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27/02/2023, 11:50 Fundamentos filosóficos e críticos do conceito de fantástico

Fundamentos filosóficos e críticos do


conceito de fantástico
Prof.ª Elaine Zeranze

Descrição

A definição do fantástico e seus desdobramentos histórico-literários.

Propósito

Estudar uma modalidade literária é fundamental para os estudos em Literatura, pois viabiliza o seu
reconhecimento em determinadas categorias e permite, na análise de um texto, visualizar sua construção
dentro de certos paradigmas.

Preparação

Antes de iniciar os seus estudos, pesquise o termo “gêneros literários” no e-dicionário de termos literários.

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Objetivos

Módulo 1

O fantástico: gênero ou modo?


Relacionar o fantástico às ideias de gênero e modo literários.

Módulo 2

O fantástico, o estranho e o maravilhoso


Identificar características de narrativas limítrofes ao fantástico.

Módulo 3

Realismo mágico e real maravilhoso


Reconhecer narrativas classificadas nas modalidades real maravilhoso e realismo mágico.

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Introdução

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Embora muito antiga, e remonte aos clássicos, a teoria dos gêneros literários não encontrou ainda
consenso. Há quem diga que seu conhecimento é fundamental para os estudos literários, como existem
também seus detratores, pregando o fim das classificações em virtude da liberdade literária, defendendo
ora a posição do autor, ora a do texto ou ainda privilegiando a interpretação do leitor.

Sendo a teoria dos gêneros um debate ainda não resolvido, isso se estende a suas modalidades, e o
fantástico não foge a essa regra. Logo, seu enquadramento tem levantado questões acerca de seu
reconhecimento como gênero ou modo literários.

O que segue é um recorte teórico e crítico de alguns estudos que giram em torno do conceito de fantástico
e seus desdobramentos históricos e críticos.

Bons estudos!

1 - O fantástico: gênero ou modo?


Ao final deste módulo, você será capaz de relacionar o fantástico às ideias
de gênero e modo literários.

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O que é o gênero literário?


A classificação de textos é tão antiga quanto a própria literatura. Filósofos e críticos se dedicaram a buscar
uma base comum na estrutura textual que, com o tempo, fez surgir variadas teorias do gênero literário.

De origem latina, a palavra gênero (gĕnus,ĕris) pode significar: classe,


tipo, espécie, geração etc.

Com isso, podemos relacionar o gênero a outros sentidos, como o de geração, e não apenas ao
classificatório. É a partir do sentido de geração que conseguimos entender a historicidade presente nos
textos literários.

Nosso cânone e principal referência do que mais tarde se tornaria a primeira teoria dos gêneros é
Aristóteles (384-322 a.C.) e sua obra intitulada Poética. Nessa obra, ao subdividir a poesia em espécies, o
discípulo de Platão cria categorias que hoje entendemos como a origem dos gêneros literários.

Partindo do conceito de mimesis, a arte de imitar a natureza, de criar a partir da verossimilhança; Aristóteles
diferencia as artes miméticas através dos meios, objetos ou modos de imitar, separando-as em três
categorias básicas:

Dramática Épica Lírica

Anatol Rosenfeld (1985) defende a tese de que pouca coisa se alterou na teoria dos gêneros desde a
Poética. Com base nos gêneros tripartidos aristotélicos, o autor aponta para a existência de um significado
substantivo e um significado adjetivo para essas classificações.

Na significação substantiva, Rosenfeld se pauta na extensão, estrutura e personagens. Para denominar a


significação adjetiva, o crítico aponta para os traços estilísticos das obras literárias. Neste enquadramento,
entrevemos um dos problemas da teoria dos gêneros: o de encontrar traços estilísticos de diversos gêneros
em uma única obra.

Exemplo
Percebemos a possibilidade de, em uma obra épica, encontrar fortes traços líricos entre outras diversas
combinações. “Não há poema lírico que não apresente ao menos traços narrativos ligeiros e dificilmente se

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encontrará uma peça em que não haja alguns momentos épicos e líricos.” (ROSENFELD, 1985, p. 18)

Pensando na evolução histórica da teoria dos gêneros, após Aristóteles, dois momentos foram
significativos para a crítica literária:

Primeiro

Durante a Idade Média, em que apareceram subdivisões em gêneros menores.

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Segundo

Durante o pré-romantismo e o romantismo, com o surgimento do drama burguês e do romance como


estruturas revolucionárias para a teoria literária.

