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TODOROV, Tzvetan.

As estruturas narrativas [tradução Leyla


Perrone-Moisés]. São Paulo: Perspectiva, 2006. Coleção Debates.

APRESENTAÇÃO

A utilização da análise estrutural vem-se difundindo cada


vez mais nas ciências humanas. Nos estudos literários, esse méto-
do tem conhecido alguns percalços. Tendo despontado nos traba-
lhos dos formalistas russos, por volta de 1920, não conheceu po-
rém a mesma evolução do estruturalismo lingüístico. Enquanto os
lingüistas continuaram a desenvolver e a precisar o método estru-
tural promovendo a lingüística a ciência-piloto entre as demais
ciências humanas, os trabalhos pioneiros dos formalistas caíram,
por certo tempo, em relativo esquecimento.

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Somente uns trinta anos mais tarde esses trabalhos tiveram
eco e continuação no Ocidente. O encontro de dois grandes pen-
sadores, Roman Jakobson e Lévi-Strauss teve como resultado a
eclosão do estruturalismo francês. A análise por ambos empreen-
dida, em 1962, do poema Les Chats de Baudelaire, deslocou para
a França o centro das pesquisas estruturais em literatura. A partir
de então, um grupo cada vez mais numeroso de críticos franceses
vem trabalhando nesse sentido. Entre eles, destaca-se o nome de
Roland Barthes, cujo livro Critique et Vérité marcou o ponto
culminante da polêmica entre a crítica tradicional e a “nouvelle
critique”. O que caracteriza o trabalho do grupo estruturalista
francês é a abertura e a receptividade para o que se tem feito no
mesmo sentido em outros países, a assimilação e reelaboração de
idéias vindas do Leste (formalismo russo, Círculo Lingüístico do
Praga) como do Oeste (pesquisas semióticas norte-americanas,
“new criticism”, lingüística transformacional).
O método estruturalista tem sofrido inúmeras contestações.
A primeira objeção que a ele se fez, e a mais comum ainda agora,
é a que diz respeito ao “formalismo”. Ora, embora o grupo russo
ficasse conhecido como “formalista” e suas análises procedessem
do exterior para o interior da obra — em termos saussurianos, do
significante para o significado — seus componentes jamais admi-
tiram a separação de forma e conteúdo. Forma e conteúdo são in-
separáveis. Onde está o conteúdo senão na forma? Será possível
uma forma verbal sem conteúdo? A única separação que se pode
fazer é operacional. E não se trata então de uma separação entre
forma e conteúdo, mas de uma distinção metodológica entre “ma-
terial” e “procedimento”.
Outra acusação freqüentemente feita contra o estruturalismo
é a de “imobilismo”. À semelhança do que se faz nas outras áreas,
o estruturalista literário procura extrair da obra particular as estru-
turas gerais de um gênero, de um movimento ou de uma literatura
nacional; visa, portanto, ao estabelecimento de modelos. Ora, o
conceito de modelo, fundamental para o estruturalismo, tem sido
atacado como um conceito a-histórico, imobilista. Entretanto, de-
vemos precisar que não é ao modelo em si que visa a análise es-
trutural. O modelo, assim como as distinções acima citadas, é

