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Michel Pêcheux e a AAD69 em perspectiva

Eni P Orlandi

Introdução

Por que “em perspectiva”? Porque ao responder à solicitação da Verli, para que

Greci e eu falássemos do Pêcheux e do livro que traduzimos, a AAD69, logo pensei em

duas formas de situar este assunto. Uma delas é a de que, por uma perspectiva que

parece casual, traduzimos como último livro aquele que, na realidade, é o primeiro, do

ponto de vista de uma obra que representa a fundação da Análise de Discurso por M.

Pêcheux. Sua tese de doutorado. Mas isto dependeu de certas condições, e não é tão

casual assim. Pêcheux, quando o conheci, havia dito que eu devia ler o Vérités de La

Palice. Até aquele momento (anos 80), eu trabalhava em análise de Discurso apoiada

nas leituras do AAD69 e alguns artigos dele e de membros de sua equipe. Talvez por

essa indicação do autor, comecei pela publicação da tradução do Semântica e Discurso,

bem antes do AAD69. Isso já dá uma perspectiva da relação com a obra de Pêcheux. A

outra forma de situar essa questão, a da perspectiva, é a que toca a conjuntura mesma da

produção deste livro AAD69 e a que nos encontramos hoje. Nesse sentido eu poderia

dizer que o que vou comentar aponta para leituras de M. Pêcheux, em conjunturas

teórico-políticas e científicas distintas. Em perspectiva. Aí incluímos a questão da

automação do modelo nos anos 60 e o que podemos pensar hoje desse modo de

formalização, a informatização. Como se leu Pêcheux e como se lê Pêcheux. [perguntas

recorrentes: a da necessária modelização e a questão: a máquina pode substituir o

homem; Mina]

Para apresentar rapidamente a perspectiva que toma em conta o momento em

que foi produzida a AAD69, vou ler a orelha do livro que traduzimos e fazer alguns
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comentários sobre minha experiência com as leituras de Pêcheux ao me concentrar na

tradução desse livro. XX (leitura das orelhas). Vale a pena também referir a um excerto

do que diz F. Bresson em seu prefácio à AAD69. Retorna a questão da modelização e as

ciências do comportamento.

Agora os comentários na experiência da tradução (P.9).

Este livro, resultado da tese de doutorado de Michel Pêcheux, conjuga, em sua

escrita, vários trabalhos anteriormente produzidos pelo autor e, sobretudo, se projeta,

pela sua natureza, para muitos outros trabalhos, também feitos por ele, posteriormente,

constituindo o que denominamos Análise de Discurso, e que alguns preferem chamar

Análise de Discurso da linha francesa. Um texto fundador, uma obra que se diz, como

afirma o autor, como a construção de andaimes para a produção de uma ciência da

linguagem que traz em si a marca dos campos metafóricos, eleitos pelo autor: a

Linguística, a Psicanálise, o Marxismo. Sem ser, no entanto, nenhuma delas. Disciplina

de entremeio que se faz no espaço de contradições e de relações transversais entre

domínios do conhecimento. Plataforma para muitas questões novas e análises que, com

a teoria proposta por Pêcheux, mais abrem do que se fecham em respostas acabadas. O

livro é um livro e um projeto. Esta obra materializa um trabalho intelectual de

descobertas, no campo da linguagem, da filosofia, da ciência.

Na busca do método - com a teoria em sua formulação e com seu objeto

constituído (um novo objeto de ciência), o discurso, definido como efeito de sentidos

entre locutores - este seu livro expõe largamente a análise automática do discurso, e

explora a sua informatização. A modelização da análise, tendo como objeto o discurso,

suscitou muito trabalho, muita discussão, muitas convergências e divergências. A

questão do método é também a questão da teoria e do objeto. Estão intrinsecamente

ligadas. E desencadeia, não só em relação à conjuntura científica mais ampla, como em


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relação às ciências da linguagem, polêmicas epistemológicas acirradas. E o que domina

a frente da cena são questões que concernem a formalização dos modelos e a capacidade

das ciências humanas de responderem aos modelos formais da matemática aplicados. A

conjuntura científica da época começa a explorar a automatização. O projeto, proposto

por Pêcheux, de uma análise automática do discurso, propicia uma escrita formal, no

cálculo da cadeia de operadores e dos domínios semânticos no sistema automático. É a

busca de uma escrita que não analisa relações de palavras (da linguística histórico-

comparada, como no século XIX), nem produz indicadores sintagmáticos (da sintaxe

gerativa, como no século XX), mas vai além, porque trata de um objeto de outra

natureza e dimensão, o discurso, em seus processos de significação, em sua

materialidade. Essa busca de modelização de uma escrita algorítmica para o discurso

toca, naquela conjuntura, o limite do impossível. É este impossível que conduz esta obra

para além de seu tempo imediato. A informatização do modelo, que é uma posição de

vanguarda do autor naquele momento científico, não é plenamente bem-sucedida,

quanto a seus resultados mais visíveis, entretanto, deixa à mostra aspectos da

linguagem, uma sua intimidade, com a qual a teoria, o método, e os procedimentos da

análise, ao lidarem, esta sua obra expõe. Como diz o autor, em relação à linguística, o

que ele propõe, na sua descrição de um dispositivo de análise automática do processo

discursivo - que é a segunda parte de seu livro - não é uma teoria da língua, mas

procedimentos de análise, com suas notações e seus grafos. Com isso, ele dava início a

um amplo programa de análise que está, então, apenas em seus inícios 1. Está fundada a