Angélica Soares, em Gêneros Literários (2004), aponta para o movimento pré-romântico alemão o Sturm und
Drang como o instante em que a teoria dos gêneros encontra obstáculos ao tempo que ganha força.

turm und Drang


Sturm und Drang foi um movimento literário alemão no final do século XVIII que exaltava a natureza, os
sentimentos, o individualismo e tentou derrubar o culto racionalista do Iluminismo. Goethe e Schiller
começaram suas carreiras como membros desse movimento.

Exemplo de pintura do movimento Sturm und Drang, de Henry Fuseli.

O Sturm und Drang traz como premissa a ideia de gênio e a defesa da espontaneidade de criação. Com isso,
a tarefa de conciliar teoria dos gêneros e autonomia do escritor tornou-se um embaraço, sendo
prontamente acolhida pelo filósofo Friedrich Schlegel. Sem excluir o gênio criador, Schlegel elabora uma
nova teoria de gêneros baseada na estruturação das obras românticas.

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No final do século XIX, a teoria dos gêneros ficou em vias de extinção com Brunetière que, influenciado
pelas ideias evolucionistas de Darwin, afirmou que o gênero, após nascer e se desenvolver, estaria fadado à
morte. Contudo, é o estatuto de cultura e historicidade que resguarda o gênero da finitude. Nessa direção
também interessa o estudo de Lukács, que expõe a transformação temporal da epopeia em romance,
demonstrando a modificação dos gêneros ao longo da história, como podemos conferir no trecho a seguir:

Epopeia e romance (...) não diferem pelas intenções configuradoras, mas pelos
dados histórico-filosóficos com que se deparam para a configuração. O
romance é a epopeia de uma era para a qual a totalidade extensiva da vida não
é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida
tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade.

(LUKÁCS, 2000, p.55)

No excerto acima, fica evidente a dificuldade de se pensar o gênero na modernidade, visto o caráter
fragmentado da época. Distante da tradição e do mundo compartilhado, as formas modernas dão conta e
refletem o dilaceramento do sujeito.

Para alguns autores, o gênero ou modalidade fantástica germina neste solo. Tzvetan Todorov vai além e faz
o corte temporal limitando o gênero fantástico à expressividade de uma época estranha, e,
consequentemente, exclui autores como Edgar Allan Poe e Kafka. Para Ceserani, esta é uma atitude seletiva
e purista do crítico, que reduz “o campo de ação do fantástico e o identifica somente com um gênero
literário historicamente limitado a alguns textos e escritores do século XIX e prefere falar de “literatura
fantástica do romantismo europeu” (CESERANI, 2006, p. 8)

Afinal, por que estudar os gêneros?


Para Todorov, é totalmente diferente estudar uma obra em si ou sob uma perspectiva estrutural. E, partindo
desse ponto de vista, apresenta algumas questões polêmicas levantadas por filósofos e críticos literários
que problematizaram o conceito e a importância de estudar a estrutura dos gêneros literários.

Todorov foi um importante nome do estruturalismo, abordagem inspirada no modelo da linguística


saussuriana, que visa explicar a lógica das repetições de estruturas/conjunto de relações nos fenômenos.

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Linguística saussuriana
Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um linguista suíço, considerado o pai da linguística moderna.

Deste modo, pensar o gênero literário pela lógica estruturalista significa buscar
algo de comum entre os fenômenos da linguagem literária que possa sugerir uma
regra.

Mas existiria um nível de generalidade a limitar os tipos de gêneros? Para Todorov, há diferentes níveis de
generalidade e seu conteúdo dependerá da perspectiva adotada. (TODOROV, 2017, p.9)

Uma das oposições à teoria dos gêneros se direciona justamente ao que esta procura de universal nas
obras. Em defesa da particularidade, do valor aplicado à originalidade, critica teorias que se voltam para que
há de ordinário nelas. Esse discurso marca uma posição de defesa da singularidade, na qual cada obra
literária deva ser estudada como tal.

Contudo, em As estruturas narrativas (2006), Todorov diz que o estabelecimento de modelos se dá com fins
aplicativos, e além de elucidar a natureza e as características do fenômeno literário, serve, inclusive, para
verificar o que há de específico, afinal, tudo o que não está no molde é o que há de original em determinada
obra particular.

Comentário
Todorov defende as estruturas e categorias literárias da crítica de engessamento, ao lembrar da flexibilidade
destas frente às mudanças inevitáveis. Para ele, “o modelo ideal é aquele que tenha algumas traves
mestras, mas ofereça ao mesmo tempo certa flexibilidade, para poder variar no momento da aplicação e ser
capaz de revelar tanto o repetido quanto o novo.” (TODOROV, 2006, p. 10)

Benedetto Croce, em Estética como Ciência da Expressão e Linguística Geral (1969), refletindo um
pensamento de base liberalista, rejeitava com veemência a noção de gênero justamente por seu caráter
generalista. Criticava o fato de o leitor/crítico preocupar-se com a estrutura em detrimento de seu objetivo
maior, o sentido impresso no texto. Entretanto, ignorar o que há de modelar seria ignorar a própria
linguagem, dirá Todorov.

