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HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO

– ABORDAGENS PRÁTICAS
AULA 6

Prof. Igor Tadeu Camilo Rocha


CONVERSA INICIAL

Nesta aula, seremos apresentados à história oral, assim como a alguns


de seus desafios e implicações. Primeiramente, passaremos pela definição da
história oral e, em seguida, por aquilo que ela significa para o estado atual da
historiografia e a relação dessa história com documentos e evidências do
passado. Categorias como oralidade e problemáticas relacionadas à memória
aparecem como fundamentais para que a entendamos, o que trataremos aqui
também.
Em uma segunda parte, trataremos especificamente da atividade central
para a coleta de testemunhos orais: a entrevista. Estudaremos as implicações
dessa prática, os procedimentos, os mecanismos de formulação e o uso dela
como fonte.

TEMA 1 – HISTÓRIA ORAL E A ORALIDADE COMO FONTE HISTÓRICA

Já falamos da importância da fonte histórica para a produção do


conhecimento historiográfico, frisando sempre que não é possível produzir
conhecimento histórico com o necessário rigor científico prescindindo do
documento. É o documento histórico que pode sustentar qualquer interpretação
do passado, sendo seu vínculo basilar com a realidade histórica do contexto ao
qual se refere.
Também vimos que documento histórico é tudo o que foi produzido pelas
sociedades humanas e que deixa vestígios de suas práticas e ações nos
variados contextos, portanto possibilitam a compreensão da atuação humana
nas suas variadas dimensões (Barros, 2012). Contudo, durante um bom tempo,
a historiografia privilegiou a fonte escrita em detrimento de outras.
Desde que a História foi disciplinarizada segundo os critérios modernos
de saberes científicos e acadêmicos, o documento escrito sempre teve uma
importância central, que só foi, se não questionada, complexificada ao longo do
século XX.
A própria definição de documento nos primórdios da historiografia
moderna já apontava para a primazia das tipologias escritas, sobretudo a
considerada oficial. Isso acontecia diante da predominância da produção
histórica focada em objetos como os fatos políticos e administrativos, assim

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como as narrativas nacionais dos Estados europeus e as figuras-chave delas, o
que contribuiu bastante nesse sentido.
Diante disso, as fontes orais foram, por muito tempo, rejeitadas ou
colocadas em segundo plano. Com efeito, a incorporação de novas tipologias de
fonte advindas dos debates historiográficos surgidos entre o início meados do
século XX aconteceu graças às gerações de historiadores ávidos por novos
temas e problemáticas, no bojo dos novos paradigmas historiográficos que
surgiram naquele contexto (Lozano, 2011). Como explica Gortázar (2013, p.
530), a História-disciplina fez ali o movimento de “anexar novos territórios”,
dialogando com outras áreas do conhecimento e ampliando seu campo de
documentos, o que possibilitou o aumento do território de atuação do historiador.
Trebitsch (1994) explica que o boom da história oral na historiografia veio
nos anos 1960, em grande parte vindo de historiadores que a valorizavam no
sentido de construir uma “outra história” que dialogasse com um período de
grandes contestações e pautas políticas, incorporando narrativas históricas de
sujeitos por muito tempo excluídos da produção histórica como um todo.
Mais que isso, a valorização da oralidade não somente incorporava esses
sujeitos, como também dialogava com novas epistemologias de se pensar o
fazer histórico, entendendo, por exemplo, tradições transmitidas pela oralidade
ou pela memória compartilhada como fontes validadas de acesso a
conhecimentos do passado.
A história oral e as variadas abordagens da oralidade como fonte histórica
trazem uma série de questões importantes ao historiador. Uma que salta aos
olhos é sua natureza, a princípio, inter e transdisciplinar, uma vez que a história
oral dialoga, inicialmente, com a antropologia, mas traz consigo elementos e
possibilidades de aproximações com diversas outras áreas do conhecimento que
trabalham com essa forma de acessar o passado, embora com outras finalidades
e objetivos.
Nesse sentido, a oralidade oferece algumas possibilidades, mas também
limitações, devido à distinção das fontes escritas. Isso altera de forma
substantiva aspectos da crítica documental que o historiador deve executar na
construção da pesquisa histórica. Vamos explorar alguns desses aspectos a
seguir.

