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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Agência Brasileira do ISBN - Bibliotecária Priscila Pena Machado CRB-7/6971


Ideias teóricas em circulação entre a França e
o Brasil: a análise do discurso de M. Pêcheux e
E. Orlandi

Bethania Mariani
(UFF/CNPq/LAS)1
Silmara Dela Silva
(UFF/FAPERJ/LAS)2

No campo das ciências da linguagem, a expressão “análise


do discurso” não possui sentido transparente, nem porta uma

relação a outras, irá materializar distintas maneiras de se conceber


ciência, conforme a doutrina epistemológica em jogo. Entendemos,
retomando Milner, que: “A palavra ‘ciência’ não se reveste de ne-
nhuma evidência por si só. Sabemos que cabe à epistemologia espe- 223

a expressão “análise do discurso”, bem como as demais palavras e


expressões mobilizadas para se nomear campos do saber, ganha

1
Professora Titular do Departamento de Ciências da Linguagem, Instituto
de Letras, da UFF, e pesquisadora do CNPq (bolsa nível 1C). É docente do
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem desde 1998 e uma
das coordenadoras do Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS), fundado em
2007. É doutora em Linguística pela UNICAMP, com pesquisas na área de
Análise de Discurso e História das Ideias Linguísticas. E-mail: bmariani@
id.uff.br.
2
Professora Adjunta do Departamento de Ciências da Linguagem, Ins-
tituto de Letras, da UFF, e Jovem Cientista FAPERJ (2015/2017). Uma
das coordenadoras do Laboratório Arquivos do Sujeito (LAS) e docente
do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem. É jornalista
e doutora em Linguística, com pesquisas na área de Análise de Discurso.
E-mail: silmaradela@gmail.com.
sentidos em relação à conjuntura em que se inscreve, em relação a
sua historicidade.
Neste trabalho, nosso objetivo é revisitar um percurso de
constituição da análise do discurso como uma disciplina de interpre-
tação, em seu funcionamento no campo dos estudos da linguagem.
Tomamos, assim, como foco a discussão acerca do lugar da teoria do
discurso no qual se imbricam o pensamento francês e o pensamento
brasileiro, cujo entrelaçamento porta uma memória a ser mencio-
nada, e retomada em vários momentos: a análise do discurso que se

(entre 1966 e 1982), enquanto atuava como pesquisador no CNRS, à


frente de uma equipe multidisciplinar; e os trabalhos de Pêcheux em
sua reterritorialização no Brasil, com outros desdobramentos teóri-
cos e analíticos, a partir das pesquisas de Eni Orlandi, que ganham

de São Paulo (USP) e na Universidade Católica de Campinas (curso


224 de Tradutores e Intérpretes). Em 1976, na USP, Orlandi ministrou
na Pós-Graduação a disciplina com o nome Análise sociolinguística
do discurso pedagógico, que atraiu uns 70 alunos. Em 1979, Orlandi
se torna professora efetiva do Instituto de Estudos da Linguagem,
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), passa a minis-
trar uma disciplina com o nome Análise do Discurso, constituindo
a institucionalização e a consolidação de um campo de trabalho e
pesquisa em Análise do Discurso a partir as formulações teóricas de
Michel Pêcheux. Seus cursos na UNICAMP atraíram numerosos es-
tudantes de mestrado e doutorado que, uma vez formados e atuando
em inúmeras instituições de ensino e pesquisa no Brasil, colocaram
em circulação as ideias de Pêcheux e seus desdobramentos tal como
formulados por Orlandi.
Para realizar tal tarefa, situamo-nos no âmbito da história
das ideias linguísticas, campo teórico que toma a expressão “ideias
se articulam sobre as línguas. Esses saberes sobre a linguagem e
sobre as línguas produzem conhecimento sempre marcado episte-
mologicamente pela elaboração de modelos, conceitos e teorizações
(Fournier, Colombat e Puech, 2010).

