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FONTE ORAL: UMA FERRAMENTA A SERVIÇO DA

HISTORIOGRAFIA CONTEMPORÂNEA

MÁRIO SÉRGIO DEINA*

1 . INTRODUÇÃO
O presente artigo tem por finalidade efetuar uma reflexão acerca das possibilidades
da utilização de fontes orais como ferramenta de pesquisa histórica, seus usos e técnicas a fim
de que dela se possa extrair a informação, senão precisa, pelo menos aproximada da realidade
de fatos históricos que, pelas circunstâncias, pelos locais, pelo ambiente ou pelo
distanciamento temporal, não produziram fontes materiais, como as documentais,
cartográficas, fotográficas, iconográficas, arqueológicas ou outras usadas tradicionalmente na
pesquisa histórica ou, se as produziram, foram perdidas ao longo do tempo.
Porém a fonte histórica oral não precisa necessariamente ser utilizada apenas quando
da verificação de ausência total de outras possibilidades. Pode, e é bastante frequente, que
historiadores lancem mão da oralidade como forma complementar de elucidar um
determinado acontecimento, utilizando o relato oral como fonte para desvendar algum aspecto
do fato cujas demais fontes não deram conta de elucidar de forma plena ou definitiva.
Trata-se de uma metodologia utilizada por pesquisadores das mais variadas áreas das
Ciências Humanas, que tem como finalidade básica a produção de fontes para pesquisa,
conforme afirma Verena Alberti1 em “Fontes Orais: Histórias Dentro da História” 2,
O trabalho com a História oral se beneficia de ferramentas teóricas de diferentes
disciplinas das Ciências Humanas, como a Antropologia, a História, a Literatura, a
Sociologia e a Psicologia, por exemplo. Trata-se pois, de metodologia
interdisciplinar por excelência. (Fontes Históricas, p. 156)

*
Graduado em História (Licenciatura Plena) pelo Centro Universitário Campos Andrade-UNIANDRADE,
especialista em Gestão Educacional pelo Centro Sul-Brasileiro de Pesquisa e Pós-Graduação-CENSUPEG,,
mestre em História e Regiões pelo Programa de Pós-Graduação em História-PPGH da Universidade Estadual do
Centro-Oeste/UNICENTRO, professor QPM da rede pública do Estado do Paraná, presidente do Instituto
Histórico e Geográfico de São Mateus do Sul-Pr.
1
Verena Alberti, formada em história, mestre em antropologia social e doutora em teoria da literatura, procura
trabalhar com o instrumental teórico dessas três disciplinas em suas atividades de pesquisa e ensino. É
pesquisadora plena do CPDOC-Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da
Fundação Getúlio Vargas. Coordenadora da Documentação; Coordenadora do Setor de História Oral do CPDOC;
Presidente da Associação Brasileira de História Oral. Tem larga experiência na realização de pesquisas de
história oral, incluindo a constituição, a gestão e a preservação de acervos, além da transcrição e publicação de
entrevistas. Em torno dessa metodologia, publicou Manual de história oral (1990, 2004) e Ouvir contar: textos
em história oral (2004), além de diversos artigos. (Fonte: http://cpdoc.fgv.br/equipe/VerenaAlberti).
2
Capítulo do livro Fontes Históricas, Ed. Contexto, 2005
A fonte oral somente passou a ter importância, ou passou a ser considerada como
uma possibilidade concreta de se obter informação sobre o passado de grupos humanos,
3

indivíduos ou fatos a partir do surgimento da escola historiográfica denominada Nova


História, que amenizou o rigor imposto pela Escola Metódica e seguido ainda pela Escola dos
Annales, que considerava o documento escrito como única fonte possível e confiável, capaz
de mostrar o passado em sua plenitude. Ou em outras palavras, na visão metódica ou na dos
annales, “está escrito, é verdade” ou ainda para utilizar uma máxima popular brasileira
relacionada ao famoso jogo do bicho, “vale o que está escrito”. Sobre a inclusão da fonte oral
como possibilidade na pesquisa histórica, vale observar a opinião do historiador inglês Peter
Burke, em seu artigo A Nova História: Seu Passado e seu Futuro, capítulo introdutório do
livro A escrita da História: novas perspectivas (1992):
[...} segundo o paradigma tradicional, a história deveria ser baseada em
documentos. Uma das grandes contribuições de Ranke3 foi sua exposição das
limitações das fontes narrativas — vamos chamá-las de crônicas — e sua ênfase na
necessidade de basear a história escrita em registros oficiais, emanados do governo
e preservados em arquivos. O preço dessa contribuição foi a negligência de outros
tipos de evidência. O período anterior à invenção da escrita foi posto de lado como
“pré-história”. Entretanto, o movimento da “história vista de baixo” por sua vez
expôs as limitações desse tipo de documento. Os registros oficiais em geral
expressam o ponto de vista oficial. Para reconstruir as atitudes dos hereges e dos
rebeldes, tais registros necessitam ser suplementados por outros tipos de fonte.