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O individual não pode existir na linguagem, e nossa formulação de caráter


específico de um texto torna-se automaticamente a descrição de um gênero
(...). o exemplo nos é fornecido sem cessar pela teoria literária, já que os
epígonos imitam precisamente o que havia de específico no iniciador.

(TODOROV, 2017, p. 11)

Georg Lukács, importante crítico literário, sai em defesa da forma literária, afirmando que ali situa-se o
verdadeiramente social. “Toda a forma é a resolução de uma dissonância fundamental da existência, um
mundo onde o contrassenso parece reconduzido a seu lugar correto, como portador, como condição
necessária do sentido” (LUKÁCS, 2000, p. 61)

Por tudo isso, é possível concluir que, para a teoria dos gêneros, é de grande importância estudar a obra
levando em conta sua historicidade como parte portadora de sentido, uma vez que é, ao mesmo tempo,
modelada e produtora da realidade na qual se inscreve.

O fantástico como gênero literário


Todorov, embora não tenha sido o primeiro a delimitar o fantástico como gênero literário, tornou-se
referência no tema por conta do célebre ensaio intitulado A narrativa fantástica (2006), texto que serviu de
base para críticos a favor e avessos a esta classificação.

Por muito tempo, o fantástico foi deixado de lado pelos estudos literários e sua conceitualização limitada e
dissonante, promovendo muitos equívocos e debates nessa seara, perpetuados ainda hoje.

Sentindo a necessidade de produzir um estudo mais aprofundado, e que respondesse às questões


levantadas acerca do fantástico, Todorov se viu impelido a realizar uma obra voltada a essa temática.
Publicada em 1970, Introdução à Literatura Fantástica propõe soluções aos problemas que estavam postos.
Nela, o fantástico recebe o estatuto de gênero e uma definição.

Devido à sua base estruturalista, para dar conta de tudo aquilo que extrapola o fantástico, gêneros vizinhos,
o estranho e o maravilhoso, foram concebidos.

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Introdução à Literatura Fantástica (1970)

No ensaio A narrativa fantástica, Todorov apresenta um elemento que se torna fundamental em toda sua
conceitualização, a hesitação.

Comentário
Para o autor, o fantástico perdura somente no tempo da incerteza. Esta hesitação se trata de uma
ambiguidade narrativa diante de situações regidas por leis desconhecidas da nossa realidade. Optando o
herói ou o leitor por uma explicação natural ou sobrenatural, ou seja, desfazendo a dúvida, sai-se do campo
do fantástico.

Hesitar no fantástico é estar na organização natural, sem a expectativa de acontecimentos insólitos, e ser
surpreendido por situações que coloquem tanto personagem quanto leitor diante do inexplicável. Ali, o leitor
e o herói hesitam em aceitar ou negar o que veem. Esta incerteza é a condição primordial para instituir o
gênero. Veja o exemplo dado por Todorov:

Alvare, a personagem principal do livro de Cazotte O Diabo Apaixonado, vive há


meses com um ser, do sexo feminino, que ele acredita ser um mau espírito: o
diabo ou um de seus subordinados. O modo como apareceu esse ser indica
claramente que se trata de um representante do outro mundo; mas seu
comportamento especificamente humano (e mais ainda feminino), os
ferimentos reais que recebe, parecem provar, ao contrário, que se trata
simplesmente de uma mulher, e de uma mulher que ama. Quando Alvare lhe
pergunta de onde ele vem, Biondetta responde: “Sou Sílfide de origem e uma
das mais consideráveis dentre elas...” E no entanto, existem as Sílfides? “Eu
não concebia nada do que ouvia, continua Alvare. Mas que havia de concebível
em minha aventura? Tudo isso me parece um sonho, dizia a mim mesmo; mas
será́ outra coisa a vida humana? Eu sonho de modo mais extraordinário do que
os outros, eis tudo... Onde está o possível? Onde está o impossível?
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(TODOROV, 2006, p. 145-146)

Para além da hesitação, Todorov determina mais três condições para o estabelecimento do fantástico:

Primeira condição expand_more

A primeira condição é a avaliação dos acontecimentos pelo leitor através de seu mundo para decidir
se tal fenômeno é natural ou sobrenatural.

