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A Análise do Discurso

Prof.ª Aline Saddi Chaves

Descrição

Origem, fases e perspectivas da Análise do Discurso. Os conceitos de


formação discursiva, interdiscurso e ideologia. As condições de
produção do discurso.

Propósito

Compreender as condições sociais e históricas do surgimento da


Análise do Discurso, bem como seus principais conceitos, para ampliar
o conhecimento linguístico e a capacidade leitora.

Preparação

Tenha em mãos ou consulte na Internet um dicionário da área de


estudos linguísticos, como o Dicionário de Termos Linguísticos,
hospedado no Portal da Língua Portuguesa. Você também pode
consultar o Dicionário de Análise do Discurso, organizado por
Charaudeau e Maingueneau.

Objetivos
Módulo 1

Origem, correntes e perspectivas da


Análise do Discurso
Identificar a origem, as fases e as perspectivas da Análise do
Discurso.

Módulo 2

Formação discursiva, interdiscurso


e ideologia
Definir os conceitos de formação discursiva, interdiscurso e
ideologia.

Módulo 3

As condições de produção do
discurso
Reconhecer as condições de produção do discurso.

meeting_room
Introdução
Vamos estudar a origem da Análise do Discurso (AD), no
contexto social e político efervescente da França do final dos
anos 1960. Vamos conhecer a evolução da teoria do discurso em
suas três fases e apresentar algumas perspectivas atuais em
Análise do Discurso.
Também aprofundaremos nossos conhecimentos sobre a
concepção teórica da Análise do Discurso, abordando três de
seus conceitos basilares: a formação discursiva, o interdiscurso e
a ideologia.

Ainda trabalharemos nossa compreensão sobre as condições de


produção do discurso, conceito que atribui à Análise do Discurso
uma especificidade com relação às outras abordagens teóricas
da língua em uso, ou seja, a relação intrínseca que todo discurso,
sob a forma material de textos, institui com a história, o sujeito e
a ideologia.

Vamos aos nossos estudos!

1 - Origem, correntes e perspectivas da Análise do


Discurso
Ao final deste módulo, você será capaz de identificar a origem, as fases e as
perspectivas da Análise do Discurso.

A origem da Análise do
Discurso
A Análise do Discurso: conjuntura
histórica e teórica
No final dos anos 1960, a Linguística encontrava-se em plena expansão,
fruto de uma tradição de mais de 40 anos em torno da língua (langue),
definida por Ferdinand de Saussure como um sistema de signos
socialmente compartilhado e essencialmente explicado a partir de uma
visão interna e sem relação com seus usos reais nos variados contextos
de fala.

Não se pode negar, entretanto, que o estudo da língua em uso já estava


em curso, especialmente nas abordagens funcionalistas da língua, a
exemplo da Sociolinguística, da Pragmática e da Linguística Textual.

Isso significa que, por um lado, o chamado “núcleo


duro” da Linguística (fonologia, morfologia, lexicologia,
sintaxe e semântica) encontrava-se estabilizado e
disciplinarizado, enquanto suas margens, formadas
pelas abordagens funcionalistas, tentavam explicar a
relação entre a língua e seus elementos externos.

A Análise do Discurso veio abalar ainda mais a compreensão sobre o


funcionamento da língua em sua relação com o contexto
extralinguístico. Avançando em um terreno pouco familiar para os
linguistas, a teoria do discurso permaneceu algum tempo às margens
da academia, o que se explica por alguns motivos.

Vejamos pelo menos dois motivos que retardaram a aceitação e


legitimação da Análise do Discurso como uma disciplina teórica das
ciências da linguagem.

Primeiro motivo: o contexto do


movimento de Maio de 1968
Grafite em uma sala de aula da Universidade de Lyon durante a revolta dos estudantes em 1968.

Primeiramente, é necessário situar o contexto de surgimento da Análise


do Discurso na França efervescente do final dos anos 1960. Mais
precisamente, em 1968, Paris foi palco de um movimento que
transformaria profundamente os comportamentos, consequência tardia
da Revolução Francesa, considerada uma revolução eminentemente
política e administrativa.

Protestos de maio de 1968, em Paris.

O Maio de 1968 foi um movimento político e cultural que deu início às


primeiras manifestações organizadas de estudantes, lotando as ruas de
Paris, como forma de protesto ao ensino rígido e tradicionalista.
Rapidamente, outras pautas e categorias se associaram ao movimento,
a exemplo da luta feminista e operária, resultando em um
acontecimento social difuso e ainda atualmente objeto de debates e
reflexões, como forma de compreender aquele que foi um período único,
considerado até mesmo o maior movimento político da França no
século XX.

É nessa conjuntura social e política que o jovem filósofo Michel


Pêcheux, pesquisador na École Normale Supérieure (ENS), inicia sua
aventura teórica. Motivado por questões alheias, em princípio, à
Linguística, Pêcheux se associa a alguns colaboradores para pensar
uma ciência das ideologias.

Sendo a língua um vetor de posicionamentos sociais, não demoraria


muito até que o filósofo se interessasse por um tema caro à Linguística,
e mais especificamente à Semântica: o problema do sentido, até então
tratado como “significado”.

Segundo motivo: o discurso como


objeto de estudo
O segundo motivo pelo qual a Análise do Discurso tardou a se
estabelecer no meio universitário e nas comunidades científicas pode
ser explicado pelo objeto que atraía a atenção de seus estudiosos: o
discurso.

Esse objeto não se confunde com a gramática, nem com a língua-


sistema. Em sua concepção francesa original, o discurso não é um
objeto empírico, mas um conceito teórico que permite explicar o
processo de construção de sentido dos textos, mediante uma
teorização e um método inovadores, sustentados por três pilares: língua,
sujeito e ideologia.

Como explica Maldidier (2003, p. 15), a respeito do


empreendimento de Michel Pêcheux, o discurso “é o
lugar teórico em que se intrincam literalmente todas
suas grandes questões sobre a língua, a história, o
sujeito”.

Propor uma tal concepção de língua/linguagem representou uma


significativa ruptura da sólida tradição de interpretação de textos na
França. Situada no cruzamento da Linguística, da Psicanálise e da
História, a Análise do Discurso inova por seu caráter interdisciplinar, ao
mesmo tempo que abala os estudos sobre o significado na língua, isto
é, a Semântica. Mais especificamente, a Análise do Discurso propõe um
estudo linguístico das condições de produção do discurso.

Essa afirmação contém uma questão primordial para se compreender o


conceito de discurso, e que distingue a Análise do Discurso de outras
abordagens da língua em uso (funcionalistas). A pesquisadora Eni
Orlandi nos explica:

A contribuição da Sociolinguística,
nesse sentido, é a de que se deve
observar o uso atual da linguagem; e
a da Pragmática é a de que a
linguagem em uso deve ser
estudada em termos dos atos de
fala. Embora essas questões
indiquem uma certa mudança em
relação à dominância dos estudos
da gramática, não produzem um
rompimento maior, mas apenas o de
se acrescentar um outro
componente à gramática. O
discurso caracteriza-se como o que
vem a mais, o que vem depois, o que
se acrescenta. Em suma, o
secundário, o contingente.

(ORLANDI, 1986, apud BRANDÃO, 1993, p.


16)

O que vem a ser, então, esse algo a mais? expand_more


Como vimos, a Análise do Discurso estuda as condições de
produção do discurso, servindo-se, para esse propósito, da língua
como materialidade significante, atravessada pela ideologia.

Em sua origem, a Análise do Discurso não integrava as


preocupações da Linguística, pois o projeto inicial de Pêcheux e
de seus colaboradores era constituir uma ciência das ideologias.
Apesar disso, as interlocuções do filósofo francês com linguistas
como Catherine Fuchs e Françoise Gadet, entre outros, resultou
na aproximação gradativa da Análise do Discurso para com as
problemáticas caras à Linguística, em particular o estudo do
significado, relegado à Semântica.

Na abordagem teórica da Análise do Discurso, a noção de significado


cede lugar à de sentido; uma diferença que não se restringe à
terminologia empregada, mas a uma concepção renovada de língua e
linguagem.

Orlandi nos oferece também uma explicação sobre esse ponto:

A análise de discurso não trabalha


com a língua enquanto um sistema
abstrato, mas com a língua no
mundo, com maneiras de significar,
com homens falando, considerando
a produção de sentidos enquanto
parte de suas vidas, seja enquanto
sujeitos seja enquanto membros de
uma determinada forma de
sociedade.

(ORLANDI, 2015, p. 13)

O discurso é o objeto teórico em torno do qual a teoria se estabelece,


pois, como explica Maldidier (2003, p. 45), “ele liga todos os fios: da
linguística e da história, do sujeito e da ideologia, da ciência e da
política”.
É a partir do conceito de discurso que outros irão surgir, a exemplo de
formação discursiva, pré-construído, paráfrase, polissemia, interdiscurso
e memória discursiva, conceitos que estudaremos mais adiante.