Antonio Cesar de Almeida Santos, professor do Departamento de História da


Universidade Federal do Paraná, corrobora as opiniões de Burke e de Alberti, no que diz
respeito à pertinência da utilização da oralidade como instrumento de pesquisa em história, ao
afirmar em seu artigo Fontes Orais: Testemunhos, Trajetória de Vida e História que 4
Notadamente, desde as décadas iniciais do século XX, diversos sociólogos e
antropólogos norte-americanos fizeram uso de relatos orais em suas investigações.
Mesmo no Brasil, a utilização de relatos orais em pesquisas acadêmicas remonta
aos anos 1950, também nas ciências sociais. Contudo, foi apenas no contexto da
“Nova História” que as fontes orais fizeram sua reentrada no campo desta
disciplina, embora ainda continuem a enfrentar resistências da parte de alguns
historiadores. (Santos, p. 2)

Ao admitir o relato oral como fonte de pesquisa, a historiografia realocou o indivíduo


no cenário historiográfico, dando-lhe um espaço que até então lhe era negado, uma vez que a
palavra falada não tinha valor como fonte de pesquisa; o conhecimento empírico, fruto da
vivência individual da pessoa não era levado em consideração quando da análise de um fato
ou período histórico, ou da trajetória de um determinado grupo social. Pode-se afirmar que o

3
Leopoldo Von Ranke, historiador alemão (1795-1886). Peter Burke descreve o paradigm tradicional da
história como “história rankeana”, em alusão às discussões elaboradas pelo historiador alemão.
4
O autor utiliza como base para seu o artigo o filme Little big man (ou Pequeno grande homem, no título em
português) de 1970, dirigido por Arthur Pen, o qual retrata Jack Crabb (protagonizado pelo ator Dustin
Hoffman), que na década de 1960 passa seus últimos dias de vida em um asilo para velhos, onde é visitado por
um historiador que deseja conhecer passagens de sua vida. Após certa resistência Crabb concorda, manda ligar o
gravador e passa relatar fatos importantes de sua vida.
4

indivíduo até então não era confiável do ponto de vista do historiador, como capaz de
transmitir informações precisas sobre o passado, uma vez que, ainda segundo os ditames da
Escola Metódica, não há como comprovar a veracidade daquilo que ele disse ao pesquisador
sem a análise de documentos escritos.
No Brasil, conforme afirmam Marietta de Moraes Ferreira 5 e Janaína Amado6,
organizadoras do livro Usos & Abusos da História Oral, a introdução da história oral se deu
na década de 1970, porém a expansão de seu uso e consequente popularização entre os
historiadores se deu a partir dos anos 19907, a partir da multiplicação de eventos voltados à
discussão do tema, bem como da incorporação por programas acadêmicos das premissas da
oralidade enquanto meio para busca de informação e produção de fontes.
[...] somente nos anos 90 a história oral experimentou aqui uma expansão mais
significativa. A multiplicação de seminários e a incorporação pelos programas de
pós-graduação em história de cursos voltados para a discussão da história oral são
indicativos importantes da vitalidade e dinamismo da área. (Ferreira e Amado, p.
IX)

