
documento não seja contraditório, nós o absorvemos, dêle nos apropriamos
e apregoamo-lo aos quatro ventos, aformoseando-o segundo as
necessidades (LANGLOIS; SEIGNOBOS, 1946, p. 48).
E não fazemos isso, realmente, com grande frequência? Com que frequência
verificamos as informações enviadas naquela mensagem do Whatsapp? Ou o que foi
postado por um amigo nas redes sociais? No cotidiano, não fazemos esse exame
crítico, como podemos fazê-lo? Na perspectiva da crítica histórica, esse deve ser um
exercício constante; é preciso duvidar o tempo todo, procurar outras informações,
entrecruzar os dados obtidos nas fontes com o que já foi produzido sobre o tema.
A afirmação de Prost (2008) em relação à crítica, qual seja, a de que ela serve para
educar o olhar do historiador em relação a suas fontes, revela a importância da
mesma para o método histórico. Além disso, a análise do autor mostra como o olhar
crítico é importante não apenas para os documentos escritos, como afirmavam
Langlois e Seignobos (1946), mas também para outras fontes, como é o caso das
imagens. Uma fotografia que, num primeiro momento, pode ser vista como uma
representação inequívoca da realidade, também pode, a partir do exame crítico,
revelar suas múltiplas construções. Assim, nenhuma fonte está isenta da
necessidade do crivo da crítica histórica.
Ainda sobre a relação entre fontes e a crítica histórica, Marc Bloch (2001) traz uma
observação importante entre fontes voluntárias e involuntárias. Essa distinção se
relaciona com o método crítico na medida em que exige, por parte de quem analisa
as fontes, um olhar mais cuidadoso. Segundo Bloch, os documentos utilizados pelos
primeiros eruditos eram, geralmente, produções que contavam, de forma
deliberada, sobre alguns eventos ou acontecimentos. Como exemplo, o autor fala
dos relatos do Êxodo ou dos livros qualificados de “mosaicos”, que supostamente
foram escritos por Moisés. Diante dessas fontes, o historiador ficava limitado a
verificar a veracidade do que foi narrado ou da autoria dos escritos. Com a
ampliação no uso de fonte involuntárias, ou seja, dos testemunhos produzidos sem
a intenção de registrar o que aconteceu, houve uma mudança: “à medida que a
história foi levada a fazer dos testemunhos involuntários um uso cada vez mais
frequente, ela deixou de se limitar a ponderar as afirmações [explícitas] dos
documentos. Foi lhe necessário também extorquir as informações que eles não
tencionavam fornecer (BLOCH, 2001, p. 95).
Dessa forma, a crítica histórica defendida por Bloch (2001) pode ser mais
abrangente que a de Langlois e Seignobos (1946), mas os dois trabalhos defenderão
a necessidade de uma análise acurada das fontes. No próximo tópico, discutiremos
um caso que poderá auxiliar na compreensão do método crítico.
CASO
Protocolo dos Sábios de Sião
Documentos forjados são bastante comuns em grupos que disseminam ódio. O que hoje alguns
definem como pós verdade (estratégia onde, para dirigir a opinião pública, não importa mais a
veracidade do fato, mas a conveniência da informação e o apelo emocional) é uma forma de
justificar ataques à grupos, gêneros, etnias. Hoje é comum se ver notícias falsas sobre muçulmanos,
judeus, LGBTS e até sobre nós historiadores. Um dos casos mais emblemáticos do estrago que um
documento forjado é capaz de fazer para a sociedade é o famoso Protocolo dos Sábios de Sião. O
documento foi forjado, até onde se sabe, na Rússia em 1903, como forma do Czar Nicolau II perseguir
inimigos políticos. Posteriormente, o protocolo foi divulgado por Henry Ford e apropriado pelos
nazistas, mesmo sendo atestada a sua falsidade na época – partes foram plagiadas do livro Diálogo
no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu de 1864 (GINZBURG, 2007). Hoje, esse documento
comprovadamente falso, ainda é usado por diversos grupos. Será que faz sentido, do ponto de vista
da História, trabalhar com este documento?
Síntese
Concluímos os estudos sobre a escrita da História. Vimos quais são as fontes usadas
pelos historiadores e como a narrativa é construída. Além de perceber quais os
pontos permitem que a História seja considerada como uma forma de
conhecimento válido, recorrendo às fontes, ou aos vestígios deixados pelo passado.
Referências bibliográficas
ARQUIVO NACIONAL. Paleografia, o que é? 23 de junho de 2017. Disponível em:
<http://www.arquivonacional.gov.br/br/ultimas-noticias/475-paleografia-o-que-
e.html (http://www.arquivonacional.gov.br/br/ultimas-noticias/475-paleografia-o-
que-e.html)>. Acesso em: 17/02/2018.
BACELLAR, C. Fontes documentais: uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, C. B.
(Org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005.
PATAI, D. História oral, feminismo e política. São Paulo: Letra e Voz, 2010.