As três fases da Análise do


Discurso francesa

Primeira fase
A primeira fase da Análise do Discurso estende-se de 1969 a 1975. Em
1969, é publicada a obra fundadora da AD: Análise automática do
discurso (GADET; HAK, 2014).

Trata-se de uma fase experimental, em que o conceito de discurso é


introduzido pela primeira vez. O conceito é proposto nos seguintes
termos:

[O discurso é] uma reformulação da


fala saussuriana, desembaraçada de
suas implicações subjetivas.

(MALDIDIER, 2003, p. 22)

Para Pêcheux, assim como a língua (langue) forma um sistema, a fala


(parole, para Saussure) também é autorregulada, constituindo uma
“maquinaria discursiva” determinada por condições de produção
supostamente estáveis.

Nessa fase, predominam os conceitos de ideologia e sujeito


inconsciente. Estudam-se, preferencialmente, os chamados discursos
doutrinários, isto é, fortemente regulados pelo Estado, a exemplo dos
textos políticos.

Segunda fase
A segunda fase da Análise do Discurso estende-se de 1975 a 1981. Em
1975, é publicada a obra Semântica e discurso: uma crítica à afirmação
do óbvio.

Nessa fase, o discurso deixa de ser considerado um objeto fechado, à


medida que os autores observam as relações que os discursos entretêm
uns com os outros.

Os conceitos de formação discursiva e interdiscurso


vão aparecer nessa fase, contribuindo para consolidar
uma das teses centrais da Análise do Discurso: a de
que as palavras que pronunciamos não são nossas,
mas encontram seu sentido na história e nas
instâncias sociais a partir das quais nós falamos.

Tais instâncias, chamadas de formação social (política, escola, mídias


etc.), constituíram-se historicamente a partir de um sistema de
representações sociais, a formação ideológica, que, por sua vez, adquire
forma material em textos, assim surgindo o conceito de formação
discursiva. Disso resulta que o discurso é, em última instância, o
produto das dinâmicas sociais, históricas e ideológicas.

Terceira fase
A terceira fase da Análise do Discurso tem início em 1980, ano em que
acontece o colóquio Materialidades discursivas, na Universidade de
Nanterre, na França.

Segundo Maldidier (2003), enquanto as fases anteriores consistiram em


tentativas de construção da teoria, a última fase marcou um período de
questionamentos e revisão do edifício teórico da Análise do Discurso.

Reflexão
Questionava-se, por exemplo, se não haveria uma relação intrínseca
entre a Análise do Discurso e seu objeto, especialmente uma relação
política, o que colocaria em jogo o caráter científico da proposta.

Somou-se a esse quadro o enfraquecimento do conceito de ideologia,


agravado pela ruptura da união da esquerda na França, bem como um
interesse crescente pelo estudo dos discursos ordinários, e não mais
exclusivamente dos textos doutrinários. Ao invés de máquina estrutural,
autorregulada e homogênea, o discurso passa a ser concebido como
uma “máquina paradoxal”, constitutivamente heterogêneo.
A heterogeneidade é, com efeito, a palavra que melhor resume a terceira
fase, promovendo a abertura da máquina discursiva (e por extensão, da
própria teoria) rumo à descrição das formas linguísticas da alteridade.
Em outras palavras, entra em cena o outro, que pode ser compreendido
como “outro sujeito”, “outro discurso”, “outra voz”, que constitui os
sujeitos em sua incompletude e explica, em larga medida, o sentido das
palavras, e de forma mais ampla, dos textos.

No colóquio Materialidades discursivas, Pêcheux entra em contato com


Jacqueline Authier, linguista que será responsável por renovar o quadro
teórico e analítico da Análise do Discurso, com efeitos que se fazem
sentir até os dias atuais.

Em sua tese de doutorado, publicada sob a forma de


livro, Authier propõe uma refinada descrição da
heterogeneidade discursiva, servindo-se para esse
propósito de três principais contribuições: a Análise do
Discurso francesa, a Psicanálise lacaniana e o
princípio dialógico da linguagem, tal como trabalhado
pelo Círculo de Bakhtin.

A problemática do discurso adquire novos ares, passando a integrar


questões até então pouco abordadas, e até mesmo vetadas na Análise
do Discurso que se poderia chamar de “clássica”. Authier propõe o
estudo de enunciados proferidos em situações corriqueiras de
linguagem, extraídos de falas cotidianas.

Além disso, busca em Bakhtin o princípio dialógico da linguagem,


segundo o qual todo enunciado responde aos anteriores e institui um
novo diálogo, resultando no caráter ininterrupto e irrepetível dos
discursos.

A contribuição do princípio dialógico da linguagem na Análise do


Discurso é fundamental para se compreender o devir dessa disciplina
nas décadas seguintes. Com efeito, ao propor uma descrição linguística
das formas da alteridade discursiva, Authier promove uma abertura da
Análise do Discurso para os estudos enunciativos, até então rechaçados
por seus fundadores.

Integrar as questões enunciativas ao estudo do


discurso significa levar em conta não somente o outro,
sujeito inconsciente, mas também o outro interlocutor,
ou seja, a dimensão imediata da fala, o que permitiu
aproximar a Análise do Discurso das problemáticas da
enunciação, como os atos de fala, as interações orais,
os gêneros do discurso, e não longe dessas questões,
o texto e a variação linguística.

A memória é outra noção trabalhada na terceira fase. Frequentemente


estudada em seu aspecto cognitivo e/ou social, a memória é trabalhada
na Análise do Discurso francesa pela ótica do discurso.

A memória discursiva é um conceito que potencializa a tese de que as


palavras não nos pertencem, e que seus sentidos ressurgem nos textos
sem que o sujeito se dê conta, visto que não tem controle sobre a
língua. A memória discursiva está relacionada ao já-dito, uma vez que os
dizeres não surgem no ato da enunciação, a não ser aparentemente,
mas já foram formulados em outros discursos. De modo correlato à
memória, trabalha-se a ideia do esquecimento. Sobre esse ponto,
Orlandi nos explica o seguinte:

Os sujeitos ‘esquecem’ que já foi


dito – e este não é um
esquecimento voluntário – para, ao
se identificarem com o que dizem,
se constituírem em sujeitos. É assim
que suas palavras adquirem sentido,
é assim que eles se significam
retomando palavras já existentes
como se elas se originassem neles
e é assim que sentidos e sujeitos
estão sempre em movimento,
significando sempre e de muitas e
variadas maneiras. Sempre as
mesmas, mas, ao mesmo tempo,
sempre outras.

(ORLANDI, 2015, p. 34)

A situação em que se encontrava a Análise do Discurso no início dos


anos 1980 se resume a dois aspectos:

O enfraquecimento da ideologia e do estudo de textos doutrinários.


O crescente interesse dos estudiosos pelos discursos não
doutrinários e o peso conferido ao interdiscurso e à memória
discursiva.

Vejamos, então, as perspectivas da Análise do Discurso, decorrentes


dessa terceira fase.

Perspectivas da Análise do
Discurso
Nos anos 1980, a Análise do Discurso deixa de ser uma teoria marginal
e começa a se expandir para além do círculo restrito de Pêcheux e seus
colaboradores.

Já na terceira fase, como observa Maldidier (2003, p. 78), “a análise de


discurso devia ser oficialmente consagrada disciplina da linguística no
início dos anos 83”. Segundo a autora, o sucesso da Análise do Discurso
não constituía, porém, uma garantia, pois a disciplina continuou
representando “uma forma de resistência intelectual à tentação
pragmática” (MALDIDIER, 2003, p. 96).

Comentário
A autora se refere à postura adotada por todo analista do discurso de
não restringir a análise dos textos apenas ao contexto imediato de sua
produção; mas, antes disso, ou para além disso, o analista deve levar em
conta as condições históricas e ideológicas de produção do discurso.

Sem abandonar esse espírito de resistência intelectual, na virada do


século XXI, a Análise do Discurso atraiu o interesse de todo pesquisador
que se propôs a estudar a construção do sentido nos textos.

Seja pelo viés da Pragmática, da Linguística Textual, da Sociolinguística,


da Linguística Aplicada, da Semiótica, entre outras perspectivas
teóricas, a Análise do Discurso representou uma passagem obrigatória,
ainda que as finalidades e os objetos tenham se acomodado aos
propósitos dessas perspectivas.

Disso resulta que o próprio conceito de discurso se tornou polissêmico.


Segundo Dominique Maingueneau (2015, p. 24), há pelo menos oito
maneiras de se conceber o discurso:
arrow_forward O discurso é uma unidade
linguística superior à frase.

arrow_forward O discurso é uma forma de ação.

arrow_forward O discurso é interativo.

arrow_forward O discurso é contextualizado.

arrow_forward O discurso é assumido por um


sujeito.

arrow_forward O discurso é regido por normas.

arrow_forward O discurso é assumido no bojo de


um interdiscurso.
arrow_forward O discurso constrói socialmente o
sentido.