Segunda condição expand_more

A segunda, Todorov nomeou de jogo de espelhos, no qual a hesitação acontece por uma projeção do
leitor, ou seja, a incerteza do leitor se torna também a do personagem.

Terceira condição expand_more

Na terceira, o leitor deve rechaçar tanto a explicação do insólito por uma elucidação natural, como o
advento de um sonho, por exemplo, quanto à sua absorção, o que deslizaria para o maravilhoso, ou
seja, “tanto a interpretação alegórica como a interpretação poética” (TODOROV, 2006, p. 39) devem
ser recusadas.

Ainda que o crítico coloque a segunda condição como expletiva, a primeira e a terceira são fundamentais
para o estabelecimento de fantástico.

Já encerrando o ensaio, Todorov se questiona: por que o fantástico?

Responde apontando para três funções:

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A social
looks_two
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A literária do sobrenatural
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A função do próprio fantástico.
Segundo Cailois (apud CESERANI, 2006), “o fantástico é, assim, ruptura da ordem reconhecida, irrupção do
inadmissível dentro da inalterável legalidade cotidiana, e não substituição total de um universo real por um
exclusivamente fantasioso.” (CAILOIS apud CESERANI, 2006, p. 47)

Tanto a função social quanto a literária do sobrenatural servem para barrar uma censura. Na primeira,
rompe-se com as leis institucionalizadas e particulares dos autores, ou seja, pelo sobrenatural é possível
driblar a censura de temas proibidos, como o incesto, a necrofilia, a sensualidade excessiva, nos diz
Todorov.

O fantástico é um meio de combate contra uma e outra censura: os


desencadeamentos sexuais serão mais bem aceitos por qualquer espécie de
censura se pudermos atribuí-lo ao diabo.

(TODOROV, 2006, p. 160)

Como função literária, a transgressão ocorre no seio da própria narrativa, para isso o maravilhoso precisa:
“trazer uma modificação da situação precedente, romper o equilíbrio (ou o desequilíbrio).” (TODOROV, 2006,
p. 160)

Por fim, Todorov faz uma breve discussão sobre a função do próprio fantástico, que está presa à reação
provocada por ele.

Atenção!
Também como transgressão, funciona como reação à consciência positivista da época, é afinal uma
transgressão da linguagem pela própria linguagem, pois explica o que o cientificismo não dá conta, o
subjetivo.

Neste ponto, vemos a clara influência do estruturalismo, que confere ao significante a autonomia que as
coisas perderam.

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O fantástico como modo literário


A análise de Todorov que concebe o fantástico como gênero, embora limitada a algumas obras de uma
época específica, tornou-se referência para pensar, inclusive, o que foi feito posteriormente, ainda que tal
entendimento não se limite ao de gênero literário.

Contrária à definição de Todorov, a francesa Irène Bessière escreve o ensaio O relato fantástico: forma mista
de caso e adivinha (1974). Nele, questiona o fato de Todorov ter reduzido o fantástico a um traço não
específico, ao da hesitação. Para ela, o fantástico não está inserido em uma categoria ou gênero, “mas
supõe uma lógica narrativa que é tanto formal quanto temática e que, surpreendente ou arbitrária para o
leitor, reflete, sob o jogo aparente da invenção pura, as metamorfoses culturais da razão e do imaginário
coletivo.” (BESSIÈRE, 2012, p. 2)

Para Bessière, o fantástico é um dos métodos da imaginação, e está diretamente ligado à:

Mitografia Religiosidade Psicologia (normal e


patológica)

Não sendo idealizado como resultado, mas como a própria causa, em um jogo entre a realidade e
desrealização. O seu domínio do que é natural ou não, é determinado culturalmente.

Diferente de Todorov que defendia a tese do fantástico ser datado e localizado, para Bessière, ele vai estar
presente em diferentes épocas e culturas e refletirá esses marcos. Logo, a modalidade fantástica
“pressupõe uma percepção essencialmente relativa das convicções e das ideologias do tempo, postas em
obra pelo autor.” (BESSIÈRE, 2012, p. 3)

Diante de uma realidade problemática, o fantástico não se resume ao oposto do mundo natural, pois tudo o
que é exibido provém deste mundo. Portanto, não é a inverossimilhança que o define, e sim, as
contraditórias verossimilhanças.

(...) o fantástico instaura a desrazão na medida em que ultrapassa a


ordem e a desordem e que o homem percebe a natureza e a
sobrenatureza como marcas de uma racionalidade formal.
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(BESSIÈRE, 2012, p. 4)

Outro ponto em que Bessière se mostra contrária a Todorov é no que diz respeito à resolução do fantástico.
Para Todorov, o fantástico se desfaz no momento em que se decide pela via do natural ou do sobrenatural,
pois ele só dura o tempo da dúvida. Já a autora francesa, tomando como exemplo uma ficção de Jorge Luis
Borges (1899-1986), fala de uma impossibilidade de solução, ou ainda, da existência de todas as soluções.

