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INTERFACES DISCURSIVAS E A PERSPECTIVA DIALÓGICA DA LINGUAGEM

ORGANIZADORES:

MARIA DE FÁTIMA ALMEIDA

ROSILENE FÉLIX MAMEDES  

Almeida, Maria de Fátima; Mamedes, Rosilene Felix.

Interfaces discursivas e a perspectiva dialógica da linguagem/


Maria de Fátima Almeida; Rosilene Félix Mamedes. – João Pessoa:
Sal da Terra 2022.

Livro digital

ISBN: 978-65-5886-099-0 

1. Interfaces discursivas. 2. Perspectiva dialógica. 3. Linguagem.


SUMÁRIO

ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO: HISTÓRIA, TEORIA, OBJETO E MÉTODOS .. 4

BREVE PASSEIO ENTRE OS DIÁLOGOS DO CÍRCULO DE BAKHTIN ........................ 20

OS SUJEITOS QUE SE CONSTITUEM NA SOCIEDADE DO CANSAÇO ....................... 32

O DISCURSO NA VIDA E NA ARTE: RELAÇÕES DIALÓGICAS NO CASO MIGUEL


OTÁVIO E O POSICIONAMENTO DO OUVINTE .............................................................. 43

A MULHER NOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DO INSTAGRAM: EMBATES


DIALÓGICOS SOBRE A FUNCIONALIDADE E/OU SEXUALIZAÇÃO ......................... 58

“CAL.CI.NHA”: AS ATITUDES RESPONSIVAS FEMINISTAS DIANTE DOS EMBATES


DIALÓGICOS SOBRE A FUNCIONALIDADE E/OU SEXUALIZAÇÃO ......................... 73

O ESPAÇO NARRATIVO EM PRESENÇA DE ANITA: UMA ANÁLISE DA FICÇÃO


TELEVISIVA E A DIALOGIZAÇÃO COM O LITERÁRIO ................................................ 86

A VERBO-VISUALIDADE NA ARTE DE NANCY ROURKE ........................................... 98

ESCRITOS DE SANTA TERESINHA À LUZ DA TEORIA DIALÓGICA DO DISCURSO


................................................................................................................................................ 109
ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO: HISTÓRIA, TEORIA, OBJETO E
MÉTODOS

Ivana Siqueira Teixeira1

RESUMO
O objetivo deste trabalho é desenvolver o percurso histórico sobre o qual a Análise Dialógica
do Discurso está fundamentada, partindo das primeiras discussões acerca da língua/linguagem
ainda na Antiguidade até seu tratamento enquanto objeto de estudo da linguística moderna.
Nesse sentido, iniciamos nosso debate considerando discussões filosóficas e epistemológicas e
posteriormente focamos nas questões teóricas e metodológicas propriamente ditas. Além disso,
torna-se relevante destacar que tal campo teórico-metodológico foi um empreendimento
desenvolvido em território brasileiro e popularizado com a publicação do texto Análise e teoria
do discurso, de Beth Brait (2006), cuja base está fundamentada nos estudos de Bakhtin e seu
Círculo no que diz respeito à linguagem. Tal discussão mostra-se oportuna para que seja
possível compreender as relações de diálogo travadas entre Bakhtin e seu Círculo com alguns
pensadores que os precederam no que diz respeito ao estudo da língua/linguagem. Nesse
sentido, observamos que muitos dos aspectos da teoria dialógica já estavam presentes em
discussões de autores como, por exemplo, Platão (2010) e Aristóteles (2017).

Palavras-chave: Análise Dialógica do Discurso; percurso histórico; epstemologia.

1 INTRODUÇÃO

Considerando a influência e lugar de destaque dos estudos dialógicos no campo da


Linguística, o presente trabalho tem como principal objetivo desenvolver o percurso histórico
que constituiu a Análise Dialógica do Discurso (ADD) enquanto campo teórico, buscando
definir seu objeto e métodos. Iniciaremos nosso debate partindo de discussões filosóficas e
epistemológicas e posteriormente focaremos nas questões teóricas e metodológicas
propriamente ditas. Tal discussão mostra-se oportuna para que seja possível compreender as

1
Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba. Bolsista CAPES. E-mail:
ivanasiqueira@hotmail.com
relações de diálogo travadas entre Bakhtin e seu Círculo com alguns pensadores que os
precederam no que diz respeito ao estudo da linguagem.
Para tanto, faz-se necessário compreender que a ADD, enquanto campo de estudo nos
moldes atuais, foi um empreendimento desenvolvido em território brasileiro e popularizado
com a publicação do texto Análise e teoria do discurso, de Beth Brait (2006), cuja base está
fundamentada nos estudos de Bakhtin e seu Círculo no que diz respeito à linguagem. O
surgimento desse campo foi possível uma vez que o pensamento de Bakhtin e de seus pares já
vinha sendo disseminado no Brasil pelo menos desde a década de 1970, como demonstra Fiorin
(2020).
Entretanto, o interesse pela linguagem não foi exclusividade do Círculo, tendo se
mostrado um tópico de relevância desde tempos muito antigos. Contudo, até chegar ao modelo
hoje desenvolvido, o estudo da linguagem passou por um longo percurso. Nesse sentido, para
traçar esse trajeto, o presente trabalho se organizará em três seções: a primeira, reservada ao
tratamento da linguagem desde à Antiguidade até o período de consolidação da Linguística
enquanto ciência; a segunda levará em consideração o período de atividade do Círculo,
direcionando a discussão a sua filosofia da linguagem; e, por fim, a última seção será reservada
à constituição da ADD como área de conhecimento dentro do campo da Linguística.

2 O TRATAMENTO DA LINGUAGEM DESDE A ANTIGUIDADE À FUNDAÇÃO DA


LINGUÍSTICA

Nesta seção, nos debruçaremos sobre a origem dos estudos da linguagem. Passaremos
brevemente sobre o período clássico grego e romano, teceremos algumas considerações sobre
a composição das primeiras gramáticas e, mais recentemente, trataremos do período em que a
Linguística emerge como primeiro campo científico nas Ciências Humanas, possibilitando,
posteriormente, o surgimento de teorias do discurso neste âmbito. Essa retomada histórica será
importante para que se compreenda as origens do pensamento linguístico moderno, em especial,
aquele que constitui os pressupostos da ADD.
Como critério organizador, dividiremos o estudo da linguagem em três principais
períodos: o paralinguístico, o pré-linguístico e o linguístico. O primeiro, ao considerar a
linguagem um fator acessório, não a toma como seu objeto central, por essa razão, tais estudos
estão em outros domínios do conhecimento que não a Linguística, como é o caso, por exemplo,
da Psicologia. O segundo é considerado um período de estudo pré-científico, em que a
linguagem passa a ser central, mas os estudiosos ainda não contam com uma teoria, um objeto
e um método bem delimitados para realizar suas investigações. E por fim, o terceiro período
conta com a fundação da Linguística: uma ciência que tem como principal objetivo estudar a
linguagem nas suas mais variadas perspectivas.
Um exemplo de estudo paralinguístico foi realizado na Idade Clássica2, no campo da
Filosofia, mais precisamente na Grécia. Os registos escritos desse interesse podem ser
visualizados na obra Crátilo, de Platão (2014). Nela, a linguagem é analisada na sua relação
com o conhecimento3, de modo que o interesse principal do filósofo é precisamente discutir
questões relacionadas ao caráter convencional ou natural da linguagem, bem como à origem
das palavras (natureza do signo).
Essa controvérsia entre convenção e natureza será o combustível para inúmeras
discussões que se seguem após Platão, sendo ainda hoje, um assunto de difícil acordo. Vale
frisar que outras controvérsias também surgiram posteriormente, como a da analogia versus
anomalia e a da arbitrariedade versus motivação do signo.
Além de Platão, Aristóteles (2017), em sua obra intitulada Retórica, também se interessa
pela investigação da linguagem. Na obra em questão, é possível visualizar alguns alicerces do
postulado funcionalista, uma vez que o autor busca compreender o discurso em sua relação com
o orador e ouvinte, e advoga sobre a natureza convencional da linguagem.
De modo geral, os estoicos também desempenharam papel importante no
desenvolvimento do curso dos estudos paralinguísticos. Isso aconteceu, de acordo com Robins
(1979), graças à formalização da oposição entre sentido e forma, que foi responsável pela
distinção entre significado e significante em termos semelhantes ao trazido por Saussure na sua
dicotomia signifiant e signifié.
Um pouco depois, surgem as primeiras gramáticas constituídas a partir de estudos que
mantêm relações com a Filosofia e que buscam proporcionar explicações sobre línguas como o
grego, com Apolônio Díscolo e Dionísio da Trácia, e posteriormente sobre o latim, com Varrão,
Prisciano e Donato. Esses últimos baseando-se nos estudos desenvolvidos pelos primeiros. Os
escolásticos e os modistas também desempenharam papel importante no desenvolvimento de
gramáticas, como nos mostra Robins (1979).

2
É importante mencionar que o período paralinguístico não se esvaiu, de modo que ainda hoje é possível
observar outros campos do conhecimento considerando a linguagem sem tê-la como seu objeto central de estudo.
3
Essa não será a única vez que a Filosofia se interessará pela linguagem. No final do século XIX, outros
filósofos passaram a se ocupar da investigação linguística. Esse período ficou conhecido como Virada Linguística
(RAJAGOPALAN, 1996) e foi representado por estudiosos como Frege e Wittgenstein, ao atentarem para o fato
de que certos problemas filosóficos ocorriam devido à imprecisão da linguagem, em outras palavras, ao seu caráter
opaco.
Nesse sentido, podemos dizer que esses estudos acabaram por desempenhar papel
importante no surgimento, posteriormente, de gramáticas de outras línguas além do grego e do
latim. Assim, os séculos XVIII e XIX foram decisivos para que a Linguística começasse a se
desenhar como um campo de estudo (embora ainda apresentando um caráter pré-linguístico),
tendo como método o histórico-comparativo, de natureza diacrônica. Esse tipo de estudo
vincula-se ao que hoje se conhece como Linguística Histórica ou Linguística Comparativa.
Entretanto é no início do século XX, mais precisamente em 1916 - com a publicação da
obra póstuma de Ferdinand de Saussure, intitulada Curso de Linguística Geral - que a
Linguística adquire status de ciência, delimitando, desse modo, seu objeto de estudo, seus
métodos e sua teoria. Nesse sentido, a língua passa a ser encarada enquanto objeto, a sincronia
substitui a diacronia e sua teoria comporta o pressuposto sobre o qual a língua é um sistema
autônomo, organizado e estruturado (situado no seio da sociedade) que deve ser estudada nas
suas relações, levando-se em conta suas funções. (SAUSSURE, 2012)
Esse movimento - perpassado por dicotomias: sincrônico x diacrônico; langue x parole;
valor x significação etc. - ficará conhecido como estruturalismo e terá dois desdobramentos:
europeu e norte-americano (ILARI, 2011). O primeiro, mais interessado em constituir o
arcabouço teórico e metodológico da Linguística, e o segundo, mais formal e descritivo, tendo
em vista sua relação com o contexto das línguas indígenas sobre o qual sua atenção repousou.
Vale ressaltar que ainda no campo da Filosofia, durante o período renascentista, os
filósofos já faziam divisões entre as correntes empirista e racionalista. Esses dois movimentos
discordavam precisamente em relação à natureza das ideias. O racionalismo concebia a razão,
a natureza do conhecimento e das ideias em seu caráter inato. Enquanto o empirismo enfatizava
a experiência como fonte da razão e do conhecimento.
Também em Linguística desenvolveram-se controvérsias, como, por exemplo, a da
vertente formal versus funcional. O cerne de tal discordância reside na compreensão da língua
enquanto um fenômeno autônomo: enquanto o formalismo defende a autonomia do sistema, o
funcionalismo nega tal visão, dando ênfase ao uso e ao social.
A premissa funcional dará origem a teorias de autores como Roman Jakobson e Michael
Halliday, que compreendiam a linguagem como instrumento de interação social, considerando
os propósitos comunicativos em circunstâncias reais, em que a comunicação molda a linguagem
(PEZATTI, 2011). Já a premissa formalista influenciará, por exemplo, o gerativismo, corrente
que defende a autonomia do sistema linguístico em sua relação com os componentes mentais.
(NETO, 2011)
É importante frisar, como sugere Dillinger (1991), que formalistas e funcionalistas
estudam fenômenos que envolvem o mesmo objeto (ou seja, a língua), mas partindo de
pressupostos distintos. Para o autor, tal divisão é relevante apenas do ponto de vista
investigativo, pois cada corrente possui interesses distintos, de modo que os estudos são
complementares e igualmente necessários.
Tendo traçado todo esse percurso e realizado todos esses movimentos, a Linguística se
estabeleceu. Todavia, vale ressaltar que o conceito de discurso só foi trazido para esse campo
no final da década de 1960, por Michel Pêcheux. Ao realizar uma série de releituras, o autor
funda uma Análise do Discurso baseada no materialismo histórico (Marx), no estruturalismo
(Saussure), e na psicanálise (Freud) (HAROCHE; PÊCHEUX; HENRY, 1971). Contudo, em
outra parte do planeta, um grupo de estudiosos que ficou conhecido posteriormente como
Círculo de Bakhtin, já problematizava inúmeras questões envolvendo linguagem e discurso,
influenciando, décadas depois, no surgimento de uma nova teoria discursiva. Vejamos.

3 O CÍRCULO DE BAKHTIN E SUA FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Situado no contexto de episteme soviética entre os anos de 1919 e 1929, o Círculo de


Bakhtin foi composto por um grupo de intelectuais com deferentes formações que num dado
momento passou a compartilhar um interesse comum pelo estudo da linguagem (FARACO,
2009). Ao nos referirmos ao termo Círculo, tomaremos em especial o nome de três autores:
Bakhtin, Volochinov e Medvedev. O primeiro, um filósofo com formação em estudos literários;
o segundo, um professor que se formou em estudos linguísticos e cujos interesses se voltavam
para a história da música; e o terceiro, tendo formação em Direito, possuía uma carreira na área
da cultura. (FARACO, 2009)
Sempre que são abordadas questões que envolvem os trabalhos do Círculo, é inevitável
que venham à tona três pontos de grande importância: a autoria, a recepção e o caráter inacabado
de algumas obras. De modo conciso, a questão da autoria é de grande relevância, uma vez que
ainda hoje constitui um assunto de caráter polêmico entre os estudiosos por envolver questões
éticas. Ela diz respeito à assinatura, por Bakhtin, de obras cuja autoria ainda hoje não se sabe
com precisão quem as compôs. É o caso, por exemplo, de Marxismo e Filosofia da Linguagem,
que na editora Hucitec, conta com a autoria dupla: Bakhtin/Volóchinov (2014).
Devido aos inúmeros contratempos históricos e sociais que constituíram o período em
que o Círculo esteve ativo, a recepção de sua obra também passou por momentos delicados.
Primeiramente, isso aconteceu devido à associação do Círculo ao marxismo e também ao fato
de que em muitos países, principalmente do Ocidente, a obra desses estudiosos foi publicada
de forma aleatória, sem uma preocupação, por exemplo, com sua cronologia. Além disso, um
outro fator problemático recaiu sobre as traduções realizadas ao redor do mundo, pois, em geral,
não apresentavam boa qualidade e em muitos casos não eram traduzidas diretamente do russo,
comprometendo, desse modo, a compreensão de uma teoria tão densa e rica quanto a do Círculo.
E, por fim, muitos textos, especialmente de Bakhtin, possuem um caráter inacabado,
seja devido as muitas revisitações e revisões realizadas pelo autor, seja por sua incompletude
propriamente dita, uma vez que Bakhtin levou uma vida conturbada pela doença, por uma prisão
e um exílio. A história de Volochinov e Medvedev também contam com um desfecho trágico:
o primeiro morre de tuberculose em 1936, e o segundo desaparece ainda na segunda metade de
1930, provavelmente tendo sido fuzilado em 1940. (FARACO, 2009)
De acordo com Francelino (2007), é o interesse mútuo desses estudiosos pela
linguagem, concebida no seu caráter dialógico, que revelará uma posição oposta frente às
principais tendências que se ocupavam do seu estudo, a saber: a linguagem como expressão do
pensamento (gramática de Port-Royal) e posteriormente como ferramenta de comunicação
(estruturalismo e formalismo). Através desse rompimento, e de um diálogo com o
funcionalismo, a ADD pensou a linguagem como uma instância de inter(ação)4. Nessa
perspectiva, o sujeito que enuncia não apenas expressa seu pensamento ou faz isso com vistas
em fins comunicativos, ele age sobre os outros ao mesmo tempo em que experimenta a ação
dos demais sujeitos sobre si, criando distintos pontos de vista, ou, em outras palavras, diferentes
posições axiológicas. Isso se dá porque, na visão de Bakhtin (2011), o signo é ideológico por
natureza. Tal posicionamento afasta, ainda segundo Francelino (2007), a concepção bakhtiniana
da saussuriana para a qual o signo é arbitrário e imotivado.
Além disso, por conceberem a linguagem como uma atividade social, para o Círculo a
noção de língua como um sistema estável de formas normativas passa a ser somente uma
abstração científica. Ao se posicionar frente a linguagem considerando-a um fenômeno
ideológico por excelência, Bakhtin vai de encontro as duas principais concepções de língua e
linguagem vigentes à época, a saber: o subjetivismo idealista e o objetivismo abstrato. A
primeira - retirando da língua seu caráter social - compreende o sujeito como o centro de tudo
e a língua como uma atividade mental, uma vez que ela seria a expressão do pensamento. A

4
Na visão de Faraco (2009), o tema da interação do Círculo tem raízes na psicologia social, com George
Herbet Mead, que possuía uma concepção de linguagem como ação e não como estrutura, considerando seu caráter
heterogêneo e não homogêneo.
segunda, por outro lado, coloca a língua como centro de tudo ao mesmo tempo em que a
concebe como um sistema de regras passível de descrição.
É por essa razão também que Bakhtin será crítico à Linguística. Ao compreender que o
estudo da língua não poderia se reduzir ao estudo das sentenças, o autor tenta fugir da dimensão
puramente semântica e lógica e propõe um estudo do enunciado, que por sua vez, não é um
fenômeno exclusivo da língua. Para o filósofo, um viés estritamente linguístico não conseguiria
dar conta das relações dialógicas que constituem a língua. Por ver na Linguística praticada à
época uma alternativa insuficiente, ele propõe uma metaglinguística (ou translinguística) capaz
de investigar as práticas socioverbais na sua interação concreta. Entretanto, vale frisar que para
o autor não se tratava de criar uma nova ciência, mas de dar um direcionamento específico a
própria Linguística que deveria se debruçar sobre o enunciado enquanto objeto de estudo5.
(FARACO, 2009)
Do mesmo modo, encontramos um Bakhtin crítico do racionalismo (FARACO, p. 19),
uma vez que não se interessa pelo universal, nem pela lei geral, mas pelo singular, pelo evento.
E é a partir desses pontos que o Círculo irá compor sua obra, revisitando-a e expandindo-a
conforme novas descobertas e rupturas.
De modo conciso, o caráter inovador trazido pelo Círculo na primeira metade do século
XX repousava na concepção de língua como uma atividade, não como um sistema, e do
enunciado “como um ato singular, irrepetível, concretamente situado e emergido de uma atitude
ativamente responsiva, isto é, uma atitude valorativa em relação a determinado estado de coisas.
(FARACO, 2009, p. 24)
São os enunciados, na visão de Bakhtin, os responsáveis por colocar os discursos em
movimento. Por essa razão, o discurso pode ser considerado uma cadeia de enunciados. Esses
estão presentes num ponto espacial e temporal, possuem um autor e um destinatário, de modo
que são sempre produzidos com vistas em ações responsivas. Sobre isso, Faraco (2009, p. 59)
nos mostra que:

Cada enunciado é uma resposta, contém sempre, com maior ou menor nitidez, a
indicação de um acordo ou de um desacordo; é um elo da corrente ininterrupta da
comunicação sociocultural. E, ao mesmo tempo que responde (no sentido de tomar
uma posição socioaxiológica), espera uma resposta (espera que outros assumam uma
posição socioaxiológica frente ao dito). Todo dizer é, assim, parte integrante de uma
discussão cultural (axiológica) em grande escala: ele responde ao já dito, refuta,
confirma, antecipa respostas e objeções potenciais, procura apoio etc.

5
A linguística teria como objeto a sentença, enquanto o discurso teria como objeto o enunciado.
Considerando todos esses aspectos, poderíamos nos questionar: o interesse pelo estudo
da linguagem levou os membros do Círculo para qual direção? Eles eram filósofos, teóricos da
literatura (uma vez que boa parte dos seus estudos partia de obras literárias) ou cientistas? De
acordo com Faraco (2009), os autores se viam distantes do campo da ciência e se enxergavam
enquanto filósofos, tendo nesse sentido o intuito de compreender, antes mesmo de explicar a
linguagem em seu funcionamento. De modo que a filosofia da linguagem desenvolvida pelo
Círculo terá seu período mais produtivo durante a segunda metade da década de 1920.
Além disso, é importante mencionar que, se por um lado Voloshinov e Medvedev
estavam interessados em desenvolver uma teoria de base marxista, Bakhtin não vislumbrou
explicitamente tal empreendimento. Enquanto filósofo da linguagem, o autor buscava
desenvolver uma prima pholisophia, cujo objetivo, de acordo com Faraco (2009, p. 22) era
compreender “a unicidade do ser e do evento (e a consequente necessidade de não separar o
mundo da teoria do mundo da vida)”, além de investigar a relação eu/outro e a dimensão
axiológica subjacente ao processo interacional. Nesse sentido, esses eram os eixos nucleares do
pensamento bakhtiniano e, em certa medida, também de seus pares.
Bakhtin também vai defender a impossibilidade da constituição de enunciados neutros.
Para tanto, parte da premissa básica de que a linguagem possui um caráter imanentemente social
e heterogêneo, de modo que um receptor presumido é intrínseco ao processo de enunciação,
fazendo emergir o traço mais marcante do sujeito dialógico: a alteridade6. Isso acontece pois o
eu só se constitui através do outro.
O sujeito dialógico (situado) é permeado por diferentes pontos de vista, uma vez que
ocupa uma pluralidade de espaços na esfera social. Esses pontos de vista são materializados por
meio de enunciados. É por isso que, para Faraco (2009, p. 21, grifos do autor), “o eu e o outro
são, cada um, um universo de valores”. Em outras palavras, é precisamente por esta razão que
falamos do mesmo mundo utilizando recursos conceituais e valorativos (axiológicos) distintos
(diferentes vozes sociais). É no plano das diferenças axiológicas, pela alteridade, que os atos
dos sujeitos são concretizados. E é por meio da sua própria inserção no universo dialógico,
sobre o qual o papel do outro é fundamental, que o enunciador se constitui e se representa.
Essa pluralidade de sentidos ligada ao discurso advém, de acordo com Faraco (2009,
p.41), “da heterogeneidade e da multiplicidade de verdades construídas pelos grupos humanos

6
Na visão de Faraco (2009, p. 153), a alteridade sobra a qual disserta Bakhtin, tem base no pensamento
hegeliano, na sua “dialética do reconhecimento, em que o eu só aparece como presença de si mesmo pela mediação
do outro”. O primado da alteridade concebe que “tenho que passar pela consciência do outro para me constituir
(ou, num vocabulário mais hegeliano, o eu-para-mim-mesmo se constrói a partir do eu-para-os-outros”. (p. 96)
nas relações sociais”, de modo que tal “pluralidade se materializa, por diversas vezes, no mesmo
material semiótico, que passa, então, a apresentar os mais variados pontos de vista, em alguns
casos até mesmo contraditórios”.
Nesse sentido, é importante ressaltar que, embora os sujeitos tenham a ilusão de que ao
usar a língua enunciam precisamente aquilo que desejam, esse dizer está sempre perpassado
por uma historicidade que possibilita a constituição de diferentes efeitos de sentido. Tal
opacidade é a razão pela qual o signo não possui uma significação dada, pois ele reflete e refrata
a realidade, tendo seu sentido construído na interação, ao se considerar os gêneros do discurso
e as diferentes posições avaliativas (diferentes vozes).
No que diz respeito aos gêneros do discurso, Platão foi o pioneiro no seu trato, ao dividir
a representação literária em lírica, épica e dramática, na sua obra A República, seguido por
Aristóteles (2017), que dividiu os gêneros retóricos em deliberativo, judiciário e epidítico.
Nesses autores, de acordo com Faraco (2009), o foco se estendia para as propriedades formais,
normativas. Em Bakhtin (2016) os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados”,
que podem se modificar e se combinar. Ou seja, o que está em jogo aqui é sua estabilidade
relativa, que prevê uma mobilidade. Por serem formas de orientar coletivamente a realidade, os
gêneros se alteram de acordo com as modificações pelas quais a sociedade passa.
Nesse sentido, para o autor, é imprescindível que nos estudos linguísticos sejam
consideradas as necessidades comunicativas/interacionais, tendo a enunciação, ou seja, o
processo verbal, como ponto focal. Além disso, o autor defende que para que se compreendida
a criação linguística é fundamental que se considerem os valores ideológicos que a constituem.
A língua se estabelece através de fatores externos e internos que se ligam através do dialogismo.
Os fatores externos contam com a posição ideológica dos sujeitos, bem como com o
contexto sócio-histórico em que estão inseridos. Os fatores internos relacionam-se, dentre
outros aspectos, com a consciência do sujeito. Nesse ponto, é importante mencionar que o
Círculo compreende a consciência como sociossemiótica e como “uma articulação entre o
individual e o social de natureza não dicotômica e, ao mesmo tempo, não determinista e não
idealista” (FARACO, 2009, p. 151). De modo que a linguagem, para Bakhtin, desempenharia
a função de articuladora entre o individual e o social. Por essa razão, faz-se necessário constituir
uma teoria linguística que leve em conta, também, a relação social-individual na constituição
da significação. É considerando esses aspectos que a ADD será fundamentada.

4 A ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO: UM EMPREENDIMENTO


BRASILEIRO
Nesta seção, abordaremos de maneira mais direcionada alguns conceitos discutidos pelo
Círculo que foram transpostos para a ADD. Para tanto, serão consideradas as seguintes
categorias: dialogismo, gêneros do discurso, bivocalização, sujeito, ideologia, identidade,
contexto, enunciado e enunciação, significação e tema, acento apreciativo, polifonia,
heteroglossia e atitude discursiva monológica.
Entretanto, antes de discutir especificamente esses conceitos, faz-se necessário
mencionar que no contexto brasileiro, a recepção da obra do Círculo desempenhou papel tão
singular a ponto de, à parte sua complexidade, fundamentar projetos pedagógicos tanto do
Ensino Fundamental, quanto do Ensino Médio, tendo sido inclusive adotada para guiar
propostas dos PCN. Nesse sentido, é importante ressaltar que, em certa medida, tal fator
contribuiu para uma certa banalização de alguns conceitos, tais como: gênero do discurso,
interação e diálogo (FARACO, 2009; FIORIN, 2020)
A noção de dialogismo sofre uma vulgarização por ser reduzida ao diálogo imediato
(interação face a face), além de ser, em muitas ocasiões, tomada no seu sentido de conversa
amigável e conciliadora. De modo que na visão de Fiorin (2020), o termo dialogismo possuiria
3 acepções na obra do Círculo: a primeira no seu sentido amplo ou constitutivo, em que as
relações dialógicas são o traço mais marcante da linguagem humana, e por essa razão o diálogo
em Bakhtin é sempre um ponto de tensão; a segunda no sentido de intertextualidade7; e a
terceira na relação entre a construção da consciência e a subjetividade dos sujeitos. A ADD,
como tal, foca na primeira acepção.
Sem desejar realizar uma discussão universalizante, e tendo em vista as particularidades
de cada pesquisa, não pretendemos tratar as categorias analíticas e metodológicas da ADD de
modo impositivo. Todavia, levando em conta Liberali & Liberali (2011), podemos dizer que,
de modo geral, os estudos em ADD estão alicerçados no paradigma de pesquisa crítico, pois
preocupam-se com interesses práticos e visam à evolução social. Por comumente não trabalhar
com a manipulação dos dados, colhendo-os sem a intervenção do pesquisador, a ADD tende a
desenvolver em suas investigações o método qualitativo. Além disso, se ocupa do estudo dos
significados das ações e relações humanas, buscando compreender e explicar aquilo que se
relaciona ao fenômeno a ser analisado. Por essa razão, nesse campo, a pesquisa tende a ser do
tipo intervencionista, pois envolve o processo de investigação e visa à transformação. Ademais,

7
De acordo com Fiorin (2020), o termo intertextualidade não aparece na obra de Bakhtin, embora o autor
faça menção a relações de diálogo entre textos.
trata-se de uma área de estudo de natureza essencialmente interdisciplinar, uma vez que
considera aspectos linguísticos, sociais, culturais, ideológicos etc.
É nesse sentido que, como um empreendimento desenvolvido no campo da Linguística,
de acordo com Destri & Marchezan (2021), a ADD propõe uma investigação pautada em alguns
focos metodológicos principais, são eles: as relações dialógicas, os gêneros discursivos e as
formas da língua. De modo que tal investigação passa por três momentos: a descrição, a análise
e a interpretação. É importante frisar que as autoras não compreendem esses princípios ou
momentos separadamente, nem mesmo numa relação ordinal. Dito de outra forma, tais
procedimentos estão em constante relação, sendo tal organização uma forma de auxiliar o
analista no momento de investigação.
Como já realizamos uma breve discussão acerca dos gêneros discursivos e do
dialogismo, faremos algumas considerações complementares sobre os tópicos. No que diz
respeito especificamente aos gêneros do discurso, é importante frisar que eles guiam a produção
verbal ao levar em conta o propósito específico dos interlocutores inseridos em diferentes
esferas da atividade humana. Na visão de Fiorin (2020), os gêneros se caracterizam por
possuírem um conteúdo temático, uma construção composicional e um estilo. O primeiro
relaciona-se ao domínio do sentido ao qual determinando gênero pertence. O segundo ao modo
como o texto é organizado e estruturado. Enquanto o terceiro vincula-se à escolha de certas
marcas linguísticas (lexicais, gramaticais etc).
Um gênero revela tanto suas condições de emergência quanto suas finalidades dentro
de cada esfera de atividade. Por isso, numa possível análise, cabe ao analista investigar o
público ao qual determinado enunciado/discurso se destina; quais os propósitos do autor em
relação a tal público; se o gênero escolhido pelo enunciador possibilita que seus objetivos sejam
alcançados, e se sim, como. Bakhtin (2016) compreende que, no processo comunicativo, os
gêneros discursivos são guiados pelo dialogismo, sendo dinâmicos por natureza. Além disso,
eles podem se dividir em duas categorias: primários ou secundários. Os primeiros estão
relacionados aos propósitos comunicativos da vida cotidiana (conversa, piada etc), sendo
predominantemente orais. Já os segundos são gêneros mais elaborados, predominantemente
escritos e pertencentes a esferas de comunicação tais quais: religiosa, política, jornalística etc.
Ao mesmo tempo em que há gêneros mais difíceis de se modificarem, considerados
estandartizados, há aqueles mais flexíveis, que podem até se hibridizar, ou seja, podem ser
modificados após a mistura seja com um gênero da sua mesma esfera ou de uma esfera distinta.
Por isso, na visão de Faraco (2009, p. 131), “novos modos de ver e conceitualizar a realidade
gerarão novos gêneros ou modificarão (...) gêneros existentes que, por seu turno, nos permitirão
ver a realidade de outro modo”. Nesse sentido, os gêneros precisam ser considerados em sua
relação com as formas e as atividades da esfera que em que emergem e se propagam.
A questão das formas da língua compreende que as marcas linguísticas carregam
sentidos históricos, sociais e ideológicos. Essas marcas, podem revelar ao analista sentidos
velados em leituras superficiais que não encaram a complexidade da constituição do processo
de interação verbal. Tais marcas podem se apresentar em escolhas lexicais, sintáticas,
semânticas etc., auxiliando nos movimentos de construção dos gestos interpretativos. A esse
respeito, Francelino (2007, p. 37) defende que “a ‘eleição’ das palavras refere-se à possibilidade
e a variedade de formas que a língua disponibiliza ao falante no ato de produção de linguagem,
quer oral quer escrita”.
Na visão de Faraco (2009, p. 122), a significação “não é dada apenas pelo verbal (pela
estrutura), mas também pela correlação entre o verbal e os horizontes sociais de valor”. Nesse
sentido, antes de negar a natureza formal dos signos, compreende-se que tais formas estão
saturadas por ideologias e posicionamentos, esses sim exercendo influência sobre aquelas e não
o contrário. Dito de outro modo: a forma está à disposição do sujeito no que se refere à
construção de sentido, de modo que tal teoria compreende a língua como um “sistema de formas
em funcionamento”. (FRANCELINO, 2007, p. 34)
Tais marcas, embebidas em relações dialógicas, podem revelar tanto convergências
quanto divergências, pois no enunciado se apresentam forças centrípetas e centrífugas, ou seja,
forças que almejam monopolizar e centralizar os sentidos e forças que fogem a essa unificação,
respectivamente. Essa divergência se apresenta na forma de bivocalização, ou seja, a expressão
ao mesmo tempo da palavra de quem enuncia e da posição do outro sobre a qual o discurso
agora se constrói e se contrapõe. A presença de diferentes vozes estabelecidas levando em conta
diferentes articulações, constitui o enunciador e seu discurso. Por essa razão, de acordo com
Bakhtin (2011, p. 348):

Viver significa tomar parte no diálogo: fazer perguntas, dar respostas, dar atenção,
responder, estar de acordo e assim por diante. Desse diálogo, uma pessoa participa
integralmente e no correr de toda sua vida: com seus olhos, lábios, mãos, alma,
espírito, com seu corpo todo com todos os seus feitos. Ela investe seu ser inteiro no
discurso e esse discurso penetra no tecido dialógico da vida humana, o simpósio
universal.