Nessas maneiras de se conceber o discurso, é possível notar a


influência de outras áreas da Linguística, como a Pragmática e a
Linguística Textual, bem como de outras ciências humanas e sociais, a
exemplo da Filosofia da Linguagem, da Etnometodologia, da Psicologia
de Vigotsky, do Pós-Estruturalismo, da Sociologia do Conhecimento,
entre outras.

Como explica Maingueneau (2015, p. 15), a Análise do Discurso é “um


espaço de pesquisa fervilhante e que não pode ser remetido a um lugar
de emergência exato”. No entanto, o autor considera que a França foi
“um dos principais lugares de desenvolvimento da análise do discurso,
talvez o lugar em que, pela primeira vez, a análise do discurso foi
definida, sob esse nome, como um empreendimento ao mesmo tempo
teórico e metodológico específico”.

Comentário
Como é possível observar, a Análise do Discurso continua sendo uma
disciplina resistente a uma definição única e unânime, tendo em vista a
própria história de sua constituição, atrelada a uma conjuntura política, e
sua vocação para ser uma ciência das ideologias.

Para Maingueneau (2015, p. 23), a instabilidade e a polivalência desse


campo de estudos têm a ver, ainda, com “uma dupla apropriação da
noção: por teorias de ordem filosófica e por pesquisas empíricas sobre
o funcionamento dos textos”.

No século XXI, são inúmeras as correntes que se valem da etiqueta do


“discurso”. Entre outras denominações que surgiram em diferentes
contextos geográficos e epistemológicos, podemos mencionar:

Análise do Discurso francesa


ADF

Análise de Discurso
AD

Análise Crítica de Discurso


ACD

Análise Dialógica do Discurso


ADD

Análise do Discurso em Interação


ADI

Análise Arqueológica do Discurso


AAD

A título de exemplo, a Análise Dialógica do Discurso aproxima a


problemática do discurso das ideias do Círculo de Bakhtin, em torno do
conceito de dialogismo. Nessa vertente, trabalhada no Brasil por autores
como Beth Brait (2010), o enfoque recai sobre uma concepção filosófica
da linguagem.

Entre as abordagens, há pontos de contato, mas também pontos de


distanciamento. Na perspectiva dos estudos bakhtinianos, há uma
reflexão menos centrada na língua em favor de uma concepção ampla
de linguagem, de um ponto de vista mais filosófico-antropológico do que
linguístico.

Por outro lado, a aproximação do discurso ao dialogismo está


fundamentada no projeto de constituir uma ciência para além da
Linguística Geral, o que Bakhtin chamará de Metalinguística. Nesse
ponto de encontro, o dialogismo contribui para reforçar a tese da
“indissolúvel relação entre língua, linguagens, história e sujeitos” (BRAIT,
2010, p. 10).

A partir dessas ideias mais gerais sobre a Análise do Discurso, vamos


aprofundar nossos conhecimentos sobre os conceitos basilares da AD
nos próximos módulos.

video_library
A Análise do Discurso
Assista agora a um vídeo em que se apresenta o contexto histórico do
surgimento da Análise do Discurso, destacando as características de
suas três fases, bem como as perspectivas desse campo dos estudos
linguísticos.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

A Análise do Discurso de linha francesa surge no final dos anos


1968, contexto marcado por grande ebulição política e ideológica.
Assinale a alternativa correta a respeito do surgimento da Análise
do Discurso:

A Análise do Discurso aspirava ser uma ciência das


A
ideologias.

A Análise do Discurso foi concebida por linguistas


B
tradicionais.

O estudo da língua em uso foi inaugurado pela


C
Análise do Discurso.

A Análise do Discurso surgiu na França no final dos


D
anos 1970.

A Análise do Discurso obteve uma aceitação


E
imediata no meio científico.
Parabéns! A alternativa A está correta.

A Análise do Discurso foi concebida pelo filósofo Michel Pêcheux,


que se juntou a outros filósofos e linguistas, para pensar uma
ciência das ideologias, combinando três áreas de conhecimento: a
Linguística, a Psicanálise e a História.

Questão 2

O conceito de discurso é uma questão central no surgimento do


campo da Análise do Discurso (AD). Sobre o conceito de discurso,
na primeira fase da AD, assinale a alternativa correta:

O discurso desvincula a língua das condições de


A
produção dos textos.

O discurso, inicialmente, foi entendido como um


B
objeto homogêneo.

O discurso é um conceito abstrato e não regido por


C
normas.

D O discurso não tem a ver com a língua em uso.

E O discurso desconsidera o sujeito e a ideologia.

Parabéns! A alternativa B está correta.

O discurso foi concebido como um objeto homogêneo, sem relação


com os outros discursos. A partir da segunda e terceira fases, o
conceito sofreu reformulações, passando a ser teorizado como um
objeto heterogêneo e atravessado por outros discursos.
2 - Formação discursiva, interdiscurso e ideologia
Ao final deste módulo, você será capaz de definir os conceitos de formação
discursiva, interdiscurso e ideologia.

Formação discursiva
Para construir o edifício teórico da Análise do Discurso, Michel Pêcheux
e seus colaboradores desenvolveram um aparelho conceitual em torno
do discurso, no qual encontramos os seguintes conceitos:

Formação discursiva

Interdiscurso

Ideologia

Esses conceitos permitem o fortalecimento da seguinte tese:


Há uma relação indissolúvel entre língua,
sujeito e ideologia.

Os conceitos de formação discursiva e de ideologia acabaram perdendo


gradativamente sua força, por razões teóricas e conjunturais. Mesmo
assim, eles explicam em grande parte o que move o analista do
discurso: desvendar os sentidos do texto, para além de sua
materialidade verbal significante.

Já o conceito de interdiscurso continua sendo uma opção forte,


notadamente pelo diálogo que a Análise do Discurso passou a travar
com outras perspectivas teóricas da Linguística e das Ciências
Humanas e Sociais.

Vamos trabalhar esses conceitos começando pelo de formação


discursiva.

A expressão “formação discursiva” aparece pela primeira vez na obra A


arqueologia do saber, publicada em 1969, do filósofo francês Michel
Foucault (2008). A formação discursiva é definida como um conjunto de
enunciados dispersos que entretêm uma regularidade, possível de ser
resgatada e descrita pelo historiador.

Confira o entendimento inicial de formação discursiva nas próprias


palavras de Foucault:

Nos casos em que fosse possível


descrever, entre alguns enunciados,
um tal sistema de dispersões, no
caso em que, entre os objetos, os
tipos de enunciação, os conceitos,
as escolhas temáticas, fosse
possível definir uma regularidade
(uma ordem, correlações, posições
e funcionamentos, transformações),
diremos, por convenção, que
estamos diante de uma formação
discursiva [...].
(FOUCAULT, 2008, p. 56, tradução nossa)

A perspectiva teórica de Foucault é historicista, sendo ele mesmo


reconhecido como um historiador das ideias. Nessa obra em particular,
o filósofo propõe o método arqueológico, que nos é explicado pelo
professor Roberto Baronas:

A arqueologia do saber se constitui


numa descrição bastante complexa
e didática do método arqueológico,
uma teoria que procura
compreender o funcionamento dos
discursos que constituem as
ciências humanas, tomando-os não
mais como conjuntos de signos e
elementos significantes que
remeteriam a determinadas
representações e conteúdos, tal
como pensavam os estruturalistas
tributários de Saussure, mas como
um conjunto de práticas discursivas
que instauram os objetos sobre os
quais enunciam, circunscrevem os
conceitos, legitimam os sujeitos
enunciadores e fixam as estratégias
sérias que rareiam os atos
discursivos.

(BARONAS, 2011, p. 1)

Como explica Baronas, a perspectiva de Foucault busca compreender o


funcionamento dos discursos das Ciências Humanas, a exemplo da
História, em termos de práticas e regras que regulam tais discursos,
sendo a formação discursiva um conceito que permite compreender
como enunciados dispersos podem ser caracterizados como
pertencentes a um discurso.
No método arqueológico, a língua não é um aspecto primordial, a não
ser como parte das práticas discursivas, o que nos permite perceber o
distanciamento dessa formulação para com as problemáticas típicas da
Análise do Discurso, que atribui um papel central ao signo linguístico.

Com efeito, a perspectiva foucaultiana difere dos


propósitos da Análise do Discurso francesa, muito
influenciada pelo marxismo, pela Psicanálise freudiana
e pela Linguística saussureana.