Atenção!
De forma resumida, o que Bessière critica é a limitação provocada pela definição do fantástico como
gênero, sustentando que, abraçado pelo modo, o fantástico abarca uma maior diversidade de obras cujo
principal objetivo é promover a incerteza.

Ceserani, em O fantástico (2006), faz referência ao ensaio de Bessière, dizendo que sua análise é
fortemente influenciada pela definição de Jolles a respeito do fantástico, concebendo esta modalidade
narrativa como “contra-forma” ou, de forma mais precisa, como “modo”.

Para Ceserani, esse modo literário serve a uma “contingência histórica,


para alargar as áreas da “realidade” humana. (CESERANI, 2006, p. 67)

Para além da contingência histórica, Remo Ceserani promove um estudo em que sistematiza o relato
fantástico a partir do que nomeou “Procedimentos formais e sistemas temáticos do fantástico”. Os
procedimentos formais seriam de ordem narrativa e retórica, e alguns exemplos são:

Foco narrativo em primeira pessoa.

Inclusão do leitor: surpresa, terror.

Figuratividade.

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Quanto aos sistemas temáticos, Ceserani exemplifica com os temas mórbidos, de amores improváveis e do
vazio.

Em 1937, três amigos, Borges, Bioy Casares e Ocampo discutem os melhores e mais importantes textos de
literatura fantástica da história, e desta conversa, três anos mais tarde, sai a primeira publicação de
Antologia da Literatura Fantástica (1940). No prólogo, Bioy Casares afirma que, como gênero, a literatura
fantástica, com regras bem definidas, teria surgido no século XIX e na língua inglesa. Contudo, não acredita
existir somente um tipo de conto fantástico, mas vários, logo para dar conta de um estilo ficcional que, nas
suas palavras, é anterior às letras, é preciso averiguar as regras gerais como também as especiais para
cada um.

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O fantástico: gênero ou modo?
No vídeo, a especialista discutirá o conceito de fantástico a partir de duas perspectivas teórico-literárias:
gênero e modo.

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Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?


Questão 1

Todorov tornou-se referência para os estudos do gênero fantástico. Esse fato se deu pela publicação
do célebre ensaio A narrativa fantástica, e depois pela obra Introdução à literatura fantástica. Para o
crítico búlgaro, há um elemento crucial para que a narrativa fantástica se estabeleça. Marque qual das
alternativas representa esse elemento:

A Temáticas fúnebres.

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B Ser hermético.

C Amor romântico.

D Hesitação.

E Narrador onisciente.

Parabéns! A alternativa D está correta.

Para Todorov, a hesitação, ou seja, a incerteza diante de acontecimentos insólitos, é o elemento


principal que marca a narrativa fantástica. Para o autor, o fantástico perdura somente enquanto perdura
a incerteza. A partir do momento em que a dúvida é desfeita, sai-se do campo do fantástico.

Questão 2

O fantástico como gênero foi questionado por diversos autores. Pode-se dizer que um dos principais
ataques à teoria de Todorov se deu por conta

A da inclusão do fantástico na teoria dos gêneros aristotélicos.

B da limitação temporal e de algumas obras específicas do século XX.

C da limitação temporal e de algumas obras específicas dos séculos XVIII e XIX.

D da limitação às narrativas de língua francesa.

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E da limitação aos contos russos.

Parabéns! A alternativa C está correta.

Segundo alguns críticos a Todorov, a limitação do fantástico a algumas obras europeias, e devido ao
corte histórico, dos séculos XVIII e XIX, fez com que expressivos autores da modalidade fantástica
ficassem de fora, tais como Edgar Allan Poe e Franz Kafka.

2 - O fantástico, o estranho e o maravilhoso


Ao final deste módulo, você será capaz de identificar características de
narrativas limítrofes ao fantástico.

O fantástico, um gênero sempre evanescente


Como discutido anteriormente, Todorov define o fantástico pela hesitação. Tanto personagem quanto leitor
precisam duvidar dos acontecimentos insólitos que conturbam a ordem narrativa, estabelecida por uma
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realidade conhecida.

O fantástico ocorre nesta incerteza (...) é a hesitação experimentada


por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento
aparentemente sobrenatural.
(TODOROV, 2017, p. 30-31)

Afinal, qual a necessidade literária de promover esse desconforto?