Em resumo: é importante ter em mente a compreensão da linguagem num processo de


interação, através do qual os discursos dos sujeitos estão sempre entrelaçados, dialogando. O
caráter social e heterogêneo da linguagem incorporado à alteridade releva que um “eu” que
enuncia está necessariamente marcado por um “tu” ideológico que pode apontar tanto para um
momento anterior quanto posterior à enunciação.
No enfoque dialógico, o sujeito é compreendido dentro de um processo social, histórico
e cultural, e compartilha ideologias ao se comunicar através de signos. Segundo Volochinov
(2017), ele é ao mesmo tempo social e singular, pois possui uma consciência que é constituída
socialmente, mas que se apresenta de forma única em cada sujeito. Isso explica a possibilidade
do cada enunciador se expressar de modo singular ao interagir com as diferentes vozes sociais.
As inter-relações responsivas, sobre as quais os sujeitos se constituem, revelam posições
axiológicas que colocam em movimento o universo das práticas sociais, evidenciando
ideologias. Tal categoria, na obra do Círculo, não é vista como dada ou pronta, tampouco como
algo que se instaura apenas na consciência individual dos sujeitos, mas como uma noção que
perpassa a noção dos signos. Sendo assim, ela não pode ser encarada meramente como a
expressão de uma ideia, mas antes como a expressão de uma posição determinada. Nesse
sentido, os autores (BAKHTIN/VOLÓCHIOV, 2014) chamam de universo de signos o
conjunto de signos de um dado grupo social, capaz de revelar um determinado “ponto de vista”,
que por sua vez representa a realidade por meio de um lugar valorativo, podendo revelá-la como
positiva/negativa, verdadeira/falsa, boa/má, de acordo com o domínio do ideológico.
Assim sendo, é necessário compreender que os sujeitos se organizam em grupos sociais,
que por sua vez, se articulam levando em consideração valores e afinidades que compartilham.
Isso definiria, por assim dizer, a identidade e as ações desses grupos. Por essa razão, a noção
de ideologia é fundamental para a circulação de determinados signos e gêneros discursivos em
determinadas esferas de atividade.
Outro aspecto fundamental na nossa discussão é a noção de contextos, que na
perspectiva bakhtiniana, diz respeito tanto ao contexto amplo quanto ao imediato. Nesse
sentido, por meio do contexto, os enunciadores e interlocutores realizam interpretações de
elementos - como cultura, idade, classe social, gênero etc, num dado processo de interação -
que guiam a produção e recepção discursiva. Além disso, é embebida num dado contexto que
a palavra proferida se torna um enunciado. Este, como já mencionamos, necessariamente
irrepetível, possui um sentido além daquele estritamente incluído nos fatores linguísticos e
solicita um olhar direcionado aos elementos da enunciação, ou seja, ao evento comunicativo
que possibilita a aparição momentânea do enunciado (BAKHITIN/VOLÓSHINOV, 2014).
Desse modo, a enunciação, ao se ligar a enunciados anteriores e futuros, produz e faz circular
discursos.
É considerando tais conceitos que podemos falar sobre as noções de significação e tema,
uma vez que o primeiro está relacionado ao linguístico-textual, enquanto o segundo está
relacionado ao enunciativo-discursivo. Dito de outra forma: só podemos desvendar o tema de
uma palavra resgatando elementos da sua enunciação, dos textos com os quais ela dialoga, já
que a palavra possui múltiplas refrações e diferentes axiologias. (CEREJA, 2014)
É nesse ponto que o acento apreciativo também se mostra relevante, pois ele pertence
ao enunciado. Isso significa que uma mesma palavra passa por uma disputa de sentidos dentro
de contextos específicos. A palavra enunciada carrega uma avaliação realizada pelo enunciador
que pode ou não ter um efeito sobre o interlocutor desde que, no processo de produção de
sentidos, este realize uma avaliação comum da situação. Ou seja, há, implicada nos discursos,
uma situação extraverbal que pressupõe sujeitos que compartilham universos, conhecimentos
e/ou sentimentos.
A significação, o tema e o acento apreciativo podem retomar, atualizar ou até mesmo
ampliar os sentidos de dadas palavras e expressões. De acordo com Miotello (2014, p. 173), “a
manutenção da divisão social e a perpetuação da hegemonia da classe dominante exige que os
sinais contraditórios ocultos em todo signo ideológico sejam mantidos apagados”. Essas
estratégias de apagamento podem ser desveladas pela ADD, pois a elaboração e recepção
discursivas são processos que envolvem uma ação reflexiva e crítica dos sujeitos.
No que tange às vozes sociais, Bakhtin (2010) diferencia a polifonia da heteroglossia
(ou plurilinguismo), argumentando que tais categorias não podem ser confundidas. A primeira,
segundo ele, é um fenômeno quase exclusivamente praticado por Dostroiévski, que remete a
uma imensidão de vozes plenivalentes em infinitas relações dialógicas. A segunda, por sua vez,
designa a realidade heterogênea da linguagem. Nesse sentido, a heteroglossia é vista como
dialogizada.
O autor ainda fala sobre o que chama de atitudes discursivas monológicas. Estas
possuem um funcionamento autoritário e se contrapõem a noção de diálogo enquanto
intertextualidade ao se ligarem a forças centrípetas. Nesse sentido, o monológico em Bakhtin
não significa o oposto do dialogismo constitutivo, já que até mesmo a palavra autoritária se
constitui na interação, preservando seu caráter dialógico. A monologização diz respeito a
impossibilidade de uma resposta divergente ou opositiva.
Para encerrar nossa discussão, gostaríamos de enfatizar que a ADD conta com um amplo
quadro de categorias de análise. Por essa razão, não buscamos esgotar as possiblidades de
exposição, mas antes mostrar alguns conceitos que se apresentam de modo mais frequente nos
trabalhos e que por isso, podem ser empregados em diversas análises dentro de suas
particularidades e diversidades.
Por compreendermos o dialogismo que perpassa o conhecimento humano, optamos por
desenvolver um trabalho que resgatasse as principais correntes que influenciaram ou que de
algum modo contribuíram com a constituição da ADD. Buscamos por pontos de convergência
e divergência, nos quais foi possível visualizar diálogos com Platão, em seu pioneirismo sobre
os gêneros do discurso; com Aristóteles, ao considerar o discurso em seu caráter vivo na sua
relação com o sujeito que enuncia e aquele para o qual a enunciado se dirige; na ideia de
interação já presente no funcionalismo e até mesmo na divergência com certos pontos do
estruturalismo saussuriano e do formalismo. São precisamente todos esses elementos, rupturas
e continuidades que fazem da ADD uma teoria de grande envergadura alocada nesse “simpósio
universal” sobre o qual o próprio Bakhtin fez menção.

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BREVE PASSEIO ENTRE OS DIÁLOGOS DO CÍRCULO DE BAKHTIN

Rafaelle de Freitas Oliveira Araújo8


Kátia Regina Gonçalves de Deus9
Elias Coelho da silva10
Maria de Fátima Almeida

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo traçar um breve percurso sobre os diálogos entre a análise do
discurso de vertente bakhtiniana e as filosofias da linguagem com as quais os teóricos do
Círculo de Bakhtin se defrontaram no início do século XX, e que ocuparam lugar de destaque
na constituição de uma concepção de linguagem inerentemente dialógica. Para tanto,
primeiramente, buscamos situar o momento em que a Linguística e o pensamento dialógico dos
estudiosos russos se encontraram num limiar da criação de uma nova perspectiva dos estudos
da linguagem, que já antecipava as teorias discursivas que se consolidariam a partir da década
de 1960. Num segundo momento, descrevemos resumidamente as quatro fases do pensamento
filosófico do Círculo, com base nos estudos de Todorov (2011), e, em seguida, buscamos
acentuar os limites entre a Linguística e o que Bakhtin chamou de Metalinguística, uma teoria
do discurso que, inacabada por natureza, não para de se desenvolver até nossos dias. Ao longo
do processo, observamos que tais limites foram revelados através de pontos de tensão entre as
referidas correntes, e que a partir deles tornou-se evidente que as fronteiras que separam a
Linguística e a Metalinguística são frequentemente transgredidas/violadas, uma vez que, além
de possuírem o mesmo objeto de estudo, a relação entre ambas pressupõe uma postura analítica
de complementariedade, já que partem de pontos de vista distintos.

Palavras-chave: Círculo de Bakhtin. Análise Dialógica do Discurso. Linguística.

1 INTRODUÇÃO

8
Universidade Federal da Paraíba (PROLING), E-mail: rafaelledefreitas@gmail.com
9
Universidade Federal da Paraíba (PROLING), E-mail: katiargd83@gmail.com
10
Universidade Federal da Paraíba (PROLING), E-mail: elias.coelho@ifsertao-pe.edu.br
No início do século XX, a Linguística institui-se como a ciência da língua humana e a
publicação do Curso de Linguística Geral sedimenta uma concepção de imanência nos estudos
dos objetos cuja natureza seja linguística. Assim, a linguística não influenciará apenas o modo
de investigar os aspectos inerentes às línguas humanas, mas também a outras áreas do
conhecimento e, especialmente, à teoria literária.
Na Rússia, o impacto do Curso refletiu-se mais nitidamente nos formalistas russos,
pesquisadores da literatura que, partindo do princípio da imanência da linguagem, investigavam
a obra literária observando suas regularidades e suas relações internas. Apesar da variedade de
vozes que compunham a obra, o que interessava a esses estudiosos era a simetria da linguagem
e sua unidade, tanto do ponto de vista da organização quanto das características comuns ao
estilo do autor.
Mesmo no âmbito da literatura, outra vertente da estética literária corria em paralelo,
num esforço contrário à percepção de língua como um fato social. Uma orientação de origem
humboldtiana, que tem em Vossler seu representante mais imediato em relação à análise
linguístico-literária. Para essa vertente, a criação linguística é da ordem do individual, uma
produção criativa da genialidade humana.
Por convenção, Bakhtin e o Círculo chamam tais orientações de análise linguístico-
literárias de correntes do pensamento linguístico-filosóficas. É em relação a essas correntes que
as teorias desenvolvidas por Bakhtin, Volochinov e Medviédev encontram terreno fértil para se
desenvolver.
Neste artigo, buscamos traçar um percurso em torno do embate do Círculo de Bakhtin e
as referidas correntes linguístico-filosóficas. Primeiramente, elaboramos um rápido panorama
do conjunto das ideias dos estudiosos russos em quatro fases, conforme desenvolvidas por
Todorov (2011) no prefácio à edição francesa. Em seguida, expomos os principais pontos de
diálogo (geralmente tensos) entre as correntes linguístico-filosóficas do início do século XX e
o Círculo de Bakhtin, demonstrando, mesmo que sinteticamente, os limites entre a Linguística
e a metalinguística bakhtiniana.

2 SITUANDO O OBJETO: BREVE ROTEIRO DO PENSAMENTO DE BAKHTIN E O


CÍRCULO

A teoria bakhtiniana do discurso, hoje, tem dado subsídio a outras correntes que
investigam o funcionamento da língua, como a Análise Crítica do Discurso; a Análise do
Discurso Francesa (especialmente, as vertentes desenvolvidas na França por Authier Revuz e
Dominique Maingueneau), a Linguística Aplicada e as teorias do gênero textual. Mas o debate
inicial do Círculo abrangia a Teoria e História da Literatura, a Filosofia, a Linguística e a
Sociologia do início do século XX.
Em diálogo constante com estas diferentes áreas do conhecimento, um princípio
fundante perpassa os estudos do Círculo: “O inter-humano é constitutivo do humano”
(Todorov, 2011, p. XXVI). Bakhtin tentou incessantemente comprovar essa ideia por meio de
diferentes linguagens, a qual Todorov (2011) sintetiza em quatro grandes períodos do
pensamento bakhtiniano, cada um comportando uma linguagem própria de acordo com “a
natureza do campo em que ele observa a ação desse pensamento” (Ibiden, p. XXVI): o
fenomenológico; o sociológico; o linguístico e o histórico-literário.
O período fenomenológico encontra-se em seus primeiros escritos – especialmente em
“Para uma filosofia do ato responsável” e em “O autor e a personagem na atividade estética”
– e busca explicar a relação entre o autor e o herói como “um caso particular da relação entre
dois homens”. No entanto, suas observações o levam a perceber que tal ação não pode ser
entendida como algo muito específico, de modo que aconteça apenas no âmbito da ação
literária, na medida em que ela é indispensável para que o ser humano se constitua num todo:
só um olhar exterior, o olhar do outro, pode completar e concluir minha existência. Segundo
Todorov (2011), Bakhtin demonstra esse fato por meio de dois planos concernentes à pessoa
humana: o espacial e o temporal. O espacial é representado pela figura do corpo, que só pode
ser visto como um todo se olhado de fora, pelo olhar do outro.
O plano temporal tem a ver com “alma”, já que apenas o nascimento e a morte do
homem o constituem completamente, no entanto ele não pode vivenciar nenhum desses
momentos. O homem não nasce com consciência e a perde ao morrer. Portanto, não é possível
vivenciar interiormente sua completude, apenas um indivíduo pode vivenciar o todo do outro.
Nesse sentido, deduz-se que o outro é a única existência capaz de completar o indivíduo, pois
encontra-se assimetricamente relacionado a este tanto em termos temporais quanto espaciais.
A conclusão a que se chega a partir dessas observações é que a pluralidade dos homens
só encontra sentido na relação de complementaridade que se estabelece entre si e não na
multiplicação de suas individualidades, no aumento quantitativo dos “eus”.
O período sociológico centra-se no combate à Psicologia e à Linguística subjetivas, que
tratam o homem como se estivesse sozinho no mundo; e também ao empirismo, que limita o
conhecimento aos produtos observáveis da ação humana. Segundo Todorov (2011), Bakhtin e
seus amigos centram-se no social e entendem que tanto a linguagem quanto o pensamento são
frutos da relação entre sujeitos. Esse período está relacionado às obras que têm sua autoria
compartilhada com Bakhtin, Medvedev e Volochinov.
O período histórico-literário começa em meados dos anos de 1930 e centra-se nos
estudos das obras de Goethe e Rabelais. Nesse momento, Bakhtin faz uma distinção entre a
literatura monológica e a literatura dialógica. Apesar de constatar que a literatura sempre
trabalhou com a pluralidade de vozes, percebe que há um conjunto de obras que tentam apagar
as vozes sociais e subordiná-las a uma só consciência, a do autor, tornando o discurso da obra
em si mesmo homogêneo (TODOROV, 2011, p. XXVII). Por outro lado, autores como Rabelais
e Dostoiévski desenvolvem uma literatura cujas vozes evidenciam uma pluralidade de pontos
de vista equipolentes, fazendo-se revelar a heterogeneidade constitutiva da linguagem.
O período linguístico está distribuído em “Problemas da Poética de Dostoiévski” e “O
Discurso no Romance”. Dando ênfase à enunciação, à interação humana, e não ao enunciado,
aqui Bakhtin lança as bases da disciplina que ele chamaria Translinguística11. Com base na
crítica feita à linguística estrutural e à Poética formalista que reduzem o discurso ao código,
Todorov (2011, p. XXVII) nos faz lembrar que, para Bakhtin “o discurso é uma ponte lançada
entre as pessoas”, e o Círculo demonstra esse fato analisando as formas pela qual as vozes dos
outros são constitutivas da voz do sujeito da enunciação.
Nesse período, podemos inserir também a obra “Marxismo e Filosofia da Linguagem”,
escrita por Volochinov em 1929 que, ao fazer uma síntese da Sociologia e da Psicologia da
Cultura, demonstra como o psiquismo individualista e objetivismo abstrato anulam o sujeito e
o seu outro. O próximo tópico limita-se a discorrer sobre este período com o objetivo de situar
o pensamento do Círculo em relação à filosofia de linguagem de seu tempo. No entanto, foi
necessário situar o pensamento dos estudiosos como um todo, mesmo que sinteticamente, para
que o nosso próximo passo não parecesse a descrição de uma teoria linguística isolada do
conjunto da obra do Círculo de Bakhtin.

3 DA LINGUÍSTICA À METALINGUÍSTICA

Para os estudos dialógicos do discurso a enunciação só se realiza por meio da interação


entre os indivíduos. A verdade da língua consiste nas relações linguareiras entre os indivíduos
socialmente organizados e historicamente marcados. Não existe sentido fora da relação social
da vida humana.

11
Algumas traduções usam o termo Metalinguística.
O esforço do Círculo de Bakhtin em provar que a linguagem é um fenômeno social e
fruto da interação humana nasce em contraponto a duas tendências filosóficas e linguísticas de
sua época: o objetivismo abstrato, que tem Saussure como seu maior representante, e o
individualismo subjetivo, iniciado com Humboldt.
Volochinov (2002) chama a escola suíça de Saussure de objetivismo abstrato por ela
tratar a língua como um fenômeno abstrato, imanente, que funciona por si própria sem a
interferência social dos indivíduos que dela fazem uso. O próprio Saussure ao separar seu objeto
de estudo dirá que a linguagem comporta duas partes, uma social e uma individual. Afirmando
que a parte essencial do estudo da Linguística é a social, “que é [...] independente do indivíduo”
(2012, p. 51). É certo que Saussure não negava o uso da língua pelos indivíduos, mas acreditava
que a essência da língua estava na relação entre suas estruturas, na relação interna do sistema
linguístico.
Para essa tendência, “o centro organizador de todos os fatos da língua, o que faz dela
um objeto de uma ciência bem definida, situa-se [...] no sistema linguístico, a saber o sistema
das formas sintáticas, gramaticais e lexicais das línguas” (Volochinov, 2002, p.77. Itálicos do
autor). A língua, para essa escola, só era social no sentido de que, como um sistema imutável e
independente dos indivíduos, se estabelecia de forma normativa e convencional, aceita por
todos os indivíduos de uma determinada sociedade que dela se apropriam para se comunicar.
Sendo assim, seria ela (a língua) um signo imóvel, estável. Para Volochinov (2002), nesse
sentido, um signo morto, que pode ser resumida nos seguintes pontos centrais de sua filosofia:

1. A língua é um sistema estável, imutável, de formas linguísticas submetidas


a uma norma fornecida tal qual a consciência individual e peremptória para
esta.
2. As leis da língua são essencialmente leis linguísticas específicas, que
estabelecem ligações entre signos linguísticos no interior de um sistema
fechado. Estas leis são objetivas relativamente a toda consciência individual.
3. As ligações linguísticas específicas nada têm a ver com valores ideológicos
(artísticos, cognitivos ou outros). Não se encontra, na base dos fatos
linguísticos, nenhum motor ideológico. Entre a palavra e seus sentidos não
existe vínculo natural e compreensível para a consciência, nem vínculo
artístico.
4. Os atos individuais de fala constituem, do ponto de vista da língua, simples
refrações ou variações fortuitas ou mesmo deformações das formas
normativas. Mas são justamente estes atos individuais de fala que explicam
a mudança histórica das formas da língua; enquanto tal, a mudança é, do
ponto de vista do sistema, irracional e mesmo desprovida de sentido. Entre
os sistemas da língua e sua história não existe nem vínculo nem afinidade de
motivos. Eles são estranhos entre si” (VOLOCHINOV (2002, p. 72).

Na contramão do objetivismo, para o subjetivismo individual, a língua é energia, se


constitui num fluxo ininterrupto de atos de fala individuais. Ao contrário do objetivismo
abstrato, nada na língua permanece estável, cada ato de fala individual é novo e insubstituível,
não reiterável.
Dessa forma, o que interessava para o subjetivismo individual era o

ato da fala, de criação individual, como fundamento da língua (no sentido de toda a
atividade de linguagem sem exceção). O psiquismo individual constitui a fonte da
língua. As leis da criação linguística – sendo a língua uma criação ininterrupta, uma
criação contínua – são as leis da psicologia individual [...] esclarecer o fenômeno
linguístico significa reduzi-lo a um ato significativo [...] de criação individual.

Nesse sentido, Volochinov (2002) sintetiza esta segunda corrente do pensamento


linguístico-filosófico:

1. A língua é uma atividade, um processo criativo ininterrupto de construção


(“energia”), que se materializa sob forma de atos individuais de fala.
2. As leis da criação linguística são essencialmente as leis da criação individual.
3. A criação linguística é uma criação significativa, análoga à criação artística.
4. A língua, enquanto produto acabado (“ergon”), enquanto sistema estável
(léxico, gramática e fonética), apresenta-se como um depósito inerte, tal
como a lava fria da criação linguística, abstratamente construída pelos
linguistas com vista a sua aquisição prática como instrumento para ser usado
(VOLÓCHINOV, p. 72-73).

Para Volochinov (2002), nem sistema abstrato nem produto da consciência individual,
a linguagem só tem sentido na interação, pois ela é fruto da relação entre os indivíduos. Assim
também a língua, enquanto linguagem, não se furta a esse fato. Ela é antes de tudo um fato
social, não no sentido de um fenômeno inerte, pronto para ser usado pelos indivíduos, nem tão
pouco fruto da consciência individual; ela é produto das relações sociais, das necessidades
coletivas de comunicação. Um signo existe sempre como resposta a um outro signo, e é na
relação entre um indivíduo e outro que os sentidos emergem de cada signo, inclusive do
linguístico.
Para o estudioso russo, o que organiza todo ato de fala, ou seja, toda enunciação, não é
nem o interior do sistema linguístico nem o interior do indivíduo ou sua consciência individual,
mas o exterior, o social:

O centro organizador de toda enunciação, de toda a expressão, não é o interior, mas o


exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo. [...] a enunciação
humana mais primitiva, é, do ponto de vista de seu conteúdo, de sua significação,
organizada fora do indivíduo pelas condições extraorgânicas do meio social [...] a
enunciação enquanto tal é puro produto da interação verbal. (VOLOCHINOV, 2002,
p.121).

Segundo Volochinov (2002), toda consciência individual está impregnada de signos e


os signos só emergem na relação entre os indivíduos, na interação entre os sujeitos. Portanto,
para o linguista russo, todo instrumento que serve para representar alguma coisa, que serve para
significar algo, ou seja, todo signo, é social e não há consciência sem signo. Sendo assim, a
consciência também é social: “a consciência só se torna consciência quando se impregna de
conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação
social” (VOLOCHINOV, 2002 p. 34). O signo é fruto da interação entre duas consciências
(inter)individuais.
É exatamente o princípio da interação humana que levará Bakhtin a formular seu
conceito de dialogismo em contraposição à concepção monológica na enunciação. Para o autor,
um dos problemas da filosofia da linguagem é o de pensar a enunciação como um ato
monológico, uma ação de linguagem resultado da consciência de um indivíduo, sem a
interferência de outro sujeito social. O mesmo autor refuta essa concepção, alegando que a
palavra é sempre dirigida a uma outra palavra, um indivíduo sempre se dirige a um outro
indivíduo que não é passivo, mas constitutivo do ato de enunciação do primeiro. Para o filósofo
russo, é impossível a concepção de linguagem sem um sujeito, assim como é impossível a
existência do sujeito sem considerar as relações que o ligam ao outro.
O princípio do dialogismo então está centrado na interação entre os sujeitos sociais. É o
diálogo o princípio básico de sua teoria. Mas diálogo aqui não significa apenas interlocução
face a face, refere-se a relações mais amplas: “(...) pode-se compreender a palavra “diálogo”
num sentido amplo, isto é, não apenas como comunicação em voz alta, de pessoas colocadas
face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (VOLOCHINOV, 2002,
p.123). Souza (2007, p.29) salienta ainda uma dupla orientação dialógica: “um duplo
dialogismo, ou antes, uma dupla orientação, interdependentes: uma relacionada com os sujeitos
do discurso e outra com o próprio discurso”.
A orientação da enunciação para o sujeito do discurso não se faz de forma unilateral, de
um emissor para um receptor, sendo o primeiro dono de tudo que se diz sem a interferência
ativa do interlocutor. Nessa perspectiva, todo discurso prevê uma atitude responsiva (de
compreensão) do interlocutor. Em função deste, o locutor organiza seu discurso esperando
sempre um contradiscurso, não no sentido de contradição, mas de resposta ativa.
Já a orientação para o próprio discurso refere-se à relação constitutiva de todo discurso
com outros discursos que o antecedem e os que ele antecipa. Um discurso surge sempre com
relação a outro discurso em uma determinada situação de comunicação. Referindo-se ao
discurso escrito – mas que pode ser aplicado a todo tipo de discurso – Volochinov (2002, p.123)
afirma que o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de um discurso ideológico em
grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas potenciais,
procura apoio etc. Isso implica dizer que todo discurso é heterogêneo, pois é constituído, e não
pode se furtar a isso, por outros discursos:

Um enunciado vivo, significativamente surgido em um movimento histórico e em um


meio social determinados, não pode deixar de tocar em milhares de fios dialógicos
vivos, tecidos pela consciência socioideológica em torno do objeto de tal enunciado e
de participar ativamente do diálogo social. De resto, é dele que o enunciado saiu: ele
é como sua continuação, sua réplica... (Brandão, 2004, p. 64 apud Bakhtin, 1978).

Segundo Brandão (2004, p. 64), os fios dialógicos vivos a qual se refere Bakhtin são os
outros discursos ou o discurso do outro, que, para a autora, são colocados intertextualmente,
não ao lado, mas, no interior, constituindo o tecido de todo discurso. O discurso “se tece
polifonicamente, num jogo de várias vozes cruzadas, complementares, concorrentes,
contraditórias” (BRANDÃO, 2008, p. 65).
Essa orientação para o outro é a base das relações sociais em todos os campos de
atividade humana e ela se dá por meio da linguagem viva:

A orientação dialógica é naturalmente um fenômeno próprio a todo discurso. Trata-se


de uma orientação natural de todo discurso vivo. Em todos os seus caminhos até o
objeto, em todas as direções, o discurso se encontra com o discurso de outrem e não
pode deixar de participar, com ele, de uma interação viva e tensa (BAKHTIN, 2010,
p. 88).

Saliente-se que a concepção dialógica da linguagem é antes de tudo um desdobramento


de uma filosofia do agir humano: um agir eticamente responsável. Segundo Sobral (2010, p.
24), a filosofia bakhtiniana do ato ético é uma proposta de estudar o agir humano, uma forma
de compreender teoricamente como os indivíduos agem no mundo concreto – social e histórico.
Para Bakhtin, o mundo está em constante mudança, não apenas em termos de seu
aspecto material, mas na maneira de os seres humanos o conceberem simbolicamente” (idem,
p. 24). A relação do homem com o mundo, nessa perspectiva, não é vista apenas pelo aspecto
natural (biológico), mas em termos de representação por meio da linguagem, em situações
específicas, no interior dos mais diversos domínios da cultura imaterial.
Diferentemente dos textos de Volochinov (2002) que criticava veementemente a
linguística saussuriana, Bakhtin (2013) busca estabelecer fronteiras entre a linguística e o que
ele chamará, provisoriamente, de Metalinguística. Para delimitar essas fronteiras, deixa claro
que seus estudos focam o discurso, em suas palavras: “a língua em sua integridade concreta e
viva, e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração
absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso”
(BAKHTIN, 2013, p. 207).
Apesar de tais limitações fronteiriças, Bakhtin (2013) reconhece que nem sempre é
possível não transpor os limites entre a linguística e metalinguística, afirmando que não se deve
ignorar os resultados dos estudos da linguística, que ambas deveriam se complementar
mutuamente, embora não se fundissem. Acrescenta ainda que, na prática, as fronteiras entre
ambas são constantemente violadas, uma vez que estudam o mesmo objeto, porém por ângulos
de visão e aspectos diferentes.
O aspecto diferencial entre as disciplinas seria as relações dialógicas. Enquanto a língua
como objeto imanente estabelece relações entre os elementos internos, a metalinguística
passaria a verificar a vida da língua em seu uso concreto, nas relações entre os enunciados que
se realizam materialmente nas mais diferentes relações humanas. Enquanto a linguística abstrai,
de forma legítima, os usuários do sistema linguístico, Bakhtin (2013) lança mão dos sujeitos
como produtores de sentido. Agentes da interação verbal e modificadores do sistema: agem
na/pela língua.
Como pode-se perceber, para o objetivo do Círculo, a Linguística não dispunha de
método e instrumentos suficientes. Era necessário, portanto, lançar mão de metodologias e
categorias que fossem além do que as correntes linguísticas-filosóficas da época ofereciam. Isso
porque, como acentua Bakhtin (2013), as relações dialógicas são irredutíveis às relações
sintáticas, semânticas ou lógicas. Elas estão no âmbito da história, da sociedade e da ideologia,
materializadas nas formas da língua e funcionando por meio delas.
Isso não significa, porém, que os estudos dialógicos não possam se centrar em aspectos
morfológicos, sintáticos ou semânticos do discurso, pelo contrário, são neles que se encontram
a possibilidade de materialização das ações humanas. O que difere é exatamente essa percepção
de que a forma de organização da língua em diferentes enunciados reflete e refrata as formas
de vida dos sujeitos. Por tanto,

Para se tornarem dialógicas, as relações lógicas e concreto-semânticas devem, como


já dissemos, materializar-se, ou seja, devem passar para outro campo de existência,
devem tornar-se discurso, ou seja, enunciado, e ganhar autor, criador de dado
enunciado cuja posição ela expressa (BAKHTIN, 2013, p. 210).

Para Bakhtin (2013), o grande problema da teoria literária era exatamente buscar
entender a obra da mesma forma que a linguística buscava entender a língua. A verdadeira
realidade da obra literária não estava na relação entre seus componentes internos, mas nas
relações dialógicas de seus enunciados. Sua crítica basilar recai sobre os formalistas russos, os
grandes representantes dessa vertente na teoria literária.
Ao refutá-los, Bakhtin (2015, 63) reafirma que
A língua, como o meio concreto vivo habitado pela consciência do artista da palavra,
nunca é única. Só é única no sistema gramatical abstrato de formas normativas,
desviadas das assimilações ideológicas concretas que a preenchem e dá contínua
formação histórica da língua viva [...] Os elementos fechados e abstratos da língua no
interior desses diferentes horizontes são completados por conteúdos semânticos e
axiológicos e soam de modo diferente (BAKHTIN, 2015, p. 63).

Assim, o pensador russo traz mais um elemento que define a fronteira entre os estudos
dialógicos (ou metalinguística) e os da linguística: a estratificação social da língua. A
heterogeneidade natural das línguas, que se manifesta em diferentes estratificações sociais nas
falas das personagens literárias assim como nos diferentes gêneros do discurso: “Vários
elementos da língua ganham o aroma específico desses gêneros: agregam-se aos pontos de vista
específicos, aos enfoques, às formas de pensamento, às nuances e aos acentos de dados gêneros”
(BAKHTIN, 2015, p. 63). Semelhantemente, tem-se ainda que a “língua chega ao romancista
estratificada e heterodiscursiva” (BAKHTIN, 2015, p. 123).
Os embates do Círculo de Bakhtin em torno da língua e da literatura em oposição às
correntes linguístico-filosóficas e da teoria literária de seu tempo se deram, em última instância,
na busca incessante de seus integrantes pelo sentido, pelo sujeito humano enquanto produtor de
sentido. Em suas interpretações sobre a obra do Círculo e seus embates, Todorov (2011) salienta
que o projeto dos estudiosos se centrava, desde os primeiros escritos, no ser, no sujeito e na sua
agentividade por meio da linguagem, o único espaço capaz de produzir liberdade ao sujeito:

Na ordem do ser, a liberdade humana é apenas relativa e enganadora. Mas na ordem


do sentido ela é, por princípio, absoluta, uma vez que o sentido nasce do encontro de
dois sujeitos e esse encontro recomeça eternamente [...] o sentido é liberdade e a
interpretação é o seu exercício (TODOROV, 2011, p. XXXII).

Não há interpretação sem o diálogo permanente entre os discursos. É esse encontro


incessante o qual o Círculo de Bakhtin se propôs investigar, não negando os aspectos abstratos
da língua, mas apontando para a importância de suas diferentes formas de realizações pelos
seus usuários em diferentes situações de comunicação.

4 CONSIDERAÇÕES INACABADAS

Neste breve artigo nos propomos fazer um passeio pelos caminhos que trilhou a teoria
dialógica do discurso, oriunda dos pensadores que compunham o conhecido Círculo de Bakhtin.
É evidente que este texto é limitado e suas observações não dão conta de todos os diálogos com
os quais os pensadores russos se defrontaram.
Nosso interesse foi mais especificamente as correntes linguístico-filosóficas com as
quais o Círculo se defrontou com o objetivo de delimitar e definir os objetos de investigação
daquilo que Bakhtin chamaria provisoriamente de Metalinguística. No entanto, não poderíamos
deixar de sumarizar os diferentes momentos da evolução do pensamento filosófico que
subsidiou toda teoria bakhtiniana.
Hoje, é lugar comum lançar mão de algum preceito do Círculo quando o objeto de estudo
é o discurso, mesmo que para refutá-lo. A noção de sujeito ganhou várias nuances e o aspecto
heterogêneo da linguagem (e da língua) também se desenvolvem em outras vertentes mais
próxima da Linguística do que das teorias do discurso. Porém, ainda nos anos de 1930, na
ascensão da linguística estrutural, as noções de língua, sujeito e discurso propostas pelos
pensadores russos em muito já antecipavam as teorias do discurso dos anos de 1960.
Grande parte dos textos do Círculo são documentos inacabados. Muitos conceitos e
categorias não foram devidamente desenvolvidos, mas o material que hoje dispomos fornece
instrumentos importantes para a ampliação de sua heurística. De uma forma ou de outra, situar-
se hoje nos estudos dialógicos do discurso é, antes de mais nada, limitar as fronteiras entre uma
linguística da língua e uma linguística do discurso. Mesmo que na prática, essas fronteiras sejam
constantemente violadas.

REFERÊNCIAS

VOLÓCHINOV, V. Marxismo e filosofia da Linguagem. 10ª. ed. São Paulo: HUCITEC,


2002.

BAKHTIN, M. M. Teoria do Romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São


Paulo: Editora 34, 2015.

_______________. Problemas da poética de Dostoievski. 5ª. ed. Rio de Janeiro: Forense


Universitária, 2013.

BRANDÃO, H. N. Introdução à Análise do Discurso. 8ª. ed. Campinas - São Paulo: Editora
da UNICAMP, 2002.

SOBRAL, A. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do círculo de Bakhtin. Série


Ideias sobre a Linguagem. São Paulo: Mercado das Letras, 2009.