em dois momentos, a saber: iniciamos por uma retomada da cir-


culação das ideias que fundam a escola dos estudos de linguagem
sobre análise de discurso, a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux,
no cenário francês; passamos à apresentação dos modos como essas
saberes, que consolidam uma tomada de posição materialista acerca
do funcionamento dos processos de produção de sentidos, passam a

a nossa proposta de apresentar um panorama que contempla ainda


que brevemente as interlocuções entre França-Brasil e Brasil-França
promovidas no campo de produção do conhecimento da análise
do discurso, na atualidade. É dessa maneira que nos voltamos aos 225
modos de circulação do saber e de constituição de um lugar teórico,
na relação entre Brasil e França.
Na França, a análise do discurso materialista de
Michel Pêcheux
A formulação e a circulação da expressão “análise do discurso”
se inicia no panorama linguístico americano. “Discourse analysis”
foi cunhada por Zellig Harris para designar um método formal para
abordagem de textos, em linguística estrutural. Discurso para Harris

a mais nos estudos linguísticos da época, pois visava a depreensão,


a partir de uma abordagem distribucionalista de elementos consti-
tuintes, do conjunto de classes de equivalência que estariam na base
de qualquer construção textual. Seu artigo, com título “Discourse
analysis”, foi publicado na revista Language, volume 28, em 1952.
Pêcheux, em seu primeiro livro publicado (1969), menciona e retoma
o artigo em que Harris expõe suas ideias, tendo em vista seu projeto
inicial e original de construção de um processo de análise com base
na utilização da informática.
Antes de Pêcheux, porém, em meados de 1960 a expressão
“análise do discurso” começa a circular e a encontrar seu lugar no
pensamento francês. Em obra dedicada a oferecer um panorama
das teorias linguísticas em suas variadas vertentes, Paveau & Sarfati
([2003] 2006: 203), em capítulo dedicado àquelas que denominam
“As linguísticas discursivas”, sinalizam para a análise do discurso
como um campo institucional que, em seus termos, “constitui-se em
um contexto marxista, em sua versão althusseriana”. E prosseguem:
“com efeito, os problemas da ideologia, do poder, das lutas sociais
e políticas, com o pano de fundo da ‘revolução’ de 1968, reúnem

constituem o solo comum de seus trabalhos” (Paveau; Sarfati, 2006


226 [2003]: 204).
De um ponto de vista linguístico, esses autores situam a pers-
pectiva discursiva de estudos da linguagem em diferentes escolas,
ligadas a nomes e instituições francesas, e dentre elas mencionam:
J. Dubois, na Universidade de Paris X – Nanterre; M. Tournier, na
École Normale Supérieure de Saint-Cloud; M. Pêcheux, no Laborató-
rio de Psicologia Social do CNRS, associado à Universidade de Paris
VII; e A. Greimas, na École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS). A apresentação de Paveau & Sarfati ([2003] 2006) sugere,
assim, um amplo interesse para se pensar a linguagem no âmbito
dos estudos discursivos, marcado em sua circulação por distintas
instituições e grupos de pesquisas franceses.
Ao mesmo tempo, a pluralidade de reflexões propostas
nesses grupos, em seus diferentes modos de conceber o discurso
e suas análises, aponta para a opacidade da expressão “análise de
discurso”, como dissemos de início. Fala-se de discurso, mas de que
discurso que se fala? Mais que uma distância temporal que separa
as ideias fundadoras de tais grupos de pesquisas, localizados nesse
contexto francês da década de 1960, e os estudos do discurso que
ganham forma nas práticas de pesquisas atuais, há uma trajetória
de circulação desse conhecimento que se constitui historicamente.
Dada a nossa proposta voltada aos modos de circulação do
saber e de constituição de um lugar teórico, na relação entre Brasil
e França, como já dissemos, interessa-nos a tomada de posição
assumida por Michel Pêcheux, que resulta na fundação de uma
tradição materialista de estudos do discurso na França e, algumas
décadas depois, no Brasil. Ao discorrer acerca da (re)leitura da obra
de Pêcheux já no século XXI, Maldidier (2003) atenta para o modo
como Pêcheux se volta, simultaneamente, à formulação de uma teo-
ria do discurso e à proposição de uma prática de análise discursiva,
constituindo, assim, um “duplo plano do pensamento teórico e do
dispositivo da análise de discurso, que é seu instrumento” (Maldi-
227
-
órica e da proposição de procedimentos de análise enquanto práticas

de uma prática política.