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uma abstração com fins aplicativos. Procura-se, por exemplo, es-
tabelecer o protótipo de determinado tipo de narrativa não para
alcançar este protótipo ele mesmo, mas para aplicá-lo a obras par-
ticulares. Cria-se pois um movimento circular: das obras particu-
lares extrai-se o modelo, que será em seguida aplicado a obras
particulares. Realizando esse circuito, elucidam-se a natureza e as
características do fenômeno literário.
Aquilo que fica para fora do molde é o específico, o origi-
nal, o elemento gerador de transformações ulteriores. Cada grande
obra literária supera o modelo anterior de seu gênero e estabelece
outro, à luz do qual serão examinadas as obras seguintes; e assim
por diante. O modelo, portanto, nunca é definitivo. Os “modelos”
da ciência também têm variado através dos tempos, sem que isso
tenha impedido seu avanço (muito pelo contrário). O modelo ide-
al é aquele que tenha algumas traves mestras, mas ofereça ao
mesmo tempo certa flexibilidade, para poder variar no momento
da aplicação e ser capaz de revelar tanto o repetido quanto o novo.
Outra crítica dirigida ao estruturalismo literário diz respeito
à sua pretensão de lançar as bases de uma ciência da literatura.
Poderá a análise literária atingir a objetividade e o rigor de uma
verdadeira ciência? O que não pode ser negado é que a análise es-
trutural possibilita uma objetividade e um rigor muito maiores do
que os que se podiam atingir com os métodos empíricos da crítica
tradicional. Partindo da forma e do arranjo dos signos, para avan-
çar pouco a pouco em direção de sua significação, começando da
descrição dos fenômenos para empreender em seguida sua inter-
pretação (assim como, na lingüística moderna, avança-se da foné-
tica em direção à semântica), os resultados a que chega a análise
estrutural, embora de início menos espetaculares, oferecem uma
segurança e uma precisão raramente alcançadas em crítica literá-
ria. Ao atingir o plano da significação, o crítico já terá desvenda-
do uma série de estruturas formais em que se apoiarão suas inter-
pretações, evitando que elas se diluam no impressionismo e no
subjetivismo.
Estes são alguns dos problemas que tem atraído a atenção de
Tzvetan Todorov. Todorov representa um elo vivo entre o forma-
lismo russo e o estruturalismo francês. Nascido na Bulgária em

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1939, teve uma formação lingüística e literária aberta para as
idéias eslavas. Radicando-se na França em 1964, a primeira tarefa
que empreendeu foi a tradução dos textos fundamentais dos for-
malistas russos para o francês: Théorie de la littérature. Textes
des formalistes russes (Seuil, 1965). Sendo esses textos até então
raros ou inacessíveis, por permanecerem numa língua pouco co-
nhecida no Ocidente, a tradução de Todorov preenchia uma lacu-
na e abria caminhos novos para os estudos literários franceses.
Mas Todorov não se contentou com a divulgação das idéias
formalistas. O grupo russo se dissolvera em 1930, sem ter chega-
do a elaborar uma teoria coerente e comum. Muitos de seus estu-
dos permaneceram em estágio embrionário ou não chegaram a
desfazer suas contradições. Além disso, nas últimas décadas, a
lingüística conheceu enorme desenvolvimento e chegou a resulta-
dos que os estudos literários não podem ignorar, principalmente
se se levar em conta que os dois tipos de estudo tem por objeto os
signos verbais. O que pretende Todorov é levar adiante certas re-
flexões formalistas e atualizá-las à luz da lingüística contemporâ-
nea.
O interesse desse trabalho é duplo. Por um lado, o estudo
dos signos literários pode constituir uma contribuição aos estudos
lingüísticos, pelas diferenças que pode estabelecer entre o “dis-
curso” e a “língua”, o “discurso particular” e o “discurso corren-
te”. Por outro lado, essa pesquisa constitui um passo importante
em direção à semiologia, a ciência geral dos signos.
A atenção de Todorov, ao contrário da do mestre Jakobson,
volta-se para a narrativa mais do que para a poesia. Todorov pre-
tende colaborar para o fundamento de uma gramática da narrativa,
gramática não no sentido normativo, mas no sentido do conheci-
mento e classificação das estruturas narrativas. Descobrir as estru-
turas que existem subjacentes a toda narrativa, estabelecer um re-
pertório de intrigas, de funções, de visões, eis alguns de seus obje-
tivos, na esteira de Propp, Chklóvski, Eichenbaum.
Em busca dessas estruturas gerais, Todorov dedicou-se à
análise de obras particulares. Seu livro Littérature et signification
(Larousse, 1967) é o resultado da análise estrutural de Les liai-
sons dangereuses de Laclos, apresentada como tese universitária