Na Análise do Discurso, o conceito de formação discursiva está


relacionado a dois clássicos marxistas:

groups
A formação social
psychology
A formação ideológica
Partindo da tese de que “as palavras, expressões, proposições, etc.,
mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que
as empregam [...]” (PÊCHEUX, 1988, p. 160), Pêcheux formula o conceito
de formação discursiva, na obra Semântica e discurso: uma crítica à
afirmação do óbvio, e que transcrevemos a seguir:

Chamaremos, então, formação


discursiva aquilo que, numa
formação ideológica dada, isto é, a
partir de uma posição numa
conjuntura dada, determinada pelo
estado da luta de classes, determina
o que pode e deve ser dito
(articulado sob a forma de uma
arenga, de um sermão, de um
panfleto, de uma exposição, de um
programa etc.).
(PÊCHEUX, 1988, p. 160, grifos do autor)

Como podemos observar, em Análise do Discurso, a formação


discursiva refere-se a unidades linguísticas — “palavras, expressões,
proposições” —, que são diretamente determinadas pela formação
ideológica na qual o sujeito está inscrito.

Além disso, a formação discursiva indica que o sujeito não é livre para
dizer, pois, ocupando uma dada posição naquela formação ideológica,
vê-se impelido a dizer apenas “o que pode e deve ser dito”, sob a forma
de um gênero discursivo, que também vem a ser uma unidade
linguística, mas de grau superior à palavra.

Formação discursiva na
análise de vídeo de
campanha política
O conceito de formação discursiva é particularmente produtivo para
analisar discursos polêmicos, como os discursos político e religioso.
Para Maingueneau (2001, p. 243), apesar de o conceito ter-se
enfraquecido, por se prestar à análise de textos doutrinários, ele
continua atual para analisar posicionamentos de ordem ideológica. É o
que podemos compreender na análise do texto a seguir, pertencente ao
discurso político.

Que Brasil você quer?


O que abandona ou o que acolhe?
O que debocha ou o que ampara?
O que mata, mata e desmata?
Ou o que cuida, protege e salva?
O que quer guerra ou o que vai pra
luta?
O do ódio ou o do amor?
’Onde houver ódio, que eu leve o
amor’
Vamos juntos pelo Brasil.

(Fonte: Vídeo “Que Brasil você


quer”, Partidos dos Trabalhadores, São
Paulo, 2022)

O texto faz parte do vídeo de campanha de um dos candidatos à


presidência da República na pré-campanha eleitoral de 2022. Uma
análise discursiva do texto conduz o leitor a interpretar os efeitos de
sentido das palavras para além de seu significado estável ou, como diz
Pêcheux, para além das evidências da língua.

Com efeito, tal leitura se mostraria superficial se não levasse em conta


os elementos extralinguísticos do texto, que fornecem informações
sobre o sujeito produtor e receptor do texto, além do tempo e o lugar
históricos em que esses dizeres se situam.

Desse ponto de vista, o texto em questão deve ser relacionado às suas


condições de produção, que indicam se tratar de um discurso político,
produzido por um partido de posição ideológica de esquerda, o qual
esteve no poder em quatro gestões anteriores, sendo depois sucedido
por representantes considerados do espectro político de centro e de
direita.

Relacionar esse texto a tais condições de produção


significa situar seu posicionamento histórico e
ideológico, ou seja, significa remetê-lo a um discurso
que não se originou nessa enunciação em particular,
mas que já produzia sentidos anteriormente.

Além dessas condições de produção, que são históricas e ideológicas, o


texto também apresenta informações sobre o contexto imediato da fala.
Trata-se de informações mais factuais, como:

o meio de divulgação (digital);

as finalidades pragmáticas (veicular uma campanha política);

o gênero discursivo (vídeo); e

a data (2022).

Desse modo, as condições de produção envolvem tanto o contexto


histórico do texto quanto o contexto imediato da fala.
Esse gesto interpretativo permite ao leitor desvendar o posicionamento
ideológico do texto, considerando-se que todo texto emana de uma
posição-sujeito. Em se tratando de um dizer proferido pela posição-
sujeito ex-presidente Lula, figura símbolo da esquerda no país, ocupante
do cargo máximo da nação em anos anteriores, o texto em questão
significa de um modo particular.

Diremos que ele significa, na relação polêmica instalada entre a


formação ideológica da esquerda, representada por Lula, e a formação
ideológica da direita, representada pelo presidente Jair Bolsonaro, seu
concorrente na campanha presidencial de 2022.

O texto atualiza duas formações discursivas (FD) antagônicas, que


podem ser assim descritas:

FD DIREITA FD ESQUERDA

abandona acolhe

debocha ampara

mata, mata, desmata cuida, protege e salva

guerra vai pra luta

ódio amor

Tabela de exemplos de formações discursivas (FD) antagônicas.

Como se pode notar, são unidades linguísticas, mais especificamente


verbos conjugados na terceira pessoa do presente do indicativo e
substantivos, que veiculam os posicionamentos ideológicos
antagonistas a partir da visão ideológica de esquerda.

Trata-se, portanto, de unidades da língua que manifestam posições


ideológicas históricas: da esquerda (acolhe, ampara, cuida, luta, amor) e
da direita (abandona, debocha, mata, desmata, defende a guerra, o
ódio). É claro que se o texto fosse produzido por representantes de
candidaturas tidas como de direita, as posições seriam outras.

Comentário
É nesse sentido que, para a Análise do Discurso, as palavras não são
neutras e tampouco refletem o ato individual de criação dos falantes. De
modo contrário, as palavras significam antes, na história, e recebem
seus sentidos da formação ideológica em que o sujeito está inscrito.
Essa análise discursiva, baseada no embate de duas formações
discursivas, coloca em evidência outro conceito fundamental na Análise
do Discurso: o interdiscurso. Isso porque, ao construir seu discurso, a
posição-sujeito Lula convoca o discurso do outro, isto é, da direita, pela
imagem ou representação que faz desse outro: abandono, deboche,
morte, guerra, ódio.

Portanto, no discurso da esquerda, proferido por Lula, aparece o


discurso do outro, a direita, representada pela posição-sujeito Jair
Bolsonaro, de onde se depreende que ambos os discursos entram em
relação. É sobre essa relação entre discursos que falaremos a seguir.

Interdiscurso

Interdiscurso no sentido restrito e


amplo
Como pudemos notar na análise do vídeo da campanha de Lula, o
conceito de formação discursiva não tem nada de homogêneo e
fechado. Ao integrar o discurso do outro em seu próprio discurso, Lula
deixa à mostra — pelo menos para o olhar arguto do analista do
discurso — a influência dessa alteridade sobre a própria constituição do
sentido de seu discurso. Desse modo, o conceito de formação
discursiva tem relação direta com o conceito de interdiscurso.

A esse respeito, Orlandi afirma o seguinte:

O interdiscurso disponibiliza dizeres,


determinando, pelo já-dito, aquilo
que constitui uma formação
discursiva em relação a outra.

(ORLANDI, 2015, p. 41)


Em outras palavras, a formação discursiva revela que o discurso é
heterogêneo, pois integra outros dizeres, e ainda, portador de uma
memória, pois só é possível compreender a formação discursiva
antagonista a partir do que já foi dito sobre esta última. É assim que, ao
assistir ao vídeo da campanha de Lula, o espectador tem acesso a
dizeres que circulam sobre a direita, pelo ponto de vista da esquerda.

O interdiscurso é um conceito que dá conta da relação que todo


discurso entretém com outro(s) “dizeres presentes e dizeres que se
alojam na memória” (ORLANDI, 2015, p. 41).

Para Maingueneau (2001), o interdiscurso pode ser definido em duas


dimensões:

Dimensão restritiva expand_more

Em sentido restritivo, o interdiscurso “é uma articulação


contraditória de formações discursivas que se referem a
formações ideológicas antagônicas”, de acordo com Courtine
(1981, p. 54 apud MAINGUENEAU, 2001, p. 286). É nesse sentido
restritivo que analisamos o texto da campanha de Lula, que entra
em embate com o discurso da direita.

Dimensão ampla expand_more

Em sentido amplo, o interdiscurso designa “o conjunto das


unidades discursivas (que pertencem a discursos anteriores do
mesmo gênero, de discursos contemporâneos de outros gêneros
etc.) com os quais um discurso particular entra em relação
implícita ou explícita” (MAINGUENEAU, 2001, p. 286). Os
exemplos de interdiscurso em sentido amplo serão vistos em
seguida.

Vamos analisar um exemplo de interdiscurso no sentido amplo a partir


de uma peça publicitária de uma marca de roupa:

Campanha publicitária “Hearts”, 1996.

Neste anúncio da marca de vestuário italiana Benetton, veiculado em


1996, podemos visualizar três corações, cada um deles designado pelas
palavras white, black e yellow. Para compreender esse texto, não basta
relacionar a imagem de um órgão do corpo humano às palavras
“branco”, “preto” e “amarelo”, escritas em inglês. O sentido desse texto
reside justamente no princípio da interdiscursividade, segundo o qual
todo discurso entretém uma relação, implícita ou explícita, com outro(s)
discursos.

Nesse caso, temos um exemplo de interdiscurso implícito, em que a


alteridade (o outro discurso) não é dada a reconhecer, podendo ser
apreendida somente na relação entre sentido e história. Vejamos.