As bases da análise do discurso materialista, em seu funcio-
namento teórico-metodológico, são postas/formuladas por Pêcheux
progressivamente, em um processo de textualizações, formulações

nasceu na conjuntura dos anos de 1960, sob o signo da articulação


entre a linguística, o materialismo histórico e a psicanálise. Ele,

um processo que se interrompe na França em 1983, momento em


que já encontrava também outras condições de circulação no Brasil.
A proposta de uma análise discursiva é formulada por Pêcheux
em 1969, naquele que costumeiramente é considerado seu texto
inaugural: Análise Automática do Discurso (AAD-69) (Pêcheux,
[1969] 1997). Nesse primeiro trabalho, Pêcheux critica os métodos
vigentes de leitura de textos, sobretudo as análises de conteúdo,
tendo em vista o modo como eram praticadas pelas ciências sociais;
revisita noções caras à proposta atribuída a Saussure no Curso de
Linguística Geral (1916), tais como língua e instituição, consideradas
basilares ao estruturalismo linguístico; e propõe o discurso como
um objeto teórico. Entendido por Pêcheux ([1969] 1997: 82) como
“efeitos de sentidos” entre “lugares determinados na estrutura de
uma formação social”, o discurso é tomado por Pêcheux como “o

conforme Henry (idem, ibidem), “que a prática política tem como


função, pelo discurso, transformar as relações sociais reformulando
a demanda social”.
A força teórica da noção de efeitos de sentidos está na com-
preensão de que os sentidos não são produtos estáveis, alocados
228 em dicionários ou nas intenções dos interlocutores. Ao contrário,
os sentidos se produzem em relações com outros sentidos, com
quem toma a palavra, com as condições históricas em que são ditos,
repetidos, incompreendidos, transformados, etc. Essa perspectiva
teórica possibilita ao analista voltar-se à opacidade do texto, sua
incompletude, e leva-o a organizar, em seu gesto de análise, um
dispositivo que permita apreender e compreender na materialidade
linguageira dos processos de produção de sentidos as repetições e,
também, as contradições, as falhas, as equivocações.
Antes mesmo de dar corpo à sua teoria do discurso, o que
incluiu a conceituação do discurso como objeto teórico e o início da
discriminação de procedimentos automatizados de análise de corpo-
ra
e sociais na França, bem como da ideologia em seu funcionamento
situação teórica das ciências sociais e, especialmente, da psicologia
social”, de 1966, e “Observações para uma teoria geral das ideolo-
gias”, de 1968, ambos publicados originalmente no periódico Cahiers
pour l’analyse, sob o pseudônimo de Thomas Herbert. Henry (1997:

discurso como o lugar preciso onde [seria] possível intervir teorica-


mente (a teoria do discurso), e praticamente construir um dispositivo
experimental (a análise automática do discurso)”, em sua proposta
de dar a ver o caráter não instrumental da linguagem e a relação

Em seus processos de reformulação e aprimoramento do escopo


teórico da análise do discurso, ao longo da década de 1970 e no início
dos anos de 1980, Pêcheux irá se dedicar a pensar a relação entre
ideologia e linguagem na constituição dos sujeitos e dos sentidos, por
meio da articulação entre o materialismo histórico, a linguística e a
teoria do discurso. Na constituição desse quadro epistemológico, o
autor aponta ainda para o modo como essas três regiões são, em seus 229
termos, “de certo modo, atravessadas e articuladas por uma teoria da
subjetividade (de natureza psicanalítica)” (Pêcheux; Fuchs, [1975]
-
matizados de análise discursiva propostos inicialmente e na conside-
ração do processo discursivo em seu funcionamento sempre peculiar.
Ao revisitar o percurso empreendido por Pêcheux na cons-
trução de sua teoria do discurso, Maldidier (2003: 96) sintetiza sua
teorização nos seguintes pontos: “o sujeito não é a fonte do sentido;
o sentido se forma na história através do trabalho da memória, a in-
cessante retomada do já-dito; o sentido pode ser cercado, ele escapa
sempre”. A autora também destaca a relevância de seu pensamento