Porém, a oralidade, assim como os demais tipos de fontes aceitos pelas escolas
historiográficas, não pode ser usada de forma aleatória ou indiscriminada, como se pudesse
ser considerada verdade absoluta em qualquer circunstância. Assim como em fontes
documentais ou outras, a fonte oral necessariamente precisa ser submetida ao rigor científico,
para que, de sua análise se possa extrair a informação que se busca, com a máxima precisão
possível.
Feitas estas considerações iniciais, o propósito desta reflexão é fazer uma análise,
mesmo que breve e superficial, das possibilidades oferecidas pela oralidade enquanto fonte,
capaz de elucidar fatos ou períodos históricos, ou quando não, fornecer pistas substanciais
para o acesso a outras fontes. Também é propósito desta reflexão analisar algumas técnicas e
métodos a serem aplicados à análise de fontes históricas orais, de modo a atribuir-lhe a

5
Marieta de Moraes Ferreira é Doutora em História do Brasil pela Universidade Federal Fluminense – UFF;
realizou pós-doutorado na École des Hautes Etudes em Sciences Sociales-EHSS, Paris (1996-97), como bolsista
da CAPES. Diretora do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação
Getulio Vargas-CPDOC/FGV (1999-2005); professora do Departamento de História do Instituto de Filosofia e
Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro-IFCS/UFRJ (desde1988); presidente da Associação
Brasileira de História Oral-ABHO (1994/96); presidente da International Oral History Association-IOHA
(2000/2002); editora da Revista Estudos Históricos - CPDOC (desde 1993); membro do Comitê Editorial da
Revista História Oral;
6
Janaína Amado é professora titular do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB), onde
ensina história moderna e história do Brasil; doutorado em História Econômica pela Universidade de São Paulo
(1976) e estágios de pós-doutorado no Woodrow Wilson Center for Scholars (washington D.C.,1989), na Johns
Hopkins University (Baltimore, 1990), Universidade de Lisboa (Lisboa, 1996-97) e The Newberry Library
(Chicago, 2000).Atuou como Fulbright Professor em Manhattanville College (Nova York, 2005-6). em
experiência na área de História, com ênfase em História Moderna e História do Brasil
7
As autoras contrariam o professor Antonio Cesar de Almeida Santos, que afirmou que no Brasil os relatos orais
em pesquisa acadêmica remontam aos anos de 1950.
5

confiabilidade que lhe foi negada pelos historiadores metódicos e resgatada pelos
idealizadores da Nova História.

2 . Entrevista não é história


“A História oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o
estudo da história [...]”, segundo Alberti (Fontes Históricas, p. 155). Partindo dessa premissa é
possível afirmar que a entrevista em si, tomada dentro das diversas maneiras possíveis
(anotada, gravação de voz ou captação de imagem e voz) não constitui verdade histórica, se é
que esta possa de fato existir, uma vez que o entrevistado está relatando espontaneamente o
fato a partir de suas impressões pessoais, interesses (dos mais variados tipos, como familiares,
religiosos, políticos, econômicos, sociais, etc.) e ideologias. Seu relato envolve ainda emoções
e sentimentos de amor ou de ódio. Por sua vez o entrevistador possui um objetivo pré-
determinado em seu projeto de pesquisa, expresso no objeto, recorte espacial e recorte
temporal; sabe o que deseja obter enquanto informação para confirmar ou desmentir outras
pistas já encontradas ao longo de sua pesquisa, quando se trata de entrevista para
complementação de informações, bem como também sofre influências externas à história,
assim como o entrevistado, podendo eventualmente conduzir a entrevista no sentido de fazer
com que o entrevistado diga aquilo que lhe interessa ouvir, e não exatamente a verdade a
respeito do fato relatado. Tais influências externas podem prevalecer de modo especial
quando o entrevistado trata-se de pessoa simples, sem grande instrução formal, o que se
verifica com mais frequência quando se pesquisa povos tradicionais ou populações
periféricas.
Dessa forma, a entrevista realizada deve ser encarada e utilizada pelo historiador
como ponto de partida para a elucidação do fato em questão; como produtora de uma nova
fonte para pesquisa, na medida em que sua transcrição a transforme em um documento escrito
a ser submetido à crítica interna, dentro do rigor metodológico que deve envolver qualquer
trabalho de pesquisa histórica no que se refere à análise de fontes.
É um erro bastante frequente entre pesquisadores, especialmente os não ligados à
academia, a utilização de forma equivocada da entrevista oral como ferramenta de pesquisa,
na medida em que alguns adotam como verdade histórica absoluta o conteúdo da gravação
obtida junto ao entrevistado, não levando em consideração os fatores externos que
influenciam o conteúdo da informação prestada pelo entrevistado. Ao acolher integralmente o
conteúdo da entrevista, sem ter feito a necessária crítica interna, e ao produzir e publicar seu
trabalho, esse tipo de pesquisador acaba produzindo em verdade, não uma história no sentido
6