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1.1 Diálogos com outras ciências

Um pressuposto básico a ser tomado por qualquer


pesquisador/historiador que recorra à oralidade como fonte história é o de que a
oralidade produz conhecimentos válidos sobre o passado. Assim, o que muda
em relação aos mesmos conhecimentos registrados pela escrita são, por óbvio,
o registro e, por conseguinte, algumas de suas características. Poderíamos
enumerar essas características de diversas maneiras, apontando para
particularidades quanto ao acesso ao conteúdo desses registros, por exemplo,
entre outros aspectos.
Se não há, ainda, um século em que a História recorre com frequência a
essas tipologias de fonte, não se pode dizer o mesmo da Antropologia. Afinal,
tratar com registros orais de saberes ancestrais é a matéria tradicional dessa
área. O diálogo entre História e Antropologia foi intenso nas primeiras gerações
da Escola dos Annales, e isso contribuiu de maneira considerável para o
desenvolvimento da história oral.
Na Antropologia, os estudos sobre sociedades rurais, em que se analisam
os processos de transmissão de saberes e tradições orais, criaram durante muito
tempo um arcabouço metodológico e teórico de acessar informações não
registradas por escrito, mas transmitidas de outras maneiras e enraizadas nas
sociedades humanas. Isso, posteriormente, chamou a atenção da historiografia,
que buscava acesso a formas de registro do passado distintas daquelas
tradicionalmente encontradas nos escritos (Lozano, 2011).
Assim, no diálogo entre História e Antropologia, formou-se um aparato
teórico-metodológico para se acessar conhecimentos de sociedades com
culturas ágrafas (que não produziram ou pouco produziram registros escritos),
investigando os registros orais. Um efeito importante disso é questionar a
pertinência de se depender tanto do registro escrito. Muitas sociedades
produziram e produzem conhecimento não escrito rico em nível de complexidade
se comparado aos registrados de forma escrita.
Basicamente, a história oral se propõe a abarcar as técnicas e os métodos
para fazer uma preparação e acessar múltiplas vozes, das quais existem
conhecimentos e registros compartilhados do passado, inscritos em tradições e
memória, possíveis de serem organizados e problematizados.

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Por isso, os autores concordam que a história oral abrange metodologias
e epistemologias muito mais complexas do que técnicas e tratamentos
relacionados a lidar com ou fazer entrevistas (Mattos; Senna, 2011). No caso, a
história oral possui objetos e objetivos próprios e oferece potencialidades de
acesso a testemunhos do passado que extrapolam esse campo de técnicas.
Lozano (2011) explica, por exemplo, que a história oral também se vale
de um constante diálogo com a Psicologia, em pelo menos dois aspectos
fundamentais. Um deles é que a oralidade e o testemunho, por exemplo, tendem
a ser afetados por alguns fatores que permeiam uma entrevista e que requerem
atenção do pesquisador/historiador. Além disso, existe a relação entre a
oralidade e a memória, com a qual nos ocuparemos mais detidamente à frente.

1.2 Possibilidades da oralidade para análise do passado

A história oral compreende um vasto campo de metodologias que


integram diversas áreas do conhecimento, envolvendo preparação e execução
de entrevistas, assim como sua análise, mas nunca se reduzindo a isso. Envolve
um campo vasto de métodos e procedimentos a serem realizados antes e depois
de qualquer coleta de relatos orais (FGV, 2020).
Com efeito, a história oral ainda possibilita acessar saberes não
registrados na linguagem escrita, transmitidos oralmente e que formam bases de
tradições e identidades culturais. Possibilita o acesso a memórias
compartilhadas e construídas em comunidades ao longo dos contextos
históricos.
Alguns povos originários das Américas, por exemplo, não desenvolveram
uma linguagem escrita própria. Sua história, dessa maneira, pode ser acessada
pelos testemunhos orais, acessados com auxílio de aparatos teórico-
metodológicos da história oral.
Mesmo em sociedades com escrita plenamente desenvolvida, muitos
registros históricos feitos existem em outras formas de linguagem. O projeto
História de Bairros, desenvolvido permanentemente pelo Arquivo Público da
Cidade de Belo Horizonte desde 1999 e que deu origem a uma coleção de livros
sobre bairros da mencionada cidade (Belo Horizonte, 2008), recorreu fortemente
à história oral como método para acessar memórias compartilhadas não
registradas pela escrita pelas comunidades.