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sob a direção de Barthes. Um objetivo mais vasto foi por ele per-
seguido no estudo Poétique, incluído no volume Qu’est-ce que le
structuralisme? (Seuil, 1968): “Enquanto a lingüística é a ciência
da língua, a poética pretende tornar-se a ciência do discurso”; “o
objeto da poética é a literaridade; seu método, as leis que gover-
nam o próprio discurso”.
O desígnio de Todorov é portanto ambicioso, mas ele o per-
segue com extrema modéstia. No prefácio a esta coletânea, ver-
se-á que ele qualifica sua tarefa corno um trabalho de “esclareci-
mento”, mais próximo da técnica do que da ciência. Enquanto ou-
tros se lançam à mesma empresa inebriando-se com uma termino-
logia desnecessariamente rebuscada, cultivando os paradoxos e os
mots d’esprit, Todorov parece imune ao micróbio do esnobismo;
prossegue passo a passo, mas de modo coerente, em direção a ob-
jetivos precisos. Por isso mesmo, dentre os que procuram elaborar
um método para a análise estrutural da narrativa, seus estudos são
dos mais úteis, pela lógica interna de seu raciocínio e pela clareza
didática da exposição.
A obra que ora vem a público é uma coletânea de trabalhos
nunca antes apresentados em forma de livro, mas publicados em
diferentes revistas européias, algumas de difícil acesso para nós.
A primeira parte trata de questões epistemológicas e metodológi-
cas; a segunda reúne alguns exemplos de aplicação do método es-
trutural à análise da narrativa. Embora escritos em períodos dife-
rentes, no decorrer dos últimos cinco anos, os artigos estão liga-
dos por grande coerência interna. Como ele próprio explica, no
prefácio que se lerá a seguir, seu trabalho gira em torno de algu-
mas constantes, relacionadas com alguns problemas essenciais da
literatura: linguagem e literatura, poética e crítica, semelhança e
diferença, literatura e real.
Não me cabe discutir aqui esses problemas, que constituem
o cerne do presente volume. Mas posso, talvez, avançar algumas
considerações.
A distinção realizada por Todorov entre poética e crítica tem
a importância de definir dois enfoques da obra literária, que em-
bora afins e complementares não são idênticos. Enquanto a poéti-
ca visa à literaridade e se encaminha para a teoria da literatura, a

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crítica visa ao conhecimento da obra particular. Sendo o estrutura-
lismo uma procura do geral no particular, a expressão “crítico es-
truturalista” já é em si uma contradição. Poder-se-á usar um mé-
todo que se quer rigoroso e científico e, ao mesmo tempo, buscar
o particular, o único?
Esse problema se liga intimamente ao da dupla semelhança-
diferença. Talvez esteja aí o ponto crucial das reflexões de Todo-
rov como de todo o estruturalismo. Do ponto de vista filosófico, é
todo o problema do sujeito e do individualismo que aí se coloca.
Do ângulo metodológico, a questão que se põe é a dos modelos, e
da possibilidade de, através deles, apreender a dar conta da origi-
nalidade de cada obra. Ao longo da maioria das paginas que se
seguem, veremos Todorov a braços com essa questão. As obras
que mais se aproximam do modelo são as menores (assim a litera-
tura policial, objeto de um capítulo) enquanto as maiores, por
exemplo, as novelas de Henry James aqui estudadas, escapam
sempre à classificação absoluta.
A utilidade do modelo não pode ser negada. O que é preciso
é evitar que ele se torne obsessivo para quem o usa, e que se pro-
cure encaixar a obra no modelo de qualquer maneira, ou que se
acabe tendo o modelo como critério de julgamento estético, como
acontecia no classicismo. Todorov está bem atento a esses peri-
gos, e embora o problema não esteja resolvido, para ele como pa-
ra todo o estruturalismo, suas reflexões constituem importante
contribuição para a sua solvência.
A questão das relações da literatura com o real leva Todorov
a estudar a narrativa fantástica. Se o mundo da narrativa é o da
ficção, que tem suas regras próprias, diferentes das do mundo re-
al, é de certa forma estranho que se considerem algumas narrati-
vas como “fantásticas”. Fantástica, toda ficção o é em certa medi-
da. É exatamente o estabelecimento dessa medida que atrai a
atenção de Todorov.
Já é tempo de passar a palavra ao Autor. Esta obra será cer-
tamente de grande utilidade para os nossos estudiosos de literatu-
ra, pois constitui em a divulgação, em português, das idéias for-
malistas e estruturalistas, através de um herdeiro das primeiras e
participante das segundas. Não se trata de uma teoria da narrativa,

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mas de um passo importante nessa direção. A análise estrutural,
em literatura, está em seus primórdios. Se por um lado isso acar-
reta certas contradições metodológicas e terminológicas entre os
autores (e por vezes entre “fases” do mesmo autor), oferece, em
compensação, o grande atrativo da descoberta e do debate vivo.

LEYLA PERRONE-MOISÉS

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