científico do termo, mas apenas mais uma fonte para pesquisa histórica que poderá ser tomada
como ferramenta por historiadores acadêmicos que eventualmente estejam pesquisando na
mesma área. Além de ter tornado pública a sua fonte de pesquisa, esse pesquisador
transforma-se ele próprio em fonte de pesquisa, uma vez que seu trabalho ao ser utilizado
como fonte por pesquisadores acadêmicos sofrerá certamente a crítica interna 8 e externa9
típica do rigor metodológico.

3 . Quando a entrevista se converte em documento


Conforme já elencado anteriormente, muitos pesquisadores acabam muitas vezes
confundindo a entrevista em si com uma fonte histórica e essa é justamente a crítica feita
pelos Anales, que davam preferência aos estudos de processos de longa duração com destaque
para a análise de fontes preferencialmente seriais, considerando que relatos pessoais não
deveriam ser considerados nos estudos de história, uma vez que muitas vezes apresentam
distorções dos fatos ocorridos e que não representariam uma época ou um grupo, mas apenas
a experiência pessoal e individual do relatante. De acordo com Alberti,
Essas convicções sobre o que seria próprio da História sofreram modificações a
partir da década de 1980: temas contemporâneos foram incorporados à História,
chegando a se estabelecer um novo campo, que recebeu o nome de História do
tempo presente; passou-se a valorizar também a análise qualitativa, e o relato
pessoal deixou de ser visto como exclusivo de seu autor [...] (Fontes Históricas, p.
163)

A entrevista vai se converter em documento a partir de sua transcrição, quando então


poderá ser submetida à crítica interna pelo pesquisador, que a partir desta, poderá aprofundar
a pesquisa propriamente dita com a análise do conteúdo do relato contido na gravação feita
com o entrevistado. Através da leitura e releitura atenta, destacando os pontos de maior
interesse de acordo com o objeto de pesquisa, se poderá estabelecer uma convicção sobre o
tema. Nesse sentido, segundo Ferreira e Amado:
Na história oral, existe geração de documentos (entrevistas) que possuem uma
característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado,
entre sujeito e objeto de estudo; isso leva o historiador a afastar-se de
interpretações fundadas numa rígida separação entre sujeito/objeto de pesquisa, e a
buscar caminhos alternativos de interpretação; (Usos e Abusos da História Oral, p.

8
Introdução aos Estudos Históricos. História - UFF - Profª Ana Maria Mauad Crítica interna: “a hermenêutica
impõe freqüentemente o recurso a um estudo lingüístico, a fim de determinar o valor das palavras ou das
frases[...], por outro lado, a hermenêutica obriga a interrogar-se sobre as intenções das pessoas que produziram
os documentos”(p.104). Disponível em http://ieh-uff.blogspot.com.br/ em 10/07/2017, 6:39h
9
Grifo do autor. A crítica externa só se dará quando o conteúdo da entrevista estiver sendo utilizado por outro
pesquisador que não o que produziu a entrevista. Nesse caso a autenticidade da transcrição precisa ser verificada,
o que não ocorre quando o próprio entrevistador está utilizando o conteúdo como fonte de pesquisa, já que,
implícito está, que se o documento (no caso a transcrição da entrevista) foi produzido por ele próprio, logo trata-
se de documento original, dispensando-se nesse caso a verificação da autenticidade..
7

XIV)