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As fontes orais, como toda fonte, precisam passar por exame crítico,
principalmente porque elas possibilitam acessar testemunhos de realidades
históricas sob perspectivas que são, via de regra, acessíveis à memória. E a
memória possui algumas limitações e características que merecem toda a
atenção. É sobre isso que discutiremos a seguir.

TEMA 2 – ORALIDADE E MEMÓRIA

A história oral centra-se na memória humana e na sua capacidade de


rememorar o passado como testemunha do vivido (Mattos; Senna, 2011). Dessa
forma, a memória deve perpassar as problemáticas levantadas pelos
pesquisadores/historiadores que se debruçam sobre a documentação oral.
Podemos entender memória como uma (re)construção psíquica, afetiva e
intelectual do vivido/passado por meio de operações mais ou menos conscientes
dos indivíduos e das sociedades (e indivíduos em sociedades), de maneira a
organizar fragmentos daquilo que passou, organizando-os, muitas vezes, como
uma narrativa.
Ricoeur (2007) aponta que, quando falamos da memória como fonte
histórica e meio de busca de conhecimento sobre o passado, devemos levar em
conta, também, os esquecimentos. Em outras palavras, o domínio da memória
também é um domínio da escolha, de forma deliberada ou não, daquilo que se
deseja ou não ser esquecido. Halbwachs (2004) acrescenta ainda que a
memória é, antes de tudo, social. Dessa forma, lembrar-se ou esquecer-se de
algo, do ponto de vista histórico, ainda que remeta a perspectivas possivelmente
individuais, abrange operações que são socialmente compartilhadas e
socialmente mediadas.
Por esse caminho, é interessante ter em vista que existe também uma
dimensão política da memória. Com isso, entendemos que as memórias sobre o
que aconteceu no passado estão constantemente postas em disputa. Os
debates sobre erguer ou derrubar monumentos, assim como a necessidade para
a qual alguns especialistas chamam a atenção de se publicar certos
testemunhos do passado, aludem a essa dimensão da memória.
Nesse sentido, Le Goff (1996) alude ao mito grego para lembrar que a
memória e a imaginação fazem parte de um domínio muito próximo. Em outras
palavras, (re)lembrar e inventar, assim como lembrar e esquecer, são partes de

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realidades muito próximas que, muitas vezes, podem “trair” o
pesquisador/historiador que quer chegar ao passado por meio delas.
Por essas questões metodológicas enunciadas aqui é que devemos ter
bastante atenção quanto às fontes orais, nunca as entendendo como relatos
ingênuos ou pouco complexos do passado. A memória (assim como as fontes
escritas, como vimos anteriormente) não traz o passado como ele é nem faz o
contrário, ou seja, um passado distorcido ou enviesado (por isso, descartável)
pela perspectiva memorialística do indivíduo. Como documento, a memória
oferece chaves de leitura do passado, informações preciosas e dados a serem
problematizados pelo pesquisador/historiador. Aqui, levantaremos alguns pontos
que merecem atenção específica.

2.1 Memória, fonte oral e experiências vividas do passado

Uma das potencialidades mais interessantes da história oral é a


possibilidade de acessar vivências do passado histórico não escritas. Em outras
palavras, a oralidade desvela experiências raramente registradas nas fontes
tradicionais.
Um pesquisador/historiador sobre a Ditadura Militar Brasileira (1964-
1985), por exemplo, poderá, por meio de documentação escrita, demonstrar
perseguições e violências perpetradas pelo regime contra várias populações e
dissidentes do regime. Contudo, algumas narrativas que analisem, por exemplo,
como a mesma ditadura foi percebida por familiares de torturados e mortos pelo
regime e por grupos marginalizados, como populações LGBT+ ou indígenas, são
acessadas por meio da história oral.
Isso aparece na obra de Amato, Batista e Dellamore (2017), em que a
história oral é um ponto que conecta narrativas pessoais e uma história social,
contemplando experiências inscritas na memória de sujeitos variados e tratando-
as como meio de acesso a esses passados.