o discurso, no campo francês, não se confunde com sua evidência


empírica; ele representa uma forma de resistência intelectual à ten-
tação pragmática” (Maldidier, 2003: 96, itálico da autora).
A teorização sobre o discurso e a construção de procedimentos
metodológicos para depreender seu funcionamento, levando em
conta a materialidade da língua e sua inscrição na história, confor-
me propostas por Pêcheux, encontram seu lugar na França graças a
-
telectual e política da época que favorecem o questionamento a prá-
ticas de leitura e a mecanismos de interpretação vigentes, aliados ao
desejo de intervenção no político por meio do estudo da linguagem,
da história, dos sujeitos e dos sentidos. É de Pêcheux a advertência
de que a exposição das bases de uma teoria materialista do discurso

das ideologias, à prática da produção dos conhecimentos e à prática


política” (Pêcheux, 1996: 143), sem os quais não seria possível sua

que fazem funcionar um discurso teórico-metodológico da análise


de discurso na França e que resulta em sua constituição enquanto
230 campo do saber.

com que essa mesma tomada de posição ganhe corpo e passe a traçar
novos percursos no Brasil, notadamente a partir do início da década
de 1980. Paveau & Sarfati ([2003] 2006), ao mencionarem a atuação
de Pêcheux na elaboração de uma teorização sobre o discurso susten-
tada em bases que articulam a linguística, o materialismo histórico

que: “Os trabalhos de Michel Pêcheux estão na base de uma linha de


análise do discurso fortemente assentada no Brasil, principalmente
a partir dos trabalhos de Orlandi” (idem: 204).
No Brasil do início da década de 1980, pensar o político na
linguagem marca-se como um gesto de resistência à interdição de
dizeres, prática corrente em decorrência da conjuntura de ditadura
civil-militar que era então vivida no país, desde 1964. Os primeiros
trabalhos de Eni Orlandi, professora da Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP), mobilizando os princípios da teoria mate-
rialista do discurso proposta por Pêcheux, voltam-se aos discursos
religioso e pedagógico, em seu funcionamento autoritário (Orlandi,
1983).3 Ao longo de quase cinco décadas de circulação no Brasil, a
Análise do Discurso fundamentada no arcabouço teórico proposto
por Pêcheux e Orlandi se consolidou e ganhou contornos próprios,
escrevendo uma outra história e permitindo outras relações de cir-
culação, como tencionamos mostrar a seguir.
No Brasil, uma análise de discurso reterritorializada
O conjunto da obra de Orlandi tem sua fundamentação em
Pêcheux, mas é possível pensar que ambos se encontram entrela-
çados na sutileza e na singularidade com que ocupam seus lugares
teóricos na produção intelectual e na pesquisa universitária.
Assim, vale mencionar que Pêcheux-Herbert (1969), discu-
te as implicações de maio de 68 no projeto político-universitário
francês acenando com as possibilidades de uma mudança radical
do próprio projeto do fazer científico. Estava para acontecer, do 231

seu ponto de vista, “o fim de uma época para além da qual todo
saber estaria por ser reinventado” (Pêcheux, 1988: 173). Para
Pêcheux, era necessário um vasto trabalho crítico de redefinição
das categorias de base das ciências humanas, o que implicaria um
retorno teórico sobre e para as próprias bases. Quando lemos o
conjunto de sua obra, podemos dizer que Pêcheux seguiu à risca
seu próprio programa sugerido nesse artigo de 1969, e até o fim
aceitou a inquietação e a falta de conforto implicados na recusa
em seguir as hegemonias teóricas ou práticas teórico-metodoló-
gicas que aparecem como evidência em dada conjuntura.
3
Orlandi relata que esteve com Michel Pêcheux uma única vez, na cidade do
Rio de Janeiro, quando o ouviu dizer que a ideologia é um ritual com falhas.