Diante da afirmação das autoras, é possível deduzir que a transcrição da entrevista é


de fundamental importância, pois a mesma deixa de ser uma ferramenta oral para ser
transformada em documento escrito, o qual possibilitará ao historiador uma análise mais
racional e menos emocional das informações prestadas pelo entrevistado, com o objetivo de
se aproximar ao máximo da verdade histórica que se busca dentro do projeto de pesquisa.
Considerar que a entrevista permite ao pesquisador “afastar-se de interpretações fundadas
numa rígida separação entre sujeito/objeto [...]” (Ferreira e Amado, p. XIV), é aceitar que ao
utilizar a fonte oral como ferramenta de pesquisa, o historiador não deve dissociar o indivíduo
(entrevistado) do objeto da pesquisa, uma vez que ambos estão intrinsicamente ligados, afinal
o entrevistado está falando de algo que faz parte de sua existência e de suas memórias, de
modo que suas informações e opiniões estarão automaticamente ligadas ao tema da pesquisa,
podendo-se considerar o próprio entrevistado como parte do objeto.
Dessa forma, ao produzir um documento a partir da degravação da entrevista, o
historiador vai produzir o que Le Goff chamou de “documento monumento”10, um documento
produzido intencionalmente com uma finalidade específica, tal qual os monumentos físicos
erigidos em determinados locais estratégicos de uma cidade, que tem a finalidade específica
de preservar a memória e os feitos de uma determinada personalidade ou grupo. Assim
também, o documento produzido terá a finalidade de preservar a memória do entrevistado
sobre os fatos narrados, de modo que esta memória se torne visível aos olhos do pesquisador e
possa ser analisada e interpretada em consonância com o objeto da pesquisa. Nas palavras de
Le Goff,
[...] O documento é uma coisa que fica, que dura, e o testemunho, o ensinamento
que ele traz devem ser primeiramente analisados desmistificando-lhe o seu
significado aparente. O documento é monumento. Resulta do esforço das sociedades
históricas para impor ao futuro – voluntária ou involuntariamente – determinada
imagem de si próprias. [...] (Le Goff, apud. Alberti)

Tal qual o monumento físico, construído no espaço público, o documento resultante


da transcrição da entrevista vai se tornar um monumento historiográfico de cuja visualização
ou análise poderão resultar interpretações diferentes por historiadores diferentes, tudo a
depender dos interesses de cada um e dos objetos de pesquisa de cada projeto.

10
Citado por Verena Alberti, Histórias Dentro da História, in. Fontes Históricas
8

4 . Cuidados com a tomada do relato e sua degravação


Considerando que é através da transcrição que a entrevista tomada vai se transformar
em fonte histórica, o procedimento de tomada do relato por parte do historiador e a atividade
de transcrição da entrevista implicam em alguns cuidados específicos, a fim de que a fonte a
ser produzida através da entrevista possa ser fiel às informações prestadas pelo entrevistado
quando de sua oitiva por parte do pesquisador.
O tipo de equipamento a ser utilizado deve ser a primeira preocupação do
pesquisador, a fim de que se possa captar com clareza as informações prestadas pelo
entrevistado. Também é preciso que se tomem certos cuidados com o ambiente onde será
realizada a entrevista, a fim de que não hajam interferências de outras pessoas alheias ao
trabalho, nem ruídos de qualquer natureza que possam comprometer a qualidade da gravação
no momento de sua reprodução.
Na condução da entrevista deve o pesquisador se abster de comentários a respeito do
que o entrevistado está relatando, restringindo sua participação apenas à elaboração das
perguntas, as quais podem estar previamente redigidas de modo a estabelecer um roteiro na
entrevista, ou podem ser inseridas de improviso no decorrer da entrevista a fim de buscar mais
detalhes a respeito de algum fato que esteja sendo relatado pelo entrevistado. Nesse momento
é preciso que o entrevistador, que é um historiador em busca de informações que serão
submetidas a posterior análise historiográfica e não um sujeito do fato narrado, se mantenha
distante do fato narrado, não interferindo na narração através de comentários ou emissão de
opinião, procurando apenas extrair do entrevistado as informações, que após analisadas
embasarão sua pesquisa.
Após a tomada da entrevista vem a segunda parte do trabalho, o momento de
transcrever o conteúdo da entrevista (degravação) e transformá-lo definitivamente em fonte
histórica através de um documento escrito.
É preciso inicialmente, que a pessoa que vai fazer a transcrição, seja o próprio
entrevistador ou um terceiro, leve em consideração que aquele trabalho especificamente é
uma mera transcrição, portanto deve ser absolutamente fiel às palavras ditas, tanto pelo
entrevistado quanto pelo entrevistador. A transcrição não é pesquisa; é apenas a materialização
documental das informações prestadas, não cabendo nesse momento por parte do transcritor
(o próprio entrevistador ou terceiro) emitir opinião ou juízo sobre os fatos narrados, ou sobre
reações e emoções manifestadas durante a entrevista. Deve reproduzir na íntegra todas as
palavras, frases, sentenças pronunciadas, inclusive quando o entrevistado utilizar palavras em
desuso na língua formal ou típicas da língua coloquial de uma determinada região, grupo
9