2.2 Memória de comunidades como fonte histórica

Anteriormente vimos no exemplo da História de Bairros que algumas


memórias de comunidades e grupos podem ser acessíveis e analisadas com
auxílio do aparato teórico-metodológico da história oral. É um raciocínio que vale

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também para a análise de culturas cujos registros não escritos tiveram ou têm
centralidade quanto à produção e ao compartilhamento de seus registros.
Barbosa, Fagundes e Mezacasa (2018) mostram como uma aproximação
entre etnografia e história oral tem sido importante para os estudos históricos
sobre os povos indígenas. Os métodos de ambas as áreas permitem que suas
formas de ver o mundo e as tradições orais representem um rico escopo de
fontes históricas. Bringmann (2012), sobre o mesmo tema, mostra o quanto
esses aparatos metodológicos podem ser importantes no sentido de superarem
paradigmas tradicionais da historiografia de uma “história oficial”, da qual os
indígenas são sistematicamente excluídos.
Aqui também se tornam acessíveis, em grande parte, a memória histórica
e os significados culturais construídos e compartilhados, além de cosmologias,
interpretações de mundo e representações do tempo histórico vistos por esses
povos. Por isso, é fundamental entender o fato de que a história oral permite
acessar tais conhecimentos e compreender a transmissão desses
conhecimentos e sua complexidade.
É por esse caminho, por exemplo, que boa parte da historiografia sobre
as religiões de matriz africana no Brasil tem sido desenvolvida. Por se tratar de
religiões que não possuem sistematizações dogmáticas ou doutrinárias em livros
sagrados, suas práticas, crenças e visões de mundo são transmitidas mormente
pela oralidade, juntamente com uma série de outros aparatos inscritos nas
tradições, como materialidade, memória histórica, entre outros aspectos.
Elementos que vão das crenças aos mitos de fundação dos terreiros, passando
por trajetórias históricas, têm sido analisados por pesquisadores de várias áreas,
recorrendo-se a métodos da história oral (Silveira, 2003; Pereira, 2017).

TEMA 3 – ORALIDADE NAS FONTES ESCRITAS

É importante frisar que o diálogo da história oral com a Antropologia


também apontou caminhos para uma mudança de atitude do
pesquisador/historiador quanto a lidar com documentos escritos. Isso porque
mesmo neles existem algumas marcas de oralidade.
Carlo Ginzburg (2007a, 2007b) utiliza aparatos teóricos da Antropologia
para explorar as mencionadas marcas de oralidade nos processos inquisitoriais,
produzidos no Sul da Itália entre o final da Idade Média e início da Idade

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Moderna, apontando para a riqueza, do ponto de vista metodológico, desse
diálogo para o fazer histórico.
Ginzburg (2007a, 2007b) propõe aos pesquisadores/historiadores que
analisam os processos inquisitoriais tendo em vista a sua dimensão dialógica,
ou seja, considerá-los como registros de um diálogo. Naqueles processos, como
aponta, há uma diversidade de vozes (dos réus, dos inquisidores, dos
funcionários da Inquisição, das testemunhas etc.), conferindo-lhes uma polifonia.
O historiador, como o antropólogo, deverá organizar e dar sentido àquelas vozes
identificadas no texto de maneira a produzir o conhecimento histórico com base
naquele testemunho.
Há outras tipologias documentais escritas em que encontramos marcas
de oralidade. Na escrita lírica, por exemplo, essa característica é bem marcada.
Não obstante, essa particularidade aparece também em documentos escritos
que se baseiam em transcrições orais, como fontes processuais e notas
taquigráficas, que registram, por exemplo, discursos e sustentações orais em
tribunais de justiça e parlamentos e podem servir como um importante
documento histórico.