A marca Benetton, célebre por fundar a propaganda de


tipo engajada, convoca um outro discurso para reforçar
o seu próprio. Assim sendo, o discurso do anúncio só
pode ser compreendido se referido a um discurso
científico dominante no início do século XIX, na Europa,
baseado na superioridade da raça branca sobre as
demais.

Tal discurso tem origem em experiências científicas que tomaram por


objeto o tamanho do crânio de indivíduos caucasianos, supostamente
maiores do que o de indivíduos de outras raças.

Na campanha da Benetton, esse discurso ressurge, evocando uma


memória de outros dizeres, neste caso, em específico, o discurso
científico que tentava embasar a teoria da superioridade das raças. Tal
discurso foi desconstruído no século XX, mas não deixa de criar
sentidos, agindo por meio da memória e, paradoxalmente, do
esquecimento.

Assim, para a Análise do Discurso, a língua não é transparente, mas


sujeita à falha e ao equívoco. O sentido “não existe ‘em si mesmo’ (isto
é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas,
ao contrário, é determinado pelas posições ideológicas que estão em
jogo no processo sócio-histórico [...]” (PÊCHEUX, 1988, p. 160).

É nesse sentido que, no anúncio da Benetton, a relação


interdiscursiva é implícita, atribuindo ao leitor a tarefa
de ativar uma memória histórica e discursiva para
apreender os efeitos de sentido do texto.

Notemos, ainda, que o outro discurso ressurge sob uma forma diferente
da que fora originalmente enunciada. Assim, no lugar de crânios, o autor
da peça publicitária escolheu representar corações, o que acrescenta
um valor emotivo à campanha, como é próprio da publicidade, ou seja,
um discurso de alto poder simbólico e ideológico.

A lembrança do discurso histórico da suposta hierarquia das raças


também (ou sobretudo) fica por conta da língua, pois as palavras
“branco”, “preto” e “amarelo” significam de modo não evidente, ou ainda,
pela não transparência do signo.

Podemos dizer que a interpretação dessas palavras como referentes de


raças humanas é possível graças às condições de produção do
discurso, que, entre outras coisas, informam que o gênero “anúncio
publicitário engajado” aborda temas como o dessa campanha. A esse
respeito, é interessante consultar outros anúncios publicitários da
marca Benetton, cujos temas versam sobre situações de desigualdade
social, diversidade, entre outros.

Interdiscurso e intertexto
Além de sua forma implícita, como no anúncio da Benetton, o
interdiscurso também pode se manifestar de modo explícito. Isso ocorre
nos textos em que a alteridade é dada a reconhecer ao receptor. Assim,
nos casos em que o outro discurso é dado a ver e a interpretar, tem-se o
intertexto, ou seja, a relação mais ou menos explícita que um texto
entretém com outro.

Enquanto o interdiscurso é um conceito amplo, que dá conta da relação


constitutiva que todo discurso entretém com outro(s), significando pela
história e pela ideologia, o intertexto é uma noção restrita, pois permite
localizar a alteridade. Devemos considerar, então, que o intertexto é “um
tipo particular de interdiscursividade” (FIORIN, 2010, p. 191). Vejamos
um exemplo.

Essa imagem que circula na Internet, na maioria das vezes na forma de


meme, diz muito sobre a realidade da invasão tecnológica na vida
contemporânea, em que a popularização de celulares com múltiplas
funcionalidades e seu fascínio sobre as pessoas criam situações
anódinas ou de banalização, tal como a que é retratada na ilustração.

Vemos, assim, cinco pessoas filmando uma cena de afogamento,


importando-se menos em salvar o afogado do que em eternizar a cena
trágica em seus aparelhos, certamente com o intuito de fazê-la viralizar.

Há memes, como essa imagem, cujo título é


“Sociedade do espetáculo”, remetendo à obra
homônima do filósofo francês Guy Debord, A sociedade
do espetáculo, publicada em 1967, na qual o autor já
refletia sobre o poder desenfreado das imagens na
sociedade de massas e de consumo.

O título do meme “Sociedade do espetáculo” entretém uma relação


intertextual com o título da obra de Debord, textualizada ipsis litteris,
ainda que sem menção ao autor da obra em questão. Sem perceber
essa relação, o leitor não terá atingido a totalidade de efeito de sentido
do meme, que produz sentido(s) ao colocar em relação dois discursos,
mas sob o modo da intertextualidade, visto que é possível localizar a
referência ao outro discurso, qual seja, a obra de Debord.

Segundo essa leitura, a “sociedade do espetáculo” prenunciada por


Debord, no final dos anos 1960, ganha todo o sentido nas sociedades
digitais do século XXI. Desse modo, os dizeres “sociedade do
espetáculo” não são transparentes, tampouco remetem a um significado
estável, dicionarizado; de modo distinto, tais dizeres significam com
relação à formação ideológica e discursiva da obra de Debord, em uma
relação de aliança ou concordância.

Mas, afinal, o que permite que os sentidos continuem circulando, seja


quando a alteridade é implícita ou explícita? De modo mais
consequente, é a ideologia que sustenta os dizeres; ela é a garantia de
que os sentidos irão se reproduzir, a despeito do sujeito, em sua ilusão
de controle da língua. É sobre o conceito de ideologia que nos
debruçaremos a seguir.

Ideologia
O conceito de ideologia foi apropriado pela Análise do Discurso para
fortalecer as bases teóricas dessa disciplina, juntamente com os
conceitos de língua e sujeito. Mas em que medida a ideologia faz parte
do tripé que sustenta a teoria do discurso?

Lembremos que, em seu gesto fundador, a Análise do Discurso aspirava


ser uma ciência das ideologias. Aliás, um dos textos publicados por
Pêcheux, já em 1968, intitula-se Notas para uma teoria geral das
ideologias (MALDIDIER, 2003, p. 20).

Filósofo de formação, Michel Pêcheux está preocupado em elaborar


uma “reflexão sobre a história das ciências e da ideologia” (MALDIDIER,
2003, p. 19). Sua motivação, bem como a de seus colaboradores na
época, como Paul Henry e Michel Plon, é construir um projeto original e
inédito, em torno de um objeto novo: o discurso.

Comentário
A hipótese desses pesquisadores é a de que algumas ciências “sob
acobertamento do sujeito psicológico, ignoram, ou não querem saber, de
sua relação com a política, que ainda por cima se paramentam com os
atributos da cientificidade emprestando seus métodos da estática e da
linguística”, como também explica Maldidier (2003, p. 20).

Para denunciar que as ciências são atravessadas pela ideologia, os


iniciadores da teoria vão colocar à prova os discursos doutrinários,
oriundos da política, da religião e das ciências, questionando sua
aparente neutralidade e objetividade.

Perseguindo essa hipótese, trabalham o conceito de ideologia em


relação com a língua e seus efeitos de sentido. Vamos iniciar essa
compreensão pela seguinte afirmação:

Podemos começar por dizer que a


ideologia faz parte, ou melhor, é a
condição para a constituição do
sujeito e dos sentidos. O indivíduo é
interpelado em sujeito pela
ideologia para que se produza o
dizer. [...]. Assim considerada, a
ideologia não é ocultação, mas
função da relação necessária entre
linguagem e mundo.

(ORLANDI, 2015, p. 44-45)

Nessa citação, Orlandi resume apropriadamente a relação que a


ideologia entretém com a língua e o sujeito. Em Análise do Discurso, a
ideologia é um sistema de ideias e representações compartilhado por
uma determinada classe social, no âmbito da sociedade capitalista. No
entanto, essas ideias não ficam alojadas na mente, mas adquirem uma
forma material, em práticas e em discursos.
Desse modo, para propor uma ciência das ideologias, Pêcheux e seus
colaboradores se interessaram pela materialidade verbal, também
chamada “intradiscurso”. É nessa materialidade, manifesta por meio de
palavras, que os analistas podem observar o funcionamento da
ideologia, e com base nisso, interpretar os efeitos de sentido do texto,
aqui tomado como produto do discurso.

É importante mencionar a influência determinante do


filósofo Louis Althusser sobre o pensamento gestado
na Análise do Discurso em sua primeira fase. Na obra
Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado, Althusser
(1980) conceitua aparelhos ideológicos como
instituições sociais: a família, a escola, a política, a
religião, as mídias e as artes (cultura).

Segundo ele, tais aparelhos funcionam pela ideologia da classe


dominante, não apenas reproduzindo valores, mas também regulando
as práticas sociais e a linguagem. É nesse sentido que, para a Análise
do Discurso, o sujeito não é livre para dizer, pois, ocupando uma certa
posição na formação ideológica em que está inserido, seu discurso é
restringido pela ideologia dominante. Em outras palavras, a linguagem
não é sinônimo de liberdade, mas o lugar em que as posições
ideológicas se manifestam, reproduzindo práticas e discursos históricos
“já ditos”.