social ou época. A substituição intencional de palavras por parte do transcritor retira a


fidelidade da entrevista e pode eventualmente, inclusive mudar o sentido de uma frase,
comprometendo dessa forma a objetividade da informação prestada, daí a necessidade da
transcrição “ipsis verbis”.11
O arquivamento adequado do documento produzido através da transcrição da
entrevista deve ser a terceira preocupação do historiador. Nesse momento já se produziu um
documento e é preciso armazená-lo de forma adequada a fim de preservar sua integridade,
uma vez que dela dependerá a qualidade e os resultados da pesquisa; a história que resultará
do projeto de pesquisa do historiador dependerá da perfeita qualidade material do documento.
São várias a formas de arquivamento disponíveis atualmente.
A impressão em papel e acondicionamento em arquivos físicos é a forma mais
tradicional de armazenamento do documento resultante da transcrição da entrevista, porém
esse tipo de armazenamento implica em algumas dificuldades, como a necessidade de espaço
físico apropriado para tal, ferramentas apropriadas (pastas, grampeadores, furadores,
armários, etc.). Há ainda o risco de perda do acervo armazenado em razão de furtos,
incêndios, chuvas, vendavais. Ao se optar por esse tipo de armazenamento o ideal é que se
produzam cópias as quais fiquem armazenadas em diferentes locais.
Porém, o desenvolvimento tecnológico trouxe a possibilidade de arquivamento do
documento em meio digital, facilitando o trabalho de armazenamento. Entretanto mesmo ao
optar pela utilização dos meios digitais o historiador deve tomar alguns cuidados a fim de
preservar a segurança e integridade do documento produzido.
Nesse caso é aconselhável que se produzam cópias de segurança, que assim como no
caso da cópia física do documento, devem ser armazenadas em locais e meios diferentes.
Podem-se utilizar diferentes computadores para manter salva cópia do documento, como
pode-se utilizar o compact disk (CD) para gravação do arquivo ou ainda pendrive ou chip
eletrônico. Em todos esses casos o risco de perda definitiva de um arquivo ainda não está
eliminado totalmente, uma vez que sempre haverá a possibilidade de extravio de um CD,
pendrive ou chip, ou de pane definitiva em computadores onde se encontra armazenado o
arquivo, ou ainda as possibilidades de modernização tecnológica que vão ao longo do tempo
tornando certos dispositivos obsoletos.
Uma alternativa bem atual e que até o momento parece ser a mais segura para

11
O ipsis verbis significa “mesmas palavras” e é empregado para se referir a uma linguagem oral, ou seja,
quando ocorre a reprodução total de um discurso ou fala. ( https://www.significados.com.br/ipsis-verbis-e-ipsis-
litteris/, acesso em 17/07/2017, 08:58h)
10

arquivamento de documentos de qualquer natureza, e nesse caso específico, do documento


resultante da degravação da entrevista, são as chamadas nuvens (ex.: Dropbox), que permitem
o arquivamento de documentos em um espaço etéreo12; que não existe fisicamente. Nesse
caso mesmo que se perca o equipamento ou meio digital onde o documento foi salvo
originalmente, este continuará preservado e poderá ser acessado de outro equipamento, além
de possibilitar o acesso em qualquer parte do planeta onde se encontre o pesquisador, sem que
este precise transportar junto consigo seu equipamento.
É portanto aconselhável, sem prejuízo das formas tradicionais de arquivamento de
documentos, que se utilize ao máximo possível as tecnologias disponíveis, a fim de garantir a
preservação perene do documento produzido, tendo em vista que nem sempre será possível
entrevistar novamente aquela pessoa, especialmente porque as pessoas envelhecem, perdem a
memória, perdem domínio das faculdades mentais e falecem. O uso das tecnologias permite
que o documento e consequentemente as memórias do entrevistado sejam eternizados e
possam ser acessadas em muitas pesquisas de outros historiadores.