TEMA 4 – ENTREVISTAS COMO DOCUMENTO

A entrevista é um mecanismo de fundamental importância para a história


oral, porque, por meio desse recurso, o pesquisador/historiador poderá ter o
acesso às informações transmitidas oralmente por indivíduos e grupos. No
entanto, como dissemos, a história oral compreende aparatos dos mais
complexos, e devemos ter em vista tais complexidades na execução e nos usos
das entrevistas como fonte.

4.1 Pessoa entrevistada como sujeito

Um cuidado inicial é o entendimento do(a) entrevistado(a) como sujeito da


entrevista. Assim, tudo deve ser feito para se evitar uma indução do(a)
entrevistado(a) a dizer qualquer coisa, seja um posicionamento, relato, ou algo
similar. Isso, por sua vez, não quer dizer que uma entrevista deva ser feita com
base na ideia de uma fala livre, no sentido de que a pessoa entrevistada pode
dizer tudo o que lhe vir à mente sem qualquer critério, o que fará o
pesquisador/historiador depender da sorte.

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O que se deve frisar aqui é que todo o roteiro de uma entrevista, seus
objetivos e limites (decidir o que não deve ser perguntado também é importante),
deve ser elaborado metodicamente, com todo o rigor, antes de qualquer
entrevista acontecer.
No caso de uma pesquisa histórica, é preciso ter em vista o que a
entrevista poderá contribuir para a pesquisa proposta. Isso será possível com as
informações obtidas no andamento da pesquisa, com leitura de fontes,
bibliografia e desenvolvimento do tema.

4.2 Registrar a entrevista

Também é de suma importância entender que é necessário registrar a


entrevista. É preciso total atenção ao equipamento adequado para esse
processo. Uma entrevista metodicamente preparada, dependendo do caso, por
meses, pode ser arruinada com o uso impróprio ou precário de equipamentos.
Por isso, a preparação exige mecanismos de gravação prontos para uso,
equipamentos de reserva e preparação de todo o suporte possível.
Também muito importante a respeito do registro de entrevistas como fonte
é a necessidade de se respeitar quando a pessoa entrevistada não quiser
fornecer um registro. É um direito do indivíduo desejar omitir parte de uma
entrevista, por exemplo. Mostrar que não está gravando quando a pessoa
solicitar é importante, quando isso acontecer.

4.3 Depois da entrevista feita

Existe também o momento pós-entrevista. Uma vez que ela tenha sido
feita, o pesquisador/historiador deverá tratá-la como fonte histórica e, dessa
maneira, organizá-la, catalogá-la, classificá-la e guardá-la como se faz com
qualquer documento.
Núcleos de pesquisa que trabalham com história oral, via de regra, criam
ricos bancos de dados com entrevistas recolhidas, assim como alguns fundos
disponibilizam transcrições de discursos, debates, discussões e sustentações
orais. Algumas dissertações de mestrado e teses de doutorado também
costumam disponibilizar as entrevistas usadas como fonte nos anexos dos
trabalhos. Isso é importante também como forma de conferir acesso de mais
pesquisadores aos dados usados naquela pesquisa.

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4.4 Ética de pesquisa e uso de entrevistas

Por fim, e o mais importante, é que existem diversos limites éticos no uso
de entrevistas como fonte. Inicialmente, o pesquisador/historiador deve mostrar
à pessoa entrevistada o uso de sua entrevista, ou seja, o sujeito tem todo o direito
de saber o uso e a destinação de sua fala. Assim, cabe ao
pesquisador/historiador mediar esse acesso entre a pessoa que contribuiu com
sua pesquisa e a pesquisa propriamente dita.
Já dissemos anteriormente que não se deve usar partes ou trechos que a
pessoa entrevistada não queira disponibilizar ou registrar. Em alguns casos,
serão necessárias a omissão ou a supressão de nomes em função da natureza
do objeto da entrevista.

TEMA 5 – TÉCNICAS DE ENTREVISTA

Mencionamos anteriormente que a entrevista é um mecanismo


importante, mas não resume a história oral. Profissionais de outras áreas, como
jornalistas, médicos, assistentes sociais e psicólogos, também fazem entrevistas
e não é por isso que fazem algo similar à história oral.
O que os diferencia, antes de tudo, é a abordagem, e também existem
diferenças fundamentais entre os objetivos e os usos da entrevista. Aqui,
veremos como planejar e conduzir uma entrevista a fim de realizar uma
abordagem em que esse recurso se torne fonte histórica.