SAUSSURE, F. de. Curso de linguística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo
Paes e Isidoro Blikstein. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

SOUZA, M. E. V. de. Enunciação, dialogismo, discurso e interdiscurso: deslocamentos e


aproximações. In: Revista do GELNE – Grupo de Estudos Linguísticos do Nordeste –
Vol.8 – Nos. ½ - João Pessoa: Ideia, 2007 [2008].
TODOROV, T. Prefácio à Edição Francesa. In: BAKHTIN, M. M. Estética da Criação
Verbal. 6 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011.
OS SUJEITOS QUE SE CONSTITUEM NA SOCIEDADE DO CANSAÇO

Lorraine Ramos Dobrovosk 12


Jussara Candida Correia de Oliveira Farias 13
Maria do Rosário Sousa14

RESUMO
Este trabalho pretende analisar os sujeitos constituídos na sociedade atual, apresentando suas
principais características, causas e consequências, assim como possíveis indicações
“terapêuticas”, tendo como referência o pensamento de Byung-Chul Han, relacionando-o com
o arcabouço teórico de Mikhail Bakhtin, em suas categorias de alteridade e responsividade.
Como profissionais da linguagem, tal estudo mostra-se de grande relevância já que
compreender o ser humano, em seu contexto pessoal e cultural, é um pressuposto irrenunciável
para o desenvolvimento de qualquer ação educativa. Para tanto, propomos aprofundar as obras
“Sociedade do Cansaço”, principal referência literária de Byung-Chul Han nesse estudo,
“Estética da criação verbal” e “Para uma filosofia do ato responsável”, por meio de um estudo
bibliográfico e documental, com análise descritiva e interpretativa, à luz da metodologia das
ciências humanas desenvolvida por Bakhtin (2017).

Palavras-chave: Sujeito. Hiperatenção. Contemplação. Sociedade. Responsividade.

1 INTRODUÇÃO

“Cada época possui suas enfermidades fundamentais.” (HAN, 2017, p. 7). Com essa
frase, Byung-Chul Han inicia sua obra “Sociedade do Cansaço”. A partir dessa afirmação,
devemos nos perguntar: qual ou quais as enfermidades da sociedade atual? Para o autor, sob
uma perspectiva patológica, a resposta, no contexto do início do século XXI, não é definida
como bacteriológica nem viral, mas neuronal. Assim, doenças como a depressão, transtorno de
déficit de atenção com síndrome de hiperatividade (TDH), transtorno de personalidade limítrofe

12
Universidade Federal da Paraíba: Proling, E-mail: l.dobrovosk@gmail.com
13
Universidade Federal da Paraíba: Proling, E-mail: jussaracandidafarias@gmail.com
14
Universidade Federal da Paraíba: Proling, E-mail: irrosario@gmail.com
(TPL) ou Síndrome de Bournout (SB) são consequências do estilo de vida difundido e
preconizado pela cultura pós-moderna.
A pergunta sobre as enfermidades contemporâneas coincide com a indagação central
deste estudo: qual sujeito que está sendo “gestado” nesse contexto social? Pois, todo estilo de
vida sociocultural é internalizado e encarnado numa pessoa concreta. Desse modo, tendo em
vista que o ser humano é dotado de interioridade, capaz de uma vida espiritual e intelectiva, e
não apenas um ser que se conforma às circunstâncias externas, é preciso questionar-se sobre a
vida interior do sujeito moderno. Mas, talvez, esse seja o grande entrave atual. Seria o homem
e a mulher modernos capazes de enxergar-se? De perceberem quem estão se tornando? E se
estão se tornando o que são por escolha livre ou condicionada. Além, de perceberem sua
influência no mundo em que vive, assumindo um papel responsivo perante ele.
Apresentaremos três aspectos fundamentais do sujeito da sociedade do cansaço,
segundo Han: o sujeito sem alteridade, da hiperatenção e do esgotamento, relacionando com as
categorias bakhtinianas de alteridade e responsividade. Após tal reflexão dialógica, nos
deteremos em descrever o que seria o “sujeito do povir”, diante desta sociedade, numa tentativa
de apontar caminhos terapêuticos que sejam relevantes para qualquer reflexão sociocultural,
especialmente, a abordagem educativa.
Desse modo, o objetivo central deste artigo é identificar os sujeitos que se constituem
na obra “Sociedade do Cansaço” e dos conceitos bakhtinianos, tais como alteridade e
responsividade, à luz da metodologia das ciências humanas.
Tem, igualmente, como o escopo de apresentar as características do sujeito do
desempenho, sujeito ausente de alteridade, da hiperatenção e do esgotamento, relacionando-os
com as categorias bakhtinianas de alteridade e responsividade e propor uma posição axiológica
sobre o sujeito do porvir, a partir da reflexão da realidade e do que é necessário transformar.
Do ponto de vista metodológico, tendo em vista as importantes ponderações sobre a
obra “Sociedade do Cansaço”, faremos a análise do sujeito que Byung-Chul Han concebe, numa
relação dialógica, à luz da conceituação das Metodologias das Ciências Humanas desenvolvida
por Bakhtin (2017).
Com base nos estudos de Bakhtin, “Um texto só tem vida contatando com outro texto
(contexto)” (2017, p. 67), pois a fonte em que se busca o conhecimento sobre determinado
assunto, é responsável pelo diálogo estabelecido. Assim, na perscrutação deste artigo, se
destacam duas importantes obras de Bakhtin, traduzidas por Paulo Bezerra, a primeira “Estética
da Criação Verbal” (2011), com o título “Metodologia das Ciências Humanas” e a segunda
“Notas Sobre literatura, cultura e ciências humanas” (2017), com o título “Por uma metodologia
das ciências humanas”. Destacamos, ainda, alguns teóricos, os quais Han (2017) cita em sua
reflexão, na busca do sujeito da sociedade do desempenho, como, por exemplo: Kant, Werber,
Freud, entre outros.
Diante de tais premissas, ao falarmos sobre uma sociedade composta por sujeitos que
assumem papéis de extrema cobrança e que se lançam no desafio da não aceitação da
fragilidade, do erro e do fracasso, como parte na vida hodierna, sendo esse ser que abraça a
exigência da sociedade do desempenho, como cita Han (2017), destacamos o papel que Byung-
Chul Han assume ao realizar sua pesquisa na obra supracitada, descrevendo os indivíduos que
a constitui.
Podemos discorrer, de maneira pormenorizada, segundo Bakhtin, a respeito do sujeito
pesquisado: “o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante. Esse ser nunca coincide
consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado” (2017, p. 59). Essa
apresentação do sujeito que se revela ao observador, fala de modo que nos leva a refletir acerca
das pressões mundiais que vivemos, das transformações da vida que durante os séculos
acontecem, e das imposições colocadas por essa sociedade que, também, é da aprendizagem,
segundo Lévy (2015).
As estruturas em que se organizam as pesquisas, o investigador e o objeto investigado,
alicerçam toda a comunicação produzida no campo da metodologia das ciências humanas. Com
isso, aprofundamos a análise das sistematizações com as quais Han (2017) configura o discurso
sobre a sociedade apresentada, pois nessa relação desenvolve-se o cerne da pesquisa em que o
pesquisador (o cognoscível) se coloca em constante diálogo com seu objeto de pesquisa (o
cognoscente).
Com isso, Bakhtin destaca:

O conhecimento da coisa e o conhecimento do indivíduo. É indispensável caracterizar


os dois como limites: a pura coisa morta, dotada apenas de aparência, só existe para o
outro e pode ser totalmente revelada, do início ao fim, por um ato unilateral do outro
(o cognoscente). Tal coisa, desprovida de interior próprio inalienável e não utilizável,
pode ser apenas objeto de interesse prático. O segundo limite é a ideia de Deus, o
diálogo, a interrogação, a prece. A necessidade da livre auto revelação do indivíduo.
Aqui há um núcleo interior que não pode ser absorvido, consumido em que sempre se
conserva uma distância em relação à qual só é possível o puro desinteresse; ao abrir-
se para o outro, tal distância sempre permanece também para si. Aqui o cognoscente
não faz a pergunta a si mesmo nem a um terceiro em presença da coisa morta, mas ao
próprio cognoscível. (BAKHTIN, 2017, p. 57-58).

Tendo o pesquisador o conhecimento desenvolvido sobre o assunto destacado, e o


conhecimento prévio das influências que interverem na pesquisa, como indivíduo participativo
do mundo em que vivemos, foi possível o autor/escritor ampliar o contexto, mesmo dentro do
limite da procura, revelar o sujeito por meio do diálogo proposto na investigação, através do
retorno, do feedback, na busca direta do outro, pois Bakthin afirma que nas indagações “o ser
que se auto revela não pode ser forçado nem tolhido” (2017, p. 59).
Por isso, a importância da fidelidade ao que foi exposto, da ética na pesquisa para
revelação desse indivíduo, que surge no processo científico, com sua fala livre que cabe ao
pesquisador descrevê-la ao máximo do que foi declarado.
Nessa postura de cognoscente, Byung-Chul Han destaca a seguinte fala para constituir
e revelar o cognoscível que emerge na sociedade do cansaço:

O sujeito de desempenho explora a si mesmo, até consumir-se completamente


(burnout). Ele desenvolve nesse processo uma autoagressividade que não raro se
agudiza e desemboca num suicídio. O projeto se mostra como um projetil, que o
sujeito de desempenho direciona contra si mesmo. Frente ao eu-ideal, o eu real
aparece como fracassado, acossado por suas autoreprimendas. O eu trava uma guerra
consigo mesmo (HAN, 2017, p.102).

Ademais, no que diz respeito aos aspectos metodológicos da pesquisa, este artigo é de
natureza qualitativa, por meio de um estudo bibliográfico e documental, com análise descritiva
e interpretativa. Segundo Malhorta (2001, p.155) “a pesquisa qualitativa proporciona uma
melhor visão e compreensão do contexto do problema”. Para isso, seguimos as seguintes etapas:
1. Levantamento e seleção dos estudos que compõe a pesquisa 2. Descrição dos elementos
principais sobre os temas abordados. 3. Interpretação e análise dos dados à luz da metodologia
das ciências humanas desenvolvida por Bakhtin.

2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Para Han, a sociedade do século XXI sofre com as enfermidades neuronais, ou seja,
doenças ligadas às dimensões neurológicas e emocionais do ser humano. Isso porque o sujeito
que está sendo gestado nesta sociedade tem sido submetido a uma série de enfrentamentos
diferentes de contextos culturais passados.
A sociedade atual não é mais disciplinar, mas uma sociedade de desempenho e os
sujeitos que a constituem não são regidos pela obediência, mas pela superprodução. Assim,
todo o processo de vida do homem moderno o encaminha para o trabalho. São sujeitos
empresários de si mesmos, sufocados pela necessidade de corresponder a um padrão
estabelecido de desempenho econômico, social, intelectual, etc., numa ideia abstrata de “poder
ilimitado”. Assim, proibições ou normas, próprias da sociedade disciplinar, dão lugar às
iniciativas, projetos e motivação.
O sujeito de desempenho da modernidade tardia não se submete a nenhum trabalho
compulsório. Suas máximas não são obediência, lei e cumprimento do dever, mas
liberdade e boa vontade. Do trabalho, espera acima de tudo alcançar prazer.
Tampouco se trata de seguir o chamado de um outro. Ao contrário, ele ouve a si
mesmo. Deve ser um empreendedor de si mesmo. Assim, ele se desvincula da
negatividade das ordens do outro. Mas essa liberdade do outro não só lhe proporciona
emancipação e libertação. A dialética misteriosa da liberdade transforma essa
liberdade em novas coações. (HAN, 2017. p.83)

Para o autor, a sociedade regida pela disciplina pode gerar pessoas loucas ou
delinquentes, já a sociedade do desempenho pode produzir pessoas depressivas e fracassadas,
num imperativo de obediência (ou decepção) a si mesmo e carência de vínculos, característica
da sociedade líquida na qual vivemos.
Desse modo, o vácuo de “ser” é substituído pela excessiva necessidade de exposição. O
parecer torna-se uma compensação do ser. Sendo assim, “as coisas só começam a ter valor
quando são vistas e expostas, quando chamam a atenção. [...] Sim, hoje nós nos fazemos
importantes nas redes sociais, no facebook.” (HAN, 2017, p. 125-126).
Vivemos, assim, uma “obesidade” de todos os sistemas, expressão própria de
Baudrillard (in: HAN, 2017, p. 15), que indica uma sobrecarga de informações, de comunicação
e produção. Sendo assim, essa exacerbação ameaça as forças humanas de defesa imunológicas
da pessoa, levando-a ao esgotamento, exaustação e sufocamento frente à demasia do contexto
social. Todos esses adoecimentos são manifestações da violência neuronal vivida pelo sujeito
dessa sociedade do desempenho.
Arendt, na sua obra “Vida Ativa”, aponta que a modernidade, que teve início com uma
motivação heroica, poderá findar numa passividade mortal. Nesse sentido, uma sensação
constante de transitoriedade toma o ser humano. Nada é permanente, nem promete duração ou
subsistência. Assim, a pessoa perde a fé, não apenas num sentido religioso, mas vital, tornando
a existência um vazio de esperança e sentido, no presente, futuro e, até mesmo, numa suposta
eternidade.
Analisando a obra de Chul Han, percebemos que três realidades se sobressaem
caracterizando o sujeito dessa sociedade do cansaço ou desempenho: a ausência de alteridade,
a hiperatenção e o esgotamento.
Ao confrontarmos dialogicamente tal realidade com a teoria de Bakhtin, encontramos
duas categorias que se contrapõem e, ao mesmo tempo, iluminam caminhos terapêuticos para
constituir um sujeito do povir, capaz de viver e transformar o meio social e cultural no qual está
inserido: alteridade e responsividade.

2.1 OS SUJEITOS DA SOCIEDADE DO CANSAÇO


2.1.1 O sujeito sem alteridade

Para Han, “a alteridade é a categoria fundamental da imunologia” (2017, p. 10), ou seja,


nossas defesas orgânicas e emocionais são fortalecidas pela capacidade de viver com o alter, o
diverso, o contrário. Assim, o desaparecimento da alteridade indica a construção de uma época
pobre de negatividades (2017, p. 14). Desse modo, nossos adoecimentos neuronais são
consequências de um excesso de positividade, isto é, uma negação de possibilidades negativas
ou um exagero de expectativas ilusórias sobre a vida.
Uma das enfermidades mais presentes nessa sociedade é a Síndrome de Burnout, que,
segundo Han, é uma queima do eu por superaquecimento devido a um excesso de igual, isto é,
os sujeitos já não desenvolvem sua singularidade dialógica, mas são forçados a reproduzirem
caricaturas sociais. Uma enfermidade que significa não apenas um esgotamento de forças, mas,
antes, uma alma consumida (HAN, 2017, p. 27).

O sujeito de desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado


consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo.
Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se
remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a auto erosão e ao esvaziamento.
Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor
de si mesma. Também os novos meios de comunicação e as técnicas de comunicação
estão destruindo cada vez mais a relação com o outro. O mundo digital é pobre em
alteridade e em sua resistência. (HAN, 2017. p. 91)

Vemos, assim, que o sujeito do desempenho encontra-se em guerra consigo mesmo,


numa acusação constante contra si, numa luta para ser o que não é ou não consegue ser a partir
do que a sociedade lhe impõe. “O depressivo é o inválido dessa guerra internalizada.” (HAN,
2017p. 29).

2.1.2 O sujeito da hiperatenção

No livro “Sociedade do Cansaço”, a atual realidade humana é comparada à vida


selvagem, uma vez que nela o animal está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades,
reduzido à incapacidade de aprofundamento contemplativo, por exemplo, no comer e no
copular. O animal não pode ter um mergulho meditativo no seu próprio eu interior, já que está
constantemente “fora de si”, em multitarefas.
De igual modo, atividades como redes sociais, jogos virtuais, entre outros produzem
uma atenção ampla e constante num excesso de estímulos, informações e impulsos. No entanto,
essa atenção é rasa, semelhante à de um animal selvagem. Desse modo, na sociedade do
desempenho, a preocupação por viver bem e de forma equilibrada cede lugar à ânsia por
sobreviver. O olhar profundo, atualmente, é deslocado para uma forma de atenção distinta, a
hiperatenção, o que evidencia uma pequena tolerância para o tédio e não admite o ócio criativo.
Logo, a pura inquietação não gera nada de novo, ao contrário, prende o ser humano num círculo
vicioso em que ansiedade por novos estímulos se alternam com períodos de tédio e insatisfação.
No entanto, o desempenho cultural e emocional do homem deriva-se de uma atenção
profunda e contemplativa. Só o perpetuar-se contemplativo dá abertura ao lento, à atenção
plena, o que escapa à hiperatividade. Sem o recolhimento contemplativo, o olhar perambula
inquieto e não cria nada novo. Assim, o sujeito da hiperatenção contrapõe-se ao artístico, já que
a arte é uma ação expressiva do eu capaz de encanto com a beleza, a bondade e a verdade
contidas em todas as coisas, acessíveis somente a um olhar demorado.

2.1.2 O sujeito esgotado

A sociedade do desempenho torna-se, ironicamente, a sociedade do cansaço e do


esgotamento (HAN, 2017, p. 69), resultado do esforço constante em produzir, alheia a sua
intrínseca dimensão relacional, constantemente exposta e atenta.
Há uma diferença entre cansaço positivo, chamemos assim, e o esgotamento descrito
por Han. O positivo inspira, significa capacidade de parar e celebrar o fruto do próprio esforço.
Este cansaço é “sagrado”, é “um dia no qual seria possível o uso do inútil.” (HAN, 2017, p. 76),
do lúdico e do ócio criativo.
Já o esgotamento é chamado por Han como “cansaço solitário”, em que as pessoas se
afastam umas das outras, atingindo a capacidade humana de ver e falar, logo a possibilidade de
estabelecer comunidades sociais. Sendo assim, não se trata de uma incapacidade de agir ou
fazer alguma coisa, o que é normal e, inclusive, saudável, mas de ser, levando a pessoa a “pôr
do lado” coisas e pessoas, até ele mesmo. Como descrito por Han, “o cansaço profundo afrouxa
as presilhas da identidade. As coisas pestanejam, cintilam e tremulam em suas margens.
Tornam-se mais indeterminadas, mais permeáveis, e perdem certo teor de decisibilidade.”
(HAN, 2017, p. 75).
Assim, a sociedade do cansaço é, também, segundo Han, a sociedade do doping, recurso
extremo de desempenho sem desempenho (2017, p. 69), sob o efeito de substâncias que
transformam o ser humano numa máquina. No entanto, esse excesso de desempenho leva a
pessoa a um “infarto da alma” (HAN, 2017, p. 71).
2.2 OS SUJEITOS SEGUNDO AS CATEGORIAS BAKHTINIANAS DE ALTERIDADE E
RESPONSIVIDADE

2.2.1 O sujeito relacional

Na lógica bakitiniana, o ser humano é intrinsecamente relacional. Para Bakhtin, é na


relação com a alteridade que os indivíduos se constituem e, a partir do momento em que o
indivíduo se constitui, ele também se altera, constantemente. O ser se consolida socialmente,
através das interações, das palavras e dos signos.
Em “Estética da criação verbal”, Bakhtin afirma que é impossível alguém defender sua
posição sem correlacioná-la a outras posições, ou seja, nossos pensamentos, opiniões, visões de
mundo, consciência etc., se constituem a partir de relações dialógicas e valorativas com outros
sujeitos. A Alteridade é o fundamento da identidade. Relação é a palavra-chave na teoria
bakitiniana. Nós existimos apenas a partir do outro. (2010, p.13-14).

O limite da exatidão nas ciências naturais é a identidade, a garantia de controle da


natureza fundada no pressuposto da necessidade das relações; nas ciências humanas,
a exatidão consiste na capacidade de não fundir em um só os dois sujeitos ou, nas
palavras de Bakhtin, de sobrepujar a alteridade daquilo que é o outro sem o
transformar em qualquer coisa que é para si. (FARACO, 2009, p. 44)

2.2.2 O sujeito responsivo

A concepção de sujeito proposta pela teoria bakhtiana concebe que o ser é constituído
na eventicidade. Esse fundamento surge na obra “Para uma Filosofia do Ato” em que Bakhtin
evidencia ser o ato uma resposta que comporta uma unidade composta tanto do sentido quanto
do fato, do individual e do universal, do ideal e do real.
Para Bakhtin, ato não é somente ação, mas, também, pensamento e sentimento. (2010,
p. 9). Ato é uma iniciativa, um passo, em última análise, é tomar uma posição. Uma expressão
da intencionalidade singular de cada ser. É um dever-ser, já que “não há álibi para a existência”
(BAKHTIN, 2010, p. 10). Ato responsável é uma expressão recorrente em Bakhtin, no sentido,
também, de ser responsivo, ou seja, “que salienta a conexão entre compreensão e escuta, escuta
que fala, que responde, mesmo que não imediata e diretamente” (BAKHTIN, 2010, p. 11). A
responsabilidade não pode ser transferida.
Tendo em vista, segundo Bakhtin, que o sujeito nunca pode ser visto deslocado do seu
contexto vivencial, há uma profunda ligação entre pessoa e cultura social. Para ele, viver a partir
de si mesmo, de seu próprio lugar singular, não significa viver para si, por conta própria, mas,
do seu lugar, assumir a não-indiferença perante a vida e as circunstâncias. O mundo é sempre
uma singularidade onde a pessoa se encontra, pensa, atua e decide (BAKHTIN, 2010, p. 21).

3 RESULTADOS E DISCUSSÃO

Diante de tais reflexões, nos perguntamos: qual seria, portanto, o sujeito ideal ou, como
propomos aqui, o sujeito do povir? Qual sujeito precisa ser gestado em resposta a essa sociedade
do cansaço, para que a humanidade não sucumba? Quais perspectivas devem ser consideradas
nos contextos socioculturais, especialmente, educacionais e acadêmicos?
Tal resposta nunca é simples, contudo, a partir da reflexão feita, podemos perceber que
o sujeito capaz de viver, dialogar e interagir num mundo atual é aquele que internaliza valores
tais como apresentados, dialogicamente, por Han e Bakhtin: o sujeito contemplativo-
responsivo.
Esse sujeito destacado na Sociedade do Cansaço existe de fato na contemporaneidade,
sendo revelado através da observação e da experiência empírica de Han, pois, pela análise,
pesquisa e vivência o homem e a mulher atual, são explanados através das características do
tempo em que vivemos. Han (2017) propõe apresentar e chamar nossa atenção para os desafios
e as consequências nas quais as pessoas estão ou podem ser inseridas. Com isso, podemos
destacar que a assimilação do autor não se mostra apenas pela sondagem dos fatos dos nossos
dias, mas, também, por viver e compreender os padrões de vida que somos obrigados, pelos
perfis atuais, a adotar.
Para BAKHTIN (2011, p. 271) “Toda compreensão da fala viva, do enunciado vivo é
de natureza ativamente responsiva (embora o grau desse ativismo seja diverso); toda
compreensão é prenhe de resposta, e nessa ou naquela forma gera obrigatoriamente: o ouvinte
se torna falante”. Nessa constante interlocução entre a sociedade, sujeitos e autor nasce a
pesquisa da obra estudada e revela-se o sujeito do desempenho que, também, pela nossa própria
percepção, somos capazes de entender o que acontece no tempo presente e cogitar, como
resposta, a melhor possibilidade de viver em harmonia com quem somos, o que fazemos e o
que queremos ser.
Desse modo, Chul Han contrapõe a dimensão excessivamente produtiva da sociedade
do desempenho à necessidade da contemplação. Segundo ele, “não a vida ativa, mas só a vida
contemplativa é que torna o homem naquilo que ele deve ser.” (HAN, 2017, p. 49). Nesse
sentido, aprender a ver seria a primeira pré-escolarização para o caráter do espirito
(GEISTIGKEIT, In: HAN, 2017, p. 51). Aprender a ver significa habituar o olhar ao descanso,
à paciência e à possibilidade de reflexão e mergulho no próprio mundo interior e no interior do
que é externo.
Vida contemplativa é um caminho terapêutico à hiperatividade e hiperestimulação,
sintomas de esgotamento espiritual, as quais a sociedade moderna está submetida, aprendendo
a não reagir imediatamente aos estímulos limitantes e opressivos.
Só o sujeito que pode compreender contemplativamente a verdade de si e do que o cerca
pode agir e responder às circunstâncias de modo livre e responsável. Assim, o sujeito
contemplativo é, também, verdadeiramente, o sujeito responsivo, segundo a lógica bakhtiana.
Assumir a postura responsiva perante a vida trata-se de realizar um ato responsável que
ecoa do próprio fato de existir, o que Bakhtin chama de “evento-existir”, como ser único,
singular, irrepetível. Nesse sentido, é um existir singular aberto à alteridade, isto é, uma
“singularidade em ligação” (BAKHTIN, 2010, p. 14), num lugar exato, numa tarefa a
desenvolver.
Nas circunstâncias hodiernas, só a pessoa que for capaz de uma profunda identidade
contemplativa (interioridade e autenticidade), pode, ao mesmo tempo, ser responsiva (ação,
resposta perante a vida), pois só o silêncio contemplativo poderá produzir linguagem
responsiva. Esse seria, assim, o sujeito do povir.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Precisamos de uma nova forma de vida, uma nova narrativa, donde possa surgir uma
nova época, um outro tempo vital, uma nova forma de vida que nos resgate da estagnação
espasmódica.” (HAN, 2017, p. 113). Esse deveria ser o desejo de cada sujeito deste tempo. Um
anseio de mudança, não dos tempos, mas do olhar e do modo de viver. Já que toda verdadeira
transformação não acontece, senão, a partir dos sujeitos que assumem, em si mesmos, um novo
estilo de vida.
A obra predominantemente analisada neste estudo, conclui-se apontando a retomada da
capacidade festejar, capacidade divina de não sermos escravos do trabalho e do desempenho,
mas celebrarmos as próprias conquistas por ele alcançadas e direcionadas para o bem vital,
pessoal e social, contrapondo à lógica mercantilista na qual o ser humano é otimizado para
morte e a própria repressão dá lugar à depressão. Assim, viver não será apenas sobreviver.
(HAN, 2017, p. 116-117).
Como descreve Han: “Nós nos transformamos em zumbis saudáveis e fitness, zumbis
do desempenho e do botox. Assim, hoje, estamos por demais mortos para viver, e por demais
vivos para morrer.” (HAN, 2017, p. 119). Desse modo, para que a sociedade não sucumba pelo
cansaço e esgotamento é preciso um novo olhar sobre si e o mundo. Olhar que se transforma
em postura de vida.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo, Martins
Fontes, 2011.

_____. Notas sobre literatura, cultura e ciências humanas. Organização, tradução,


posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Bocharov. São Paulo:
Editora 34, 2017.

_____.. Para uma filosofia do ato responsável. São Carlos: Pedro e João Editores, 2010.

FARACO, Carlos Alberto. Linguagem e diálogo: as ideias linguísticas do Círculo de


Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2009.

HAN, Byung-Chul. Sociedade do Cansaço. 2ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2017.

LÉVY, P. A inteligência coletiva. Tradução Luiz Paulo Rouanet. 4ª ed. São Paulo: Folha de
S. Paulo, 2015.

MALHORTA, n. Pesquisa de marketing. 3ª ed. Porto Alegre: Bookman, 2001


O DISCURSO NA VIDA E NA ARTE: RELAÇÕES DIALÓGICAS NO CASO
MIGUEL OTÁVIO E O POSICIONAMENTO DO OUVINTE

Allyson Raonne Soares do Nascimento15


Francisco Ebson Gomes-Sousa16
Mirelly Karolinny de Melo Meireles17
Priscilla Andrade Souza Nogueira18
Artemísia Ruth Arruda Lucena Veras19

RESUMO
Este trabalho de cunho bibliográfico, documental e exploratório tem por objetivo descrever as
relações dialógicas do caso Miguel Otávio através da análise da música 2 de Junho e do
posicionamento do ouvinte – em relação ao autor e ao herói - à luz do dialogismo bakhtiniano
e do Círculo, ressaltando como o discurso se constitui em dois campos da atividade humana: a
vida e a arte. Tomamos por escopo a música 2 de junho (2020), da cantora Adriana Calcanhoto
e tendo por acontecimento discursivo o contexto extraverbal que leva a produção da canção, a
morte do menino Miguel Otávio, no Recife, em 2020, em plena pandemia do Covid-19. No
entrecruzamento da vida e da arte, nosso trabalho estabelece relações dialógicas da canção com
os outros gêneros discursivos, assim como compreende os discursos recuperados pela canção
na produção de sentidos. Transitando pelos conceitos do ético e do estético como formas do
posicionamento do ouvinte – em relação ao autor e ao herói – e como este se responsabiliza
pelo que enuncia trazendo à tona a questão do ato ético, comprovando a responsabilidade que
tal ato produz nas construções dos discursos sócio-historicamente situados.

Palavras-chave: Discurso. Vida. Arte. Ético e estético. Dialogismo.

15
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: allyson.espanhol@hotmail.com.
16
Doutorando em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail:ebson.gomes@ufersa.edu.br.
17
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: mirelly.meireles@ifrn.edu.br.
18
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: syllacg21@hotmail.com.
19
Doutoranda em Linguística pelo Programa de Pós-graduação em Linguística (PROLING) da
Universidade Federal da Paraíba (UFPB). E-mail: artemisiaveras@yahoo.com.br.
1 INTRODUÇÃO

Ferreira Gullar (2010) certa vez afirmou que a arte existe porque a vida não basta. Tal
asserção faz bastante sentido em tempos de exceção quando o óbvio precisa ser dito. Isso
aconteceu várias vezes durante a pandemia. O caso que nos importa aqui diz respeito ao do
menino Miguel Otávio de 5 anos, que morreu no dia 2 de junho na cidade de Recife, enquanto
a mãe, que era empregada doméstica e trabalhava em plena pandemia, saiu para passear com o
cachorro e deixou o menino aos cuidados da patroa. Na ocasião, ela deixa a criança sozinha no
elevador, o menino se desespera e cai do nono andar de um prédio de classe média.
Quando um evento como esse acontece, e cada vez mais se repete, a reflexão do Gullar
parece ficar mais evidente. Lemos nos jornais, nos blogs, acompanhamos nas redes sociais, mas
parece que falta algo. Nesse contexto, a arte surge com todas as suas formas de expressão para
mostrar de um outro prisma algo que nossos olhos já olham desumanamente como natural: o
descaso com a população negra e pobre do Brasil.
É diante dessas reflexões que nosso trabalho pretende reunir algumas análises à luz do
dialogismo bakhtiniano sobre o supracitado caso e as relações éticas e estéticas refletidas na
canção 2 de junho (2020) da Adriana Calcanhoto. Assim sendo, nossa perspectiva aproxima
dialogicamente a vida e a arte e pensa que a construção dos discursos se relaciona com
acontecimentos discursivos diversos materializados de forma singular e responsável pela arte.
Portanto, tais discursos verbais são considerados como cenários para determinados
eventos e, para uma compreensão da significação global destes discursos, deve haver uma
reprodução do evento de relação mútua entre os falantes com a pessoa que quer compreender –
o ouvinte, sendo que este precisa compreender as posições dos outros dois participantes
(VOLOSHIVOV; BAKHTIN, s.d.).
Desse modo, este trabalho tem como objetivo descrever as relações dialógicas do caso
Miguel Otávio através da análise da música 2 de Junho e do posicionamento do ouvinte. Para
tanto, partimos de uma pesquisa de cunho bibliográfico, documental e exploratório que tem por
finalidade mostrar como essas relações se constroem.

2 O ÉTICO E O ESTÉTICO COMO FUNDAMENTOS DO DIALOGISMO

A arte e a vida não são a mesma coisa, mas devem tornar-se algo singular em mim,
na unidade da minha responsabilidade (Mikhail Bakhtin)
A singularidade é um dos princípios fundantes da produção filosófica de Bakhtin e do
Círculo. Ela se desenvolveu em volta de alguns conceitos que pensavam na integração entre
elementos até então vistos de duas formas de pensamento: o objetivismo abstrato e o
subjetivismo individualista, ambas afastadas da realidade. Assim sendo, resulta que os
princípios éticos e estéticos estão presentes desde os primeiros trabalhos de Bakhtin e do
Círculo, como em Para uma filosofia do ato responsável (2010) e são fundamentais para o
desenvolvimento da teoria dialógica na vida e/ou na arte.
Bubnova (2013) destaca quatro fases da filosofia bakhtiniana: a primeira, dedica a
reflexão sobre as relações no mundo real dimensionada pela interação do eu-para-mim, outro-
para-mim, eu-para-outro; na segunda, está a estética da criação artística não vista do seu
interior, mas na realização do próprio ato ético; a terceira dedicada à política e a quarta à
religião.
Uma questão da natureza sobre a arte como reprodução da vida social afasta uma análise
artística de uma perspectiva imanente. Isso implica numa reflexão que compreende a arte como
social localizada numa relação dialógica entre obra de arte e criação e/ou contemplação
artística. Para Volóchinov (2019), ambas compreensões têm problemas do ponto de vista
filosófico: a primeira porque ao conceber a arte em si mesma deixa de considerar aspectos
externos que interferem na configuração artística; a segunda, porque foca apenas em aspectos
externos e deixa de considerar a capacidade criativo-artística e autorreferencial da arte.
Assim sendo, o ato ético é o princípio fundamental do dialogismo. Pensar o ato ético
encaminha-nos para uma reflexão sobre a responsabilidade. A responsabilidade está
relacionada com a alteridade, ou seja, em considerar o outro como constituinte das relações da
interação verbal. Essa perspectiva coloca o interlocutor como agente, coparticipante da
construção dos enunciados concretos. É no outro e pelo outro que eu construo minha visão
sobre o mundo. A atuação ética é um ato para o “outro” (BUBNOVA, 2013). Ainda conforme
a autora:

Na filosofia do ato ético, a responsabilidade não é um termo jurídico, nem uma


obrigação normativa e abstrata relacionada a algum código de conduta, mas uma
espécie de impulso que, mediante cada ato concreto, vincula o homem ao mundo, e,
acima de tudo, em sua relação com o outro. A responsabilidade é, por sua vez,
ontológica e concreta: condiciona o ser-para-outro em cada situação particular, da
medida ao eu-para-mim enquanto dependo do outro, e o outro de mim (BUBNOVA,
2013, p.12).