Agora podemos compreender melhor a afirmação: “o indivíduo é


interpelado em sujeito pela ideologia”. O indivíduo é um ser do mundo
físico, dotado de uma identidade única; o sujeito é a posição, ou as
posições, que o indivíduo ocupa na sociedade, na qual as dinâmicas já
estão em curso quando ele toma a palavra. Sua identidade não é
individual, mas coletiva.

Enquanto o indivíduo fala pela primeira vez, o sujeito reproduz falas já


ditas. Para o indivíduo, a língua é criativa, sinônimo de liberdade; para o
sujeito, a língua é restritiva, sinônimo de assujeitamento. A esse
respeito, Orlandi traz um exemplo interessante:

Quando falo a partir da posição de


‘mãe’, por exemplo, o que digo deriva
seu sentido, em relação à formação
discursiva em que estou
inscrevendo minhas palavras, de
modo equivalente a outras falas que
também o fazem dessa mesma
posição. Quando, ao abrir a porta
para um filho altas horas da
madrugada, a mãe fala ‘Isso são
horas?’ ela está, na posição-mãe,
falando como as mães falam.
Exatamente. Podemos até dizer que
não é a mãe falando, é sua posição.
Ela aí está sendo dita. E isso a
significa. Isso lhe dá identidade.
Identidade relativa a outras: por
exemplo na posição de professora,
de atriz etc.

(ORLANDI, 2015, p. 47)

A tese do assujeitamento pela ideologia foi muito bem-sucedida no


período de gestação da Análise do Discurso. Entretanto, após a terceira
fase, essa tese começou a se tornar problemática.

Isso se explica, em parte, pelo enfraquecimento das ideologias na pós-


modernidade, época marcada pelo consumo em massa e pelo
esvaziamento das causas sociais, muito embora o século XXI esteja
assistindo a uma retomada de pautas coletivas.

Por outro lado, é notável a relação explícita que a ideologia mantinha


com o materialismo histórico e sua crítica à regulação da sociedade
pelas classes dominantes, por uma ótica essencialmente econômica.
Esse programa de leitura mostrou-se restritivo à medida que outros
estudos emergiram, mostrando que o poder não é exclusivamente
econômico, mas possui regionalizações distintas. Na sociedade digital,
as mídias ocupam um lugar de poder, assim como uma formação
profissional também é sinônimo de poder.

Seja como for, a ideia, segundo a qual as práticas e os discursos estão


intimamente ligados à formação ideológica em que os sujeitos se
inscrevem, não deixou de existir. O que se questiona, desde a última
fase da Análise do Discurso, é o posicionamento de alguns analistas
que restringem essa questão aos textos fortemente doutrinários, pela
leitura althusseriana da ideologia no estudo do discurso.

Comentário
Na contemporaneidade, a Análise do Discurso se debruça tanto sobre
discursos doutrinários quanto sobre discursos menos regulados, a
exemplo das manifestações de rua, os comentários nas redes sociais,
os memes, a publicidade.

Na realidade, todo discurso pode se prestar a uma análise discursiva,


pois, como reflete Maingueneau (1997, p. 19), “todos os fenômenos
linguísticos são suscetíveis, a priori, de interessar a AD”.

Para concluir nossas reflexões sobre o conceito de ideologia na Análise


do Discurso, vamos considerar o seguinte slogan presente em cartazes,
propaganda de partidos políticos e manifestações de diversos
movimentos sociais:

Lugar de mulher é na política.

De um ponto de vista interpretativo, esse enunciado não encontra seu


referente na língua, que fornece o significado das palavras sem uma
relação necessária com o contexto extralinguístico. Pela ótica do
discurso, o sentido desse enunciado é sustentado pela ideologia, haja
vista a posição que as mulheres ocuparam nas sociedades ao longo da
história. Esse imaginário sobre o lugar das mulheres é exemplarmente
discursivizado em outro enunciado: “Lugar de mulher é na cozinha”, que
entra em relação polêmica com o enunciado do slogan já mencionado.

É interessante notar que o enunciado “Lugar de mulher é na cozinha”


apresenta uma identidade linguística, notadamente lexical e sintática,
com o enunciado original, cuja fonte enunciadora é desconhecida
(esquecida). Trata-se de uma expressão estereotipada, metaforizada
pelo cômodo da casa em que as mulheres passam boa parte de seu
tempo, assegurando o bom funcionamento do lar, reproduzindo, assim,
as práticas da família, tomada como instituição social.

Entre os dois enunciados, observa-se uma única alteração: a


substituição de “cozinha” por “política”. Assim sendo, o enunciado do
slogan inicial constitui um exemplo de interdiscurso mais ou menos
explícito, ao qual podemos chamar de alusivo. Essa substituição
estabelece uma relação polêmica entre duas posições-sujeito: a
posição-sujeito da mulher que permanece nos limites do lar versus a
posição-sujeito da mulher que passa a ocupar o espaço público, para
além do lar.

Resumindo
Como podemos observar, essa leitura só é possível porque há uma
memória histórica e discursiva sobre o lugar da mulher, ou ainda, uma
ideologia dominante que informa sobre esse lugar histórico. Com essas
reflexões, encerramos o módulo sobre os três conceitos basilares da
Análise do Discurso.

video_library
Formação discursiva,
interdiscurso e ideologia
Assista agora a um vídeo em que se aborda o desenvolvimento dos
conceitos de formação discursiva, interdiscurso e ideologia no campo
da Análise do Discurso, exemplificando com alguns gêneros discursivos.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Analise as afirmativas a seguir:

I. A formação discursiva reflete a formação ideológica.


II. O interdiscurso entretém uma relação com a memória discursiva.
III. Na Análise do Discurso, a formação discursiva se refere à
dispersão dos enunciados.
IV. O filósofo Michel Pêcheux é quem primeiro lança e desenvolve o
conceito de ideologia na AD.

Está correto o que se afirma em

A I apenas.
B II e III.

C I e II.

D III e IV.

E todos os itens.

Parabéns! A alternativa C está correta.

As afirmativas I e II estão corretas porque a formação ideológica


está presente na formação discursiva, além disso, o interdiscurso
estabelece uma ligação com a memória discursiva. As afirmativas
III e IV estão incorretas porque, na Análise do Discurso, a formação
discursiva é um conceito que explica as restrições sofridas pelo
sujeito em sua ilusão de controle da língua. A definição de
formação discursiva foi primeiramente elaborada por Foucault, para
explicar a dispersão dos enunciados.

Questão 2

O conceito de ideologia é um dos três aspectos que estudamos


para compreender o arcabouço teórico da Análise do Discurso.
Sobre esse conceito, é correto afirmar que a ideologia

A não é um dos tripés da teoria do discurso.

não sustenta o sentido das palavras, em última


B
instância.

não é um conjunto de ideias que se restringe ao


C
pensamento.

D
não é um sistema de representações sociais que
reproduz o funcionamento da sociedade de classes.

E não adquire uma forma material, em textos.

Parabéns! A alternativa C está correta.

Na Análise do Discurso, a ideologia é um sistema de


representações sociais que se materializa na língua, por meio dos
textos que circulam em sociedade. Desse modo, ela não permanece
no plano das ideias, mas adquire uma existência material. As
demais alternativas não devem ser assinaladas porque elas negam
aspectos condizentes o conceito de ideologia no contexto da
Análise do Discurso.

3 - As condições de produção do discurso


Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer as condições de
produção do discurso.

A produção do discurso
Diferentemente da Sociolinguística e da Pragmática, a Análise do
Discurso não restringe a análise linguística/textual à situação imediata
da fala. Ela vai além, ao considerar que as condições de produção do
discurso estão relacionadas às instâncias sociais que produzem
linguagem, sendo essa relação histórica e ideológica.

Ademais, a Análise do Discurso não trata os falantes como indivíduos


singulares, mas como sujeitos que se inscrevem em uma determinada
posição, por sua vez, também determinada pelas instâncias sociais a
partir da qual eles enunciam. Tais instâncias são chamadas de
“aparelhos ideológicos”, historicamente regulados na sociedade
capitalista, a saber: a família, a escola, a religião, a política, as mídias, a
cultura.

Nessa concepção inédita de linguagem, todo texto é


produto de um discurso, sendo este vinculado a uma
instância social e ideológica que reproduz práticas e
discursos. Desse modo, nenhum sujeito é “dono” de
sua fala, mas reproduz um determinado discurso.

Daí a ideia de que nenhum discurso é inédito ou criativo, mas produto


das dinâmicas sociais, que se originaram muito antes do sujeito que
enuncia. Para a Análise do Discurso, os sentidos já estão postos, ainda
que cada texto seja único e irrepetível, tendo em vista seu caráter
singular, instituído a cada enunciação.

As condições de produção do discurso poderiam ser aproximadas da


noção de contexto, muito empregado nas abordagens funcionalistas da
língua em uso. No entanto, as condições de produção do discurso não
se limitam ao contexto no sentido que essas abordagens lhe dão, qual
seja a situação comunicativa que envolve todo texto: seu produtor, seus
receptores, o tempo e o espaço da enunciação, o suporte de veiculação,
entre outros parâmetros da comunicação.