Para entender a razão da inserção de eventos perturbadores é preciso compreender o contexto histórico do
qual emerge o fantástico.

Para o crítico búlgaro, o aparecimento de narrativas com conteúdo sobrenatural, que traz como temas o
grotesco, o sombrio, tabus e interdições, é o positivismo. Quando a ciência derruba os ícones e resta
apenas a realidade, o resultado é o desamparo.

O indivíduo burguês se vê submerso numa realidade e subjetividade nascidas a fórceps e a sua linguagem,
arbitrária, concreta, científica e empírica não preenche o vazio transcendente. A representação literária da
realidade não se mostra suficiente para dar conta das angústias do sujeito burguês europeu.

Para Todorov, não é coincidência que neste cenário surjam as narrativas fantásticas, pois é este o gênero
que desponta da necessidade de tapar um buraco deixado pela morte do mundo transcendental provocado
pelo mundo moderno.

Comentário
Todorov, contudo, atenta para um detalhe importante, o de não pensar o fantástico como simples oposição
ao naturalismo, ou seja, à representação fiel da realidade. Ele reside, na verdade, na ambiguidade fantástica,
onde, através do recurso linguístico, a hesitação ocorre dentro do sentido.

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Para ilustrar, Todorov nos serve com o exemplo de Aurélia de Nerval, que, para ele, teria como tema principal
a linguagem. Observe as seguintes passagens:

Parecia-me que entrava numa moradia conhecida... Uma velha criada que eu
chamava de Marguerite e que me parecia conhecer desde a infância me
disse... E eu tinha a impressão de que a alma de meu antepassado estava
naquele pássaro... Acreditei cair num abismo que atravessava o globo. Sentia-
me levado sem sofrimento por uma correnteza de metal fundido... Tive a
sensação de que essas correntezas eram compostas de almas vivas, em
estado molecular... Tornava-se claro para mim que os antepassados tomavam
a forma de certos animais para nos visitar na terra...

(NERVAL apud TODOROV, 2017, p. 44 grifos do autor)

Pelos grifos, podemos notar de que modo o autor trabalha a linguagem a fim de criar uma atmosfera de
ambiguidade. O uso das locuções e do tempo imperfeito mantém a narrativa em dois mundos e a sua
retirada nos jogaria para o mundo do maravilhoso, como veremos adiante

Outro mecanismo efetivo é o de manter a própria loucura à prova, como nos mostra o exemplo a seguir:

As narrativas daqueles que me tinham visto assim me causavam uma espécie


de irritação quando eu via que se atribuíam à aberração do espírito os
movimentos ou as palavras coincidentes com as diversas fases daquilo que
constituía para mim uma série de acontecimentos lógicos.

(NERVAL apud TODOROV, 2017, p. 45)

Ora, se na remoção das locuções entramos em terreno maravilhoso, ao aceitarmos a tese da loucura,
entraremos, pois, no gênero estranho. Daí a sutileza e habilidade do autor ao trabalhar a linguagem a serviço
de manter leitor e personagem na ambiguidade, sustentando assim a hesitação, portanto, dentro do que
Todorov nomeou como gênero fantástico puro.

A partir dos exemplos acima, vimos, então, que há um limite para o gênero fantástico, e extrapolá-los seria
adentrar em gêneros vizinhos.

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Atenção!
Optar pela absorção do sobrenatural na verdade narrativa ou pela explicação realista que desfaça o
acontecimento insólito, seria sair do fantástico e entrar nos gêneros maravilhoso e estranho
respectivamente. “‘Cheguei quase a acreditar’: eis a fórmula que resume o fantástico. A fé absoluta como a
incredulidade total nos leva para fora do fantástico; é a hesitação que lhe dá vida.” (TODOROV, 2017, p. 36)

Para ilustrar de que modo se estabelecem os limites do fantástico, segue o seguinte diagrama:

Para Todorov, o fantástico pode desvanecer a qualquer instante, logo é um gênero evanescente. O autor o
compara ao tempo presente, que se situa no limiar entre passado e futuro, um “puro limite”.