À questão ética e estética há que acrescentar um terceiro elemento de discussão: o


teórico/científico. Tais reflexões sofreram influência do pensamento kantiano de razão pura.
Bakhtin (2003) a partir de uma releitura traz a discussão para uma visão integradora entre o
mundo real e o mundo artístico e teórico. Não se trata, pois, de elencar a primazia de um sobre
o outro, mas de concebê-los a partir das relações dialógicas que os atravessam.
A responsabilidade do ato ético implica que o enunciador, segundo Bakhtin (2003), não
tem álibi. Deve ele ser responsável e culpável pelo que produz em cada campo da cultura
humana: na ciência, na vida ou na arte. No que diz respeito à palavra (ou discurso) na vida e na
arte é preciso compreender a unidade que se cria em torno da responsabilidade dos discursos
que produzem. Dessa forma, segundo Bakhtin (2003, p.33) “quando o homem está na arte não
está na vida e vice-versa”. Esse princípio norteia as formas composicionais e arquitetônicas que
formam a base do pensamento do Círculo de Bakhtin.
Sobral (2005) analisa três elementos que fundamentam a compreensão da arquitetônica
bakhtiniana em torno do ético, do estético e do teórico: a) o conteúdo dos atos, em torno dos
aspectos generalizáveis e reconhecidos por uma comunidade mais ampla e multifacetada; b) o
processo dos atos, relacionado ao plano da expressão mais particular do enunciador/criador em
torno de padrões estilísticos irrepetíveis e c) o “cimento” que lhes dá sentido, tem relação com
o campo de ciência que legitima o senso comum e a arte de forma interdependentes e integra
aspectos repetíveis (generalizáveis) e irrepetíveis (particulares).
Assim, partindo desse pressuposto, nas próximas seções deste artigo iremos analisar a
canção 2 de Junho e observaremos os elementos supracitados através dos aspectos inerentes à
criação da música - que se referem aos aspectos gerais discutidos por esta e muito bem
conhecidos por nossa sociedade, como o racismo -, bem como o contexto sócio-histórico de
produção – a morte do menino Miguel Otávio - e o posicionamento do ouvinte. A seguir,
iniciaremos abordando a música e o seu contexto de produção.

3 NOTAS SOBRE O CASO MIGUEL OTÁVIO E A CANÇÃO 2 DE JUNHO DE


ADRIANA CALCANHOTO: RELAÇÕES DIALÓGICAS

As relações dialógicas são relações (semânticas) entre toda espécie de enunciados na


comunicação discursiva. Dois enunciados, quaisquer que sejam, se confrontados em
um plano de sentido (não como objetos e não como exemplos linguísticos), acabam
em relação dialógica. Mas essa é uma forma especial de dialogismo não intencional
(por exemplo, a seleção de diferentes enunciados de cientistas vários ou sábios de
diferentes épocas sobre uma questão). (Mikhail Bakhtin).

Portanto, compreendemos que a partir do confronto de enunciados é que ocorrem as


relações dialógicas, uma vez que vozes distintas são produzidas por diferentes sujeitos durante
uma comunicação discursiva. A partir dessa breve reflexão, identificaremos algumas relações
dialógicas sobre o caso do menino Miguel Otávio e a música 2 de Junho, escrita por Adriana
Calcanhoto.
No dia 02 de junho de 2020, uma criança negra chamada de Miguel Otávio caiu de um
prédio de luxo no Recife onde sua mãe trabalhava como empregada doméstica. Na ocasião, a
mãe do menino havia deixado sob os cuidados da sua patroa o seu filho de apenas cinco anos
de idade. Em decorrência dos fatos apurados, a patroa foi processada por abandono de incapaz
por negligência no cuidado da criança, que acabou caindo do prédio e falecendo (COUTINHO,
2021).
O trágico acontecimento repercutiu em todas as plataformas e rede televisiva levando à
uma comoção nacional e pedido de justiça por Miguel. Assim, vimos em toda a imprensa
acompanhando o caso, que inicialmente a acusada foi indiciada por homicídio culposo com
fiança de R$20 mil, mas que posteriormente no desenrolar do caso a ré foi julgada e condenada
a oito anos e seis meses de prisão (G1, 2022).
Campanhas nas redes sociais, como a #JustiçaPorMiguel impactaram todo o estado e o
cenário brasileiro. Muitos artistas usaram de seus capitais sociais para pedir justiça e denunciar
a barbárie. Dessa forma, o discurso e a vida pela arte são levantados e se fazem objeto em nossa
análise, dentre as diversas músicas, poesias, charges e outras manifestações estéticas,
escolhemos uma música da cantora Adriana Calcanhoto, intitulada 02 de junho
(CALCANHOTO, 2020).
O videoclipe, - que inclusive, todos os direitos autorais foram revertidos ao Instituto
Miguel Otávio - lançado pela cantora, narra e denuncia o caso do menino Miguel, apresentando
o cenário, as minúcias do acontecimento, as reflexões e situações implícitas em tom poético e
ritmado do caso. Em tons em sépia a cantora declama/canta a música com uma bandeira
brasileira ao fundo na vertical sem o fundo azul e sem a frase ordem e progresso, em que lemos
uma denúncia da situação brasileira, pelo caso do menino, pelo racismo e por todo o processo
envolvido na situação incongruente do “país negro e racista”.
Em meio à pandemia, a cantora e compositora da música em análise afirma em
entrevista ao quadro entrevista na janela, mostrando um pouco sobre o seu disco “Só”, que está
permeado por todos os processos em volta da situação epidemiológica. O caso repercutido pela
música e pela mídia se mostra como uma denúncia em meio a uma série de vidas de outras
crianças vítimas - crianças negras de nosso país.
Compreendendo o acontecimento discursivo e a canção (gênero inserido no campo
artístico), percebe-se um entrelaçamento de alguns discursos que reforçam e retomam questões
sociais sensíveis a nossa sociedade respaldadas na obra de arte que nos serve de análise. Dessa
forma, recuperamos o que defende Volóchinov (2019):

(...) o "artístico" na sua total integridade não se localiza nem no artefato nem no
psiquismo do criador e contemplador abordados de modo isolado: o “artístico” abarca
todos os três fatores. Ele é uma forma específica de inter-relação entre criador e os
contempladores fixada em uma obra artística (VOLÓCHINOV, 2019, p. 115).

Sendo assim, percebemos que a integração entre a obra de arte e o mundo objetivo é
relevante para evitar reducionismos ora focados na obra de arte como artefato, ora no psiquismo
do autor/criador e ouvinte. Cabe-nos, portanto, refletir sobre aspectos da vida cotidiana e de
que maneira esses aspectos se manifestam ética e esteticamente na canção em questão.
Sendo assim, nos delimitaremos no posicionamento do ouvinte nesta música, uma vez
que este é considerado como imanente pelo autor e como essencial em uma obra. Portanto,
verificaremos a relação do autor com o ouvinte, bem como a do ouvinte com o autor e com o
herói.

4 O POSICIONAMENTO DO OUVINTE E A MÚSICA 2 DE JUNHO

[...] existir é co-existir ou co-ser na contraposição, e o lugar que cada um ocupa nesse
diálogo, seja qual for, implica responsabilidade e co-autoria (Holquist)

Bakhtin (2006) concebe o caráter dialógico como toda e qualquer expressão linguístico/
discursiva socialmente dirigida e orientada para o outro. Este ‘outro’ não é apenas um ouvinte
passivo, mas um interlocutor ativo que responde e replica o objeto da comunicação.
Diante de tal discussão, consideramos que uma obra de arte sem interação é
simplesmente um artefato físico. Desse modo, ela só vem a se tornar uma obra de arte apenas
no processo de interação entre os participantes, sendo estes: i) o falante (o autor); ii) o
interlocutor (o ouvinte); e iii) o tópico (o que ou o quem) da fala (o herói) (VOLOSHINOV,
2019). Compreendemos então, que o discurso verbal é um evento social e que o enunciado
concreto nasce, vive e morre no processo da interação social entre os referidos participantes da
enunciação. Em conformidade com as ideias de Volóshinov e Bakhtin (s.d., p.17)

Na poesia, como na vida, o discurso verbal é o um “cenário” de um evento. A


percepção artística competente representa-o de novo, sensivelmente inferindo, das
palavras e das formas de sua organização, as interrelações vivas, específicas, do autor
com o mundo que ele descreve, e entrando nessas interrelações como um terceiro
participante (o papel do ouvinte).
Assim, entendemos que o autor, utilizando de artifícios inerentes ao gênero discursivo
que irá produzir, representa e descreve um determinado fato histórico e social direcionado a
uma terceira pessoa – que é o ouvinte. Este nunca é igual ao autor, tendo seu lugar próprio
independente no evento de uma criação artística. Este também deve ocupar uma posição
especial - uma posição bilateral com respeito ao autor e com respeito ao herói – e é esta posição
que tem efeito determinativo no estilo de um enunciado (VOLOSHINOV; BAKHTIN, s.d.,
p.20).
Porém, de qualquer maneira, os participantes da enunciação - o autor, o herói e o ouvinte
- em parte alguma - se fundem numa só́ massa indiferente, ocupando posições autônomas, sendo
lados de um evento artístico com estrutura social especifica cujo “protocolo” é a obra de arte
(VOLOSHINOV; BAKHTIN, s.d., p.22).
Ademais, o ouvinte é compreendido como um participante imanente do evento artístico
que tem efeito determinativo na forma da obra desde dentro. O ouvinte, em consonância com o
autor e o herói, é um fator intrínseco essencial, da obra, e de modo algum coincide com o assim
chamado público leitor. Caso o autor criasse a sua obra direcionada a esse grande público leitor,
sua criatividade inevitavelmente perde a pureza artística, degradando-se a um nível social mais
baixo.
Em consonância com a referida discussão teórica, faremos uma breve análise acerca do
posicionamento do ouvinte na música 2 de Junho, de Adriana Calcanhoto, que trata da tragédia
ocorrida com o menino Miguel Otávio. Esta análise será dividida em três partes: i) Como o
autor sente seu ouvinte? – relação autor/ ouvinte; ii) Qual é a atitude responsiva do ouvinte em
relação ao autor? - relação ouvinte/ autor; e iii) Qual é a relação do ouvinte com o herói? –
relação ouvinte/ herói.

4.1 COMO O AUTOR SENTE SEU OUVINTE? – RELAÇÃO AUTOR/ OUVINTE


Nessa seção inicial da análise, visamos compreender como se caracteriza esse ouvinte
abordado pelo autor. Portanto, analisaremos trechos da música 2 de Junho.

a) No país negro e racista

A autora inicia a música contemplando um ouvinte brasileiro, sendo este integrante da


maior parte da população brasileira – a população negra, que corresponde a 56%, segundo dados
do IBGE (2021). E, apesar de ser um país que tem a população predominantemente negra, é um
país racista. Ela já inicia abordando ouvintes que estão às margens - ouvintes excluídos – e que
sofrem racismo.

b) No coração da América Latina


Na cidade do Recife
Terça-feira 2 de junho de dois mil e vinte
Vinte e nove graus Celsius
Céu claro

Neste segundo trecho, percebemos que a autora contempla o espaço e o tempo em que
a tragédia com o menino Miguel ocorreu. Sendo assim, relacionamos tal descrição ao conceito
de cronotopo artístico-literário definido por Bakhtin (2014) como

[...] a fusão dos indícios espaciais e temporais num todo compreensivo e concreto.
Aqui o tempo condensa-se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio
espaço intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história
(BAKHTIN, 2014, p. 211).

Ao descrever que a história ocorreu em Recife, cidade localizada na região Nordeste do


Brasil, a autora acaba contemplando uma outra parte da população brasileira que sofre
preconceito, que é marginalizada: o nordestino. Além disso, também percebemos o quão
relevante é a descrição do tempo e do local do ocorrido – nos dá a sensação que estamos
vivenciando a situação: um dia quente com céu claro (um dia bom e bonito).

c) Sai pra trabalhar a empregada


Mesmo no meio da pandemia
E por isso ela leva pela mão
Miguel, cinco anos

Neste terceiro trecho da música apresentada em nossa análise, verificamos que o enredo
está situado historicamente – no meio da pandemia. Assim, a mãe de Miguel – Mirtes – foi uma
das trabalhadoras, dentre as inúmeras e inúmeros em nosso país, que precisou sair em meio a
pandemia para trabalhar.
Ao citar a profissão da mãe do menino Miguel, relembramos que a primeira vítima fatal
da COVID-19 no Brasil foi uma empregada doméstica, que residia no Rio de Janeiro e, a partir
daí, em um estudo conduzido por Pizzinga (2020) foi constatado que as mulheres se
contaminavam mais com o Coronavírus, bem como foi realizada uma reflexão acerca da
vulnerabilidade da categoria das trabalhadoras domésticas, sendo consideradas como atividades
essenciais no contexto da pandemia.
Uma outra consideração que podemos fazer a partir deste fragmento é que Mirtes é uma
mulher negra e, dessa maneira, reportamos ao conceito de Interseccionalidade, que segundo
Rodrigues (2013, p.6), discutir tal definição nos permite dar visibilidade às múltiplas formas de
'estar' no mundo sem cair em “um reducionismo de um princípio unificador comum, mas sem,
contudo, resvalar para um relativismo que desloca as relações de poder envolvidas nas diversas
formas de opressão”.
Este conceito oportuniza o estudo de uma multidimensionalidade atravessada por raça,
gênero, classe social e orientação sexual, permitindo desconstruir os conceitos impregnados,
naturalizados e reproduzidos na sociedade como aqueles tidos como “normais”.
Compreendemos então, que discutir Interseccionalidade neste contexto que estamos
discorrendo sobre significa contemplar as mulheres negras, uma vez que estas são ainda mais
excluídas se compararmos à causa do homem negro.
Por fim, concluímos que a autora continua contemplando um ouvinte que está às
margens na nossa sociedade, que não tem voz: a mulher negra e trabalhadora doméstica.

d) Trinta e cinco metros de voo


Do nono andar
Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar
O destino de Ícaro
O sangue de preto
As asas de ar

Neste último trecho da música, observamos questões inerentes ao tempo e ao espaço da


queda de Miguel: ele caiu de um prédio de nove andares, trinta e cinco metros de altura e levou
menos de um minuto para sua mãe voltar, visto que ela estava passeando com o cachorro de
sua patroa – Sari - enquanto esta estava fazendo suas unhas e, teoricamente, cuidando do filho
de Mirtes – a empregada doméstica.
Um outro enredo – intrinsecamente relatado no texto e comparado à história de Miguel
– foi abordado pela a autora, que é a lenda do garoto Ícaro, que para fugir do labirinto em que
estava preso, usou asas feitas de cera para voar. Seu pai havia alertado sobre o perigo de chegar
muito perto do sol, já que o calor poderia derreter a cera que unia as penas. Porém, no dia da
fuga, Ícaro estava tão feliz com a sensação de voar, que se esqueceu do conselho do seu pai e
voou bem alto. Assim, a cera derreteu e ele acabou perdendo as asas e se afogando no mar.
Ao comparar com a história exposta pela música, o garoto Miguel também voou para
fugir do labirinto em que estava – o prédio em que sua mãe trabalhava – e também acabou
falecendo como Ícaro. E, como tantos outros casos que ocorrem com crianças negras em nosso
país, mais sangue de preto foi derramado, sendo assim contemplado o ouvinte negro, que sofre
e chora pela discriminação e violência sofridas constantemente, inclusive pelas crianças, que
há um grande descaso com estas.
Concluímos então, que o ouvinte contemplado pela autora da música 2 de Junho é
aquele marginalizado, excluído, discriminado: o negro, o nordestino, a trabalhadora doméstica
e a mulher negra.

4.2 QUAL É A ATITUDE RESPONSIVA DO OUVINTE EM RELAÇÃO AO AUTOR? -


RELAÇÃO OUVINTE/ AUTOR

A princípio, faremos uma breve reflexão acerca do conceito de atitude responsiva a


partir das concepções de Bakhtin (2003) e de Bakhtin/Volochinov (2006), que definem
responsividade como uma parte de um diálogo que está para a enunciação assim como uma
réplica está para a outra parte nesse diálogo. É considerada como uma reação a partir do que se
compreende no processo de interação.
Sendo assim, nesta seção analisaremos a compreensão do ouvinte em relação à música
escrita pela autora Adriana Calcanhoto e analisar qual é a relação desse ouvinte com essa autora:
será que este se sente contemplado? A análise será feita a partir de comentários dos ouvintes
feitos no Youtube, na seção Comentários, que aparece logo abaixo do clipe musical. Vejamos
o Comentário 1:

Figura 1 – Comentário 1

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Myob26bhNqs
Acesso em: 20 de junho 2022
A partir deste comentário, conseguimos inferir que este ouvinte compreende que a
autora agracia em sua música aqueles que não são ouvidos, que tem a voz calada e silenciada,
os que estão às margens, os excluídos. E ainda afirma que já que a autora tem a voz ouvida, ela
continua falando por aqueles que não têm. Observemos o Comentário 2:

Figura 2 – Comentário 2

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Myob26bhNqs
Acesso em: 20 de junho 2022

Neste segundo comentário de um ouvinte, este se sente contemplado, uma vez que seu
pai também se chama Miguel e que também era um nordestino de Recife – um grupo igualmente
discriminado e excluído. Porém, ela cita como sendo a única diferença entre eles (Miguel, seu
pai e Miguel Otávio) que o pai era um homem branco e, por isso, conseguiu emprego.
Entendemos que, de acordo com o posicionamento deste ouvinte, provavelmente seria mais
difícil ter acesso a emprego caso o seu pai fosse um homem negro. Vejamos o Comentário 3:

Figura 3 – Comentário 3

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Myob26bhNqs
Acesso em: 20 de junho 2022
Neste comentário, o ouvinte é negro e escreve uma poesia em resposta à música da
autora. Ela afirma que eles são almas negras e de sangue, fazendo referência à violência
constante que eles sofrem e o derramamento de sangue deles; também cita que os negros são
dores dormentes, ou seja, são dores que não são sentidas, não são representadas, que não se
importam com as dores que estes sentem; também é citado que os negros são senzalas no espaço
azul, uma vez que as senzalas eram os espaços em que os negros viviam aprisionados. Neste
caso, o ouvinte apresenta de maneira figurada que, hoje, os negros são mortos e vivem nas
senzalas do céu.
Ele também cita que eles são lágrimas, que choram de tristeza pelo tanto de pessoas
negras mortas; o ouvinte também afirma que os brancos pintam os sonhos deles de vermelho
(com o sangue dos negros) no chão do Brasil – considerado por este como um país sem visão.
E, na última frase, ele diz que o menino Miguel será apenas uma lembrança na canção da autora.
Por fim, observemos o Comentário 4:

Figura 4 – Comentário 4

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Myob26bhNqs
Acesso em: 20 de junho 2022

Neste último comentário a ser analisado na presente seção, o ouvinte relembra o descaso
e a falta de proteção para com as nossas crianças, já que vem sendo recorrente a morte de
crianças negras.
A partir da análise desses quatro comentários referentes ao clipe musical da música 2
de Junho, verificamos – por parte dos ouvintes – uma atitude responsiva de concordância com
a autora, no que concerne a compatibilizar as ideias de que negros, nordestinos, pobres não têm
voz, são excluídos e sofrem violência constante.

4.3 QUAL É A RELAÇÃO DO OUVINTE COM O HERÓI? – RELAÇÃO OUVINTE/


HERÓI
Compreendemos que o herói da música é Miguel, como também todo o contexto sócio-
histórico do enredo. Assim, analisaremos a relação entre esses ouvintes e a história de Miguel.
Para esta análise, utilizaremos uma reportagem realizada pelo TV Jornal SBT, que podemos
acessar pelo seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=VizK4EsUzX0. O título da
reportagem é “Protesto pela morte de Miguel, menino que caiu de prédio no Recife”.
Nessa reportagem, é mostrado um protesto pela morte do garoto e um clamor por justiça.
No vídeo, inúmeras pessoas – inclusive parentes da criança - aparecem em frente ao prédio em
que ocorreu a tragédia com o garoto, com faixas e bastante emocionadas. Elas também se
deitam no chão e ficam na mesma posição em que ele foi encontrado sem vida.
Entendemos, a partir da análise da reportagem, que a relação dos ouvintes com o herói
é de proximidade, considerando que eles são nordestinos, pobres, negros, trabalhadores que
precisaram sair em meio a uma pandemia, mulheres negras, trabalhadoras domésticas, enfim,
os marginalizados e excluídos.
Em apoio ao movimento, os moradores do prédio que Miguel caiu também estavam
presentes, porém não se juntaram aos manifestantes, permanecendo dentro do edifício. Apesar
do apoio, eles não se ‘misturaram’ à maioria.
E, por fim, devemos levar em consideração que a interação entre o autor, herói e ouvinte
devem ser compreendidos como fatores constitutivos essenciais da obra. Eles são a forca viva
que determina a forma e o estilo e são distintamente detectáveis por qualquer contemplador
competente (VOLOSHINOV, 2019).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo não pretendeu exaurir todas as possibilidades e vieses da análise possível da
música 2 de Junho de Adriana Calcanhoto (caso Miguel Otávio) acerca das relações dialógicas
com outros gêneros discursivos. Apesar da complexidade apresentada, pudemos refletir
teoricamente acerca do posicionamento: como o autor sente seu ouvinte, a atitude responsiva
do ouvinte em relação ao autor e a relação do ouvinte com o herói.
Portanto, diante das reflexões feitas ao longo deste trabalho, consideramos que
compreender a forma como discurso (a palavra) se manifesta na vida e na arte (ou na poesia)
está engendrada por questões de cunho ético/responsável e estético. A grande contribuição dos
estudos de Bakhtin e do círculo aqui foi tentar pensar como a vida e a arte se constituem de
forma dialógica e ao mesmo tempo independente.
Evidencia-se que não podemos nos focar apenas na obra de arte como artefato nem
apenas compreender a psique do criador/contemplador e o contexto extraverbal porque, como
assegura Volóchinov (2019), na vida a palavra não é autossuficiente. Diante disso, resta-nos
buscar uma forma de diálogo entre o real e o artístico para que os sentidos das obras encontrem
na realidade concreta e cotidiana uma razão de existir no mundo.

REFERÊNCIAS

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Paulo: Hucitec, 2006.

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Conexão Letras. V. 8, n. 10, 2013.

CALCANHOTO, A. Adriana Calcanhotto - 2 de Junho. YouTube, 2020. 1 videoclipe


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poética sociológica. Tradução para uso didático feita por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão
Tezza. [s.d.]
A MULHER NOS ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS DO INSTAGRAM: EMBATES
DIALÓGICOS SOBRE A FUNCIONALIDADE E/OU SEXUALIZAÇÃO

Alexia Eloar Félix Cavalcante20


Rosenice de Lima Gabriel21
Joyce Millene de Medeiros22
Jessye Késsia de Carvalho Pereira23

RESUMO
Este trabalho pretende discutir a sexualização feminina nas lingeries, produzindo um embate
dialógico entre as questões da objetificação dos corpos e da peça de roupa como um elemento
de uso cotidiano. Nesta dimensão, pretende-se delinear as relações dialógicas existentes no
gênero anúncio publicitário do Instagram, sob a orientação metodológica dos estudos
bakhtinianos e o Círculo (BAKHTIN, 2011; 2016), além das esferas feministas (SAFFIOTI,
2015; BEAUVOIR, 2019; WOLF, 2020). Para tanto, destacamos como corpus dois perfis de
lojas de lingeries na rede social do Instagram, que põem em cheque o uso cotidiano da peça
íntima nos corpos femininos. Nosso trabalho se faz relevante, uma vez que pretende explorar o
conceito capitalista da sexualização dos corpos femininos através do dialogismo dos discursos.

Palavras-chave: Sexualização. Dialogismo. Anúncio publicitário. Lingeries. Instagram.

1 INTRODUÇÃO

Uma das principais violências que imperam na vida feminina é a sexualização de seus
corpos, constantemente alimentada pela indústria da beleza e pelas redes de comunicação e
propaganda. Estas induzem a mulher a seguir um padrão inalcançável que é reproduzido

20
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: alexia.eloar@academico.ufpb.br
21
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: rosenicelima@gmail.com
22
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: joymimedeiros@gmail.com
23
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: jessyekessia16@gmail.com
massivamente para o público feminino como natural, saudável, bonito e sexy. Ou melhor, que,
por diversas vezes, possuem uma orientação valorativa de reproduzir sentidos patriarcais de
mercadoria aos corpos das mulheres. Por esse motivo, em nossa pesquisa, cabe discutir qual o
produto anunciado nessas campanhas publicitárias: o corpo feminino ou as roupas íntimas.
Tendo isso em mente, consideramos o anúncio publicitário como um gênero essencial
para a análise da esfera publicitária, uma vez que esta se mostra intimamente ligada às
atividades sociais, culturais e, em especial, comunicativas. Portanto, constituem-se através de
dispositivos de interpretação e reprodução de discursos que consigam atrair o consumidor e
vender o produto final. Assim, divulgam as peças fazendo uso de ideias de sexualização, atração
e beleza que são incentivadas e distorcidas pela sociedade patriarcal, com o intuito de despertar
o interesse de compra/uso nos consumidores.
Dessa maneira, tomando como perspectiva o contexto abordado anteriormente, neste
artigo, temos como objetivo delinear as relações dialógicas existentes na construção do gênero
anúncio publicitário da rede social Instagram, direcionado ao público feminino. Nesse
contexto, faremos uma análise da linguagem verbo-visual, especialmente, no que diz respeito
à padronização dos corpos femininos e das lingeries presentes neste gênero a partir da
perspectiva dialógica.

2 A SEXUALIZAÇÃO DOS CORPOS FEMININOS NA SOCIEDADE PATRIARCAL

O conceito de beleza e do corpo perfeito sempre existiu na história da humanidade.


Desde a Antiguidade, os ideais de beleza estavam presentes nas sociedades, produzindo uma
grande variedade de imaginários ao longo dos séculos do que seria um padrão de beleza. Para
o sujeito feminino, essa pressão estética se mostra muito intensa e ditatorial, isso porque as
mulheres são direcionadas a modificar seus corpos para adequar-se às imposições sociais do
que é considerado como beleza feminina. Conceitos estes que se modificam com velocidade e
facilidade, mas sempre à gosto de outrem.
Observa-se, portanto, que o corpo feminino sempre foi palco de inúmeros requisitos e
obrigações para com a sociedade, sendo visto como um objeto de desejo e nunca um sujeito
existente. Ou melhor, a mulher é sujeitada a cuidar de sua aparência com o propósito de alcançar
o ideal de feminilidade patriarcal, afastando-se completamente de episódios que transparecem
“características masculinas”. Como bem expõe Beauvoir (2019), “todo ser humano do sexo
feminino não é, portanto, necessariamente mulher; cumpre-lhe participar dessa realidade
misteriosa e ameaçada que é a feminilidade” (BEAUVOIR, 2019, p.8).
Essas ideias de feminilidade fazem da mulher mais “atraente” na visão masculina, já
que, ao se adequar exatamente ao padrão esperado, a mulher é considerada desejável para as
instituições patriarcais. Na realidade, “o mito da beleza não tem absolutamente nada a ver com
as mulheres. Ele gira em torno das instituições masculinas e do poder institucional dos homens”
(WOLF, 2017, p. 20). Esse jogo das aparências inclui todas as mulheres, pois desde muito cedo
elas são levadas ao medo de envelhecer, ao medo de engordar: ao medo de não ser desejável.
Dessa maneira, percebe-se a objetificação sexual de seus corpos, transparecendo aqui a
questão da constante sexualização que a mulher é sujeitada. Nesse contexto, o patriarcado
dissemina conceitos sexualizados e inalcançáveis de beleza e manipula as mulheres desde muito
novas a mantê-los até a velhice. Obrigando-as a reproduzir a todo custo imagens idealizadas
para satisfazer as necessidades de outrem. “[...] Ela é para o homem uma parceira sexual, uma
reprodutora, um objeto erótico, um Outro através do qual ele se busca a si próprio”
(BEAUVOIR, 2019, p. 79).
Portanto, pode-se assinalar que a sexualização do corpo feminino é uma coerção
desenvolvida pelo patriarcado como forma de controle social. Nesse sistema, como elucida
Saffioti (2015), às instituições masculinas desenvolveram o mito/padrão do belo que é imposto
como elemento natural e essencial ao feminino, pois deve-se estar sexy e atraente para
conseguir exercer sua sexualidade. Essa sexualização funciona como uma forma de diminuir a
mulher, inferiorizando-a como objeto erótico de satisfação sexual para compactuar com a
subordinação de um ser superior. Como explica Sérgia de Oliveira (2020):

No contexto da sexualidade, cabe refletir que a sociedade brasileira mantém estreita


relação entre o patriarcado e o controle dos corpos femininos. As mulheres vêem-
se, mesmo nos dias atuais, obrigadas a manterem relações sexuais com seus
parceiros, mediante o pensamento do dever conjugal. Outra forma de controle sobre
os corpos das mulheres está relacionada ao feminicídio, crime que coloca o Brasil
em 5º lugar no ranking entre os países que mais cometem feminicídio no mundo.
(SÉRGIA DE OLIVEIRA, 2020, p. 4-5)

Na realidade, estes termos são formas de enunciados concretos, compreendidos a partir


da perspectiva bakhtiniana, que se desenvolvem através de inúmeros valores sociais e histórico-
culturais preestabelecidos, na qual terminam, por assim dizer, disseminando conceitos
patriarcais sexualizadores e pensamentos que permitem ao consumidor feminino a manutenção
da informação do que seria ser “sexy” e “atrativo” aos olhos da sociedade. Dessa maneira, por
meio das lingeries e impulsionada pelo sistema capitalista, o patriarcado se reproduz vivamente
nas esferas midiáticas.
3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Os postulados de Bakhtin e o Círculo contribuíram bastante para os estudos da


linguagem. Pautados em uma concepção de língua interativa que vê a comunicação como
discursiva e, portanto, resultante da interação social e histórica: “Discurso é a língua in actu. É
inadmissível contrapor língua e discurso em qualquer que seja a forma. O discurso é tão social
quanto a língua. As formas de enunciado também são sociais e, como a língua, são igualmente
determinadas pela comunicação” (BAKHTIN, 2016, p. 117). Partindo desse princípio,
propuseram conceitos fundamentais como, por exemplo, o valor do signo linguístico, os
gêneros discursivos, o enunciado e, em especial, principalmente para este estudo, Bakhtin
(2016) teoriza sobre o fenômeno dialógico da linguagem.
Esse fenômeno, nomeado pelo autor como dialogismo, está diretamente ligado ao
conceito de enunciado. Para Bakhtin (2016), o enunciado é um todo significativo, é o real objeto
de estudo da língua, do discurso. É composto, em termos mais abrangentes, por: “dois
elementos que determinam o texto como enunciado: a sua ideia (intenção) e a realização dessa
intenção. As inter-relações dinâmicas desses elementos, a luta entre eles, que determina a índole
do texto. A divergência entre eles pode sugerir muita coisa” (BAKHTIN, 2016, p.73).
O enunciado está embebido pelo discurso, de modo tal, que são indiscutivelmente
inseparáveis para a (re)construção dos sentidos intencionados e interpretados no primeiro. Ao
ser intencionado, antes e durante a sua efetiva enunciação, o próprio é influenciado pelos
discursos constitutivos do sujeito enunciador, bem como o é ao ser reconstruído ativamente
pelo sujeito que o recepciona, ressignificando-o.
Assim como está imbricado pelo discurso, o enunciado também é repleto de vozes que
ecoam através da imensa e emaranhada cadeia discursiva – como também o são todos os
discursos –, em todas as etapas da sua constituição e efetivação. O fenômeno a que nos
detivemos neste estudo está, justamente, fluindo através de cada uma dessas etapas e vozes.
Falemos, pois, de seus pormenores, para entendermos a dimensão de sua importância na
comunicação discursiva.
Dissemos que o dialogismo permeia pelas etapas que compõem o enunciado, pois os
elementos que possibilitam a realização do enunciado são primordialmente dialógicos, como
propõe Bakhtin (2016). São eles, portanto: o endereçamento; a alternância dos sujeitos
discursivos; a conclusibilidade e, não menos importante, a responsividade. No que concerne ao
primeiro elemento mencionado, vejamos:
[...] o enunciado não está ligado apenas aos elos precedentes mas também aos
subsequentes da comunicação discursiva. Quando o enunciado é criado por um
falante, tais elos ainda não existem. Desde o início, porém, o enunciado se constrói
levando em conta as atitudes responsivas, em prol das quais ele, em essência, é criado.
[...] Um traço essencial (constitutivo) do enunciado é a possibilidade de seu
direcionamento a alguém, de seu endereçamento. (BAKHTIN, 2016, p. 62, grifos do
autor)

As ligações existentes entre cada enunciado já realizado são inquebráveis, devido à


impossibilidade de se isolar um enunciado que já tenha sido produzido ou que venha a ser,
como podemos ver no excerto. Tanto é que, nos momentos em que ainda está a ser produzido,
intencionado, o sujeito condutor do discurso o faz pensando em alguém. Este alguém é
demasiado importante para a produção do mesmo, por duas razões: primeiramente, norteia a
construção, é potencialmente interessado e capaz de ressignificar o enunciado em questão; em
segundo lugar, porque, ao se deparar com esse novo enunciado, torna-se efetivamente seu
respondente. Assim também podemos ver na fala da autora:

Não somente o falante produz textos direcionados a alguém, como também, todo seu
discurso é orientado de modo a proporcionar a quem o irá ler/ouvir uma reação ativa
de (re)construção do sentido, organizando seus discurso de modo que seja do interesse
do respondente pretendido. Sendo esta uma das características que compõem o
enunciado e o efetivam na comunicação: a possibilidade de ser respondido, seja de
que maneira for, pelo outro da enunciação, aquele para qual o enunciado foi orientado
discursivamente, apto para agir responsivamente sobre ele (MEDEIROS, 2019, p. 18).