que expôs sua proposta tipológica (discurso autoritário, polêmico e lúdico) e


obteve como resposta um apoio incondicional. (Cf. entrevista, 2016)
As condições históricas constitutivas da obra de Orlandi, por
sua vez, estão intrinsecamente vinculadas à resistência teórica e
política. Resistência teórica e política diante de uma incompreensão
que suas análises suscitavam no meio linguístico mais formalista.
Nesse sentido, seu trabalho se vincula ao de Pêcheux nesse gesto
de fazer uma retomada sobre os conceitos e sobre o conjunto dos
efeitos teóricos desses conceitos no próprio trabalho intelectual.4
As implicações desse gesto inicial da autora repercutem na maneira
como ela conduz suas pesquisas e orientações. Quando se pratica
análise do discurso no Brasil, não se trata simplesmente de um uso
conceitual, a mera transposição de uma teoria – o que seria uma
posição aplicacionista –, mas sim de fazer essa teoria trabalhar e
avançar a cada gesto de análise dos fatos de linguagem. Se os fun-
damentos do pensamento francês se encontram na base de uma
tomada de posição nos estudos da linguagem no Brasil, isso não
quer dizer que a prática brasileira seja apenas a de retransmissão
232 de uma teoria, de seus textos fundadores e de seus comentadores.
Trata-se de uma posição política que supõe o trabalho de leitura
como atividade transformadora.

ser outro”. (Orlandi, 1988a). Desacomodar autores e leituras é um


trabalho que se faz lendo esses autores e lutando com a complexidade
do pensamento teórico. A transmissão da análise do discurso ocorreu
marcada pela enunciação de Orlandi que, ao se ocupar da pesquisa,
da formação de estudantes de pós-graduação e da disciplinarização,
ampliou e reterritorializou os estudos do discurso.5 Em suma, a

teórico-político e, ao mesmo tempo, político-teórico. O político é


compreendido discursivamente como o processo ininterrupto de
4
Cf. Mariani, 2010 e Mariani, 2018.
5
Para maiores detalhes sobre a disciplinarização da análise do discurso no
Brasil, ler Mariani e Medeiros (2013).
divisão de sentidos, uma forma de funcionamento dos processos de
produção de sentidos em qualquer discurso. É dessa forma que os

No Brasil, a partir do início dos anos 80 do século XX, os


estudos discursivos inauguram uma posição teórica que entra em
descontinuidade com os estudos linguísticos até então vigentes e pro-
duzem um acontecimento teórico na medida em que constituem um
ponto de ruptura com a linguística que até então se fazia. Em outras
palavras, a proposição do discurso como objeto teórico, como já foi
mencionado, provoca um deslocamento e uma virada linguística:
para se praticar a análise do discurso é necessário estar nos estudos
de linguagem e, ao mesmo tempo, sair desse campo em direção à
construção de articulações com o materialismo e com a psicanálise
já visadas na proposição inicial do quadro teórico-epistemológico.
É uma posição teórica que traz um engajamento político próprio:
compreende-se que falar é tomar posição no socio-histórico, é
inscrever-se subjetivamente em redes de sentidos com a ilusão de 233
se estar na origem e no controle do dizer. Essa tomada de posição