Análise de Discurso.
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Não vou me estender sobre esta questão, mas, certamente, hoje, a questão da automatização e toda
esta mobilização das máquinas e modelos, alcança um patamar que, na época, era fruto de ousadia
explorar. Não podemos pensar nesse seu esboço de um programa bem mais largo, sem considerar as
condições de produção de sua proposta de automatização da análise de discurso, que se dá nos anos
1960. O que fica posto é que, nos anos 1960, neste seu livro fundador, ele teoriza e propõe princípios
metodológicos que sustentam, com a automatização, uma análise de um objeto cuja natureza e
caracterização irrompe como totalmente novo e inexplorado.
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Pêcheux, encara a questão do método, produzindo uma mudança de terreno,

tanto quanto à língua como ao sujeito. Nesta sua obra fundadora, a Semântica do óbvio

já está posta em questão. Assim como a centralidade do sujeito, ou a linguagem como

meio de comunicação. E, também, já se anuncia a importância da ideologia no

funcionamento da linguagem. Ao tomar a si a questão da modelização, Pêcheux

estabelece procedimentos descritivos da linguagem e uma escrita discursiva que

objetiva sustentar uma análise automática do discurso. Esse seu trabalho, mantendo-se

crítico à análise linguística, reforça ainda mais o que são os princípios que vai

estabelecendo para a teoria do discurso, em que a descrição que ele apresenta e a sua

organização em grafos (com pilhas, com redes e não árvores, etc) constituem um

dispositivo de análise automática do discurso além da frase.

Como em um programa de trabalho, vemos se desenvolverem essas suas

formulações em outras elaborações que aportam, a cada vez, deslocamentos teóricos ou

analíticos na medida em que são retomadas.

Penso que ler hoje o AAD/69, no quadro da história das ideias discursivas (E.

Orlandi, 2017)2, significa situar-nos na história da ciência com nossos instrumentos de

trabalho dimensionados no espaço (diferentes conjunturas científico-teóricas) e no

tempo (especificidades no campo epistemológico).

Nessa tradução, o texto integral nos expõe tanto o domínio dos conceitos, das

concepções que transitam entre língua, linguagem e ideologia, como também nos leva à

questão da análise, que é o ponto fundamental para as considerações sobre o dispositivo

da análise automática do processo discursivo. Afirmando, pelos seus procedimentos, sua

filiação ao materialismo.

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ORLANDI, E. P. “Ética, ciência, ideologia e interpretação”, apresentação na 32ª reunião da ANPOLL,
Cáceres, Unemat, 2017, publicado in Ciências da Linguagem e a(s) voz(es) e o)s) silenciamento(s) de
vulneráveis: reflexão e práxis – Homenagem ao prof. Luiz Antonio Marcuschi, Campinas: Pontes, 2018.
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Nos voltamos, então, para a estrutura/acontecimento do próprio livro em sua

materialidade. Tem toda a parte que discute teoricamente os estudos da linguagem, em

que estão a construção de seus princípios teórico-metodológicos e definição de seu

objeto. As outras partes do livro nos trazem os grafos e anexos que são fundamentais

para mostrarem o como vai-se constituindo um modelo de análise na especificidade do

que seja a automatização. Estas partes do livro nos dão os traços da tomada de decisão

de Pêcheux que é, sem dúvida, a projeção de uma ruptura e a proposta de seu programa

teórico-analítico: a análise automática do discurso, ou mais simplesmente, a

automatização. Esta foi sua opção de método.

Em seus anexos – agora apresentados na sua íntegra, compondo esta obra –

encontramos indicações, apontamentos importantes, através do método que propõe, e

dos passos de análise que realiza, para produzir uma análise não submetida nem à

análise linguística, nem à pragmática, nem à teoria dos atos de linguagem, nem aos

funcionalismos. Desponta com força sua ênfase na questão da significação e a proposta

de uma escrita própria ao discursivo e à sua materialidade.