“A comparação não é gratuita: o maravilhoso corresponde a um fenômeno desconhecido, jamais visto, por
vir: logo a um futuro; no estranho, em compensação, o inexplicável é reduzido a fatos conhecidos, a uma
experiência prévia, e daí ao passado. Quanto ao fantástico mesmo, a hesitação que o caracteriza não pode,
evidentemente, situar-se senão no presente.” (TODOROV, 2017, p. 48-49, grifo nosso)

O estranho
Filipe Furtado formulou o termo metaempírico que, a princípio, tem-se como sinônimo de sobrenatural,
elemento comumente associado ao fantástico. Entretanto, o termo se pretendia muito mais abrangente, na
medida em que personagens e ocorrências não necessariamente associados ao sobrenatural seriam
abarcados pelo conceito, desde que se revelassem alheios ao mundo empírico, ou ainda sem efetiva
realização. O vocábulo, assim, adequa-se a designar figuras, ideias, objetos, cenários ou ações passíveis de
emergir tanto do fantástico, quanto de gêneros vizinhos. Nas palavras de Furtado:

A narrativa fantástica encena a manifestação metaempírica conferindo-lhe um


grau de verossimilhança tão elevado quanto possível, enquanto deixa a porta

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entreaberta para uma explicação racional que quase conduza à sua


reintegração na natureza conhecida.

(FURTADO, 1980, p. 117)

Dentro da acepção todoroviana, o fantástico permanece apenas na fração de tempo da hesitação. Diante de
um acontecimento insólito, leitor e personagem precisam decidir se aquilo que percebem se deve ou não à
“realidade”, tal como ela existe para a opinião comum. Há, portanto, dois caminhos a seguir:

Maravilhoso

Se abraçarmos a manifestação meta-empírica, entramos no gênero maravilho.


close

Estranho

Caso sejamos conduzidos pela lógica narrativa a uma explicação natural, entramos, pois, no campo do
gênero estranho.

Façamos um breve parêntese para compreender de que forma a escolha do foco narrativo viabiliza a
construção de um clima que favoreça a manifestação fantástica.

Analisando a função do narrador na composição da narrativa fantástica, Filipe Furtado aponta para uma
figura em geral homodiegética. Ou seja, o narrador faz parte da história, ou altera o curso da história em
certa medida, sendo um personagem secundário (testemunha). Isso se deve ao ônus advindo da escolha
pelo protagonismo do narrador, porque ao optar por uma saída racional, o resultado da derrota para o
sobrenatural é quase sempre a sua morte, loucura ou uma metamorfose monstruosa. Daí a preponderância
do narrador como testemunha, que se resume a testemunhar e a contar os acontecimentos insólitos
atravessados pelo protagonista. (FURTADO, 1980, p. 111)

O fantástico-estranho, gênero limítrofe e transitório, possui, até o momento de seu estabelecimento,


diretrizes muito sensíveis, pois precisam até este instante caminhar em solo incerto, qualquer elemento a
mais poderá romper com a ambiguidade e colocar o gênero em risco.

Daí a importância da construção meticulosa do sujeito da enunciação na diegese,


afinal este terá papel decisivo para instaurar a ambiguidade na presença do

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sobrenatural. E, assim como um narrador protagonista coloca em dúvida a


veracidade do que está sendo narrado, um narrador onisciente rompe com a
instabilidade devido à sua “proximidade” ao evento insólito.

Logo, o fantástico-estranho se organiza enquanto a narrativa recebe eventos inexplicáveis, e a dúvida é


sustentada entre duas orientações, até chegar ao momento de sua resolução, que deverá apresentar um
esclarecimento natural.

Exemplo
Todorov dá como exemplo a obra de Cazotte, O diabo apaixonado (1772), em que, os sonhos de Alphonse
são justificados pelo uso de entorpecentes. Logo, seja pelo uso de drogas, insanidade ou ainda por um
simples sonho, o fantástico é desfeito pela racionalidade.

Contudo, Todorov revela ainda a existência de um estranho puro. Nele, os acontecimentos são todos
passíveis de explicação racional, entretanto, não deixam de ser extraordinários e impressionantes. A novela
A queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe, é um grande exemplo. Nela, o insólito é promovido por uma
série de coincidências que bem poderiam tomar o rumo do sobrenatural. Contudo, o narrador de Poe
intervém, revelando o que ali acontecera, como podemos ler no fragmento a seguir. O comentário é feito no
instante em que a casa assombrosamente desaba:

Talvez o olhar escrutinador de um observador pudesse descobrir uma


rachadura quase imperceptível, que se estendia do telhado do prédio pela
frente, descendo em zigue-zague pela parede, até se perder nas águas turvas
do lago.

(POE, 2011, n.p.)

A novela de Poe, contudo, é classificada por Todorov como estranho puro. Para o gênero estranho, não foi
estabelecida pelo crítico uma delimitação temporal, a não ser no caso de obras ligadas ao fantástico, como
no exemplo de O diabo apaixonado. De resto, elas se perdem no campo geral da literatura: sua definição se
prende à estrutura narrativa que apresentem os elementos mencionados.