5.1 Aspectos conceituais

Como vimos, a história oral funciona como um ponto de encontro de


estudos de várias searas das Ciências Humanas: História, Antropologia,
Sociologia, Psicologia, além de problemáticas relacionadas à memória (que
compreende imaginação, esquecimento e memória coletiva).
Dessa interseção, devemos depreender três conceitos centrais por meio
dos quais conduziremos cada etapa da formulação e do uso do testemunho oral
como fonte histórica: comunidade de destino, colônia e redes.

• Comunidade de destino: é a ligação afetiva e a base material de que um


indivíduo dispõe, material que nunca pode ser tomado isoladamente no
tempo/espaço. Compreende elementos de efeitos físicos que dizem

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respeito a situações que ligam pessoas, clãs, famílias, grupos etc., ou
circunstâncias que dão relativa unidade ao destino de pessoas, como
eventos traumáticos (Meihy; Holanda, 2010). Compreende vivências
coletivas, experiências, dramas subjetivos e outros tipos de realidades
históricas que produzem esse tipo de ligação interindividual e
intersubjetiva. Como exemplos, podemos citar: sobreviventes do
Holocausto, eleitores de determinado candidato nas últimas eleições
presidenciais, membros de um determinado sindicato durante a Ditadura
Militar etc.
• Colônia: seria, grosso modo, uma subdivisão da comunidade de destino.
Uma vez delimitada uma comunidade de pessoas ligada por elementos
objetivos e subjetivos, busca-se uma divisão ainda mais específica dela.
Por exemplo, sendo a comunidade de destino “membros de determinado
sindicato durante a Ditadura Militar”, poderiam ser delimitadas nessa
categoria “colônia” as mulheres filiadas a esse sindicato.
• Redes: aqui, será feita uma subdivisão ainda menor: a categoria colônia
pode ser fragmentada em outras unidades mais específicas referentes ao
objeto de pesquisa, de acordo com a problemática desenvolvida.

Esses conceitos mencionados resumem critérios para a delimitação de


fontes que serão utilizadas em uma pesquisa histórica. Isso deverá ser feito de
maneira a responder ao tema/problema da pesquisa, o qual explicamos
anteriormente. A entrevista, aqui, é uma atividade-meio para se colher um
testemunho ou depoimento, e este será um documento histórico analisado em
função de responder à problemática formulada.

5.2 Aspectos práticos

O primeiro passo, que costuma ser também o mais difícil, é localizar a


pessoa que será entrevistada e, posteriormente, estabelecer contato. Existem
muitas barreiras que podem surgir nessa tarefa. No caso, se a entrevista estiver
relacionada a temáticas mais afastadas temporalmente da atualidade, a
tendência é que possíveis entrevistados já tenham idade mais avançada.
Quando se delimita o estudo a comunidades mais tradicionais, pode haver
também algum problema quanto ao acesso a essas pessoas.