em vista um certo antagonismo das tendências linguísticas formalista


e empirista relativamente ao que estava sendo proposto.
Desde a década de 70, Orlandi já vem expondo o percurso
discursivo em artigos publicados em congressos e periódicos
acadêmicos, como congressos do GEL, em 1978, e artigos em revistas
da Série Estudos, de Uberaba. Eni Orlandi publica A linguagem e o
seu funcionamento; as formas do discurso em 1983, livro com 13
capítulos que assinalam como ponto teórico incontornável a análise
do funcionamento da linguagem em relação constitutiva com as con-
dições socio-históricas de produção. Com esse livro6 se estabeleceu
6
Atualmente o livro já passa de sua 10a edição e é considerado pela autora
como um “livro fundador”. Em uma troca de e-mails com as autoras do
escrever, ampliando fronteiras. No texto de apresentação do livro,
a autora assinala o quanto ter como objeto o discurso representa
incluir discussões sobre aspectos múltiplos e indeterminados da
linguagem no que diz respeito aos processos de produção de sentidos,
que ganham espessura própria quando relacionados à historicidade.
“A incompletude, a divisão, o político, o inconsciente, a ideologia,
as diferenças são uma constante para quem aprende análise de
discurso” (Orlandi, 2006: 2).
Fazer análise do discurso é lidar, na linguagem, com o frag-
mentário, o indistinto e o polissêmico sempre em tensão com as
repetições e paráfrases. Nas palavras da autora, “Para alguns, o
já-dito é fechamento de mundo. Porque estabelece, delimita, imo-
biliza. No entanto, também se pode pensar que aquilo que se diz,
uma vez dito, vira coisa no mundo: ganha espessura, faz história. E
a história traz em si a ambiguidade do que muda e do que permane-
234 ce” (Orlandi, 1983: 7). Orlandi se propõe a trabalhar com a tensão
entre o que muda e o que permanece na historicidade constitutiva
que tensiona o mesmo e o diferente nos processos de produção de
sentidos. Nesse trabalho da análise discursiva dos processos de pro-
dução dos sentidos, e de seus efeitos (entre interlocutores), Pêcheux
e Orlandi tocam na materialidade linguageira em que se inscrevem
a suspensão das certezas, a crítica das evidências, a desconstrução
das verdades, a escuta do silêncio e as políticas de silenciamento. A

do que havia aprendido.” (correspondência privada em 13 de novembro


de 2017). Orlandi, em entrevista concedida à revista Fragmentun, conta

durante o período autoritário da ditadura militar. Em todos os artigos, e


-
peitar o que era mais relevante para caracterizar teoricamente o discurso:
“a relação paráfrase-polissemia, a relação entre locutores, a relação dos
locutores com a constituição do referente, objeto do discurso”. (Orlandi,
2006: 1)
compreensão teórica desses efeitos de sentidos permite compreensão
analítica do funcionamento ideológico na regulação, na constituição
e na institucionalização dos sentidos e dos sujeitos. A produção de
sentidos está sempre em movimento: um analista do discurso sabe
que o sentido sempre pode ser outro, pois está na relação com os
tensionamentos e confrontos sociais e históricos, ou seja, entre a
injunção ideológica à interpretação de determinada maneira e as
resistências a tal injunção.
Sobre essa movimentação dos sentidos no campo das tensões
teóricas, diz Orlandi, ao escrever Uma questão de coragem: a co-
ragem da questão (1988), nota à edição brasileira da tradução do
livro Les vérités de la Palice (1975): “Aprendi com ele [Pêcheux] um
modo de pensar a linguagem que me permitiu compreender que a

mas também de resistência” (Orlandi, 1988b: 5).


Nesse movimento de consolidação dos estudos do discurso no
Brasil, em 1986, ocorreu a fundação do Grupo de Trabalho de análise 235
do discurso no âmbito da Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa em Letras e Linguística.7 Com a fundação do Grupo de
Trabalho, ganha visibilidade o processo histórico de disciplinari-
zação da análise do discurso que já vinha ocorrendo desde o início
da década de 80 do século passado: do Instituto de Estudos da
Linguagem, UNICAMP, para outros cursos de Letras no Brasil, em
um movimento que partiu dos programas de pós-graduação para o
ensino de graduação8 (Mariani, 2015). Como nos diz Orlandi: “Hoje
7
Em maio de 1987, um ano após sua fundação, o Grupo de Trabalho de
Análise do Discurso da ANPOLL realizou o seu primeiro encontro no Rio
de Janeiro, contando com um público permanente de cerca de 30 pessoas,
conforme relato de Indusrky (1994). Atualmente, o grupo conta com mais
-
sino e pesquisa no Brasil.
8
Dos anos 90 para o momento atual, a circulação teórica e a disciplinariza-
ção da análise do discurso garantiram amplo espaço institucional em inú-
inaugurou. História feita de relações e debates entre disciplinas em
suas relações de força e de sentidos em que não é pequena a força
da contradição na sua institucionalização. Disciplina (interpretativa)
de entremeio.” (Orlandi, 2016: 15).
Pelo menos dois pontos da análise do discurso em seu desen-
volvimento no Brasil ainda precisam ser realçados nessa perspectiva
que entrelaça os trabalhos de Pêcheux aos de Orlandi, sobretudo
quando o foco está na circulação de ideias teóricas. Isso porque tais
pontos representam um retorno das ideias discursivas desenvolvidas