Essa possibilidade de resposta, que é de caráter inerente à constituição do enunciado,


liga-se, de igual modo, aos outros dois elementos mencionados: conclusibilidade e alternância
dos sujeitos discursivos. Como se vê na fala seguinte:

Os limites de cada enunciado concreto como unidade da comunicação discursiva são


definidos pela alternância dos sujeitos do discurso, ou seja, pela alternância dos
falantes. Todo enunciado tem, por assim dizer, um princípio absoluto e um fim
absoluto: antes do seu início, os enunciados de outros; depois do seu término, os
enunciados responsivos de outros [...] O falante termina o seu enunciado para passar
a palavra ao outro ou dar lugar à sua compreensão ativamente responsiva. O enunciado
não é uma unidade convencional, mas uma unidade real, delimitada com precisão pela
alternância dos sujeitos do discurso e que termina com a transmissão da palavra ao
outro, por mais silencioso que seja o “dixi” percebido pelos ouvintes como sinal de
que o falante concluiu sua fala. (BAKHTIN, 2016, p. 29, grifo do autor)

Diante disso, percebe-se que os próprios elementos constitutivos do enunciado são


puramente dialógicos, tendo em vista os movimentos cíclicos estabelecidos entre os mesmos.
São, pois, componentes inerentes ao enunciado, assim como também o são para o fenômeno
dialógico da linguagem, pois, na percepção bakhtiniana, o primeiro prescinde o último para sua
efetiva realização. Contudo, há de se fazer uma ressalva, em meios aos movimentos cíclicos
desses quatro elementos. A conclusibilidade, por exemplo, não é definitiva, como aponta
Medeiros (2019):

(...) notamos que esses elementos os quais viemos discutindo como fundamentais na
constituição do enunciado, estão interligados e dialogando: há uma resposta porque
há um destinatário, que também só é possível porque as posições de fala variam,
devido a conclusibilidade dos enunciados. Sobre esse último elemento, podemos ver
que não é absoluto em todos os sentidos. O enunciado precisa ter o fim, como já
vimos, no entanto, o que é tratado tematicamente nele foi relativamente concluído,
pois, não há como se falar tudo sobre determinado assunto, sempre haverá mais
questões a se falar a respeito deste. Questões estas que serão retomados por outrem,
complementadas e demais atitudes responsivas que os enunciados sucessores venham
a adquirir dentro da rede discursiva. (MEDEIROS, 2019, p. 19)

Assim, podemos dizer que esses quatro elementos são complementares e


interdependentes nas relações dialógicas que estabelecem. E, no que tange à conclusibilidade,
entende-se que o seu caráter relativo, momentâneo, está diretamente ligado à garantia e
perpetuação do dialogismo, pois a possibilidade de resposta do enunciado prescinde a sua
momentânea conclusibilidade para se efetuar.
Tendo em vista que os sujeitos discursivos alteram sua posição de fala diante dessa
relativa conclusão, produzem, também, uma atitude responsiva – independente da forma que
será executada, ou do tempo necessário para que venha a ocorrer – em meio ao que foi
entendido; que, novamente, será direcionada a alguém, prenhe de novas ressignificações.
Ademais, vejamos, a seguir, como se manifesta o fenômeno dialógico da linguagem
através dos discursos promovidos pelos anúncios publicitários de lingeries, em publicações das
contas de marcas específicas desse produto no Instagram.

4 EMBATES DIALÓGICOS SOBRE A FUNCIONALIDADE E/OU SEXUALIZAÇÃO


DA LINGERIE: DISCUSSÃO E ANÁLISES DOS ENUNCIADOS

Com a intenção de apresentar uma análise da construção linguística dos gêneros de


linguagem verbo-visual a partir de orientações metodológicas dos estudos de Mikhail Bakhtin
e o Círculo, buscamos assegurar os lugares de confrontos vivenciados na linguagem a partir de
enunciados nas redes sociais. Entendendo que o enunciado é sempre dialógico, podendo ser
uma palavra, uma imagem ou uma obra inteira, independente de qual seja o meio de
comunicação, incluindo os digitais, nos atrelamos aos pensamentos bakhtinianos sobre a defesa
da natureza social e interativa da linguagem.
Já que a língua, a realidade material da linguagem, não é de natureza individual, ela e
os sujeitos que a utilizam estão sob um contexto sócio-histórico. Dessa maneira, os enunciados
veiculam concepções de mundo na vida dos indivíduos sendo interpelados por circunstâncias
específicas. E, da mesma forma, se enunciam por meio dela e em determinadas conjunturas
sociais. Assim, a todo momento, há embates na produção de discursos, gerando também
respostas, para a compreensão dos enunciados. Pires (2002) explica:

Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu
cerne uma resposta, já que implica sujeitos. O ser humano, juntamente com seu
discurso, sempre presume destinatários e suas respostas. A compreensão de um
enunciado vivo é sempre prenhe de respostas [...]. O sujeito que produz um discurso
não quer uma compreensão passiva que somente levaria à repetição de seu
pensamento, mas almeja respostas que evidenciem adesão, concordância ou,
contrariamente, objeção às idéias expostas. O sujeito bakhtiniano gera respostas, toma
atitudes, constituindo-se um sujeito não totalmente interpelado. (PIRES, 2002, p.42-
43)

Portanto, não há a possibilidade de um enunciado existir isoladamente, incluindo as


propagandas, onde estão os anúncios publicitários. Obrigatoriamente, ele sempre é atravessado
por enunciados de outros, sempre como uma resposta há outros enunciados. “Essa
“responsividade” implica um juízo de valor que, partindo da relação do enunciado com a
realidade, com seu autor e com os outros enunciados anteriores, traz para o discurso os
elementos ideológicos que o constituem” (PIRES, 2002 p. 43).
Com isso, buscamos entender como certos enunciados são construídos a partir das
lingeries. Então, para entendermos como acontecem esses embates dialógicos sobre a
funcionalidade e/ou sexualização dessas peças de roupa íntima, analisamos dois (2) perfis na
rede social Instagram (@pantys e @violetintimate). Com a finalidade entendermos melhor
como estão postos esses enunciados e os embates com a sexualização e a funcionalidade da
lingerie para as mulheres na contemporaneidade.

4.1 A LINGUAGEM VERBO-VISUAL DO GÊNERO ANÚNCIO PUBLICITÁRIO NO


INSTAGRAM

A tecnologia está avançando de maneira cada vez mais veloz, tomando proporções mais
integrantes, refletindo seu caráter penetrável e quase essencial sobre as sociedades e o
comportamento humano. Impulsionando novas práticas sociais e culturais, as tecnologias fazem
com que os indivíduos passem a ser criadores e também usuários das ferramentas, apropriando-
se das possibilidades técnicas, como também sendo afetado por elas:

Mesmo com todo o desenvolvimento tecnológico vigente nos últimos séculos, o que
se tem percebido é um esforço para criar mecanismos que pudessem respaldar essa
necessidade de socialização. Deste modo, percebe-se que nos últimos anos houve um
crescimento exponencial de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs)
buscando, de tal forma, potencializar as formas de comunicação. Neste contexto, [...]
o uso massivo da internet alicerçado pelas redes sociais tem alterado, de modo
significativo, as formas de interações, criando assim novos formatos [...], além de
potencializar o uso da linguagem e a criação de diálogos multifacetados,
proporcionando, de tal forma, uma polifonia orquestrada pela articulação de várias
comunidades virtuais. (SAID; CABRAL, 2014, s./p.)

Segundo Casado Alves e Bezarril (2013, p. 334), “para Bakhtin, todos os campos da
atividade humana estão ligados ao uso da linguagem, em suas variadas manifestações”,
inclusive no contexto social-histórico contemporâneo, pois grande parte desses avanços da
tecnologia estão relacionadas a melhorar e abranger os processos de acesso e aprimoramento
das possibilidades de comunicação, diminuindo distâncias e quebrando barreiras físicas e
geográficas. Sendo assim, os estudos bakhtinianos e do Círculo encontram-se mais atuais do
que nunca:

Quando o falante utiliza a língua numa determinada esfera da atividade humana, ele
o faz sob a forma de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos que passam a
refletir as situações específicas e as intenções de cada uma delas. O enunciado é
considerado, nessa perspectiva, como unidade real da comunicação discursiva, pois
reflete as condições específicas de cada campo por meio do seu conteúdo (temático),
do estilo da linguagem (seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da
língua) e por sua construção composicional. O que constitui a linguagem, portanto, é
o fenômeno social da interação verbal, que se realiza por meio de enunciados.
(CASADO ALVES; BEZERRIL, 2013, p. 334)

Isso quer dizer que, se viver significa participar de um diálogo e vivemos em um mundo
nas redes atualmente, este “novo estilo de humanidade” (LEVY, 2008, p. 17), que não necessita
da presença física e do convívio social de carne e osso, também é formado por enunciados
dialógicos.
Então, com as interações sociais na contemporaneidade geradas através do digital,
diferentes das antigas maneiras de se socializar, altera-se a forma de proliferação e criação dos
discursos, mas não as características básicas da linguagem enquanto elemento fundador do
pensamento humano e marcado pela noção de dialogismo apresentada pelos estudos
bakhtinianos:

Com o uso e acesso a novos serviços e produtos tecnológicos – sobretudo os advindos


da internet e, de uma forma mais fecunda, as redes sociais –, temos percebido a
articulação de plataformas tecnológicas para formação de novas comunidades e
criação de mecanismos cada vez mais interacionais, onde, possivelmente, se renovam
de forma intensa e reforçam a construção de discursos polifônicos e dialógicos.
(SAID; CABRAL, 2014, s./p.)
Ou seja, mesmo com a evolução dos meios de comunicação, a ideia do diálogo sempre
a precede. Então, todos os enunciados no meio digital partem desse pressuposto, incluindo os
anúncios publicitários – classificação dada por Casado Alves e Bezerril (2013) a esse gênero
do meio de comunicação da propaganda. Assim, a linguagem verbo-visual dos anúncios
publicitários nas redes sociais circula na mídia, assim como no “mundo real”.
Impregnados de relações dialógicas, esses enunciados emanam de duas esferas sociais
de atividade humana, a das redes sociais e a da publicidade, que se constituem como campos
de legitimação, regularização e significação das interações sociais que se tipificam, originando
esse gênero, pois “os discursos desses anúncios refletem processos sócio historicamente
situados e nos permitem analisar as relações dialógicas e os processos ideológicos e valorativos
imbricados nesse gênero discursivo” (CASADO ALVES; BEZERRIL, 2013, p. 334).
Esse gênero do meio da propaganda e publicidade, ligado às esferas sociocomunicativas,
desenvolve-se a partir de valores sociais, culturais e históricos específicos, como fala Bakhtin
(2016). Dessa maneira, os anúncios, como enunciados concretos, têm uma orientação valorativa
com a finalidade de construir sentidos dando credibilidade para produtos, divulgando-os com o
intuito de não apenas propagar a informação sobre determinada mercadoria, mas, também, de
despertar interesse de compra e uso dos possíveis consumidores.
Para entender como acontece os embates dialógicos sobre a funcionalidade e/ou
sexualização das lingeries, apresentamos uma breve análise da dimensão verbal do gênero
anúncio publicitário nos perfis de Instagram de empresas de roupas íntimas direcionada ao
público feminino, sob a ótica dos estudos de Bakhtin e o Círculo. Esses perfis no Instagram,
por mais que passem uma perspectiva diferente da publicidade, não sendo apenas catálogo de
valoração dos produtos e exposição das mercadorias disponíveis, funcionam como um
componente essencial no processo econômico, na divulgação, promoção, criação do mercado
para marca, na expansão do próprio mercado e na sua correção do mercado, como também na
educação, na consolidação e na manutenção deste.
Com isso, selecionamos duas marcas de lingerie que investem em anúncios e mantêm-
se ativas na rede social Instagram, interagindo, publicando e gerando enunciados para o público
feminino presente na web: Pantys (@pantys) e Violet Intimate (@violetintimate). A primeira,
com mais de 470 mil seguidores; a segunda, em torno de 33 mil, pelo menos até meados deste
ano.
Figura 1 – Capturas de tela dos perfis @pantys e @violetintimate no Instagram

Fonte: Instagram, 2022.

Do lado esquerdo, temos a Pantys (@pantys). Perfil verificado na plataforma, que


utiliza-se do discurso, destacado na descrição de sua biografia, que é número 1 em clinically
approved high-tech fashion for menstruation, maternity and incontinence – moda de alta
tecnologia clinicamente aprovada para menstruação, maternidade e incontinência (tradução
nossa) –, 100% carbon neutral & vegan – livre de emissão de carbono e vegana (tradução
nossa) – e certificada pela B-Corp – empresa que visa como modelo de negócio o
desenvolvimento social e ambiental – feita no Brasil. Por mais que seja uma empresa
declaradamente brasileira, uma biografia toda escrita em inglês pressupõe que sua abrangência
perpassa o país, possibilidade esta que é gerada de maneira mais facilitada pelas redes sociais.
A Violet Intimate (@violetintimate), do lado direito, se descreve na rede social como loja de
lingerie e roupas íntimas. “Para mulheres de espírito livre”, destaca em sua biografia, e conclui
que é lingerie de luxo, autêntica e atemporal, além de feita à mão.
Trazendo lado a lado para analisarmos os discursos de funcionalidade e objetificação
confrontados nesses enunciados sobre lingerie, podemos perceber diferentes posicionamentos
nesses perfis que se utilizam de anúncios publicitários para a venda das peças. A Pantys
descreve características de valores da marca, a preocupação com o meio ambiente e seu
posicionamento como empresa de alta tecnologia e vegana, que leva em consideração as
questões sociais e ambientais do modelo de negócio. Já a Violet Intimate foca diretamente em
uma mulher “de espírito livre”, trazendo sua identificação relacionada à proposta de
exclusividade – por serem peças feitas à mão – e luxo agregados.
As cores predominantes nas publicações também podem ser percebidas como
contrastantes. A Pantys prioriza tons mais leves e “tranquilos” do rosa e do vermelho, cores
tidas como femininas, relacionando, pois, com a cor do sangue, já que a menstruação é uma das
pautas constantes da marca. A leveza para a menstruação, para sua roupa íntima, para o
conforto: sua funcionalidade. Na Violet, vemos a dominação do preto, das cores escuras, das
sombras, associando à ideia do mistério, da sensualidade e apresentando, discursivamente, a
ideia da sexualização para as lingeries.
Podemos observar, também, as fotografias das postagens, já que a rede social Instagram
tem como uma das principais ferramentas as fotos para os anúncios. Primeiro, as mulheres como
público dessas marcas, são elas que estão em todas as fotografias que contém pessoas. Na
Pantys, observamos diferentes corpos presentes, com uma diversidade nas mulheres ali
exibidas. Para a Violet, vemos um padrão de mulheres magras e corpos curvilíneos, mais
próximo a um perfil de beleza feminina imposto na atualidade e cristalizado pelas instituições
patriarcais da sociedade .
Por mais que as duas coloquem as fotos das mulheres de lingerie, as poses nas fotos
também aparecem de maneira diferente. Percebemos a ideia de conforto na Pantys, com
imagens na cama, dormindo confortavelmente, meias, camisetas. Na Violet, há uma
predominação de rendas, transparências e tiras. O que promove também a reflexão do que
poderia ser a liberdade para essas mulheres idealizadas na proposta publicitária da Violet.
Além das publicações das mulheres utilizando os produtos, as duas marcas mesclam
com outros tipos de postagem. A Pantys investe em publicações sobre bem estar e questões
socioculturais, como a ideia de que “sustentabilidade não é luxo” e a exposição sobre o Festival
Indígena União dos Povos. A Violet investe em imagens que mantêm a ideia da
sensualidade/sexualização, como, por exemplo, a fotomontagem da pintura “O Nascimento de
Vênus”, de Sandro Botticelli, com uma lingerie da marca. Assim, utiliza de um símbolo da
sensualidade universal e leva de encontro ao seu produto. Além disso, há vídeos de mulheres
no pole dance, trazendo mais uma vez a ideia da sensualidade/sexualidade ao produto.
Essas são algumas questões iniciais que vemos expostas no corpus aqui escolhido, de
uma ideia socialmente posta sobre lingerie há muito tempo, que perpassa por vários diálogos e
questões sociohistóricas: a lingerie é um produto funcional ou utilizado para a sexualização das
mulheres? Percebendo o embate dialógico dentro desses anúncios publicitários, concordamos
com Casado Alves e Bezerril (2013), quando afirmam que:

O anúncio tem o objetivo de persuadir o leitor, por meio dos mais diferentes recursos,
sejam estes de ordem verbal e/ou verbo-visual, [...] criando a representação de um
leitor e possível comprador dos produtos veiculados contemporâneo [...].
Compradores não só de produtos, mas de ilusões. (p. 345-346, grifo nosso)

Dessa maneira, percebemos a ilusão proposta na venda de lingeries, que tipo de mulher
estão comprando e estão querendo se identificar a partir desses enunciados. Como também,
podemos entender que função tem as lingeries para mulheres nesse momento histórico-cultural,
cujo mundo digital influencia direta e indiretamente nas escolhas feitas e no modo de vida do
mundo “real”, em que há tanto a ideia da funcionalidade quanto da sexualização a partir de
enunciados sobre o mesmo produto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como vimos discutindo, as relações dialógicas da sociedade contemporânea patriarcal


são resultantes de um histórico milenar de controles, repreensões e demais limitações impostas
à figura feminina e suas ramificações, que são criticadas pelos estudos feministas. Sendo assim,
o discurso da sexualização e da objetificação, mesmo tendo conquistado uma maior expansão
atualmente, apresenta amarras profundas e demasiadamente alicerçadas na sociedade.
Contudo, sabe-se que há algumas décadas, o movimento feminista conquistou bastante
força, atuando bastante contra esse tipo de discurso que deturpa a imagem feminina,
reprimindo-a e oprimindo-a também. Esses discursos estão, pois, em um verdadeiro confronto
dialógico, pois um busca a diminuição da voz do outro, ou até mesmo sua erradicação.
Diante desse embate, está, então, a questão que foi tratada aqui: a utilização de uma peça
íntima como as lingeries e os meios de sua respectiva comercialização – funcionalidade versus
sexualização. Como pudemos ver, há perfis de empresas mais voltados para normalidade, para
o cotidiano das mulheres, o que significa dizer, que estão preocupadas em vendê-las pela
necessidade de uso; outros, porém, buscam comercializar as lingeries, relacionando-as ao ato
sexual, apresentando discursos que reproduzem o corpo feminino de forma objetificada,
sexualizada.
Portanto, nota-se que o discurso das marcas voltado para funcionalidade aproxima-se
dos discursos feministas, tendo em vista que este busca normalizar o uso da peça íntima
supracitada, além de, é claro, normalizar o cotidiano das próprias mulheres. Isto é, mulheres
que não são objetos inalcançáveis e assexuais como, por exemplo, no ideal romântico; assim
como também não existem em função do prazer masculino. Mulheres que vivem suas vidas em
meio à correria do dia a dia contemporâneo.
Esse palco discursivo, em que lutam pelos holofotes os discursos feministas contra os
que objetificam a mulher, é um grande exemplo, em nossa contemporaneidade, dos embates
travados nas relações e práticas sociais. Confrontos estes que, mesmo despercebidos por muitos,
reforçam e comprovam a inerência do fenômeno dialógico da linguagem em cada enunciado já
produzido e em cada um dos enunciados que ainda estão por vir. Não somente emaranhados e
integralmente conectados, mas, principalmente, ocupando posições bem definidas e,
certamente, lutando para defender e garantir a perpetuação dessas posições.

REFERÊNCIAS

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Martins Fontes, 2011.

BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.

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2019.

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Disponível em: http://tede.ucpel.edu.br:8080/jspui/handle/tede/186. Acesso em 3 de jul.,
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WOLF, Naomi. O Mito da Beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as
mulheres. 15 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2020.
“CAL.CI.NHA”: AS ATITUDES RESPONSIVAS FEMINISTAS DIANTE DOS
EMBATES DIALÓGICOS SOBRE A FUNCIONALIDADE E/OU SEXUALIZAÇÃO

Alexia Eloar Félix Cavalcante24

Rosenice de Lima Gabriel25

Joyce Millene de Medeiros26

Jessye Késsia de Carvalho Pereira27

RESUMO
Este trabalho tem como objetivo discutir as formas de contestação do movimento feminista no
que diz respeito as esferas de objetificação dos corpos e as roupas intímas. Para tanto, pretende-
se analisar a dimensão verbo-voco-visual do gênero curta-metragem, sob a orientação
metodológica dos estudos bakhtinianos e o Círculo (BAKHTIN, 2003; 2011; 2016), além das
esferas feministas (BEAUVOIR, 2019; SAFIOTTI, 2015; WOLF, 2020) e da semiótica
greimasiana (PIETROFORTE, 2021). Nesse contexto, destacamos como objeto de análise, as
atitudes responsivas no curta-metragem “Cal.ci.nha” (Festival do Minuto, 2019), que põe em
cheque o uso cotidiano da peça íntima nos corpos femininos como uma esfera natural do
cotidiana, afastando-se, portanto, de conceitos de sexualização e imposição sexual que foram
massificados ao longo dos séculos pela instituição patriarcal. Nosso trabalho se faz essencial,
uma vez que pretende discutir a sexualização dos corpos femininos, além de evidenciar o uso
da peça como algo natural e cotidiano.

Palavras-chave: Sexualização. Dialogismo. Atitude responsiva. Curta-metragem. Calcinha.

1 INTRODUÇÃO

24
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: alexia.eloar@academico.ufpb.br
25
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: rosenicelima@gmail.com
26
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: joymimedeiros@gmail.com
27
Universidade Federal da Paraíba (Proling), E-mail: jessyekessia16@gmail.com
As relações femininas e masculinas sempre foram povoadas de desigualdades e
divisões. Consequentemente, acarretam inúmeras discriminações e violências de gênero. A
mulher sempre foi tida como um objeto sexual para a sociedade machista, por isso suas funções
caberiam somente em executar e suprir esse papel com maestria. Nessas circunstâncias, uma
das opressões que povoam a vida feminina se reverbera na sexualização de seu corpo, que
continua constantemente alimentada pela indústria da beleza e pelas instituições masculinas.
Por esse motivo, é comum encontrar a massificação de padrões inalcançáveis para o
corpo feminino, que representam exatamente um objeto de desejo ideal masculino. Pois, como
expõe Saffioti (2015, p. 102), “um dos elementos nucleares do patriarcado reside exatamente
no controle da sexualidade feminina, a fim de assegurar a fidelidade da esposa a seu marido”.
Todavia, para responder essa sexualição e todas as opressões ao feminino, surge o discurso
feminista que funda uma proposta de combate, delineando conceitos de aceitação dos corpos e
autonomia.
Por esse motivo, em nossa pesquisa, caberemos a discussão sobre o corpo feminino e as
roupas íntimas numa formatação feminista audiovisual, que inside a utilidade da peça íntima
como elemento de funcionalidade e não como sexualização. Considerando, portanto, os ideais
feministas no gênero audiovisual, na qual se mostram intimamente ligadas às atividades sociais,
culturais e, em especial, comunicativas, essas (re)constituem-se através de dispositivos de
interpretação e reprodução de embates discursivos — patriarcais e feministas.
Assim, objetivamos tecer uma análise dialógica do curta-metragem “Cal.ci.nha”
(Festival do Minuto, 2019), que faz críticas em torno da sexualização dos corpos femininos nas
lingeries, mais especificamente, a calcinha, constituindo uma relação de responsividade
conflitante com o discurso do patriarcado. Para entendermos como são construídos esses
embates dialógicos sobre a funcionalidade dessas peças, analisaremos as atitudes responsivas
em torno da sexualização no curta-metragem, que põe em cheque o uso cotidiano da peça íntima
nos corpos femininos. Para tanto, utilizaremos o viés feminista, além dos estudos dialógicos de
Bakhtin e o Círculo, e a perspectiva greimasiana da semiótica plástica através da dimensão
verbo-voco-visual.

2 A SEXUALIZAÇÃO DOS CORPOS FEMININOS NA SOCIEDADE PATRIARCAL

O conceito de beleza e do corpo perfeito sempre existiu na história da humanidade.


Desde a Antiguidade, os ideais de beleza estavam presentes nas sociedades, produzindo uma
grande variedade de imaginários do que seria um padrão de beleza. Entre os séculos, os homens
estabeleceram [...] “que as mulheres eram inerentemente inferiores — excessivamente
emocionais e luxuriosas, incapazes de se governar — e tinham que ser colocadas sob o controle
masculino” (FEDERICI, 2014, p.201-202). Por isso, as mulheres viveram à sombra do controle
do homem, tendo suas vidas e, em especial, sua sexualidade ditada de acordo com a autonomia
masculina.
Para o sujeito feminino, essa pressão estética se mostra muito intensa, isso porque as
mulheres são direcionadas a modificar seus corpos para adequar-se às imposições sociais do
que é considerado como beleza feminina. Conceitos estes que mudam com velocidade e
facilidade, mas nem sempre à gosto delas. A mídia, controlada pela sociedade patriarcal, é
complacente em disseminar artifícios de alienação social, estabelecendo o que é sexy, atraente
e recatado. Na realidade, a mulher nunca teve a chance de expor sua real opinião sobre seus
ideais de beleza e até mesmo sua própria história.
Foi somente com a chegada das discussões feministas e da intensa luta do movimento
que a sociedade passou a se modificar com relação aos espaços ocupados pelas mulheres. As
reflexões em torno das opressões ao sujeito feminino surgiram e a mulher, pela primeira vez
em séculos, conseguiu o poderio de resposta perante a investida patriarcal. Passou, portanto, a
questionar em torno da exposição e exploração de seu corpo sobre o viés da sexualização. Por
esse motivo, faz-se importante inserir as concepções feministas sob tal temática, uma vez que
torna a discussão ainda mais importante ao trazer debates sobre o patriarcado e o controle do
corpo da mulher.
Dessa maneira, com a proposta deste estudo de interlocução entre os conceitos da análise
dialógica do discurso com os fundamentos feministas para a compreensão das atitudes
responsivas diante dos embates dialógicos em uma obra audiovisual, entendemos que o
funcionamento da dominação, pelo e no sistema patriarcal, do corpo das mulheres por meio da
peça íntima e sua funcionalidade já encontra maneiras de resistir e respostas a tal exploração.
Sérgia de Oliveira (2018) explica que a dominação e a exploração sob o feminino acontece de
forma natural, afirmando que:

A legitimidade dada ao sistema patriarcal naturaliza as ações, perpetuando a


desigualdade entre homens e mulheres. Tal naturalização acaba por legitimar o
controle dos corpos femininos expressa, muitas vezes, através da violência física,
patrimonial, sexual, psicológica e simbólica. (SÉRGIA DE OLIVEIRA, 2018, p. 502)

Como crítica a essa naturalização da lingerie como forma de controle do corpo, o curta-
metragem escolhido como objeto de análise trará novos discursos, a partir de uma resposta ao
que a sociedade impõe da funcionalidade da lingerie como peça de sexualização do corpo da
mulher.

3 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

No capítulo destinado à análise dos anúncios publicitários do Instagram (A mulher nos


anúncios publicitários do Instagram: embates dialógicos sobre a funcionalidade e/ou
sexualização), expusemos que o fenômeno dialógico da linguagem, teorizado por Bakhtin
(2016), é crucial para os estudos da mesma e, principalmente, para os estudos discursivos, tendo
em vista que representa a verdade interação entre todos os enunciados já produzidos ou que
ainda serão, como afirma o autor:

Qualquer que seja o objeto do discurso do falante, ele não se torna objeto do discurso
em um enunciado pela primeira vez, e um determinado falante não é o primeiro a falar
sobre ele. O objeto, por assim dizer, já está ressalvado, contestado, elucidado e
avaliado de diferentes modos; nele se cruzam, convergem e divergem diferentes
pontos de vista, visões de mundo, correntes. (BAKHTIN, 2016, p. 60-61)

Cada enunciado existente está interligado aos demais, além de ser respondente, em
menor ou maior grau, a cada um destes. Estão conectados, dialogando entre si, quer seja por
convergência ou divergência. O dialogismo é um recurso que constitui o enunciado e o efetiva
como tal na rede discursiva, de maneira tal que, para o autor, é parte inerente ao mesmo. Sendo
assim, os elementos que compõem o fenômeno dialógico, também compõem o enunciado –
dentre os quais objetivamos nos precisar neste estudo.
Além disso, como mostramos no capítulo anterior, esses elementos – endereçamento,
conclusibilidade, alternância dos sujeitos que compõem o discurso, e as atitudes responsivas
tomadas pelos mesmos – são cíclicos, dialógicos e, portanto, indissociáveis. Aliado a essa
discussão, acrescentamos algumas questões pertinentes a dois desses elementos, que são peças
fundamentais para este estudo: as atitudes responsivas dos sujeitos e o endereçamento. Antes
que foquemos nestes, vale rememorar brevemente os outros dois elementos constitutivos do
dialogismo.
Bakhtin (2016) teoriza que a alternância dos sujeitos discursivos se faz relevante para
constituição do enunciado e efetivação do dialogismo neste, uma vez que, é através da mesma
que se pode concretizar a relativa conclusibilidade do enunciado, visto que o interlocutor que
está, no momento, atuando como “eu”, encerra momentaneamente sua fala para que “tu” tome
o seu lugar, posicionando-se, então, como o novo “eu”. Cada um produz suas falas de maneira
inacabada, permitindo que mais sujeitos possam se posicionar diante das mesmas e produzir
novas significações, atribuindo mais vozes e acrescentando mais enunciados à cadeia polifônica
do discurso.
Também se inserem nessa percepção de inacabamento, os próprios sujeitos do discurso,
que atuam ativamente na (re)significação dos sentidos deste. Essa atuação, que se dá através da
atitude responsiva dos sujeitos, pode ocorrer a partir de formas diferentes, com intervalos de
tempos também indefinidos:

(...) compreender o significado (linguístico) do discurso, ocupa simultaneamente em


relação a ele uma ativa posição responsiva (...) toda compreensão é prenhe de resposta,
e nessa ou naquela forma a gera obrigatoriamente (...) pode realizar-se imediatamente
na ação (...), pode permanecer de quando em quando como compreensão responsiva
silenciosa (...), mas isto, por assim dizer, é uma compreensão responsiva de efeito
retardado: cedo ou tarde, o que foi ouvido e ativamente entendido responde nos
discursos subsequentes ou no comportamento do ouvinte. (BAKHTIN, 2016, p. 25)

Portanto, na ótica bakhtiniana, os sujeitos (re)constroem os sentidos e decidem, pois, de


algum modo, reagir, responder ao que foi entendido. Essa decisão, que varia de acordo com o
sujeito, está sempre pautada na própria constituição do mesmo enquanto parte constituinte da
sociedade a qual faz parte, a qual se insere discursivamente e historicamente. Ao fazer isso,
assume, pois, uma postura diante do enunciado:

Todo enunciado concreto é um elo na cadeia da comunicação discursiva de um


determinado campo. (...) Os enunciados não são indiferentes entre si nem se bastam
cada um a si mesmos; uns conhecem os outros e se refletem mutuamente uns nos
outros.(...) Todo enunciado é pleno de ecos e pela identidade da esfera de
comunicação discursiva. Todo enunciado deve ser visto antes de tudo como uma
resposta aos enunciados precedentes de um determinado campo (...) Porque o
enunciado ocupa uma posição definida (...) em uma dada questão (...) É impossível
alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. (BAKHTIN,
2016, p. 57, grifos do autor).

Em um estudo discursivo, é imprescindível ressaltar a importância dos posicionamentos


dos sujeitos diante dos discursos proferidos e, bem como, recepcionados na historicidade do
mesmo. Principalmente, quando se estuda o discurso a partir da ótica dialógica, tendo em vista
que o próprio sujeito, fio condutor do discurso, pelo qual permeiam e para o qual são produzido
os enunciados, é constituído pela sobreposição e confronto de vozes anteriores e
contemporâneas ao mesmo. Sendo cada sujeito formado, um ser único na cadeia discursiva,
assim como também o são os enunciados:

Eis porque a experiência discursiva individual de qualquer pessoa se forma e se


desenvolve em uma intenção constante e contínua com os enunciados individuais dos
outros. Em certo sentido, essa experiência pode ser caracterizada como processo de
assimilação - mais ou menos criador – das palavras do outro (e não das palavras da
língua). Nosso discurso, isto é, todos os nossos enunciados (inclusive as obras criadas)
é pleno de palavras dos outros, de um grau vário de alteridade ou de assimilabilidade,
de um grau vário de aperceptibilidade e de relevância. Essas palavras dos outros
trazem consigo a sua expressão, o seu tom valorativo que assimilamos, reelaboramos,
e reacentuamos. (BAKHTIN, 2016, p. 54, grifos do autor)

Incorporamos, pois, os discursos, as palavras de outrem à nossa própria formação


discursiva, mas não o fazemos de modo mecânico. Esse processo de assimilar faz parte,
inclusive, da própria potencialidade que os sujeitos têm, assim como os enunciados, perante as
atitudes responsivas inerentes ao fenômeno dialógico da linguagem. O que significa dizer que,
ao assumir uma determinada postura perante o que foi entendido, o sujeito atribui novos
significados, ignora, prioriza e ademais posições ao que irá assimilar. Nessa ótica, o sujeito, por
ser discursivo, é também dialógico.
Isso ocorre, é claro, de acordo com o grau de desenvolvimento discursivo do próprio,
no que compete ao fenômeno, como aponta Medeiros (2019):

No momento em que nos apercebemos dos sinais dialógicos de um dado enunciado e


constatamos a resposta deste para com outro, tentamos recuperar em nossa
experiência discursiva a similitude deste discurso para com outros, para interpretar os
sentidos que já conhecemos discernindo da nova significação atribuída. (MEDEIROS,
2019, p. 24)

Sendo assim, o discernimento do sujeito, perante a variedade de enunciados que o


constitui enquanto ser dialógico, influencia nos discursos defendidos pelo mesmo, bem como
nas formas escolhidas para agir responsivamente e, portanto, na produção de novos enunciados
concretos que se tornarão parte da rede do discurso. Logo, às atitudes responsivas está
interligado o conceito de endereçamento, visto que o mesmo diz respeito ao modo como é
intencionado um determinado enunciado, para que alcance os objetivos desejados.

(...) o enunciado se constrói levando em conta as atitudes responsivas, em prol das


quais ele, em essência, é criado. O papel dos outros, para quem se constrói o
enunciado, é excepcionalmente grande, como já sabemos. Já dissemos que esses
outros, para os quais o meu pensamento se torna um pensamento real pela primeira
vez (e deste modo também para mim mesmo), não são ouvintes passivos, mas
participantes ativos da comunicação discursiva. Desde o início o falante aguarda a
resposta deles, espera um ativa compreensão responsiva. É como se todo o enunciado
se construísse ao encontro dessa resposta. Um traço essencial (constitutivo) do
enunciado é a possibilidade de seu direcionamento a alguém, de seu endereçamento.
(BAKHTIN, 2016, p. 62, grifos do autor)

Portanto, o caráter responsivo do enunciado está imbricado a capacidade de o mesmo


ser endereçado. Isto é, a responsividade não diz respeito somente ao ato de reagir aos
enunciados já produzidos, mas também, direcionar o discurso, a fala que está sendo construída,
intencionada, a um sujeito possível. Este sujeito é, pois, passível de interpretar e ressignificar
essa fala, para que se possa, enfim, dar continuidade aos movimentos cíclicos entre os
elementos que compõem as relações dialógicas da interação humana.
Devido a tamanha importância dos sujeitos para que se efetive a responsividade, cada
momento histórico da humanidade é construído discursivamente conforme são possíveis as
interpretações dadas pelos sujeitos que o estão vivenciando, como aponta Bakhtin (2016) no
excerto abaixo:

A concepção do destinatário do discurso (como o sente e imagina o falante ou quem


escreve) é uma questão de enorme importância na história da literatura. Cada época,
cada corrente literária e estilo ficcional, cada gênero literário no âmbito de uma época
e cada corrente têm como características suas concepções específicas de destinatário
da obra literária, a sensação especial e a compreensão do seu leitor, ouvinte, público,
povo. O estudo histórico das mudanças dessas concepções é uma tarefa interessante e
importante. Mas para sua elaboração eficaz faz-se necessária uma clareza teórica na
própria colocação do problema. (BAKHTIN, 2016, p. 67)

Podemos perceber, então, que os enunciados só obtêm êxito no seu propósito discursivo
se forem passíveis de serem entendidos pelos sujeitos, tendo em vista que os mesmos serão
responsáveis por perpetuá-los na cadeia discursiva, ao dialogar com os mesmos. Sendo assim,
os discursos vão surgindo, modificando e se esvaindo conforme as sociedades interagem com
o contexto com que se deparam, atribuindo novas significações ao que já existe e, não menos
importante, elaborando novos discursos e enunciados que não eram passíveis de serem
pensados anteriormente. Como exemplo concreto de tais ponderações, temos a análise a seguir,
em que se inserem os embates dialógicos envolvidos nas perspectivas atribuídas aos corpos
femininos e vestimentas específicas destes.