Na perspectiva da Análise do Discurso, interpretar um texto é uma


atividade que não se limita a decifrar o significado das palavras,
tampouco a identificar os elementos imediatos da situação de
comunicação.

Sobre esse ponto, Orlandi esclarece o seguinte:

Não se trata de transmissão de


informação apenas, pois, no
funcionamento da linguagem, que
põe em relação sujeitos e sentidos
afetados pela língua e pela história,
temos um complexo processo de
constituição desses sujeitos e
produção de sentidos e não
meramente transmissão de
informação.

(ORLANDI, 2015, p. 19)

Assim, as condições de produção do discurso envolvem a situação de


comunicação e, sobretudo, o contexto histórico e ideológico que
sustenta toda produção de linguagem, leia-se, todo texto, tomado como
produto do discurso.

Como explica Maldidier (2003, p. 23): “A referência às condições de


produção designava a concepção central do discurso determinado por
um ‘exterior’, como se dizia então, para evocar tudo o que, fora a
linguagem, faz que um discurso seja o que é: o tecido histórico-social
que o constitui”.

Dessa perspectiva, conhecer as condições de produção de um discurso


é uma condição necessária, uma garantia para acessar os efeitos de
sentido dos textos. Pois, se pensarmos o texto unicamente como uma
totalidade de sentido, isto é, como uma materialidade acabada,
composta por um início e um fim, não teremos acesso ao que ele “quer
dizer”, para além de suas fronteiras visíveis.

Para a Análise do Discurso, o texto é vislumbrado


como a manifestação do discurso, que já está em
curso muito antes de sua manifestação em um objeto
material e acabado. Portanto, para fazer sentido, o
texto não pode ser lido apenas em sua superfície, visto
que ele já produz sentidos antes mesmo de adquirir um
acabamento.

Isso explica por que Pêcheux considera que “é impossível [...] analisar
um discurso como um texto [...] é necessário referi-lo ao conjunto de
discursos possíveis, a partir de um estado definido das condições de
produção” (MALDIDIER, 2003, p. 23).

Desse modo, o texto é mais do que uma materialidade significante; ele é


atravessado por outros textos, ou melhor, por outros discursos. E são as
condições de produção que fornecem os elementos necessários para se
acessar os reais efeitos de sentido do texto.

É possível compreender essa dinâmica de constituição do sentido,


considerando que o texto e o discurso correspondem a eixos distintos:

O texto
Corresponde ao eixo horizontal, da ordem do dito. O eixo horizontal
corresponde, segundo Orlandi (2015, p. 31), “à formulação, isto é, aquilo
que estamos dizendo naquele momento dado, em condições dadas”.

O discurso
Pertence ao eixo vertical, atravessando o texto, sendo da ordem do não
dito. O eixo vertical corresponde “aos dizeres já ditos — e esquecidos —
em uma estratificação de enunciados que, em seu conjunto, representa
o dizível” (ORLANDI, 2015, p. 30).

Análise de discurso nos eixos


horizontal e vertical
Para compreender o modo de funcionamento dos textos na relação
entre o eixo horizontal e o eixo vertical da leitura, pela ótica da Análise
do Discurso, vamos analisar o texto a seguir:

Armandinho: O quanto será que as


religiões, sem que a gente perceba...
... influenciam nas nossas opiniões
e preconceitos?...
Mãe: Filho, não fale assim que é
pecado!

(Adaptado de BECK, A. Armandinho.


Tirasbeck, 2015.)
O texto é, originalmente, parte do diálogo de uma tirinha, com a
personagem Armandinho, uma criança. Nesse sentido, no eixo
horizontal, o leitor tem diante de si um texto verbo-visual, pertencente ao
gênero discursivo tirinha. Essa materialidade significante é composta
por signos verbais e não verbais, dispostos segundo o regime
prototípico desse gênero.

Sabendo-se que os gêneros discursivos apresentam características


temáticas, estilísticas e composicionais relativamente estáveis, vemos
que o texto aborda um tema que faz parte do universo de sentido do
gênero. Assim, a personagem Armandinho, uma criança, reflete sobre
questões típicas de adultos.

Com relação ao estilo, o diálogo, prototípico do gênero tira, está


presente, pois Armandinho faz um questionamento, e é correspondido
por outra personagem, sua mãe.

Observemos de que modo esse texto significa com relação ao que ele
efetivamente “diz”, ou seja, em relação ao eixo horizontal da leitura.

Lembremos que, no eixo horizontal, encontram-se as


condições imediatas de produção do texto, também
chamadas de situação de comunicação, como seu
autor (Alexandre Beck) e o ano de publicação (2015).
No texto propriamente dito, temos ainda um outro
contexto, qual seja o contexto do texto (cotexto), em
que um locutor (Armandinho) dialoga com sua mãe
(interlocutora), observado por outro personagem
(sapo), na sala de sua casa.

Atendo-nos, por ora, a estas informações sobre o eixo horizontal da


leitura, vamos interpretar o texto.

Armandinho inicia um questionamento sobre a influência que as


religiões exercem sobre nossas opiniões e preconceitos, sem que nos
demos conta disso. O questionamento é finalizado, e entra em cena a
mãe de Armandinho, o que se pode perceber pela réplica “Filho!”. A mãe
toma a palavra para chamar a atenção de Armandinho, dizendo-lhe:
“Não fale assim que é pecado!”.

Na ficção criada pelo cartunista Alexandre Beck, temos um diálogo entre


filho e mãe, no qual a mãe repreende a criança por questionar o poder
das religiões, o que ela julga ser um “pecado”. É possível ocorrer um
efeito de riso pela relação estabelecida entre o questionamento de
Armandinho e a reação de sua mãe. Em termos pragmáticos, podemos
dizer que o texto extrai seu efeito cômico da contradição entre o objeto
do questionamento de Armandinho — a influência das religiões — e a
reação da mãe, pois, quando ela afirma que “é pecado” questionar a
influência das religiões, termina por confirmar a dúvida do filho.

Comentário
Essa interpretação é possível porque o efeito cômico advém de uma
informação implícita. Para acessar esse implícito, o leitor precisará
realizar uma inferência, ou seja, precisará fazer um esforço de raciocínio
para depreender da fala da mãe a contradição que vem a ser o objeto do
riso.

Mas, afinal, qual é essa informação implícita? Ainda no eixo horizontal,


podemos dizer que o implícito reside na relação semântica entre
“pecado”, termo proferido pela mãe, e o teor do questionamento de
Armandinho. Em outras palavras, o leitor terá de colocar em relação dois
termos que participam do mesmo campo semântico: pecado e religião.

Ainda que essa leitura já se mostre complexa, pois ativa conhecimentos


extralinguísticos, fundamentais para a coerência do texto, ainda não se
pode dizer que a interpretação horizontal do texto fornece todos os seus
efeitos de sentido. O que realmente explica o sentido desse texto são
suas condições de produção históricas e ideológicas.

Como vimos anteriormente, segundo Orlandi (2015), o eixo vertical da


leitura corresponde ao interdiscurso (já dito), à memória (esquecimento)
e ao dizível. Apesar de já termos mencionado o implícito, essa noção
não é suficiente para se compreender o modo como o texto produz
sentido.

O dito e o não dito


Com efeito, em Análise do Discurso, o que sustenta o sentido do texto é
aquilo que ele não diz (não dito), e isso não tem a ver com um conteúdo
inferencial, característico das abordagens pragmáticas. O não dito diz
respeito aos outros discursos, produzidos antes, em outro lugar,
esquecidos. Ao ressurgirem, esses já ditos sofrem o efeito da memória
discursiva, podendo ser:

Idênticos ao já dito: nesse caso, temos a paráfrase.

Reformulados em relação ao já dito: nesse caso, temos a


polissemia.
Orlandi assim explica os processos da paráfrase e da polissemia:

A paráfrase representa assim o


retorno aos mesmos espaços do
dizer. Produzem-se diferentes
formulações do mesmo dizer
sedimentado. A paráfrase está do
lado da estabilização. Ao passo que,
na polissemia, o que temos é
deslocamento, ruptura de processos
de significação. Ela joga com o
equívoco.

(ORLANDI, 2015, p. 34)

No diálogo entre Armandinho e sua mãe, observamos um processo


parafrástico, uma vez que os termos “religiões” e “pecado” são estáveis
na formação ideológica do discurso religioso cristão. Tanto é que o
enunciado “Não fale assim que é pecado!” soa familiar, apesar de já não
ser possível encontrar a fonte enunciativa desse dizer. Ele pode ter sido
ouvido na igreja, no ambiente familiar, na escola, em uma telenovela;
seja como for, sua origem não pode ser localizada com exatidão — e
mesmo que o fosse, tal enunciado não é propriedade de um ou outro
falante, pois já circulava antes, em outro lugar.