5 . Conclusão
A oralidade, como visto, se apresenta então como uma possibilidade concreta de
fonte para a pesquisa histórica, assim como para pesquisas em outras áreas do conhecimento
(Antropologia, Geografia, Sociologia, etc.), oferecendo grandes possibilidades ao pesquisador
na obtenção de informações e na elucidação de determinados fatos relativos ao objeto de
pesquisa inerente ao seu projeto.
O aproveitamento da oralidade entretanto nem sempre se encerra em si própria como
fonte única dentro de uma determinado projeto, e é frequente que isso ocorra, esse tipo de
fonte ser usado associado aos outros tipos de fontes materiais, como documentais,
cartográficas, iconográficas, arqueológicas, etc., aparecendo nesse caso a fonte oral como
elemento de complementação de pesquisa, na elucidação definitiva de aspectos importantes
do objeto pesquisado e não suficientemente explicados pelas demais fontes pesquisadas.
O reconhecimento da oralidade como fonte, ocorrida a partir da Escola Nova, que na
prática acabou reinserindo o homem ou a mulher comum, no contexto historiográfico,
enquanto fonte de pesquisa, trouxe consigo a necessidade de estabelecimento de
determinadas regras ou técnicas para sua utilização, afim de que a pesquisa possa extrair desse
tipo de fonte, informações o mais aproximadas possível da verdade que se busca dentro do

12
Volátil como o éter; impalpável (http://www.aulete.com.br/etéreo, acesso em 18/07/2017, 09:30h); vaporoso,
fluído, aéreo, volátil (https://www.sinonimos.com.br/etereo/, acesso em 18/07/2017, 09:32h)
11

projeto de pesquisa. Percebe-se segundo a análise de Ferreira e Amado (p. IX), que essas
técnicas foram sendo aprimoradas ao longo do tempo, na medida em que correu a partir da
década de 1990, uma “multiplicação de seminários e a incorporação pelos programas de pós-
graduação em história de cursos voltados para a discussão da história oral”. Esse interesse da
academia pela oralidade como fonte, certamente levou ao aprimoramento dos métodos de
pesquisa com fontes orais, estabelecendo novos parâmetros pra utilização de desse recurso.
Verifica-se entretanto, que muitos pesquisadores, sobretudo os não ligados à
academia, muitas vezes fazem uso equivocado da fonte oral, sem que tomem os cuidados
metodológicos que envolvem o manuseio e interpretação desse recurso, o que acaba
eventualmente produzindo análises equivocadas, ou quando não, superficiais a respeito do
tema pesquisado, o que pode levar à produção de um trabalho com informações imprecisas
que podem induzir seu leitor a erro, ou, a um entendimento superficial.
É preciso, pois, que ao lançar mão da oralidade como fonte de pesquisa histórica, o
historiador se aproprie de conhecimento suficiente a respeito das técnicas e métodos para
utilização desse recurso, a fim de que possa efetivamente produzir um trabalho que, se não
retratar a verdade histórica, se aproxime ao máximo possível dela.

Referências
ALBERTI, V. Fontes Orais: Histórias Dentro da História. In: . Fontes Históricas. São
Paulo: Contexto, 2005. cap. 5, p. 155 – 202.
BURKE, P. A NOVA HISTÓRIA, SEU PASSADO E SEU FUTURO. In: . A escrita da
História: novas perspectivas. 7a. ed. S. Paulo: Editora UNESP, 1992. cap. Introdução, p. 1 –
13. ISBN 85-7139-027-4. Disponível em: <http://etnohistoria.fflch.usp.br/sites/etnohistoria.
fflch.usp.br/files/Burke_Nova_Historia.pdf>. Acesso em: 10/07/2017.
FERREIRA, M. de M.; AMADO, J. Apresentação. In: . Usos & Abusos da História Oral. 3a.
ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000. cap. Apresentação, p. vii – xxv. ISBN 85.225.0200-5.
GOFF apud. ALBERTI Verena. in. F. H. J. L. História e Memória. 1a. ed. [S.l.]: Edições 70,
2000.
SANTOS, A. C. de A. FONTES ORAIS: TESTEMUNHOS, TRAJETÓRIAS DE VIDA E
HISTÓRIA. Disponível em: <http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/
Testemuhostrajetoriasdevidaehistoria.pdf>. Acesso em: 07/07/2017.

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