4 EMBATES DIALÓGICOS SOBRE A FUNCIONALIDADE E/OU SEXUALIZAÇÃO


DA LINGERIE: DISCUSSÃO E ANÁLISES DO ENUNCIADO E SUAS ATITUDES
RESPONSIVAS

Apresentando o estudo de uma construção linguística do gênero verbo-voco-visual, a


luz da análise discursiva bakhtiniana e estudos do Círculo, buscamos assegurar os lugares de
confrontos postos na linguagem dos enunciados no audiovisual. Esses enunciados, a todo
momento, estão dentro de embates na produção de discursos, gerando também respostas, para
a compreensão dos enunciados.
Pires (2002) explica:
Toda compreensão é um processo ativo e dialógico, portanto tenso, que traz em seu
cerne uma resposta, já que implica sujeitos. O ser humano, juntamente com seu
discurso, sempre presume destinatários e suas respostas. A compreensão de um
enunciado vivo é sempre prenhe de respostas (...). O sujeito que produz um discurso
não quer uma compreensão passiva que somente levaria à repetição de seu
pensamento, mas almeja respostas que evidenciem adesão, concordância ou,
contrariamente, objeção às idéias expostas. O sujeito bakhtiniano gera respostas, toma
atitudes, constituindo-se um sujeito não totalmente interpelado. (PIRES, 2002, p.42-
43)

Portanto, não há a possibilidade de um enunciado existir isoladamente, incluindo as


propagandas, onde estão os anúncios publicitários, e os filmes. Obrigatoriamente, ele é sempre
atravessado por enunciados de outros, sempre como uma resposta há outros enunciados: “Essa
“responsividade” implica um juízo de valor que, partindo da relação do enunciado com a
realidade, com seu autor e com os outros enunciados anteriores, traz para o discurso os
elementos ideológicos que o constituem” (PIRES, 2002 p. 43).
Com isso, buscamos entender como certos enunciados são construídos a partir das
lingeries. Então, para entendermos como acontecem esses embates dialógicos sobre a
funcionalidade e/ou sexualização dessas peças de roupa íntima, temos como objeto de análise
o curta-metragem Cal.ci.nha (Ingrid Fernandes e Larah Camargo, 2019), que se trata de uma
resposta direcionada a esses discursos.
Essas investigações, além dos estudos bakhtinianos e do Círculo, convergem
teoricamente com estudos semióticos, feministas e da comunicação, com a finalidade de
entendermos melhor como estão postos esses enunciados e os embates com a sexualização e a
funcionalidade da lingerie para as mulheres na contemporaneidade.

4.1 O GÊNERO VERBO-VOCO-VISUAL: ANÁLISE DO CURTA-METRAGEM


CAL.CI.NHA (2019)

Todos os dias, nos deparamos com diferentes enunciados nas redes sociais que nos
possibilitam adentrar em um universo singular na história humana - o mundo digital -, em que
a linguagem verbal e não verbal por vezes se imbricam e por outras se dissociam.
Conforme Machado nos esclarece: “mais que um jogo de falas, uma polifonia como
queria Bakhtin, no cinema temos um jogo de olhares, uma ‘polivisão’, cuja natureza é difícil de
decifrar” (MACHADO, 2007, p. 14). Assim, ao analisarmos um vídeo, por exemplo, faz-se
necessário atentarmos aos diversos contextos e linguagens.
Nesta perspectiva, ao observarmos, o curta Cal.ci.nha, de Ingrid Fernandes e Larah
Camargo, dentre outros aspectos vemos esse objeto de vestimenta feminina por diversos
ângulos, inclusive sob uma ótica do cotidiano das mulheres no uso das calcinhas, oposta à visão
fetichizada que é publicizada pela mídia; logo, tempos em palco os confrontos discursivos,
nitidamente em oposição: objetividade vs. objetificação e biológico vs. social.
Neste sentido, vemos o enunciado como um elo da comunicação discursiva, como
defende Bakhtin (2011), ao perceber que a objetividade de utilização cotidiana da peça é posta
em pauta sob a perspectiva em que as a câmera simula o olhar do espectador, passando a
impressão da representatividade feminina sobrepondo-se a objetificação social, em que são
colocados como elementos disfóricos do cotidiano.
Conforme Melo (2008, p.9), a produção de um vídeo envolve “de forma múltipla,
instável, variável e complexa, com uma diversidade infinita de formas, temas e estratégias de
apresentação”. Esta visão é claramente percebida ao analisarmos o curta Cal.ci.nha. Neste, o
enunciado é construído através do enquadramento da câmera definido por seus autores, sendo
possível vermos os “ecos” produzidos neste, em oposição à fetichização do elemento calcinha.
É possível vermos essa posição responsiva de resistência à fetichização desde o início
do curta metragem, onde fora inserido um texto dicionarizado sobre o significado do elemento
calcinha que diz:

Figura 1 –Frame de Cal.ci.nha (2019) e o uso cotidiano da peça

Fonte: FERNANDES; CAMARGO, 2019.

Diante do posicionamento midiático, que expressa uma cultura machista onde a figura
feminina é sinônimo de símbolo sexual, objetificando seus corpos e suas roupas numa tentativa
de padronização; em oposição a essa ditadura da sexualização, o curta em todo seu enredo
mostra a funcionalidade do elemento de uso íntimo pelo público feminino, demonstrando sua
objetividade, independente do corpo que irá usá-la, como podemos ver no recorte a seguir:
Figura 2 – Frame de Cal.ci.nha (2019) e o uso cotidiano da peça

Fonte: FERNANDES; CAMARGO, 2019.

Como podemos ver nas imagens acima, durante o curta percebe-se um sincronismo
das categorias semióticas eidéticas e topológicas relacionando-se com contrastes opostos,
possibilitando uma combinação de cores, formas e orientação de espaços, conforme
Pietroforte (2021, p. 30), nos apresenta a seguir:

Tabela 1 - Categorias de análise

Categoria Análise Relações de contraste

Cromática Combinações das Claro vs. Escuro


cores

Eidética Relações entre Curvilíneo vs. retilíneo


formas

Topológica Orientações das Inferior vs. Superior


formas no espaço

Fonte: PIETROFORTE, 2021, p. 30.

Como sabemos, estudiosos de outras áreas, como as artes visuais, além da linguística e
da literatura, abordam as perspectivas bakhtinianas em seus estudos, sob a ótica dos discursos
visuais, imagéticos, e seus elementos. Exemplos destes expoentes são Haynes (2002) e Beth
Brait (2013), que nos apresentam uma linha pautada no verbo e na visualidade, os quais são
indissociáveis para a autora, e devem ser analisados em conjunto: “[...] não podendo ser
separadas, sob pena de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a
compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele se dá a
ver/ler, simultaneamente” (BRAIT, 2013, p. 44).
Ao observarmos as imagens a seguir, é possível percebermos esse sincretismo e
presença da verbo visualidade contida neste vídeo, articulada através dos ângulos da câmera,
vemos o mesmo como resposta a outros enunciados, cujos discursos feministas manifestados
no curta se opõem distintivamente. Essa postura é concordante, então, com as proposições de
Bakhtin (2016), no que concerne às atitudes responsivas dos sujeitos, que não somente agem
responsivamente, como, ao fazerem isso, determinam seus posicionamentos, como se vê:

Figura 3 – Frame de Cal.ci.nha (2019) e o uso cotidiano da peça

Fonte: FERNANDES; CAMARGO, 2019.

Como defendemos anteriormente, a exemplo destas imagens também, todo o vídeo é


uma resposta que se opõe a outros enunciados precedentes, nesse caso, os discursos que
objetificam e sexualizam os corpos femininos, os quais são amplamente divulgados e
perpetuados pela mídia, promovendo uma relação direta com tais elos dialógicos.
Corroborando com Bakhtin (2012, p. 99): “reagimos àquelas [palavras] que despertam
em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. Nesta perspectiva, o curta reflete
claramente esta reação responsiva, arraigada de impressões que trazem significados ora
subjetivos e ora coletivos. Apresentando, pois, uma percepção objetiva da funcionalidade deste
elemento da intimidade feminina, em confronto aos discursos institucionalizados referentes à
sexualização da mulher, em que os atributos e elementos da intimidade desta são primeiramente
tratados do ponto de vista sexual, subordinando as particularidades fisiológicas e o conforto
básico necessário para a manutenção da saúde do corpo/organismo como componentes
secundários de suas vidas.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi discutido, observamos que o fenômeno dialógico da linguagem é


intrínseco aos enunciados e sua constituição, desde o momento em que são intencionados pelos
sujeitos discursivos ao passo que se efetivam na rede dialógica do discurso, podendo, assim,
estabelecer novos elos e se tornarem pontos de partida para as ações responsivas de outros
sujeitos, que irão demarcar seus posicionamentos a respeito do mesmo: concordando,
discordando, acrescentando etc.
Neste artigo, ponderamos principalmente sobre o caráter responsivo e a capacidade de
endereçamento do enunciado, aspectos estes que são relevantes na construção das relações
dialógicas, pois possibilitam o entrelaçamento dos enunciados em produção aos já
concretizados nas esferas discursivas.
Apresentamos, então, uma contraposição da objetificação da vestimenta íntima,
calcinha, como é imposta pela mídia, que reduz este objeto e a figura feminina a um produto,
cujo propósito visa a satisfazer os desejos sexuais masculinos; e sua objetividade, vista a partir
da ótica da mulher, como uma peça íntima para uso diário, que tem funcionalidades intrínsecas
ao gênero, independente dos corpos que a ocupem.
O apelo sexual tem sido utilizado comumente pelos meios midiáticos/digitais, como
estratégia de marketing para vender e lucrar no meio feminino, que, por vezes,
inconscientemente acaba aderindo a essas investidas, consumindo, então, os produtos
comercializados, sem antes refletir a objetivação dos mesmos durante a venda e a perspicácia
na elaboração das estratégias discursivas para garantir o êxito da mesma. A exemplo disso,
temos a calcinha, as lingeries no geral, que é vendida através de uma perspectiva machista que
objetifica o corpo da mulher.
Sendo assim, é importante analisar essas contraposições, não apenas por serem conflitos
discursivos bastante disseminados na atualidade, mas, principalmente, porque suas raízes
históricas passam despercebidas, assim como a relevância de poderem ser, finalmente,
colocados em pauta e discutidos, visto que, se tornaram passíveis de serem analisados e
ressignificados pelos sujeitos discursivos da contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo:
Martins Fontes, 2011.
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016.

BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. 5 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2019.

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Paulo, v. 8, nº 02. jul./dez. 2013.

CAL.CI.NHA. Direção: Ingrid Fernandes e Larah Camargo. Produção: Festival do Minuto,


Rio de Janeiro, 2019. 1 min. Color.

FERREIRA, Lydia Masako; FURTADO, Fabianne; SILVEIRA, Tiago Santos. Advisor-


advisee relationship: the multiplier knowledge. Revista Acta Cirúrgica, São Paulo, v. 24, n.
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FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:
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MACHADO, Paulo C. A. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço.


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MELLO, Christine. Extremidades do vídeo. São Paulo: Editora Senac, 2008.

PIRES, Vera Lúcia. Dialogismo e alteridade ou A Teoria da Enunciação em Bakhtin. In: Os


estudos enunciativos: a diversidade de um campo, Organon, Porto Alegre, v. 16, n. 32-33,
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SAFFIOTI, Heeieth. Gênero, patriarcado, violência. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular:
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SÉRGIA DE OLIVEIRA, R. O corpo feminino: erotização e objetificação. Revista Serviço


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STAKE, R. E. A arte da Investigação com Estudo de Caso. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2000.
O ESPAÇO NARRATIVO EM PRESENÇA DE ANITA: UMA ANÁLISE DA FICÇÃO
TELEVISIVA E A DIALOGIZAÇÃO COM O LITERÁRIO

Joseane Mendes Ferreira28

1 INTRODUÇÃO

Este texto traz um estudo sobre a minissérie Presença de Anita, tendo como foco a
categoria narratológica espaço. A partir da leitura de dois capítulos do texto televisivo, o
objetivo aqui consiste em analisar, especificamente, as escolhas feitas pelo roteirista para a
construção do “sobrado” a fim de percebermos as implicações que esse espaço traz para o
desenvolvimento da referida obra de ficção. Construída sob o formato de minissérie, Presença
de Anita foi exibida originalmente pela Rede Globo em 2001 e escrita pelo premiado autor de
TV Manoel Carlos. A minissérie é inspirada no livro homônimo, escrito pelo jornalista Mário
Donato e publicado em 1948.
Presença de Anita tem dezesseis capítulos que possuem em média entre 42 e 44 min
cada. A minissérie tem a duração total de 10h e 50min e foi exibida pela primeira vez no período
de 7 a 31 de agosto no ano de 2001. Em 2002, a gravadora Som Livre lançou a minissérie em
DVD, em um box contendo três discos. Manoel Carlos, dentro das exigências que se fazem
necessárias em um processo de adaptação, fez acréscimos consideráveis na categoria espaço
para compor sua minissérie. Com o contexto da adaptação, vemos também a intensificação de
alguns elementos do texto-fonte para atribuir novos significados ao sobrado, os quais são
necessários em textos audiovisuais, por exemplo.
O apoio teórico principal desta análise teve por base autores e textos que discutem sobre
narrativas audiovisuais, adaptação e literatura, bem como sobre a categoria espaço. São eles:
Stam (1996) e (2006) e Borges Filho (2007) e (2008). O artigo contou ainda com apoio de
textos complementares que deram suporte às discussões. Dentro dessa perspectiva, este texto
está estruturado de forma a discutir alguns aspectos sobre literatura e TV e, por fim, uma breve
análise de duas cenas da minissérie. Para tanto, fez-se necessário dialogar com o texto literário
que serviu de inspiração à minissérie.

2 DIÁLOGOS ENTRE FICÇÃO TELEVISIVA E LITERATURA

28
Mestra em Letras (UFPI) e Doutoranda em Letras - área de literatura, cultura e tradução (UFPB).
Uma prática bastante realizada entre os produtores de ficções televisivas é, certamente,
a adaptação inspirada nos textos literários. Muitos roteiristas buscam referências na literatura,
uma vez que, há convergências estéticas entre a ficção literária e os textos adaptados para as
telas. Ambas são produções regidas por uma linguagem que busca uma estratégia estética, são
produções que podem dialogar entre si, constituindo assim um ponto interessante em torno dos
trabalhos com os novos roteiros.
No centro das discussões que envolvem o diálogo entre textos literários e suas
adaptações para outros sistemas midiáticos existe uma gama de estudos que se ocupam em
analisar aspectos cruciais no que toca à adaptação de um sistema a outro. Como sabemos, não
é de hoje que obras literárias servem de textos-fonte para a criação de adaptações para as telas.
Trata-se de uma prática comum, inicialmente com o cinema e depois também com a
televisão, da qual surgem telenovelas e minisséries. Uma vez implantada, a expansão da
televisão foi muito rápida e, assim como o cinema, permitiu abordagens diversas através de
linguagens múltiplas (BALOGH, 2005).
No Brasil, uma parte das ficções televisivas é produzida a partir de textos literários.
Quanto às minisséries, as produções da Rede Globo (maior produtora de telenovelas e
minisséries no Brasil) seguem essa mesma prática de maneira frequente. Basta voltarmos no
tempo e veremos Hilda Furação (1998), Os Maias (2001), A casa das sete mulheres (2003),
Capitu (2008)29. A lista seria imensa. Essas relações entre literatura e audiovisual, segundo
Corseuil (2005), podem acontecer de várias formas: o texto audiovisual pode gerar romances,
pode redimensionar a importância de obras literárias ou pode gerar filmes comerciais, como foi
o caso da minissérie O Auto da Compadecida (1999), um dos maiores sucessos da Rede Globo.
Essas adaptações ganham cada vez mais destaque dentro da TV brasileira, acarretando,
inclusive, altos índices de audiência e premiações indicadas pela crítica especializada e pelos
telespectadores. As minisséries ganham mais adeptos, pois são narrativas curtas (se comparadas
às telenovelas), exibidas em horários noturnos, que agradam ao público e trazem consigo a
expectativa do sucesso comercial. Gomes (2006) traz um comentário interessante sobre o
gênero:

“(...) as minisséries, que parecem conjugar a exigência de qualidade possibilitada por


produção acurada, com o investimento comercial, a exemplo das séries brasileiras, em
que a Rede Globo aposta no sucesso comercial em cima de conteúdos

29
Respectivamente, as minisséries têm como texto-fonte os seguintes romances: Hilda Furação, de
Roberto Drummond; Os Maias, de Eça de Queirós; A casa das sete mulheres, de Letícia Wierzchows-ki; Dom
Casmurro, de Machado de Assis.
referencializados na cultura brasileira e legitimados por adaptações da literatura
nacional.” (GOMES, 2006, p. 2).

Há, dessa forma, uma legitimação nas adaptações de textos da literatura brasileira (mas
não apenas) a partir de conteúdos de interesse da cultura brasileira levando as novas criações
ficcionais através de um meio de comunicação de massa, como a televisão. Nesse contexto,
pensemos então que a possibilidade de dialogização entre um romance e uma ficção televisiva
é uma forma de interação a qual abre um rol de interpretações e redefinições de sentido,
conforme o objetivo do roteiro adaptado.
A dialogização, para Robert Stam (2006), implica em novas leituras para o processo de
adaptação que, por sua vez, devem atender aos interesses próprios e específicos para o novo
texto. Nessa perspectiva, podemos destacar que:

O termo para adaptação enquanto “leitura” da fonte do romance, sugere que assim
como qualquer texto pode gerar uma infinidade de leituras, qualquer romance pode
gerar um número infinito de leituras para adaptação, que serão inevitavelmente
parciais, pessoais, conjunturais, com interesses específicos. (STAM, 2006, p. 27).

Em consonância com a citação, uma narrativa literária que se torna uma narrativa
televisiva, por exemplo, ocorre uma interpretação, não só da linguagem, mas de toda a forma
estética e temática constitutivas do romance, que passam a ser reescritas através de um meio
semiótico diferente do anterior, este agora constituído também pela linguagem não-verbal. Por
isso, “a adaptação deve dialogar não só com o texto original, mas também com seu contexto,
[inclusive] atualizando o livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores neles
expressos” (XAVIER, 2003, p. 62).
Ao pensarmos em Presença de Anita (2001), percebemos que Manoel Carlos fez
escolhas e transmutações ao seu modo e estilo, consciente da linguagem com a qual trabalha
para ressignificar aspectos de um texto o qual fora escrito nos fins dos anos de 1940. Portanto,
na análise desse processo, é importante observar a dialogização estabelecida com o romance de
Mário Donato e os novos sentidos que a adaptação conseguiu desenvolver a partir da sua
linguagem própria e de suas estratégias narrativas sob o formato de minissérie.
A partir dessas relações dialógicas, as adaptações têm objetivos diversos, podem mudar
o foco narrativo, destacar um determinado tema ou personagem, alterar o tempo, e ressignificar
e ampliar a categoria espaço. A adaptação entra assim em um processo contínuo de dialogismo
artístico, gerando novos textos.

3 O SOBRADO: ESPAÇO ERÓTICO X ESPAÇO DA MORTE


A minissérie Presença de Anita (2001) dispõe de uma série de aspectos narrativos
passíveis de serem analisadas por vários conceitos analíticos, a começar pelo próprio fato de
ser uma adaptação. A narrativa de Manoel Carlos conta a estória de Anita (Mel Lisboa) e Nando
(José Mayer). A protagonista é uma jovem de dezoito anos, misteriosa, sensual e sedutora, que
vive sozinha após se mudar para um sobrado. Ao instalar-se local, Anita, com seus hábitos
extravagantes, muda a rotina dos moradores da rua. Em contrapartida, Nando é um homem
casado, com mais que quarenta anos, formado em Arquitetura, que deseja escrever um livro e
viver exclusivamente do trabalho literário.
Ao considerarmos o enredo, a minissérie guarda maior dialogização com os aspectos
encontrados na primeira parte do livro de Mário Donato, o texto-fonte, a qual tem por título “O
mundo, perdido o prumo”.
No capítulo 1 da minissérie, a narrativa se inicia com uma longa cena de um assalto na
qual o espaço é o centro da cidade de São Paulo. Após um tiroteio e um bandido ser preso pela
polícia, o foco narrativo é direcionado ao espaço da casa de Nando. No interior do quarto,
Nando diz à esposa que não tem tesão para fazer mais nada na vida, inclusive para viver. Essa
apatia afeta há anos o relacionamento conjugal de Nando e sua esposa Lúcia Helena (Helena
Ranaldi). Depois da cena turbulenta do assalto, entende-se que surge uma ideia, à primeira vista,
de fugere urbem como um dos motivos para a brusca mudança na narrativa. Em seguida, temos
como espaço a fictícia cidade de Florença, no interior de São Paulo, onde se passa a estória
durante toda a minissérie e para onde Nando vai com a família passar as festas de fim de ano
na fazenda do pai da esposa, a dedicada Lúcia Helena. A intenção do casal é reestruturar o
casamento que está em crise.
Após os acontecimentos iniciais, o espaço é direcionado para o local de maior
significação na narrativa de Manoel Carlos: o sobrado. Anita sabe que nesse local havia indícios
de ter ocorrido um crime passional e, por esse fato, interessa-se em alugar o imóvel. Anita
demonstra uma identificação total com a estória que havia acontecido no local, ao contrário dos
vizinhos que dizem ter medo do imóvel.
Dentre os espaços que estruturam a minissérie, observamos que o sobrado é o mais
importante para a narrativa, pois é nesse local que se passam as cenas mais significativas para
o desenvolvimento dos dramas dos personagens principais da minissérie. Assim sendo,
escolhemos discutir um pouco, neste texto, a respeito da categoria narratológica espaço na
composição da narrativa televisiva, analisando especificamente o espaço do sobrado onde mora
a protagonista Anita. Vale ressaltar que no texto literário a moradia de Anita aparece como o
“sótão da Esquina do Vento”. Vejamos uma descrição do local:
Todo o sótão, excetuando os pequenos compartimentos que ficavam ao fundo, era só
aquela sala grande, dividida ao centro por dois degraus, que davam acesso a uma parte
mais alta, onde ficava o dormitório. Não, não era uma artista: era uma dona-de-casa.
Denunciava-a o leve toque feminino no arranjo das pequenas coisas que marcam a
mulher doméstica. Uma psicologia ordenada, exigente nos detalhes, minuciosa, mas
nada convencional. (DONATO, 2001, p. 34).

No texto de Mário Donato, vemos um espaço ficcional voltado para o universo


feminino, organizado, detalhista e simplório. Dentre a sutil descrição, destaquemos o
dormitório, pois é nele que acontecem as cenas tórridas de sexo entre Anita e seu amante e
ainda é o local do fim de tudo com a morte da protagonista. Entre os detalhes ornamentais,
destacamos a existência de um quadro com pintura inacabada e a pequena bailarina espanhola
Conchita, que serão mencionados no decorrer da narrativa literária.
Na parte 1 “O mundo, perdido o prumo”, o espaço sótão vai aparecer como pano de
fundo em momentos diferentes, pois a narrativa se inicia seis meses depois, no momento em
que o casal planeja o suicídio de ambos. O mesmo espaço será apresentado em um tempo à
parte ao da narrativa. Assim, temos o que Borges Filho (2007) chama de percurso espacial.
Com isso, o leitor pode preencher algumas lacunas que foram deixadas no momento inicial do
romance. Essas lacunas dizem respeito às situações iniciais do romance vivido por Anita e seu
amante.
Rocha (2012) discutiu em sua dissertação sobre o que ela chama de “espaços do desejo”
ao se referir ao espaço da narrativa na obra de Mário Donato e destaca o sótão de Anita como
sendo um espaço erótico. Segundo Rocha (2012), devemos entender que em Presença de Anita
o espaço temático está ligado à eroticidade e que Mário Donato usa objetos, recursos e
percepções sensoriais nesse espaço. De fato, as descrições são evidenciadas conforme
fragmento abaixo:

Eduardo não teve surpresa. Balançou a cabeça, como se afugentasse o azedume, e


deitando-se novamente, enlaçou-a, prendeu-lhe os lábios num beijo. Ela se aninhou
entre seus braços, passiva e pequenina, já esquecida do minuto passado, deixou-o
arrancar-lhe as roupas até desnudara inteiramente. Entregou-se-lhe num desespero
sem cálculo, quase o imobilizando sobre si com as pernas e os braços retesados, e
chorando e gemendo num espasmo vagaroso e inextinguível. (...).
Ela não podia impedir-se de submergir instantaneamente naquele mar de fogo e neve,
cheio de agulhas e estrelas, e dele não se libertava nem quando o amante, esgotado,
deixava-se escorregar docente para o lado, a respiração opressa sossegando
devagarinho, como duma criança que adormece. (DONATO, 2001, p. 12).

Para Borges Filho (2007), tanto os objetos como a localização desses objetos podem
definir características dos personagens e do enredo. No texto em análise, a cama (subentendida
no trecho) é, possivelmente, um objeto de articulação entre narrativa e espaço.
Outro ponto que podemos destacar é a afetividade dos espaços, por meio da qual o
sentimento de pertencimento surge nos personagens. O “sótão da Esquina do Vento” adquire,
dessa forma, uma simbologia maior à medida que revive no tempo da narrativa as emoções
entre Anita e seu amante. Vale relembrar que antes de Anita alugar o sótão, já houve outra
estória de amor que terminou em um crime passional. O sótão proporciona uma narrativa não
linear, mas cíclica. Sobre o espaço enquanto função de caracterizar os personagens, Borges
Filho (2008, p. 1) considera que:

Muitas vezes, mesmo antes de qualquer ação, é possível prever quais serão as atitudes
da personagem, pois essas ações já foram indiciadas no espaço que a mesma ocupa.
Note que esses espaços são fixos da personagem, são espaços em que elas moram ou
frequentam com grande assiduidade.

No caso de Anita, é o que ocorre no espaço sótão. O espaço já deixa claro o que vai
acontecer, identifica o local que a personagem ocupa, sendo, de fato, um espaço fixo. Anita
aparece principalmente no sótão.
Ao trabalharmos a relação de dialogização entre o texto-fonte e a minissérie, podemos
destacar que o romance Presença de Anita (1948), por sua vez, é uma narrativa carregada de
simbolismos e ambiguidades em muitas categorias passíveis de análises. Todavia, no texto-
fonte, a categoria narratológica espaço não é tão importante quanto na minissérie. Nesta, por
sua vez, todos os espaços têm uma importância maior para o desenvolvimento da narrativa.
Ao direcionarmos nossas análises à minissérie, vemos alguns elementos característicos
do texto-fonte. Porém o texto audiovisual conta com recursos que vão além do texto escrito e,
dessa forma, o sótão passou a ser o sobrado e ganhou destaque extremamente enfático e
emblemático na minissérie. Podemos perceber que Manoel Carlos optou por deixar o mesmo
espaço erótico do texto literário e o intensificou na minissérie, uma vez que o texto televisivo
dispõe de variados recursos para destacar um determinado fator. Esse espaço erótico ganhou
destaque, intensidade narrativa e outros significados ampliando o drama da narrativa. A carga
erótica é destacada de forma sinestésica no sobrado. Vejamos a primeira imagem, escolhida do
capítulo 5, para análise do espaço em Presença de Anita (2001):
Figura 1 – O sobrado: o espaço erótico na minissérie.

Fonte: Presença de Anita (2001)

O conflito dramático da narrativa televisiva Presença de Anita se edifica a partir da


chegada da personagem Anita ao sobrado. O desenrolar da narrativa, bem como os principais
acontecimentos ocorrem nele. Em busca de inspiração, Nando vê Anita no sobrado e percebe
nela a personagem ideal para a criação de seu livro. Ao se aproximar da jovem, Nando fica cada
vez mais envolvido, sobretudo, sexualmente. A tórrida paixão do casal acontece nessas
circunstâncias. O sobrado assume uma simbologia por ser o espaço do início e também do fim
do amor entre Anita e Nando. Podemos perceber que esse aspecto do sobrado reflete a escolha
feita for Manoel Carlos baseada no que Brito (2006) chama de transformação propriamente
dita, que se refere a elementos que, no romance e no filme, possuem significados equivalentes,
mas têm configurações diferentes. Aqui vemos que a passagem do sótão para o sobrado, mesmo
tendo significados equivalentes (ambos são a moradia de Anita), apresentam configurações
distintas, uma vez que o sobrado amplia a carga dramática, sendo composto por outros
elementos eróticos, tais como objetos, cores e sendo o cerne que move a paixão do casal. Além
disso, o sobrado proporciona ampliar a caracterização de Anita.
Xavier (2003) destaca que o diálogo não deve ocorrer só com o texto-fonte, mas também
com o contexto atual da adaptação. Como nos textos audiovisuais o apelo visual é uma das
bases da divulgação da obra, dessa forma, vemos as exigências para um apelo imagético na
minissérie, típico das ficções de TV brasileiras exibidas depois do horário das 22h. O local onde
Anita vive é muito mais evidenciado na minissérie, pois no romance, o espaço sótão é mais
restrito à primeira parte do livro, enquanto na minissérie o espaço sobrado conduz toda a
narrativa, em seus dezesseis capítulos. Nele acontecem os principais acontecimentos do enredo
(clímax, anticlímax, desfecho). Guy Debord (2003) faz uma consideração muito interessante
sobre a questão do poder da imagem:
A sociedade que repousa sobre a indústria moderna não é fortuitamente ou
superficialmente espetaculista. No espetáculo da imagem da economia reinante, o fim
não é nada, o desenvolvimento é tudo. O espetáculo não quer chegar a outra coisa se
não a si mesmo. (DEBORD, 2003, p. 18).

Na concepção do autor o essencial na apresentação da arte por meios espetaculares


privilegia mais a uma boa imagem que as coisas em sua essência e o espectador da era
cinematográfica já absorveu as imagens veiculadas na tela como objeto de pura contemplação.
Dessa forma, as cenas de Anita e Nando tendem a paralisar o desenvolvimento narrativo à
medida que dá lugar a momentos de contemplação erótica no espaço sobrado. Anita é, portanto,
decodificada dentro desse universo televisivo por um sistema visual e erótico, o objeto a ser
admirado, já que ela é o foco do espetáculo. O espaço erótico constitui uma categoria primordial
para a narrativa, e vemos o modo pelo qual Anita deve ser vista pelos espectadores dentro desse
espetáculo. Sobre esse assunto podemos refletir com a seguinte afirmação:

Assim, em determinadas cenas, observamos que existe uma analogia entre o espaço
que a personagem ocupa e o seu sentimento. Por exemplo, teremos uma cena de
alegria que se passa sob o sol fresco de um fim de tarde, brilhante, num céu com
poucas nuvens e passarinhos voando. Parece que, como a personagem, a natureza está
alegre, portanto, há uma relação de homologia entre personagem e espaço. (BORGES
FILHO, 2008, p. 2).