Voltando-nos para outros escritos desta mesma linhagem, temos a afirmação de

Bachelard (1968)3, que refere às “novas formas do pensamento científico que vêm

depois projetar luz recorrente sobre as obscuridades dos conhecimentos incompletos”,

ao refletir sobre a relação entre razão e experimento. Ele nos conta que o físico

Michelson morreu sem encontrar as condições que teriam, segundo ele, confirmado sua

experiência (relativa à detecção do éter). E nos diz que outros físicos sutilmente

decidiram que esta experiência, negativa no sistema de Newton, era positiva no sistema

de Einstein. Bachelard conclui que uma experiência bem-feita é sempre positiva. E

afirma a filosofia do “porque não”? Pois bem, a ruptura produzida por Pêcheux, como

afirmo mais acima, no limite do impossível, se dá porque a sua construção teórica e de


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O novo espírito científico, G. Bachelard, Tempo Brasileiro, 1968.
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seu objeto novo, exigem também do método uma mudança de terreno, que ele realiza.

Mas não basta no estágio de desenvolvimento da ciência, em outras palavras, na

conjuntura teórico-científica, em que se encontrava, naquele momento, os estudos da

linguagem e da ideologia. Para que signifique, cientificamente, não se trata, neste caso,

da necessidade de uma teoria para dar sentido ao experimento, mas da necessidade do

desenvolvimento de um dispositivo analítico que respondesse a uma relação de

consistência entre teoria, método e objeto. A insuficiência da automatização naquele

momento ilumina a novidade da teoria que precede, neste caso, o desenvolvimento da

tecnologia. É um momento de fundação. São precisos deslocamentos, que virão a se dar,

para que se compreenda a direção que o autor aponta, para o que é e para o que poderá

vir a ser a análise de discurso que ele funda. Como no próprio dizer de Pêcheux, o idiota

olha o dedo quando se aponta a lua. E por que não? Com esta obra - pela forma que

estabelece a relação da análise com a teoria –, Pêcheux propõe e, ao mesmo tempo,

interroga o processo de automatização para a ciência, na conjuntura teórico-analítica de

então. Resta afirmar que a análise da relação da linguagem com a exterioridade, com a

ideologia, mexe em permanência com a questão da modelização, ou da escrita na

ciência. Este livro, lido em sua íntegra, nos propicia tocar as bases desse movimento.

Para terminar, pondo mais uma vez esta obra em perspectiva, trago a referência a

uma tese concluída e defendida há alguns meses. É o da Mariana Garcia de Castro

Alves orientada pela Cristiane Dias. Tese.

Vou apresentar o trabalho desta tese lendo o último parágrafo. “Finalmente,


como lugar de constituição de uma teoria orlandiana, o Fundo Michel Pêcheux em sua
equivocidade poderia ser considerado um lugar de “ressignificações” (MACHADO,
2006), “deslocamentos” e “transformações” (ORLANDI, 2019, p. 87). Pela análise
elaborada, esse arquivo constitui-se antes como um cortejo que estampa a história, a
ideologia. Assim, diríamos tratar-se de um lugar de “des-transformações”, para usar
termo destacado por Orlandi (2004, p. 33). Des-transformações a explicitar a
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contradição e a provisoriedade do arquivo; a apontar na história da AD a não


descontinuidade da questão da relação entre sujeito e máquina na disputa pelo
imaginário; a afirmar a não-cumulatividade de uma disciplina não submetida à
instrumentalização da razão e a asseverar a prevalência do mesmo para o surgimento do
sentido outro, a longo termo, em uma narratividade não descolada de suas condições de
existência”.

“Não só pelas suas ferramentas de busca, que foram de fato úteis na


apreensão do corpus, mas pelo desenho de duas formações discursivas relativamente
bem distintas, a compreensão da opacidade da máquina pela observação das
semelhanças de nós opostos leva-nos a pensar que a textometria colaborou com a
explicitações de contradições para a produção de um conhecimento sobre a história da
AD, embora não tenha sido única nem determinante para a constituição das conclusões
expostas. Assim, em análises sobre as relações estabelecidas entre alguns nós das
margens, encontramos contradições constituindo a formação discursiva dos autores
(Pêcheux ao colocar o desenvolvimento tecnológico em segundo plano em 1975, por
exemplo) e entre si (Orlandi ao ultrapassar Pêcheux e Althusser apoiando-se na ideia
althusseriana de interpelação, por exemplo). Pelas contradições que fazem sentido –
sentidos esses instáveis, sempre em deslocamento, porque constituídos pela ideologia –
compreendemos não só a porosidade das fronteiras, mas a contradição que as determina.
A movimentação da teoria em seus impasses, questionamentos, apagamentos e
heterogeneidades teve, assim, a oportunidade de ser explorada com auxílio da
textometria, sob a condição de não se limitar a ela, de atravessá-la. Ao encontrar
contradições, mostramos que a máquina não reflete um resultado unívoco do arquivo, na
medida em que nem ela nem o arquivo são transparentes.”

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