de silenciamento, e o desenvolvimento de um conjunto de saberes


sobre a língua e suas políticas no Brasil, no âmbito da história das
ideias linguísticas.
O primeiro ponto diz respeito à análise dos sentidos de silên-
cio, o que leva a autora a formular a noção de silêncio fundador e a
236 de silenciamento, em 1992. “O silêncio está nas palavras”, nos diz
Orlandi, não é um complemento da linguagem. Sua materialidade

(Orlandi, 1992: 13). O silêncio é fundador porque necessário, e


porque nele se encontra a garantia da movimentação dos sentidos.
“Sempre se diz a partir do silêncio” (Orlandi, idem: 23).
Se a noção de silêncio aponta para o horizonte dos sentidos,

vez, permite avançar teórica e analiticamente sobre o não-dito em

meras universidades brasileiras, o que tem propiciado a formação de um


grande contingente de alunos de pós-graduação, na organização continua-

Na maioria das instituições universitárias, os especialistas em análise do


discurso se organizam em laboratórios, como o LABEURB (UNICAMP), o
laboratório CORPUS (UFSM), o LAS (UFF), o Pohemas (UNICAMP) e o
Labedis (Museu Nacional/UFRJ), por exemplo, implementando projetos
coletivos de pesquisa.
relação aos modos exercidos pelo poder sobre o que pode e deve ser
dito ou interditado. As instâncias de poder, em seu trabalho sobre
o simbólico, organizam uma política para os sentidos, formas de
controle com suas interdições e censuras. Por outro lado, como já
foi dito, a política dos sentidos está nos fundamentos dos processos
sempre divididos da produção de sentidos. “O processo de resistência
é justamente isso: estabelecer um outro lugar de discurso onde se

17). Assim sendo, por mais que as instâncias de poder queiram


organizar formas de controle para o dizer, gestos de resistência se
inscrevem no dizível, nos mecanismos linguageiros que (se) signi-

Formas do si-
lêncio, que recebeu em 1992 o prêmio Jabuti, um dos prêmios mais
prestigiosos atribuídos a publicações brasileiras. A obra foi traduzida
para o francês e, ao entrar em circulação na França, foi coreografada
por George Appaix, da Companhia de dança La Liseuse. 237

formulação de Pêcheux-Orlandi assinalando que a materialidade


da ideologia é o discurso e a materialidade do discurso é a língua.
Para Orlandi, levando de forma consequente a proposta de Pêcheux,
ideologia não é o lugar da falta, mas do excesso; não é um conteúdo
a ser encontrado, mas corresponde a práticas que se inscrevem na
materialidade da linguagem.
Tal formulação, por sua vez, nos leva ao segundo ponto
importante da análise do discurso no Brasil, que foi o conjunto de
pesquisas produzido por uma grande equipe de pesquisadores sobre
a história das ideias linguísticas, os saberes linguísticos e sobre a po-
lítica das línguas no Brasil, a partir de 1992. Tal projeto, inicialmente
vinculado ao de Sylvan Aurox com convênio CAPES-COFECUB
(1994), ganhou contornos próprios ao incorporar o olhar discursivo
na análise da constituição da língua nacional do Brasil. Orlandi,
em vários livros publicados, mostra como que a língua falada no
Brasil historicamente foi se constituindo ao mesmo tempo em que
se organizava um saber sobre essa mesma língua e se formulavam
políticas para ela. Um marco relevante dos resultados desse projeto
foi o número 130 da revista Langages, totalmente dedicado à língua
do Brasil e apenas com autores brasileiros.
Nos dias de hoje, a análise do discurso representa um campo