A citação deixa claro que acontece com Anita uma total identificação com o espaço
sobrado. Na minissérie, vemos a familiaridade de Anita com o local onde vive, numa harmonia.
Na figura 1, temos a forma naturalista na qual Anita vive no sótão, temos a sua nudez seguida
de cenas quentes de sexo com Nando. Anita, em muitos momentos do seu dia a dia fica nua
para realizar algumas atividades corriqueiras. O espaço erótico do texto-fonte se intensifica no
texto televisivo tendo como foco a imagem de uma mulher que traz consigo juventude, beleza
e exposição enfática do corpo nu. Assim, vemos essa homologia entre Anita e o espaço se
associa ao foco do espetáculo erótico.
Quando se deparam com os lugares onde acontecimentos importantes ocorreram
vislumbram o valor dessas experiências, Tuan (1983), teórico que discute sobre o espaço e as
relações humanas, define o conceito de lugar no qual objetos e lugares são núcleos de valor.
Em outro estudo, ele chama de topofilia o elo afetivo que existe entre a pessoa e o lugar ou
espaço físico. Segundo o autor, o espaço fechado “significa a segurança aconchegante do útero,
privacidade, escuridão, vida biológica” (TUAN, 2012, p. 50). Podemos perceber claramente
essa característica no sobrado. Ele é, para os amantes, a privacidade, o aconchego, o útero que
gera a vida biológica do nascimento, vida e morte de um amor.
Ao pensarmos nos objetos enquanto núcleos de valor, é importante destacar a boneca
Conchita, transposta da narrativa literária à minissérie. A inseparável boneca da protagonista
foi um dos destaques do trabalho da equipe de produção de arte da minissérie. Trata-se da
reprodução de uma bailarina espanhola feita em gesso e criada nas oficinas de artesanato do
PROJAC. A boneca funcionava como um símbolo na narrativa e de acordo com Anita, ela
guardava a alma de Cíntia, a antiga moradora do sobrado, assassinada pelo amante.
(MEMÓRIA GLOBO, 2021). Conchita remete a uma espécie de elo emocional entre Cintia e
Anita, entre passado e presente e por terem vidas parecidas.
A segunda cena escolhida foi o momento final da trama, escolhida do capítulo 16. Nele,
Anita está morta e o seu espectro aparece para Nando. A cena para análise é o momento no qual
Anita conduz o amante para morrer carbonizado. Vejamos a figura:

Figura 2 – O sobrado em chamas: o espaço da morte

Fonte: Presença de Anita (2001)

No sobrado, o espectro de Anita aparece para Nando a fim de fazerem amor. Nesse
momento, “através de índices impregnados no espaço, o leitor atento percebe os caminhos
seguintes da narrativa” (BORGES FILHO, 2008, p. 3). As câmeras conduzem-nos por meio de
close-up e em sequências de enquadramentos focando a paixão do casal. O fundo musical Ne
me quittes pas acompanha esse momento da narrativa. Como a própria Anita diz, “será a última
vez” deles juntos, selando esse pacto amoroso através da morte. O casal pratica o sexo de forma
intensa e prazerosa. Com isso, é possível retomar o espaço erótico do sobrado na minissérie,
entre a memória e a imaginação, o sonho guarda as lembranças do passado, pois a sensação de
proteção do sobrado é o que fica quando o lar deixa de existir ou ficou no passado. O espaço
sobrado abriga, dessa forma, um devaneio final.
Com o vento forte, a cortina do quarto esbarra em uma vela acesa e inicia um incêndio.
Nando ainda tenta conter o fogo, mas Anita não deixa, conforme a figura 2. O sobrado é
destruído. Nando tenta, mas não consegue se separar da amante e morre. (MEMÓRIA GLOBO,
2021). Interessante destacar que a cena é alternada, através de cortes, com a comemoração da
noite de Natal na casa da família de Lúcia Helena. Na festa natalina, todos cantam a famosa
música Noite feliz. Aqui temos um momento de drama, pois, ao voltar para a cena do casal de
amantes, a trilha Noite feliz é substituída por Ne me quittes pas. A alternância das cenas e os
respectivos espaços sugerem o simbolismo do nascimento que traz consigo o Natal e a morte
simbolizada pelo sobrado destruído.
Nos estudos de Stam, Bakhtin já destacava a noção de arte como procedimento, “onde
a vida social é expressa no interior de um material semiótico definido e na linguagem específica
de um meio” (STAM, 1992, p. 25). A cena final do incêndio fecha o ciclo da função desse
espaço, que na linguagem da minissérie representa tanto o erotismo e quanto a morte do amor
entre Anita e Nando. O sobrado, agora em chamas, foi o responsável pelas fases do casal.
Destaquemos também que o incêndio é provocado de forma misteriosa, como se o próprio
espaço se autodestruísse. Para Stam (2006), na adaptação, as escolhas transformam, modificam
ou estendem o texto-fonte. Elas ocorrem por operação de seleção de um romance. Assim vemos
que Manoel Carlos recriou um espaço agente e decisivo na narrativa da minissérie, ao trazer a
autodestruição do sobrado.

4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

A ficção televisiva adaptada é uma prática exitosa da TV brasileira e, por isso, vemos
um grande número de produções compostas a partir de roteiros literários. A Rede Globo produz
a maioria dessas ficções. Neste trabalho, discutimos de forma breve que os trabalhos adaptados
podem ser vistos como forma de dialogização entre os textos ficcionais. Dentre as muitas
possibilidades analíticas, o espaço é uma categoria que tem sempre lugar de destaque nos
estudos sobre adaptação.
O espaço é um dos elementos estruturantes das narrativas e, por sua vez, o sobrado
assume maior importância na minissérie do que o sótão do romance Presença de Anita (1948),
de Mário Donato. Como uma espécie de personificação, o sobrado é um espaço vivo, o motor
que conduz o drama dos protagonistas Anita e Nando.
Neste texto, foi possível perceber que o espaço é um elemento composicional de suma
importância para o desenvolvimento da narrativa de Presença de Anita (2001). Com a análise,
percebemos que o sobrado é, inclusive, o espaço de maior importância para o desenvolvimento
da narrativa de Presença de Anita (2001) porque complementa o estado de espírito da
protagonista, conduz a narrativa televisiva, bem como na carga dramática e erótica nos capítulos
analisados. O espaço ficcional do sobrado adaptado por Manoel Carlos em Presença de Anita
é bem mais do que um cenário. São escolhas na minissérie que determinam e caracterizam a
personagem e suas ações e, mais do que isso, são portadores de significados decisivos para a
compreensão da minissérie. Tal conclusão fica evidenciada ao analisarmos a extensão que o
sobrado dá a Anita, bem como ao desfecho da narrativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALOGH, A. M. Conjunções – disjunções – transmutações: da literatura ao cinema e à TV. 2


ed. São Paulo: Annablume, 2005.

BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. – Franca, São Paulo,
Ribeirão Gráfica e Editora, 2007.

BORGES FILHO, Ozíris. Espaço e literatura: introdução à topoanálise. In: XI Congresso


Internacional da ABRALIC, Tessituras, Interações, Convergências, julho de 2008, USP – São
Paulo, Brasil.

CORSEUIL, Anelise Reich. Literatura e cinema. In: BONICCI, Tomas; ZOLIN, Lúcia Osana.
(Org.) Teoria Literária: abordagens históricas e tendências contemporâneas. 2.ed. Maringá:
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DONATO, Mário. Presença de Anita. Objetiva: São Paulo, 2001.

DEBORD, Guy. Sociedade do Espetáculo. Contraponto: Rio de Janeiro, 2003.

GOMES, R. Matrizes culturais e formatos industriais: uma série brasileira de televisão. In:
Revista Caligrama, São Paulo, n.2, v.2, p, 1-11, 2006. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/caligrama/article/view/56757>. Acesso em: 10 jul. 2021.

MEMÓRIA GLOBO. Presença de Anita. Disponível em:


https://memoriaglobo.globo.com/entretenimento/minisseries/presenca-de-anita/ acesso em: 09
jul. 2021.

ROCHA, Marcos Donizete Aparecido. Desvendando "Presença de Anita": uma análise do


filme da Maristela de 1951. São Paulo, 67 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação)
Universidade Anhembi Morumbi, 2012.

STAM, Robert. Bakhtin – da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Ática, 1992.
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha do
Desterro. Florianópolis, nº 51, jul-dez. 2006, p. 19-53.

TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Trad. Lívia de Oliveira. São
Paulo: DIFEL, 1983.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Trad.
Lívia de Oliveira. Londrina: Eduel, 2012.
XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In:
PELLEGRINI, Tânia et. al.(org.) Literatura, cinema, televisão. São Paulo: SENAC, Instituto
Itaú Cultural, 2003.

REFERÊNCIA AUDIOVISUAL

PRESENÇA de Anita. Direção: Ricardo Waddington. Roteiro: Manoel Carlos. Brasil, RJ:
Rede Globo (Som Livre/Globo Marcas) 2006. 3 DVD (10h e 50min), son., colorido.
A VERBO-VISUALIDADE NA ARTE DE NANCY ROURKE

Hosana Gouveia Ramalho30


Ana Maria Zulema Pinto Cabral da Nóbrega2
Aline de Fátima da Silva Araujo Frutuoso3
Vanessa Santos da Silva4

RESUMO
A questão da Verbo-visualidade, proposta por Brait (2009; 2013) e instigada pelos postulados
do Círculo de Bakhtin, compreende a inter-relação e interdependência dos elementos verbais e
não verbais, na construção de sentido de determinados enunciados. Para a autora, não é à toa
que reportagens, outdoors, revistas, charges, pinturas, dentre outros, dispõem, em sua estrutura,
de textos verbais acompanhados de imagens e/ou vice-versa. Essas escolhas são feitas a fim de
sustentarem os argumentos apresentados, bem como consolidarem o sentido do enunciado. É
seguindo tal perspectiva que esse trabalho objetiva: analisar as relações dialógicas evidenciadas
pela composição verbo-visual, na obra Millan 1880 on the Table, da artista plástica surda Nancy
Rourke, a qual explicita a relação de interdependência entre a linguagem verbal e a visual. Para
embasar a nossa pesquisa, adotamos os estudos de Bakhtin (1992; 2003; 2011) o qual propõe
as categorias de Enunciado, Autor pessoa/Autor criador; e a Verbo-visualidade proposta por
Brait (2013; 2009). Através das análises, podemos constatar na obra Millan 1880 on the Table
variados elementos visuais e verbais que geram diversos efeitos de sentido, dentre eles
destacamos indignação e revolta da comunidade surda em relação às decisões sancionadas no
Congresso de Milão de 1880. Os recursos verbo-visuais que constituem a obra revelam o
posicionamento valorativo da artista e das vozes alheias que permeiam a Cultura Surda.

Palavras-chave: Verbo-visualidade; Pintura Nancy Rourke; Sentido; Bakhtin.

30
Mestranda em Letras, pela Universidade Federal da Paraíba. Intérprete de Libras na Câmara dos
Vereadores de Cabedelo - PB. E-mail: hosanagouveia@outlook.com.br.
2
Doutoranda em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, Mestre em Ciências da Linguagem pela
Universidade Católica do Pernambuco. Professora do IFPB. E-mail: ana.nobrega@ifpb.edu.br.
3
jMestranda em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Professora do IFPB. E-mail:
aline.frutuoso@ifpb.edu.
4
Mestranda em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba. Professora da rede básica de ensino. E-mail:
vanessasantos0711@outlook.com
1 INTRODUÇÃO

A questão da dimensão verbo-visual de um enunciado, proposta por Brait (2009 e 2013)


possui ancoragem nas reflexões propostas pelo Círculo de Bakhtin e apontar as relações de
interdependência existentes nos enunciados compostos pela linguagem verbal e não verbal.
Sendo assim, a verbo-visualidade refere-se a uma relação intersemiótica entre o verbal e o
visual no enunciado, que visa produzir efeitos de sentidos sobre determinado conteúdo,
podendo abranger diversas ciências da arte (musicologia, artes plásticas, literatura, entre
outros).
Desse modo, a arte desempenha um papel fundamental na sociedade, uma vez que
permite aos sujeitos expressarem seus posicionamentos e ressignificarem os muitos dizeres
experienciados nas diferentes esferas da vida, evidenciando seus potenciais através de
determinados elementos e formas na produção de um enunciado que é singular e dialógico. Por
isso, trazemos o conceito da verbo-visualidade para o contexto das artes plásticas com o intuito
de investigar os elementos verbais e visuais na obra Milan 1880 on the Table, de Nancy Rourke.
Em suas pinturas, a artista aborda aspectos da cultura surda, que refratam questões sociais,
políticas e históricas – como forma de denunciar as discriminações da sociedade ouvinte para
com os surdos.
Este artigo propõe-se identificar e analisar as relações dialógicas evidenciadas pela
composição verbo-visual na obra de arte Milan 1880 on the Table, da artista plástica Nancy
Rourke. Com esse intuito, identificamos os elementos verbais e os visuais presentes na obra,
descrevendo-os e relacionando-os aos discursos situados histórica e socialmente por outros
sujeitos. Ademais, discutimos como as categorias autoria e enunciado, propostas por Bakhtin e
o Círculo, são articuladas no texto em análise.
Os procedimentos metodológicos utilizados na presente pesquisa são de cunho
qualitativo e bibliográfico, tendo como corpus a tela Milan 1880 on the Table bem como as
reflexões proporcionadas a partir de categorias propostas por Bakhtin e o Círculo.
O presente artigo está dividido da seguinte forma: na próxima seção apresentamos o
conceito base de enunciado discutido por Bakhtin e o Círculo, na sequência abordamos o
conceito teórico metodológico da verbo-visualidade proposto por Brait, seguido da discussão
sobre autoria de Bakhtin e o Círculo. Em seguida, analisamos o corpus em questão,
estabelecendo um diálogo entre as reflexões bakhtinianas e a cultura surda. Para finalizar,
apresentamos as considerações finais.
2 ENUNCIADO SEGUNDO A PERSPECTIVA DE BAKHTIN

Na obra Os gêneros do discurso (2003a), Bakhtin define o enunciado como uma unidade
concreta da comunicação discursiva, visto que por meio dos enunciados o discurso adquire
forma na realidade. O enunciado concebe um novo acontecimento, isto é, único e irreprisável,
a menção pode apenas ocorrer através da citação, que configura um novo acontecimento.
O enunciado é permeado por particularidades uma vez que as relações dialógicas que o
define também são seus limites e têm relação com a alternância dos sujeitos, e os gêneros de
discursos. Segundo Rodrigues, o enunciado “não é a frase ou a oração enunciada, mas, se
quisermos manter uma analogia, o texto enunciado (texto + situação social de interação =
enunciado)” (RODRIGUES, 2005, p. 162). Desse modo, tais particularidades ultrapassam a
barreira da oração, pois atingem o nível social em que os participantes estão inseridos.
Sabemos que o enunciado sempre é proferido a um outro sujeito, e na autoria desse
discurso, as posições valorativas e as ideologias são imprimidas no discurso do sujeito
enunciador. Ou seja, ele reflete e refrata os posicionamentos axiológicos do contexto social que
está inserido, em cada situação enunciativa. Essas posições valorativas realizam uma
construção da realidade dialógica. Desse modo, Bakhtin (2003) afirma que todo enunciado se
trata de uma ação, pois tem relação com o agir e posicionar axiologicamente na realidade com
determinado assunto.
O enunciado é formado por gênero, e consequentemente, este define as singularidades
composicionais dos mais variados enunciados. E através dessas singularidades, o enunciado e
o gênero são englobados para revelarem o tema (o assunto veiculado), estilo (os recursos
fraseológicos, gramaticais e léxicos) e forma composicional (a estrutura assumida pelo gênero).
Sendo assim, o gênero e o enunciado são interligados e determinados pelo contexto social e
pela comunicação discursiva, que rodeiam os textos e os discursos proferidos.

3 A VERBO-VISUALIDADE

Os enunciados que cercam a cultura são manifestados a partir de variados sistemas


semióticos, cuja intersemiótica vai do verbo ao visual e, inclusive, por meio de um sistema
híbrido, no qual o signo verbal e o visual são unificados para, desse modo, significar algo. Tal
perspectiva emana da concepção de linguagem como forma de ação ou interação,
compreendendo os sujeitos e o social como imbricados na elaboração dos enunciados.
O Círculo de Bakhtin, apesar de direcionar as suas reflexões para o verbal, oferece-nos
conteúdos passíveis de “depreender o signo não verbal como constituinte de sentido, tanto e de
igual modo ao signo verbal” (BRAIT, 2013, p. 44). Para o Círculo, a palavra, ou seja, o signo
verbal constitui papel elementar na linguagem, refletindo a realidade e, concomitantemente,
refratando os valores da diversidade composicional que é o ser humano, pois “a palavra está
sempre repleta de conteúdo e de significação ideológica ou cotidiana”. (VOLÓCHINOV, 2018,
p. 181). Contudo, os signos não verbais também possuem papel fundamental na constituição de
enunciados, significando, refletindo e refratando realidades.
Em Estética da Criação Verbal (1997) Bakhtin inclui, como produções da esfera
artística, os textos que ultrapassam a dimensão verbal: “Se tomarmos o texto no sentido amplo
de conjunto coerente de signos, então também as ciências da arte (a musicologia, a teoria e a
história das artes plásticas) se relacionam com textos (produtos da arte)” (BAKHTIN, 2003, p.
330).
É a partir dessa premissa que Brait (2009; 2013) propõe o conceito de dimensão verbo-
visual de um enunciado, pois, para a autora, um enunciado constituído por elementos verbais e
não verbais só possui significado completo quando percebidos em relação de união. Tal
conceito corresponde à

dimensão em que tanto a linguagem verbal como a visual desempenham um papel


constitutivo na produção de sentidos, de efeitos de sentido, não podendo ser separadas,
sob pena de amputarmos uma parte do plano de expressão e, consequentemente, a
compreensão das formas de produção de sentido desse enunciado, uma vez que ele se
dar a ver/ler simultaneamente. (BRAIT, 2013, p. 44)

Assim, a partir da dimensão verbo-visual podemos analisar enunciados que carregam


em sua composição imagens atreladas às formas linguísticas. Estas não servem, somente, como
textos explicativos, mas relacionam-se e se complementam a fim de comporem um todo de
significado coerente e coeso. Segundo Brait

são textos em que a verbo-visualidade se apresenta como constitutivo,


impossibilitando o tratamento excludente do verbal ou do visual e, em especial, das
formas de junção assumidas por essas dimensões para produzir sentido. (BRAIT,
2009, p. 143)

De acordo com a perspectiva bakhtiniana, entendemos que os enunciados são formados


por sujeitos, tanto o que enuncia quando o espectador, ou, em outro termo bakhtiniano, o
auditório.
Todo texto tem um sujeito, um autor (o falante, ou quem escreve). Os possíveis tipos,
modalidades e formas de autoria. Em certos limites, a análise linguística pode até
abstrair inteiramente a autoria. A interpretação de um texto como modelo (os juízos
modelares, os silogismos na lógica, as orações na gramática, a “comutação” na
linguística, etc.). Textos imaginários (modelares e outros). Textos a sem construídos
(com fins de experimento linguístico ou estilístico). Aqui, manifestam-se em toda
parte tipos especiais de autores, inventores de exemplos, experimentadores com sua
peculiar responsabilidade autoral (aqui existe também um segundo sujeito: quem
poderia dizer dessa maneira) (BAKHTIN, 2011, p. 308).

Sendo assim, Bakhtin propõe, ao estudar as produções literárias, a reflexão sobre o


sujeito autor que é, ao mesmo tempo, autor e criador.

4 AUTOR PESSOA/AUTOR CRIADOR

As discussões em volta das categorias autor pessoa e autor criador iniciaram-se pela
obra intitulada O autor e o herói na atividade estética, publicado por Bakhtin em 1992. No
princípio, o filósofo distinguiu a categoria de autor pessoa como o representante físico do autor,
ou seja, aquele ser que fará um recorte valorativo e/ou axiológico da realidade. Já o autor criador
está vinculado à ideia do estético-formal da obra, caracterizando, assim, o ato artístico. Segundo
Bakhtin (1992), o autor criador registra os acontecimentos da vida de maneira atuante, pois
carrega consigo um posicionamento axiológico, mesclado e recortado esteticamente.
Porém, a categoria de autor criador passou por reformulações em uma obra posterior de
Bakhtin, O problema do texto em linguística, filologia e nas ciências humanas: um experimento
na análise filosófica, publicado em 1992. O termo autor criador passa a ser sustentado pela
filosofia da linguagem e concebido como heteroglossia, isto é, como um complexo de vozes e
línguas sociais. Desse modo, no ato artístico, possui um deslocamento entre as línguas sociais,
pois o escritor orienta as palavras das vozes alheias e desenvolve na construção de um todo
artístico a uma determinada voz.
De acordo com Faraco (2005) a voz social criativa (do autor criador responsável pelo
estético formal) precisa ser uma segunda voz, pois “o discurso do autor-criador não é a voz
direta do escritor, mas um ato de apropriação refratada de uma voz social qualquer de modo a
poder ordenar um todo estético.” (FARACO, 2005, p. 40). O autor criador é considerado a voz
social que concebe e firma a unidade do todo estético. Vale salientar que, não é possível
encontrar um ser físico para o autor-criador (isto é, a segunda voz), pois se trata de uma forma
de ver o mundo e suas relações sociais, que contribuem na contextura do objeto artístico
guiando o olhar do leitor para aquela determinada realidade.
5 A VERBO-VISUALIDADE EM MILAN 1880 ON THE TABLE

Disponível em: //www.nancyrourke.com/milan1880onthetable.htm

À luz da análise sobre a obra supracitada, precisamos conhecer a artista e sua voz social,
que representa um todo artístico através do seu olhar para a realidade. De acordo com os
postulados do Círculo de Bakhtin, a categoria autoria dialoga perfeitamente com essa questão,
especificamente, o autor pessoa e autor criador. Segundo Bakhtin (1992), aquele é apresentado
como ser físico do escritor, ou seja, a representação do indivíduo no mundo.
O autor pessoa investigado neste trabalho chama-se Nancy Rourke nasceu em São
Diego, Califórnia, na costa oeste dos Estados Unidos. Antes dos 6 anos, Nancy se comunicava
com seus pais através de desenhos e pinturas pois ela não tinha desenvolvido a fala. Nesse
período de infância, Nancy foi, finalmente, diagnosticada com surdez. Reiteramos, aqui, a
relevância de identificarmos a surdez o quanto antes e a compreendermos enquanto diferença,
corroborando com a visão socioantropológica, segundo a qual a pessoa surda é enxergada como
possuidora de uma língua e cultura próprias Slomski (2012).
Nancy Rourke formou-se em design gráfico e pintura no National Technical Institute
for the Deaf (Instituto Técnico Nacional para Surdos), em Rochester, Nova Iorque. Em 1979,
a pintora expôs pela primeira vez as suas obras na National Gallery of Art (Galeria Nacional de
Arte), em Washington, e desde então Rourke trabalhou como designer gráfica em grandes
empresas, como Xerox, Microsoft Corporation e 20th Century Fox. Em 2010, Nancy Rourke
voltou a sua arte para a cultura surda, evidenciando a história sobre essa comunidade e sua
experiência como pessoa surda. Esse fator nos direciona para a identificação da autora criadora
dessa obra.
De acordo com Bakhtin (1992), o autor criador pode ser definido como a voz social que
retrata e refrata a realidade através das diversas línguas sociais que permeiam a nossa sociedade.
Isto é, Nancy Rourke desempenha um papel fundamental para a comunidade surda, pois através
da sua voz social e das suas obras, a artista evidencia a sua luta em busca de justiça social, dos
direitos humanos, alertando sobre a discriminação das pessoas surdas pela sociedade. Aqui
temos um autor criador que se mescla com o autor pessoa, pois as experiências vivenciadas pela
Nancy durante a sua vida se refletem no seu olhar artístico como pintora, e as telas pintadas a
óleo expressam uma declaração política e social enfatizando o empoderamento das pessoas
surdas. Como a própria artista afirma, as suas obras classificam-se como arte de resistência,
afirmação e libertação, pois a artista reivindica os direitos para as pessoas surdas, engajadas no
empoderamento, ao mesmo tempo em que provoca uma reflexão sobre identidade e cultura
surda no meio social.
Situada a autora pessoa e autora criadora, apresentaremos à análise dos elementos que
compõem a obra Milan 1880 on the table. Segundo Strobel (2015), as artes visuais e produções
artísticas são artefatos culturais produzidos pela cultura surda, pois sintetizam e representam as
produções culturais desses povos.
A obra intitulada Milan 1880 on the table é pintada utilizando-se óleo sobre tela com
dimensões de 16x20 polegadas. Sua composição se dá por formas geométricas diversas
(triângulos, quadrados, retângulos, losangos). Essas pistas aqui utilizadas nas artes plásticas são
formas que nos remetem a verbivocovisualidade que é a interação indissociável de qualquer
material verbal, visual, vocal ou até sincrético refratando a imensidão do enunciado por dialogar
com as diferentes linguagens (PAULA e LUCIANO, 2020).
No centro da tela, na horizontal, estão dispostas seis mãos amputadas que remetem aos
seis professores surdos, norte-americanos, que estavam no Congresso de Milão, mas que foram
impedidos de votar quando da decisão acerca de qual método deveria ser adotado na educação
das pessoas com surdez. Olhando a composição das mãos da esquerda para a direita, em um
plano um pouco mais elevado, destacam-se três mãos nas configurações: A - S – L que
significam American sign language (Língua de Sinais Americana). Quanto às outras três mãos,
observamos que duas estão num plano um pouco inferior e uma disposta no centro. Essa última
com todos os dedos distendidos. O posicionamento desta mão distendida no centro das outras
cinco mãos, chama a atenção por esta configuração constituir a produção dos sinais (vocábulos):
PROIBIR; OPRIMIR; PAZ; FELICIDADE e DESEJAR na Língua de Sinais Americana. As
outras duas mãos, iniciando da esquerda para a direita, constituem, em ASL, os vocábulos Não,
em resposta à ideologia da Eugenia, e Expressão, demonstrando a impossibilidade de
manifestação e expressão das comunidades surdas – respectivamente. Aqui presenciamos o
diálogo entre as dimensões e materialidades verbal e visual, ao nos fazer refletir sobre o
enunciado proposto pelo círculo de Bakhtin.
Percebemos, assim, que os elementos linguísticos se fundem com os elementos visuais,
constituindo, com efeito, o enunciado verbo-visual.
Millan 1880 on the table, traz explícito, em seu título, uma crítica ao Congresso
Internacional de Educação de Surdos (ICED) ocorrido no ano de 1880 na cidade de Milão, na
Itália, momento em que se determinou a proibição das Línguas de Sinais e a proclamação do
ensino através do Oralismo31 nas escolas de surdos. Contexto em que os professores surdos
foram proibidos de votar, vendo o futuro de suas carreiras e vidas entregues nas mãos de uma
comunidade não conhecedora de sua cultura e especificidade linguística. Na parte superior da
obra, disposto em um quadro negro, há o texto, transcrito abaixo, em língua inglesa escrita, e
proferido por Robert P. McGregor, líder surdo que lutou pelo direito à igualdade e à equidade
da comunidade surda na sociedade. Vejamos

"What heinous crime have the deaf been guilty of that their language should be
proscribed?... By whom then are signs proscribed? By..educators of the deaf who
boast is that they do not understand signs and do not want to... by parents who do not
understand the requisites to the happiness of their deaf children...Professing to have
no object in view but the benefit of the deaf, [educators] exhibit an utter contempt for
the opinions, the wishes, the desires of the deaf. And why should we not be consulted
in a matter so such vital interest to us? This is a question no man has yet answered
satisfactorily." Robert P.McGregor (from Lane, 1992)32.

31 Filosofia educacional que adota o uso da língua oral (utilizando treino da fala, da leitura labial e treino
auditivo) na educação dos surdos, e proíbe o uso da língua de sinais.
32
“De que crime hediondo os surdos foram culpados para que sua língua fosse proscrita? Por que então
os sinais são proibidos? Por educadores de surdos que se gabam, mas que não entendem sinais e fazem questão de
não entender. Por pais que não entendem os requisitos para a felicidade de seus filhos surdos... Professando não
ter nenhum objetivo em vista, senão apenas o benefício dos surdos, porém [educadores] exibem um total desprezo
pelas opiniões e os desejos dos surdos. E por que não devemos ser consultados em uma questão tão importante, de
vital interesse para nós? Esta é uma pergunta que nenhum homem respondeu satisfatoriamente." Robert P.
McGregor (de Lane, 1992) (tradução nossa).
Essa citação demonstra a indignação, revolta e negação das pessoas surdas em relação
à decisão do Congresso em questão. Desta forma, e considerando o todo que compõe a obra
“[...] o leitor tem a impressão de uma contaminação recíproca, de maneira que as fronteiras
entre o verbal – a escrita – e o desenho ficam diluídas, provocando efeitos conjuntos” (BRAIT,
2013, p. 52).
A escolha das cores, a exemplo dos demais elementos, possui sentido específico para a
comunidade surda, remetendo a seus aspectos culturais. A própria autora disponibiliza, em seu
website33, uma espécie de legenda na qual explica o sentido das cores e de algumas figuras
usadas nas suas produções artísticas
A partir das informações dispostas na página da artista plástica, podemos inferir que a
cor azul clara usada para pintar a mão configurada em ‘A’ significa a surdez. Por sua vez a cor
vermelha usada para expressar a mão em ‘S’ remete à resistência dos surdos ao Oralismo,
enquanto o azul, na tonalidade mais escura, utilizada para representar o ‘L’, remete ao Oralismo.
Destacamos ainda, o modo como o círculo preto é disposto, fato que remete a um buraco negro.
Ainda segundo a legenda apresentada pela própria autora, a cor branca, também,
corresponde ao Oralismo e à máscara da benevolência; enquanto o círculo e o buraco negro,
remetem à invasão e ao ataque da segunda onda do Oralismo. A cor amarela remete à esperança
e à luz que a comunidade surda vislumbra como possibilidade na jornada.
Ao observarmos, atentamente, o plano de fundo da pintura é possível encontrarmos um
grande elefante branco composto por variadas figuras geométricas. Ele está localizado na parte
superior, especificamente, na região do texto escrito em língua inglesa. Através do website da
artista, a figura do elefante representa o cientista Alexander Graham Bell e seus associados,
devido aos seus posicionamentos acerca da Língua de Sinais:

Historicamente, desde 1880, quando Alexandre Graham Bell demonstrou no


Congresso de Milão uma “superioridade” do método de ensino oral sobre o método
de ensino, para surdos, que se ampara nas línguas de sinais (método
combinado/comunicação total/bimodalismo), a comunidade ouvinte busca
desenfreadamente desvalorizar a cultura surda e a aprendizagem dos surdos.
(MENCATO, 2021, p. 78)

O posicionamento da figura do elefante, na parte superior da obra, também remete à


opressão exercida por Graham Bell e seus associados em relação à Língua de Sinais e à
comunidade surda. Ao mesmo tempo ao representar Graham Bell e seus associados como um
grande elefante branco a artista refrata o sentimento que os surdos têm em relação a figura

33 Disponível em: https://www.nancyrourke.com/biography.htm.


insuportável, detestável, inoportuna que tais pessoas representam para a cultura surda, uma vez
que a imagem do elefante branco é culturalmente visto como algo incômodo e indesejável.
Observando-se a parte superior, do lado direito da obra, identificamos uma porta com degraus
que representa uma escada para o Oralismo, como consequência da decisão tomada no
Congresso de Milão que impôs a obrigatoriedade do ensino oralizado e a proibição do uso das
línguas de sinais na educação das pessoas surdas.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O texto enunciado por Nancy Rourke, classificado na comunidade surda como sendo
um artefato cultural desses povos, refrata vozes dos surdos no que se refere a um período
histórico no qual predominou o Oralismo. Identificamos que a artista imprime a sua indignação
e revolta por meio da técnica de óleo sobre tela utilizando-se de diversos elementos, tais como:
mãos cortadas, cores vibrantes, língua de sinais, texto escrito em língua inglesa, entre outros.
As mãos ‘amputadas’ refratam um posicionamento axiológico da autora criadora que
traz as vozes da Cultura Surda, manifestando sua perspectiva sobre o período de proibição do
uso das línguas de sinais. Ao mesmo tempo, a materialização do texto é um discurso de
resistência, é uma resposta a um discurso histórico do outro, mas não é uma resposta acabada,
finalizada. Se assim fosse, não comportaria o dizer agora enunciado neste artigo.
Assim sendo, o enunciado da obra em análise ecoa outros dizeres, outros enunciados
outras vozes sociais e situadas em um dado tempo e lugar, endereçado a um determinado
auditório, aos sujeitos que constituem as comunidades surdas. A tessitura do texto se dá a partir
da articulação do verbo-visual – o verbal mais o visual – que, entrelaçados, constituem uma
amálgama repleta de efeitos de sentidos a partir do diálogo que mobiliza conhecimentos
históricos e culturais.

REFERÊNCIAS

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Maria Ermantina G. G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 25-220.

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Paulo: Martins Fontes, 2003a. p. 261-306.

BAKHTIN, Mikhail; GHĀSEMIPOUR, Ghodrat. O problema dos gêneros do discurso.


Crítica Literária, v. 4, n. 15, pág. 114-136, 2011.
BAKHTIN, M. O problema do texto em linguística, filologia e nas ciências humanas: um
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Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

BRAIT, Beth. Olhar e ler: verbo-visualidade em perspectiva dialógica. Bakhtiniana: Revista


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Estudos do Discurso, n. 1, 2009.

FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In. BRAIT, Beth (org). Bakhtin: conceitos-chave.
São Paulo: Contexto, 2005, pp.37-60

MENCATO, Rosângela de Sousa. A perspectiva variacionista no ensino de português para


surdos como segunda língua. Rein-Revista Educação Inclusiva, v. 6, n. 1, p. 77-95, 2021.

PEIXOTO, Janaína Aguiar; POSSEBON, Fabrício. Artefato cultural: Religioso. Artefato


cultural: religioso. In: PEIXOTO & VIEIRA (org.). Artefatos culturais do povo surdo:
discussões e reflexões. João Pessoa: Sal da Terra Editora, 2018, p. 190 – 205

PAULA, L. de; LUCIANO, J. A. R.Polifonia: Dialogismo verbivocovisual:uma proposta


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SLOMSKI, Vilma Geni. Educação bilíngue para surdos: concepções e implicações práticas.
Curitiba: Juruá,2012.

STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Ed. da


UFSC, 2015.

RODRIGUES, R. H. Os gêneros do discurso na perspectiva dialógica da linguagem: a


abordagem de Bakhtin. In: MEURER, J. L. et al. (Orgs.). Gêneros: teorias, métodos, debates.
São Paulo: Parábola Editorial, 2005.
ESCRITOS DE SANTA TERESINHA À LUZ DA TEORIA DIALÓGICA DO
DISCURSO

Déborah Ribeiro Galvão34


Maria de Fátima Almeida

RESUMO
No campo das pesquisas linguísticas, mais especificamente na área da análise do discurso, vem
ganhando destaque, o discurso religioso. E é neste âmbito repleto de significações, que esta
pesquisa se ambienta. Os textos de Santa Teresinha do menino Jesus descrevem uma peculiar
relação com Deus. Nesse sentido, este trabalho objetiva compreender como se dá o sentido de
proximidade de Santa Teresinha do Menino Jesus com Deus apresentado por ela em seus
escritos com base na teoria dialógica do discurso bakhtiniana. Bakhtin (2002, 2010, 2011);
Volóchinov (2017); e Sobral (2009) fundamentam este artigo. Foram analisados fragmentos do
Manuscrito A, presente no livro História de uma alma (1987) escrito por Santa Teresinha, sendo
explicado, primeiramente, os conceitos que norteiam a pesquisa, bem como os principais fatos
biográficos de Santa Teresinha a fim de contextualizar sua obra. Em seguida, foi realizada a
análise propriamente dita com base nas categorias de análise. Os resultados apontam para o fato
de que Santa Teresinha expressa uma proximidade com Deus baseada na sua fé e vocação e tal
proximidade é construída, dialogicamente, sendo perpassada por outras vozes do discurso que
fazem parte da sua formação religiosa. Concluímos que o tom emotivo-volitivo nos diálogos
contínuos de Santa Teresinha com Deus constitui o que há de mais importante na busca da sua
felicidade e realização pessoal.

Palavras-chave: Teoria dialógica do discurso, Tom emotivo-volitivo, vozes do discurso,


discurso religioso, História de uma alma.