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Há também algumas matérias mais sensíveis, que envolvem desde
experiências traumáticas até questões pessoais que podem, via de regra, fazer
com que pessoas se recusem a dar a entrevista. Nesse caso, é importante
planejar algumas alternativas, como outras possibilidades de entrevista em
mente ou alguma documentação complementar às informações esperadas.
Uma vez feita a escolha das pessoas a serem entrevistadas e o contato,
é fundamental também deixá-las à vontade quanto a locais e datas em que
acontecerá a entrevista. Nesse ponto, é necessário lembrarmos de aspectos já
mencionados sobre a história oral dialogar com a Psicologia e sobre o conceito
de comunidade de destino, ou seja, locais específicos podem trazer
determinadas lembranças, ser gatilhos com relação a traumas e mais uma
infinidade de possibilidades que podem até mesmo inviabilizar uma entrevista.
Isso também vale para a datas e possíveis significados subjetivos ou culturais
relacionados a elas.
Além disso, é necessária uma profunda empatia com a pessoa
entrevistada. Isso implica, por exemplo, evitar ao máximo induzir respostas ou
corrigir dados factuais, ainda que toque em temas polêmicos ou problemáticos.
Um exemplo nesse sentido é o livro Ernesto Geisel, que foi produto de 19
sessões de entrevistas com o penúltimo governante do regime militar, feitas
entre 1993 e 1994 por Maria Celina D’Araújo e Celso Castro (1997). É difícil
imaginar que haveria uma boa condução da pesquisa, que resultou em um best-
seller no Brasil, além de grande referência acadêmica no que tange à história
oral e à historiografia da Ditadura Militar, se as entrevistas terminassem em
confrontos de leituras dos historiadores e do militar sobre aquele período.
É fundamental também reforçarmos a importância daquilo que discutimos
sobre a ética no uso das entrevistas e testemunhos orais na pesquisa. Antes de
uma entrevista, autorizações necessárias devem ser pedidas e condições que
forem pedidas devem ser cumpridas. Sem isso, mesmo que a entrevista
aconteça, seu uso e sobretudo a publicação poderão trazer problemas diversos
ao pesquisador/historiador.
Por isso, é imprescindível estar em posse de um termo de autorização de
uso da entrevista. Ele deverá ser assinado pela pessoa entrevistada. Os diversos
núcleos de pesquisa em história oral, centros de pesquisa e programas de pós-
graduação costumam ter seus próprios modelos. Caso não os tenha, o próprio
pesquisador/historiador pode elaborar o seu.

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O que se deve frisar é que o papel do entrevistador é de um especialista
e pesquisador que coleta informações que, posteriormente, serão analisadas e
tratadas como fonte histórica. Por isso, devemos sublinhar novamente que ter
todos os recursos para se gravar adequadamente, de maneira nítida e audível
as entrevistas, é fundamental. Além disso, é importante que o
pesquisador/historiador que trabalha com a história oral tenha um treinamento a
respeito de transcrição de entrevistas, uma atividade bastante trabalhosa e
necessária ao tratamento desse tipo de fonte. Existem alguns softwares, como
o Cogi, o Transcribe, o Speech, o Dragon e o Transana, que são bastante úteis
para transcrever áudios.

NA PRÁTICA

Como prática, a proposta aqui é a de conhecer alguns dos principais


núcleos de história oral do Brasil. Inicialmente, vamos quebrar o estranhamento
com o uso dessas fontes em abordagem histórica. É importante observar as
pesquisas, os acervos on-line, os temas tratados, os recortes históricos, entre
outros pontos.

• Acervo de História Oral – Fiocruz. Disponível em:


<http://www.coc.fiocruz.br/index.php/pt/patrimonio-cultural/acervo-
arquivistico/acervo-de-historia-oral>.
• Laboratório de História Oral e Imagens da Universidade Federal de Juiz
de Fora (UFJF) – LABHOI. Disponível em:
<https://www.ufjf.br/labhoi/projetos/historia-oral/acervo-digital-
labhoiufjf/>.
• Acervo – Laboratório de História do Tempo Presente da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Disponível em:
<.http://www.fafich.ufmg.br/lhtp/acervo/>
• Laboratório de História Oral da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Disponível em: <http://www.labhoi.uff.br/node/29>.

Passo a passo de como encontrar os links:

• Coloque no buscador “acervo laboratório de história do tempo presente


UFMG” para encontrar o núcleo de pesquisa da UFMG.
• Busque “laboratório história oral da UFF” e clique no primeiro ou no
segundo endereço que aparecer.
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• Coloque “acervo de história oral – Fiocruz” no seu buscador. Os primeiros
links direcionarão você ao acervo da Fiocruz
• Coloque “LABHOI” e clique no link “história oral” relacionado ao site
principal para chegar ao núcleo de pesquisa da UFJF.

FINALIZANDO

Em síntese, vimos que a história oral compreende um campo bastante


amplo, complexo e que representa também parte de um importante processo de
renovação historiográfica. Esse campo traz importantes questões éticas e
epistemológicas à área do fazer historiográfico.

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REFERÊNCIAS

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a história oral e as memórias do regime militar brasileiro. São Paulo: Letra e Voz,
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37, p. 121-145, set./dez. 2018.

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