sendo transmitida em instituições universitárias e reconhecida por


órgãos de fomento que destinam recursos para pesquisadores da
área. Os avanços teóricos de Orlandi sobre discurso urbano e sobre

francesas, como as de Marie-Anne Paveau, na universidade de Paris


238 XIII. Também a produção teórico-analítica em história das ideias
linguísticas encontra lugar de diálogo pesquisadores franceses, como
Jean-Marie Fournier e Christian Puech, na universidade Paris III
Sorbonne-Nouvelle.
Para concluir: uma relação França-Brasil e Brasil-
França
Em nossa trajetória neste texto, apresentamos uma breve
retomada da circulação das ideias que fundam a análise de discurso,
a partir dos trabalhos de Michel Pêcheux, na França, na década de
1960, e nos voltamos aos modos como tais ideias ganham circulação

Eni Orlandi, consolidando, assim, uma tomada de posição mate-


rialista acerca do funcionamento dos processos de produção de
sentidos em outras condições de produção. À guisa de conclusão,
ressaltamos o nosso olhar dirigido às relações de interlocução teó-
rica entre França-Brasil e Brasil-França, promovidas no campo de
saber da análise do discurso, de modo a fecharmos nosso percurso
em torno das condições de circulação dessas ideias que constituem
um campo teórico.
Quando nos voltamos à história de consolidação da análise
do discurso enquanto campo de saber na França e a sua entrada no
Brasil, alguns anos depois, parece evidente a interlocução França-
-Brasil que dela decorre. Ora, trata-se de um pensamento teórico
francês que aparentemente migra para o Brasil, o que pressupõe
necessariamente a retomada de noções fundadoras desenvolvidas
no cenário francês. Menos evidente, no entanto, parece ser a inter-
locução Brasil-França, que se desenvolveu nos últimos anos, em
decorrência da produção de saber decorrente da prática da análise
do discurso no Brasil, o que buscamos igualmente aqui mostrar.
Como foi assinalado anteriormente, a presença da análise do
discurso no Brasil constituiu um acontecimento teórico e resultou
em uma descontinuidade nos estudos linguísticos que então se pro- 239
duziam. A proposta de Pêcheux de se teorizar os efeitos de sentidos
como decorrência da inscrição da língua na história coloca em cena,

político, pela noção de materialidade discursiva. Nesse cenário, como


nos lembra Ferreira (2005: 21), a análise do discurso no Brasil “se
alterou com a diversidade do leque de materiais que são objeto de
interesse dos analistas de discurso brasileiros”. A autora prossegue,
mencionando alguns deles: “Do campo do verbal ao não-verbal,
passando pelos temas sociais (imigração, movimento sem terra, gre-

cotidiano). Como consequência desses diferentes gestos de análises,


necessários ao tratamento analítico de corpora variados, ganha corpo
a construção do próprio dispositivo teórico da análise de discurso no

formas do silêncio e de silenciamento, propostas por Orlandi (1992).


É justamente por decorrência das contribuições teóricas para
se pensar o discurso, de um modo geral, e o discurso sobre a língua,
em particular, que a interlocução França-Brasil, que se origina do
legado de Michel Pêcheux, encontra ressonância e se transforma
também em uma interlocução Brasil-França, como apontamos.
Em 1994, a edição francesa do livro Les formes du silence dans le
mouvement du sens, pela Éditions des Cendres, foi emblemática
na apresentação da maneira como as ideias linguísticas circulam e
são transmitidas. Francine Mazière, no “avant propôs”, reconhece

fort étrange à d’autres, et il n’est pas evident que nos habitudes de

venu d’un pays qui a su s’approprier et transformer nos manières


de penser et de dire” (Maziére, 1994: 8).
Como nos lembra Gadet (2005: 51), “A extensão disciplinar
de um campo está longe de ser idêntica em todas as tradições”. No
240 que concerne à análise do discurso em sua história de circulação na
França e no Brasil, essa extensão disciplinar se faz de retomadas e

em suas diferentes tradições intelectuais: “A ciência da língua que


assim se considera não está apartada do território em que se produz.
Tampouco a análise de discurso”.

REFERÊNCIAS

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