Sobre esse aspecto, Orlandi comenta:

Quando nascemos, os discursos já


estão em processo e nós é que
entramos nesse processo. Eles não
se originam em nós. Isso não
significa que não haja singularidade
na maneira como a língua e a
história nos afetam. Mas não somos
o início delas. Elas se realizam em
nós em sua materialidade. Essa é
uma determinação necessária para
que haja sentidos e sujeitos.

(ORLANDI, 2015, p. 33)

Ao afirmar que o sujeito não está na fonte do sentido, e que esta é uma
condição necessária para que haja sujeitos e sentidos, a autora está se
referindo ao caráter determinante do não dito sobre o efeito de sentido
dos discursos.

No texto que estamos analisando, essa questão é representada pelo


conflito vivenciado por Armandinho, ao se questionar sobre a influência
das religiões em nossas opiniões e preconceitos. Dito de outro modo, é
porque as religiões exercem influência sobre nossas opiniões e
preconceitos que Armandinho se questiona. Ele demonstra não saber se
essa influência existe, mas é como se soubesse. Tal interpretação é
possível porque a própria personagem diz: “sem que a gente perceba”.
Esse enunciado fornece ao leitor, analista do discurso, as evidências de
que a memória discursiva e o inconsciente são constitutivos do sujeito.

Por essa leitura, tipicamente discursiva, podemos


considerar que a formação ideológica religiosa cristã
constitui o sujeito Armandinho, que, neste ponto, deixa
de ser a personagem singular das tiras de Alexandre
Beck, e assume, por seus dizeres, uma posição-sujeito
que extrapola o texto, visto que tal posição é histórica
e atravessada por uma ideologia religiosa dominante
no Ocidente. É desse lugar, abstratamente falando, que
a personagem fala.

De outro lado, o enunciado da mãe de Armandinho também carrega


consigo uma memória do discurso que defende a ideologia religiosa
cristã, por um processo parafrástico. Mas, diferentemente do filho, a
posição-sujeito mãe defende o discurso religioso cristão, reproduzindo
uma fala histórica, que soa familiar.

Tanto é que, antes de dizer que “é pecado”, ela afirma: “Não fale
assim...”. Esse sintagma está no modo imperativo, soando como uma
repreensão, ou melhor dizendo, uma censura ao questionamento do
filho. Em sua posição-sujeito, a mãe dita, portanto, o que o sujeito pode
e deve dizer, demostrando que a língua sofre interditos.
Essa análise que fizemos revela que o sentido dos textos, na perspectiva
do discurso, não é transparente, tampouco evidente. Por isso, dizemos
que analisar um discurso é realizar um gesto interpretativo, adotar uma
postura que consiste em ver além da materialidade significante. Analisar
um discurso significa relacionar a língua a suas condições históricas e
ideológicas de produção. Somente desse modo é possível acessar os
efeitos de sentido de um texto.

video_library
As condições de produção do
discurso
Assista agora a um vídeo em que se apresentam as condições de
produção do discurso, destacando a relação intrínseca que todo
discurso, sob a forma material de textos, institui com a história, o sujeito
e a ideologia.
Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?

Questão 1

Uma importante contribuição da Análise do Discurso está


relacionada com os estudos voltados para as condições de
produção do discurso. Sobre essas condições de produção,
assinale a alternativa correta.

A situação imediata da fala não faz parte das


A
condições de produção do discurso.
O contexto histórico é determinante para se analisar
B
um discurso.

A ideologia não faz parte das condições de


C
produção do discurso.

O conhecimento da estrutura de uma língua é uma


D
garantia para o sentido dos textos.

O conceito de condições de produção foi proposto


E
nas abordagens pragmáticas.

Parabéns! A alternativa B está correta.

Em Análise do Discurso, as condições de produção compreendem a


situação imediata da fala e o contexto histórico e ideológico de
produção do discurso. Ambos são importantes, mas o contexto
histórico e ideológico é determinante para haver sentido, em última
instância.

Questão 2

Analise as afirmativas a seguir sobre o conceito de texto na Análise


do Discurso:

I. O texto é uma totalidade de sentido, composta por um início e um


fim, sendo algo completo em si mesmo.
II. O texto é produto do discurso, sua materialização.
III. O texto possui um acabamento, mas isso não é suficiente para
haver sentido.

Está correto o que se afirma em

A I, II e III.

B I e III.
C I apenas.

D III apenas.

E II e III.

Parabéns! A alternativa E está correta.

A afirmativa I está incorreta e as afirmativas II e III estão corretas


porque, na Análise do Discurso, o texto é compreendido como a
materialização do discurso, que não se origina no sujeito, visto que
já está em processo desde que nascemos. Nesse sentido, não se
pode dizer que o texto possui uma completude ou totalidade de
sentido, ainda que ele tenha algum acabamento, pois ele está
relacionado a outros textos/discursos, significando pela memória e
pela história.

Considerações finais
Aprendemos que a Análise do Discurso conheceu diferentes fases, em
que o conceito de discurso foi aos poucos reformulado, com o auxílio de
outros, como interdiscurso, formação discursiva, memória discursiva,
contribuindo para edificar a teoria. A partir de sua última fase, no início
dos anos 1980, a Análise do Discurso reavaliaria alguns de seus
conceitos e, sobretudo, seus métodos, passando a integrar as
problemáticas típicas das abordagens pragmáticas, como a enunciação.
Essa abertura promoveu o contato da teoria com outras perspectivas
científicas e filosóficas.

Atualmente, existem várias “análises” do discurso, segundo os


propósitos e os objetos de seus estudiosos. É possível falar em Análise
do Discurso Digital, Análise do Discurso em Interação, Análise Dialógica
do Discurso, entre outras. Entretanto, o que essas “etiquetas”
concordam em manter é o estudo das condições de produção do
discurso — frequentemente, com outras denominações —, que envolvem
locutores em situações imediatas de fala, mas, sobretudo, sujeitos que
se inscrevem em determinadas formações ideológicas.

Os desdobramentos da teoria enfraqueceram alguns de seus conceitos


fundadores, como a ideologia e a formação discursiva, mas, por outro
lado, enriqueceram a tese do primado do interdiscurso e da memória
discursiva. Seja qual for o ponto de vista adotado, fazer análise do
discurso significa não se submeter às evidências da língua e considerar
que as palavras falam “com outras palavras”, “antes”, em “outro lugar”.

headset
Podcast
Ouça agora um podcast que apresenta a origem, o desenvolvimento e
os principais conceitos da Análise do Discurso de linha francesa,
destacando o conceito de discurso, interdiscurso, ideologia e produção
discursiva.

Explore +
Confira as indicações que separamos para você!

Leia os seguintes artigos da professora Maria do Rosário Gregolin:

Análise do Discurso e mídia: a (re)produção de identidades, publicado


na revista Comunicação, Mídia e Consumo, v. 4, n. 11, 2007,
disponibilizado no portal da ESPM.

A Análise do Discurso: conceitos e aplicações, publicado pela ALFA:


Revista de Linguística, v. 39, 2001, e disponibilizado no Repositório
Institucional da Unesp.

Assista aos vídeos disponíveis no canal da Abralin, no YouTube:


Dominique Maingueneau: A Análise do Discurso e a crise do
Coronavirus, vídeo em que o próprio pesquisador e teórico Dominique
Maingueneau fala, em português, sobre a pandemia na perspectiva da
AD.

Entrevista: Eni Orladi, vídeo em que a linguista apresenta seus estudos e


abordagem da AD.

Análise de Discurso: linguagem, ideologia e inconsciente no gesto de


análise, debate entre alguns linguistas sobre temas relacionados com a
AD.

Referências
ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do Estado. Trad.
Joaquim José de Moura Ramos. Lisboa: Editorial Presença, 1980.

BARONAS, R. L. Formação discursiva e discurso em Foucault e em


Pêcheux: notas de leitura para discussão. In: Seminário de Estudos em
Análise do Discurso, 5., 2011, Porto Alegre. Anais [...]. Porto Alegre:
UFRGS, 2011.

BRAIT, B. (org.). Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto,


2010.

BRANDÃO, H. H. N. Introdução à Análise do Discurso. 2. ed. Campinas,


SP: Editora da Unicamp, 1993.

FIORIN, J. L. Interdiscursividade e intertextualidade. In: BRAIT, B. (org.).


Bakhtin: outros conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2010. p. 161-193.

FOUCAULT, M. L’archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 2008.

GADET, F.; HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma
introdução à obra de Michel Pêcheux. 5. ed. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2014.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo:


Cortez, 2001.

MAINGUENEAU, D. Discurso e Análise do Discurso. Trad. Sírio Possenti.


1. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. 2 ed. São


Paulo: Pontes, 1997.
MALDIDIER, D. A inquietação do discurso – (Re)ler Michel Pêcheux hoje.
Campinas, SP: Pontes, 2003.

ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos.


Campinas, SP: Pontes, 2015.

PÊCHEUX, M. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio.


Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1988.

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