1 INTRODUÇÃO

O estudo linguístico do discurso religioso não tem uma longa história, ou seja, sua
exploração ainda é inicial no âmbito da análise de discurso, mas, com o passar dos anos, vem

34
Mestra em linguística pela UFPB - E-mail: deborahribeiro1991@gmail.com
ganhando mais atenção e mais pesquisadores interessados nesse viés. No Brasil, podem-se citar
alguns trabalhos e pesquisas relevantes nesse tipo de estudo, como por exemplo, as de Eni
Orlandi (1987), em especial, o livro organizado por ela chamado “Palavra, fé e poder” que diz
respeito a uma reunião de sete análises de diferentes modalidades de discurso religioso e das
formas pelas quais se produzem suas manifestações.
Mas no que diz respeito ao discurso religioso no âmbito católico, poucos trabalhos que
contemplam esse tema podem ser encontrados, principalmente com texto de Santa Teresinha
justificando, assim, a importância desta pesquisa. Para chegar a essa conclusão, fizemos uma
busca para identificar se esse tema é escasso no meio das pesquisas linguísticas acadêmicas.
Sendo assim, comprovado que esta pesquisa traz uma nova perspectiva para a análise do
discurso religioso católico.
E um grande exemplo de um relevante objeto de estudo é a obra da vida de Marie-
Françoise-Thérèse Martin, conhecida como Santa Teresinha do Menino Jesus, objeto de estudo
escolhido para este trabalho. Tal escolha foi feita pelo fato de que sua biografia chama muita
atenção no âmbito católico, pois ela dedicou todos os dias de sua existência ao serviço religioso
e registrou nos seus manuscritos pensamentos, fatos e emoções sobre sua breve passagem pela
terra e seu relacionamento com Deus e Maria. Essas observações nos levaram as seguintes
questões de pesquisa: Qual a importância dos principais fatos da biografia e obra de Santa
Teresinha do Menino Jesus? Quais são os principais conceitos de Bakhtin que servirão de base
para analisar o corpus? Como ocorre o sentido de proximidade de Santa Teresinha do Menino
Jesus com Deus apresentado por ela em seus escritos? A resposta para tais questões será calcada
numa perspectiva bakhtiniana, tendo em vista que tais escritos foram produzidos se utilizando
de um discurso religioso.
Em relação à seleção do corpus, fez-se um recorte dos escritos de Santa Teresa do
Menino Jesus que estão registrados no livro “História de uma alma” (1986). No total foram três
manuscritos compilados em um único volume e, para esta presente pesquisa, foram
selecionados cinco fragmentos do primeiro deles, intitulado Manuscrito A, com base na teoria
bakhtiniana. Esses fragmentos foram selecionados de acordo com o tema que apresenta: relatos
biográficos importantes para a contextualização da análise e os determinados momentos nos
quais Santa Teresa citou sua proximidade com Deus. Desse modo, essa pesquisa tem um caráter
qualitativo documental de ordem teórica e analítica.
De acordo com as referidas questões e a seleção do corpus, objetivamos compreender
como se dá o sentido de proximidade de Santa Teresinha do Menino Jesus com Deus
apresentado por ela em seus manuscritos, com base na teoria dialógica do discurso de Bakhtin.
Esperamos com esta pesquisa identificar e promover um entendimento da relação entre essa
jovem e sua fé, pois ela dedicou a sua vida a Deus e a ajudar as pessoas. Espera-se também
contribuir com mais uma pesquisa sobre os estudos linguísticos do discurso religioso no âmbito
católico. Temos como objetivos específicos: a) descrever fatos da biografia e obra de Santa
Teresinha do Menino Jesus; b) pontuar os principais conceitos da teoria dialógica de Bakhtin,
como por exemplo, o ato responsável, o tom emotivo-volitivo, as vozes do discurso; e, por fim,
c) analisar fragmentos do Manuscrito A de Santa Teresinha do Menino Jesus que mostram como
se constitui a proximidade de Santa Teresinha com Deus à luz da teoria dialógica bakhtiniana.
No que diz respeito aos percursos metodológicos, este presente estudo faz parte de uma
área investigativa que busca compreender fenômenos da linguagem que são originados a partir
de manifestações discursivas elaboradas por sujeitos inseridos num contexto social e empírico
específico de seu meio. É pensando nisso que se pode afirmar que esta pesquisa está permeada
pela concepção dos estudos dialógicos do discurso.
Para fundamentar as análises desta pesquisa, foram utilizadas as teorias de Análise
dialógica do discurso bakhtinianas. Dentre as principais e essenciais estão: Problemas da
Poética de Dostoievsky (2002); Para uma filosofia do ato responsável (2010); Estética da
criação Verbal (2011); e a obra de Volóchinov: Marxismo e filosofia da linguagem (2017) que
são obras que são apontadas como relevantes e significativas referências dos estudos dialógicos
da linguagem de Bakhtin. E qual é a importância desses estudos dialógicos para esta análise?
Em seguida, apontaremos reflexões sobre tópicos da perspectiva bakhtiniana que
nortearam e embasaram a análise do corpus, como algumas considerações sobre a sua teoria
dialógica do discurso; o ato responsável; o existir-evento; a definição de sujeito; os gêneros
discursivos; o tom emotivo-volitivo; as vozes do discurso e uma descrição dos principais fatos
biográficos de Santa Teresa. Também será realizada uma contextualização de sua obra, a fim
de que seus escritos e seu contexto de produção sejam melhor compreendidos visto que são
registros autobiográficos de momentos que, segundo Santa Teresinha, marcaram-na
profundamente para realizar, finalmente, a análise dos fragmentos selecionados do Manuscrito
A com base nos principais conceitos de Bakhtin expressando, assim, um olhar bakhtiniano da
obra de Santa Teresinha do Menino Jesus, a fim de compreender sua aproximação com Deus.

2 TEORIA DIALÓGICA DA LINGUAGEM

Para situar a relação do dialogismo com o contexto russo de Bakhtin, Sobral (2009) diz
que surgiu em meados da década de 1920 com o interesse dos intelectuais pela dialogia/diálogo
como um objeto de estudo da ciência, começando pelo diálogo verbal (face a face) e pela
interação entre os participantes de tal diálogo. Nesse contexto, passou-se a atribuir ao povo a
capacidade de se expressarem de uma maneira mais clara e objetiva expondo seus pensamentos
e ideias observando esse fenômeno sendo manifestado tanto na escrita quanto oralmente. Foi a
partir daí que a concepção de dialogismo começou a ser definida e foi chamada de dialógica
sendo possível refletir sobre o fato de que a relação dialógica é, em primeiro lugar, subjetiva,
isto é, há fatores extrínsecos que participam dessa relação e em segundo, não é uma relação
necessariamente física, “cara a cara”, pois

a realidade efetiva da linguagem não é o sistema abstrato de formas linguísticas nem


o enunciado monológico isolado, tampouco o ato psicológico de sua realização, mas
o acontecimento social da interação discursiva que ocorre por meio de um dos
enunciados. (VOLÓCHINOV, 2017, p. 218)

Desse modo, num enunciado, seja escrito ou verbal, o sujeito do discurso interage com
diversas vozes para que aquele discurso em questão seja formulado. Por trás de um enunciado
há uma interação entre o enunciado formulado, o contexto do enunciado e contexto do
interlocutor, pois, este, fará sua interpretação desse enunciado de acordo com as vivências que
teve. E seu enunciado também é perpassado por outras vozes de suas interações com outros
enunciados. Essa interação discursiva é considerada pelo Círculo de Bakhtin (Volóchinov,
2017) um fato extremamente importante para a construção do sentido de um enunciado e ela é
um dos conceitos que engloba diversos níveis de produção que ultrapassam a relação face a
face entre esses sujeitos participantes dessa interação.

2.1 OS GÊNEROS DISCURSIVOS

Para Bakhtin (2011), a língua faz parte da vida do ser humano em todos os aspectos,
pois é através dela que ele consegue passar para outro ser humano os seus pensamentos, ideias,
opiniões e sentimentos em relação a alguma situação, portanto, “Todas as esferas da atividade
humana, por mais variadas que sejam, estão sempre relacionadas com a utilização da língua”
(BAKHTIN, 2010, p.279). Essa afirmação do filósofo russo traz uma reflexão para o fato de
que há inúmeras necessidades de expressão utilizando a língua por parte dos seres humanos,
há, então, inúmeros gêneros discursivos para representar cada uma delas nas esferas da
atividade humana e cada um desses gêneros terá um conjunto de características específicos e
particulares para validar e passar sua mensagem de maneira efetiva.
Nesse sentido, “os gêneros textuais operam, em certos contextos, como formas de
legitimação discursiva” (MARCUSCHI, 2008, p.29). Ou seja, os gêneros são utilizados para
tornar legítimo certa manifestação linguística do ser humano que possui uma função contextual
e, para tal, constitui-se de específico conjunto de características. Como por exemplo, a carta,
que é um gênero que possui características específicas – que a caracteriza como carta – e tem
um objetivo social e comunicativo específico.

2.1.1 O gênero Carta com base em Bakhtin: composição e forma

Para definir a natureza dos gêneros do discurso, Bakhtin (1997) os dividiu em dois
grandes grupos: os gêneros de discurso primário e os gêneros de discurso secundário. Sobre
isso, ele diz que os gêneros secundários são aqueles de forma mais complexa, com uma carga
cultural mais desenvolvida e com maior evolução (teatro, romance, discurso científico); já os
gêneros primários, possuem uma natureza mais simples, mais cotidiana, “se constituíram em
circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea” (BAKHTIN, 1997, p.281), como por
exemplo, a carta. Esta, porém, mesmo tendo uma natureza espontânea e cotidiana, passou a ser
utilizada em determinadas situações para fins mais complexos como, por exemplo, documentos
jurídicos. Mas o que importa aqui, nesta pesquisa, é sua essência imediata e espontânea.
Os gêneros não surgem do nada, não aparecem prontos. De acordo com a frequência de
sua prática pela sociedade e da sua necessidade, as características de determinado gênero vão
tomando forma e constituindo específico padrão estrutural. Bakhtin (2011), diz que

A diversidade dos gêneros do discurso é muito grande. Toda uma série de gêneros
sumamente difundidos no cotidiano é de tal forma padronizada que a vontade
discursiva individual dos falantes se manifesta na escolha de um determinado gênero
e ainda por cima na sua entonação expressiva. (BAKHTIN, 2011, p. 283)

Com a carta não poderia ter sido diferente. Por ser um gênero que possui uma função
discursiva de representar uma conversa entre dois sujeitos – um remetente e um destinatário –,
sua forma se aproxima do ato real de ter uma conversa com alguém e, portanto, no seu início
aparece um vocativo, e no final, uma saudação e despedida, assim como, expressões que
representam marcas da oralidade. Outro ponto marcante é a indicação da data e do local onde
ela foi produzida. Característica, essa, que se relaciona com o fato de que as cartas eram
enviadas, geralmente, para lugares distantes, e antigamente o transporte não era rápido e
passavam-se dias para chegar ao local pretendido, por isso fazia-se necessário a indicação exata
de quando e em que local foi escrita. Na figura a seguir, retirada do Manuscrito A de Santa
Teresa do menino Jesus, observa-se evidências do gênero carta:

Figura 2: Trecho inicial do Manuscrito A

Fonte: Elaboração própria, a partir de TERESA DO MENINO JESUS (1986, p. 25)

Identificam-se, na figura acima, características típicas do gênero carta: local e data de


produção no início do texto; vocativo, referindo ao destinatário do texto. Esses aspectos são
padrões da estrutura da carta que foram sendo formalizados com o passar do tempo e até hoje
se mantém um padrão específico para esse gênero, sendo, portanto, possível de identificar o
gênero e o objetivo comunicativo do remetente. Outro ponto importante a ser tratado sobre a
carta é o conteúdo. Pois, “a forma não pode ser entendida independentemente do conteúdo”
(BAKHTIN, 2011, p. 177). E por ser um gênero discursivo, a carta representa uma “conversa
à longa distância” e, por esse motivo, tem um conteúdo específico e “íntimo” entre os
interlocutores. Esse conteúdo vai variar tanto em relação ao contexto de produção da carta e
assunto a ser tratado, como também, ao grau de intimidade entre os sujeitos participantes dessa
interação. Sobre isso, Bakhtin (2011) afirma que a forma de um gênero é regida por um
determinado conteúdo e por condições de elaboração específicas.

2.2 CAMINHOS BIOGRÁFICOS DE SANTA TERESINHA DO MENINO JESUS: EM


BUSCA DE UMA CONTEXTUALIZAÇÃO

Toda sua história inicia na França, na cidade de Alençon, no dia 02 de janeiro de 1873.
Maria Francisca Teresa Martin, assim batizada dois dias depois de nascida, cresceu num
ambiente afetuoso e foi educada por seus pais sob valores cristãos bastante rígidos. Seus pais,
Luís e Zélia Martins, tiveram nove filhos dos quais apenas cinco mulheres sobreviveram e todas
elas dedicaram-se à vida religiosa. Isso ocorreu porque a mãe delas tinha um desejo frustrado
de dedicar sua vida à religião, por isso rogou a Deus por uma grande prole e prometeu que todos
iriam dedicar-se à vida religiosa. E assim foi feito. Maria tornou-se irmã Maria do Sagrado
Coração; Teresa, que era a caçula, tornou-se a irmã Teresinha do menino Jesus; Paulina, a
Madre Inês de Jesus; Leônia, a irmã Maria Francisca Teresa; e Celina, a irmã Genoveva da
Sagrada Face. Após a morte de sua mãe, Teresa e sua família foram morar na cidade de Lisieux,
pois lá viviam os familiares de Zélia Martin. Seu pai conseguiu um bom emprego por lá e alugou
uma bela casa de campo chamada lesBuissonnets.
Aos quinze anos seu desejo de entrar para o convento estava mais forte do que nunca e
decidiu, então, contar a seu pai. Este, ficou muito feliz por saber que mais uma, a terceira, de
suas filhas iria entrar para o Carmelo. Porém, receberam a triste notícia de que ela não poderia
entrar no Carmelo de Lisieux até que completasse vinte e um anos. Iniciou-se a partir daí uma
grande batalha para conseguir essa permissão e em 1888, aos dezesseis anos, Teresinha
consegue entrar para o Carmelo de Lisieux. Ela escolhe o nome Teresinha do Menino Jesus,
devido a sua forte ligação com Deus. No dia 10 de janeiro de 1889 recebeu seu Hábito de
Ordem. A partir do ano de 1895, Teresinha passou a escrever sua autobiografia a pedido da
Madre Inês de Jesus. Seu comportamento no Carmelo era de total dedicação realizando diversas
tarefas diárias. Sempre com humildade e paciência. Seu objetivo era dar tudo de si em serviço
à comunidade. Tudo o que sabia ou podia realizar, ela fazia para servir a todos ao seu redor.
Essa era sua satisfação e vocação.

2.3 O TOM EMOTIVO-VOLITIVO EM BAKHTIN

Cada uma das palavras que compõe um enunciado possui um significado próprio e é
utilizada de acordo com sua função e a mensagem que carrega. Mas o uso de cada uma delas
dentro de um evento será particular e singular para aquele evento específico, pois há uma
relação de afetividade entre o sujeito que age nesse evento e modo que ele decide agir. Em
relação a isso, segundo Bakhtin (2010), todo o evento realizado pelo ser, quando expressado
em sua plenitude, carrega consigo um tom emotivo-volitivo que é a afetividade presente no ato
do existir-evento, e este, por sua vez, se constitui por seu aspecto de conteúdo-sentido (a
palavra-conceito) e o aspecto emotivo-volitivo (entonação da palavra), formando, assim, o
caráter único e irrepetível do ato responsável, pois:
O tom emotivo-volitivo é um momento imprescindível do ato, inclusive do
pensamento mais abstrato enquanto meu pensamento realmente pensado, isto é, na
medida em que o pensamento venha realmente a existir, se incorpore no evento. Tudo
isso com que venho a ver, me é dado em certo tom emotivo-volitivo, já que tudo me
é dado como momento do evento, do qual eu sou participante. (BAKHTIN, 2010,
p.86)

É esse tom emotivo-volitivo, apresentado por Bakhtin, que orienta o conteúdo-sentido


do discurso no existir-evento. Não há como separá-los do ato, pois, juntos, dão um significado
único ao enunciado marcando, dessa maneira, sua singularidade e sua forma irrepetível. Por
exemplo, na frase “esse menino é tão quietinho! ”, se ela for analisada de forma isolada, apenas
de acordo com a gramática e seus significados, terá um sentido específico para esse momento.
Mas, se na situação em que foi realizada, o enunciador utilizou uma entonação diferente ao
emiti-la, o significado original irá mudar, pois se é dado um tom irônico na fala, na verdade, o
que se dizer é o contrário do que foi dito, portanto, a criança não é quietinha, e sim, muito
agitada. Então, o tom que é dado ao momento em que o discurso é realizado não pode ser
desconsiderado, uma vez que faz parte, essencialmente, desse discurso específico e único.
A ideia sobre o tom de valoração do referido autor é discutida também em Valóchinov
(2017) quando surge a reflexão sobre a relação entre o signo ideológico e o círculo social do
qual cada indivíduo faz parte. “O mundo interior e o pensamento de todo indivíduo possuem
seu auditório social estável, e nesse ambiente se formam os seus argumentos interiores, motivos
interiores, avaliações etc” (VALÓCHINOV, 2017, p.205). Essa relação diz respeito ao fato de
que um determinado grupo social ou determinada época social imprimem uma valoração
particular e significativa no signo ideológico interferindo e dando uma valoração única ao ato
enunciativo entre os interlocutores.
Essa é a relação entre o “eu-para-mim” e o “eu-para-o-outro” da arquitetônica de
Bakhtin. Nessa situação quando o sujeito assume o seu não-álibi no existir-evento, ele assume
sua responsabilidade no ato e o “eu-para-mim” representa minha afetividade com meu
pensamento e o tom emotivo-volitivo que dou ao enunciado. E esse enunciado tocará o sujeito,
isto é, o “eu-para-o-outro”, mas o tom dado ao enunciado recebido pelo “outro” não terá uma
relação tão íntima quanto o pensamento e o tom emotivo-volitivo utilizado pelo sujeito que o
emitiu.

2.4 A PROXIMIDADE DE SANTA TERESINHA DO MENINO JESUS COM DEUS A


PARTIR DOS SEUS ESCRITOS
Neste ponto da pesquisa, iremos proceder à análise desses fragmentos com base no que
foi exposto na teoria bakhtiniana para compreendermos como se dá a proximidade de Santa
Teresinha do Menino Jesus com Deus. Da teoria de Bakhtin, selecionamos os conceitos
discutidos nos tópicos iniciais desta pesquisa, dentre as principais temos: o dialogismo, o ato
responsável, a arquitetônica bakhtiniana do eu-para-mim, eu-para-o-outro e o outro-para-mim,
o tom emotivo-volitivo e as vozes do sujeito no discurso.
O primeiro fragmento a ser analisado foi retirado do início do Manuscrito A e mostra o
primeiro indício de um relacionamento muito próximo de Santa Teresinha com Deus:

Quadro 01: fragmento 01

“No dia que me mandastes fazê-lo, pareceu-me que isso iria


dissipar meu coração, caso se ocupasse consigo mesmo, mas Jesus, logo
p.25 me fez sentir que lhe daria prazer se simplesmente obedecesse. De mais a
mais, não farei senão uma única coisa: começar a contar o que hei de
repetir eternamente – as misericórdias do senhor!!!”

Fonte: elaboração própria, a partir de TERESA DO MENINO JESUS, 1986

Nesse fragmento pode-se observar o quanto Santa Teresinha se preocupava com o


julgamento de Deus em relação a ela. Mesmo os relatos sendo apenas sobre sua vida ela temia
que essa produção fosse uma distração ou um empecilho para cumprir com suas obrigações
religiosas. Mas quando ela diz “Jesus logo me sentir”, indica que esse ato de “sentir” é modo
pelo qual ela se relaciona com Deus. Embora não seja algo concreto e objetivo, pode-se
considerar que seja um diálogo peculiar que ela tem com Deus no qual há uma interação entre
eles. Nesse sentido, resgatamos aqui a perspectiva bakhtiniana de dialogismo. Pois, esse
enunciado que Santa Teresinha produziu está embebido na subjetividade da interação entre os
sujeitos na qual se pode inferir que há um diálogo entre ela e Deus e que no mundo interior
desse diálogo eles se compreendem. Esses discursos elaborados pelo sujeito de maneira
constitutiva são ideológicos. Isto porque podem ser definidos como uma resposta ativa àquelas
vozes já interiorizadas nos sujeitos participantes desse enunciado em questão. Há aqui, então,
uma relação dialógica de discurso na qual os interagentes constroem um sentido em torno da
constituição do enunciado produzido por eles.
E nesse referido fragmento identificamos que essas vozes que formam o discurso de
Santa Teresinha, em particular, são as vozes religiosas provenientes da sua vivência e
conhecimento bíblico. E as exclamações que aparecem no final do fragmento indicam que esse
seu enunciado foi caracterizado por um tom emotivo-volitivo de abnegação ao chamado
vocacional. Isto quer dizer que Santa Teresinha tinha total certeza e satisfação em cumprir esse
serviço vocacional ao qual foi designada.
Em seguida pode-se identificar o modo como Santa Teresinha se tratava em relação a
Deus. É o que pode ser observado no fragmento 02:

Quadro 02: fragmento 02

“A flor que vai narrar sua história folga em ter que publicar os
obséquios totalmente gratuitos por parte de Jesus. [...]. Quis, em seu
p.28 amor, preservar sua florzinha do sopro malévolo do mundo [...]. Sete
anos já se passaram desde que a florzinha lançou raízes no jardim do
Esposo das virgens [...].”

Fonte: elaboração própria, a partir de TERESA DO MENINO JESUS, 1986

Ao observar os termos “A flor” e “florzinha”, percebe-se a forte marcação, no discurso


de Santa Teresinha do Menino Jesus, de um tom emotivo-volitivo de gratidão. Foi visto que no
momento da produção, o sujeito pode dar uma entonação particular ao enunciado com uma
carga emotiva de afetividade. A esse fato dá-se o nome de tom emotivo-volitivo. Essa afirmação
pode ser justificada pelo fato de que ela se refere a ela mesma como “florzinha”. Por ser já uma
adulta, esse termo tem um tom, primeiramente, infantil e, segundamente, carinhoso, devido ao
uso do sufixo “-zinha” criando, assim, um elo íntimo entre ela e Deus. Há, portanto, um tom
poético, suave, de pacificação, de humildade, o que é característico do discurso religioso.
Com as afirmações: “Quis, em seu amor, preservar sua florzinha” e “a florzinha lançou
raízes no jardim do Esposo das virgens”, a Santa firma essa relação entre ela e Deus. De acordo
com o que ela diz Jesus a protegeu, cuidou dela até que ela entrasse para o Carmelo que é um
lugar seguro, pois, como ela também disse, é o “Jardim do Esposo das Virgens”, ou seja, o
jardim de Deus.
Mas porque ela está chamando a si mesma de “florzinha”? De onde vem a ideia de se
referir a si mesma dessa maneira? A justificativa para tal ato tem relação com sua proximidade
com Deus e encontra-se no fragmento 03:

Quadro 03: fragmento 03

“Pôs-me diante dos olhos o livro da natureza e compreendi que


todas as flores por Ele criadas são formosas [...].Fiquei entendendo que se
p.26 todas as florzinhas quisessem ser rosas, perderia a natureza sua gala
primaveril, já não ficariam os vergéis esmaltados de florzinhas... Outro
tanto acontece no mundo das almas, já que é o jardim de Jesus [...].
Consiste a perfeição em fazer sua vontade, em ser o que Ele quer que
sejamos... [...]; aos seus corações é que se digna a baixar, onde se
encontram suas flores campestres, cuja simplicidade o arrebata...”

Fonte: elaboração própria, a partir de TERESA DO MENINO JESUS, 1986

No fragmento acima, Santa Teresa indica que as freiras carmelitas são as “florzinhas”
de Deus. Pois, segundo o que ela diz, as flores campestres são aquelas que fazem a vontade de
Deus e o segue com simplicidade e devoção. E como já foi exposto no capítulo anterior, toda a
vida de Santa Teresinha foi dedicada a servir à igreja, portanto, a Deus. Desse modo, ela é uma
das “florzinhas” de Deus. Essa reflexão, evidencia a forte presença do tom emotivo-volitivo no
uso dos referidos termos.
Neste fragmento, Santa Teresa deixa clara a relação intima que ela tem com Deus, e tal
relação só pode ser sentida e compreendida por ela e por ele. Há nesse fragmento um tom de
misticismo, de metafísica de transcendentalidade, que dá o sentido de intimidade com o mundo
espiritual. E tal experiência de Santa Teresinha, torna cada enunciado no qual ela utiliza esse
termo, um evento único, singular e particular.
Após esse relato, Santa Teresinha, com mais segurança sobre seus escritos dá
continuidade a seu manuscrito contando fatos do seu nascimento e os anos iniciais de sua
infância. É nesse contexto que ela relata o seguinte fato:
Quadro 04: fragmento 04

“Fostes vós, minha Mãe querida, a quem Jesus escolheu


para me fazer esposa Dele. Não estáveis então junto a mim, mas já
p.34 se haviam formado um elo entre nossas almas... Vós éreis o meu
ideal, queria assemelhar-me a vós, e foi vosso exemplo que me
atraiu ao esposo das virgens...”

Fonte: elaboração própria, a partir de TERESA DO MENINO JESUS, 1986

Nesse fragmento 4, há uma série de referências que podem ser observadas.


Primeiramente, o uso da linguagem formal indica que Santa Teresinha tem um vocabulário
léxico rebuscado e também indica um tom de respeito ao que ela está enunciando. Em seguida,
quando Santa Teresa diz “Mãe querida”, está se referindo a sua irmã mais velha, Madre Inês de
Jesus (Paulina). Isso acontece porque quando sua mãe faleceu, ela passou a considerar Paulina
como sua mãe, por esse motivo a trata de tal forma.
Essa vocação, segundo a Santa, despertou-se a partir do momento que começou a
observar a atitude da irmã tornando-se freira e com essa situação percebeu que esse também era
seu destino dedicar-se à vida religiosa. Isso traz uma reflexão em relação à arquitetônica de
Bakhtin. Augusto Ponzio, na introdução da versão de 2010 do livro Para uma filosofia do ato
responsável de Bakhtin35, diz que, de acordo com a teoria bakhtiniana,

Cada eu ocupa o centro de uma arquitetônica na qual o outro entra inevitavelmente


em jogo nas interações dos três momentos essenciais de tal arquitetônica, e, portanto,
do eu, segundo a qual de constituem e se dispõem todos os valores, os significados e
as relações espaçotemporais. Esses são todos caracterizados em termos de alteridade
e são: eu-para-mim, eu-para-o-outro, o outro-para-mim. (BAKHTIN, 2010, p.23)

Nesse sentido, há uma interação, na qual o discurso do outro causou um efeito “em
mim”, pois “um enunciado está acabado quando permite uma resposta de outro” (FIORIN,
2016, p.24). Então, o eu-para-mim é uma relação/pensamento do sujeito com ele mesmo; o
outro-para-mim é como a resposta do outro causa efeito no sujeito; e o eu-para-o-outro é a
resposta do sujeito para com o outro que interage com ele.

35
BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. [Trad. Valdemir Miotello& Carlos
Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010
Assim, organizando as afirmações proferidas por Santa Teresinha se faz visível a
composição organizacional dessa relação íntima e particular que ela tem e sempre teve com
Deus. Percebe-se, então, que a arquitetônica da proximidade de Santa Teresinha do Menino
Jesus se constrói da seguinte maneira: antes de tornar-se freira, mesmo muito nova, ela já tinha
esse sentimento dentro dela: dedicar-se a Deus, esse objetivo sempre esteve muito bem formado
(o eu-para-mim); as atitudes, conselhos e orientações da irmã geram uma influência em sua
personalidade e ela vai desenvolvendo e aumentando cada vez mais seu desejo de se tornar
freira (o outro-para-mim); e nesse seu manuscrito ela conversa com sua irmã e externaliza,
expõe todos esses sentimentos e pensamentos que foram sendo formados e desenvolvidos ao
logo do tempo (o eu-para-o-outro). Toda essa arquitetônica que justifica a proximidade de Santa
Teresinha com Deus, é ratificada em várias partes do seu manuscrito. Em vários momentos ela
faz questão de deixar claro e de confirmar essa relação que tem com Deus.
O último fragmento escolhido para análise desta pesquisa encontra-se nas últimas
páginas do Manuscrito A de Santa Teresinha e demonstra o discurso com o qual ela finaliza
esse manuscrito:
Quadro 05: fragmento 05

“Qual será o fim da História de uma florzinha branca? Será


a florzinha talvez colhida em seu frescor, ou então transplantada
p.199 para outras paragens? É o que ignoro. Tenho, porém, a certeza de
que a misericórdia do Bom Deus sempre a acompanhará, e ela
jamais deixará de bendizer a Mãe querida que a entregou a Deus,
alegrando-se, por toda a eternidade, de ser uma das flores de sua
grinalda...”

Fonte: elaboração própria, a partir de TERESA DO MENINO JESUS, 1986

Nesse fragmento final de análise pode ser observado o fato de que Santa Teresinha,
utilizando analogias e metáforas, encerra seu manuscrito A reafirmando o quanto ela se sente
feliz em seguir servindo a Deus: “alegrando-se, por toda a eternidade, de ser uma das flores de
sua grinalda”. Ela também fala sobre o quanto está agradecida por sua irmã, a quem ela chama
de “Mãe querida”, tê-la acompanhado sempre nessa jornada. Em seguida ela faz uma referência
ao texto “Certamente que a bondade e a misericórdia me seguirão todos os dias da minha vida;
e habitarei na casa do Senhor por longos dias” (Salmos 23:6). Isso quer dizer que ela tinha a
certeza de que durante essa sua jornada ela seria acompanhada por Deus com toda sua bondade
e misericórdia. E, por fim, expressa que não está preocupada com o futuro, mas mal sabia ela
que dentro de pouco tempo após terminar seus escritos “a florzinha seria colhida” por Deus,
aos seus 24 anos de idade.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que os principais fatos biográficos de Santa Teresinha têm grande


influência em seu texto, afinal, são manuscritos autobiográficos. Durante a descrição de sua
vida em seus escritos, fica claro que Santa Teresinha dedicou toda sua vida a Deus e à igreja.
Morreu muito jovem, aos vinte e quatro anos de idade, mas deixou uma história significativa e
exemplar para o mundo. Essa carga emotiva de amor e temeridade a Deus é muito forte em seu
discurso e é essencial para compreender-se sua proximidade com Deus.
Gêneros do discurso é uma categoria muito importante que contribuiu com a análise dos
escritos de Santa Teresinha, pois de acordo com a teoria bakhtiniana “qualquer enunciado
considerado isoladamente é, claro, individual, mas cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados sendo isso que denominamos gêneros do
discurso” (BAKHTIN, 1997, p.279) Logo, os manuscritos de Santa Teresinha podem ser
considerados um gênero do discurso. Eles formam uma esfera, a religiosa, e suas características
são do gênero carta, relativamente estáveis que possuem um propósito comunicativo que é a
comunicação entre suas irmãs para expor seus pensamentos e fatos biográficos. Com a teoria
Bakhtiniana, que reflete sobre o ato discursivo do ser, é possível compreender através do
discurso de Santa Teresinha do Menino Jesus presente em seus escritos, como se dá o sentido
de proximidade com Deus, pois os conceitos de Bakhtin discutem justamente a
responsabilidade, a emotividade e a relação entre o ser o seu enunciado singular produzido de
acordo com sua unicidade.
Em termos de conclusão, o sentido de proximidade de Santa Teresinha do Menino Jesus
com Deus se dá de maneira natural diante das experiências de vida e formação literária que ela
teve durante toda a sua existência. Essa proximidade se explica, principalmente, pela certeza
que ela tinha de sua vocação de ser freira. Além disso, toda a sua vida, desde seu nascimento,
ela conviveu constantemente com sua fé em Deus. Tal fé que é responsável por sua total
satisfação em servir a Deus, em suportar diversos eventos dolorosos da sua vida, bem como
amar a Deus acima de tudo. Essa relação tão profunda que ela tinha com Deus não pode ser
explicada pela ciência, é um mistério que está além do entendimento humano, mas não coube
aqui, nesta pesquisa, justificar essa proximidade, mas sim compreender como ela se dá através
de seus escritos.
Esta pesquisa contribui, então, com os estudos linguísticos que refletem sobre a ação
discursiva do sujeito dando ênfase ao discurso religioso, mais especificamente à religião
católica que, por sua vez, não é muito contemplada em estudos acadêmicos em comparação
com outros tipos de discurso religiosos como, por exemplo, o protestante. Também há a
contribuição com os estudos bakhtinianos que cada vez mais vem ganhando adeptos, mas que
ainda é uma teoria bastante complexa, porém, essencial para os estudos linguísticos da Análise
do discurso.

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M.; DUVAKIN, V. Mikhail Bakhtin em diálogo: Conversas em 1973 com


Viktor Duvakin. Trad. Daniela MiotelloMondardo, a partir da edição italiana. São Carlos:
Pedro &Jo˜ao Editores, 2008, p.12.

BAKHTIN, Mikhail M. Para uma filosofia do ato responsável. [Trad. Valdemir Miotello&
Carlos Alberto Faraco]. São Carlos: Pedro & João Editores, 2010.

__________________. Estética da criação verbal. São Paulo: editora WMF Martins fontes,
2011.
__________________. Problemas da Poética de Dostoievski. 5ª ed. Rio de Janeiro: Forense
universitária, 2002.

BÍBLIA, Português. A Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamento. Tradução de João


Ferreira de Almeida. Edição rev. e atualizada no Brasil. Brasília: Sociedade Bíblia do Brasil,
1995.

BRAIT, Beth. Bakhtin e a natureza constitutivamente dialógica da linguagem. In: –––. (Org.).
Bakhtin, dialogismo e construção de sentido. Campinas: UNICAMP, 1997.

__________. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Contexto, 2016.

SOBRAL, Adail. Do dialogismo ao gênero: as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin.


Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2009.

TERESA DO MENINO JESUS, Santa. História de uma alma: manuscritos autobiográficos /


Santa Teresa do Menino Jesus e da Sagrada Face; [tradução das Religiosas do Carmelo do
Imaculado Coração de Maria e de santa Teresinha]. — São Paulo: Paulus, 1986.

VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34,


2017.

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