A queda da casa de Usher, logo, é definida como tal por conta da sucessão de coincidências insólitas
presentes na narrativa, como uma suposta ressureição da irmã e o desmoronamento da casa após a morte
de todos seus habitantes, o que, prontamente, é explicado racionalmente pelo narrador.

Outro elemento gerador de estranheza na novela de Poe, e que o afasta do fantástico, é o que Todorov
nomeou de “experiência dos limites”. Em “A queda da casa de Usher é o comportamento doentio do irmão e
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da irmã que desconcerta o leitor (...) O sentimento de estranheza parte, pois, dos temas evocados, os quais
se ligam a tabus mais ou menos antigos”. (TODOROV, 2017, 54-5) Ora, lembremos aqui do contexto em que
se origina o fantástico, segundo a concepção todoroviana.

Ele surge como gênero de uma época marcada pela estranheza, cujas temáticas apresentam transgressões
de interdições contemporâneas, que funcionavam como uma espécie de catarse permitida. Em Poe, além
do autor evocar temas/tabus antigos, o incômodo se dá pelo excesso e não pelo tema em si.

O maravilhoso
Se em uma ponta do diagrama de Todorov situa-se o estranho, na outra, encontramos o maravilhoso. Na
linha central, podemos ver o fantástico, entre o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso, dois gêneros
limítrofes que são decididos perante a escolha de uma saída racional ou sobrenatural.

A partir da escolha pelo sobrenatural, entramos nas narrativas maravilhosas-fantásticas. Seus


acontecimentos, ao cabo, não são esclarecidos segundo as leis naturais, logo, são aceitos como se
apresentam, e, por isso, advém a necessidade de incorporação de novas leis dentro da narrativa, agora
respondendo a uma lógica metaempírica.

Todavia, no esquema de Todorov, temos também o maravilhoso puro. Neste caso, não há uma delimitação
ou regras que o definam, caracterizando-se, apenas, pelos eventos sobrenaturais que se apresentam
durante a narrativa.

Atenção!
Contudo, há uma premissa: nem leitor ou narrador devem reagir a eles, pois estes são verossímeis dentro
do contexto em que se inserem. São verdades narrativas a presença de seres mágicos, como fadas, a
animais falantes ou um sono de cem anos, como vemos nos contos de Perrault.

Perrault

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Charles Perrault foi um escritor francês do século XVII, autor de grande número de contos de fadas, tais como
A Bela Adormecida e Chapeuzinho Vermelho.

Logo, o que distingue o maravilhoso-fantástico do maravilhoso puro é a surpresa suscitada por eventos
sobrenaturais. Desse modo, resumindo:

Fantástico-maravilhoso

O fantástico-maravilhoso aproxima-se do gênero fantástico por conta da estranheza, ou melhor, da


hesitação, ainda que por fim sua decisão seja abarcar o sobrenatural.

close

Maravilhoso puro

No maravilhoso puro, esse estranhamento está ausente, não há qualquer surpresa mediante a
presença do insólito.

Todorov, entretanto, chama a atenção para a necessidade de separar o maravilhoso puro de outras
narrativas em que o maravilhoso está presente, sob algumas justificativas. Chega, inclusive, a falar de um
maravilhoso imperfeito por conta das explicações que fornece, ainda que também insólitas. São eles:

O maravilhoso hiperbólico expand_more

Neste tipo de narrativa, não são eventos sobrenaturais que evocam o maravilhoso, mas a dimensão
excessiva (hiperbólica) daquilo que nos é natural. Por exemplo, em As mil e uma noites fala-se de
cobras tão grandes e largas, capazes de engolir um elefante.

O maravilhoso exótico expand_more

Neste caso, o sobrenatural não é apresentado como tal, diz Todorov, ele responde às leis de lugares
supostamente desconhecidos para o leitor, logo estas leis não são passíveis de serem postas à
prova. Ainda com o exemplo de As mil e uma noites, nele, Simbad descreve o pássaro de roca, animal

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desconhecido dos manuais de zoologia, uma ave cujas patas são tão grossas quanto o troco de uma
árvore.

O maravilhoso instrumental expand_more

Aqui, Todorov percebe a presença do maravilhoso provocado pelo que chamou de aparecimento de
gadgets, ou seja, engenhocas ou aperfeiçoamentos tecnológicos inexistentes à época, mas
perfeitamente possíveis. É um passo para a narrativa de ficção científica. Uma porta secreta que
abre por comando de voz ou um tapete voador são alguns exemplos desses gadgets que dão um
toque maravilhoso à narrativa.

Maravilhoso científico expand_more

Aperfeiçoamento do maravilhoso instrumental e o que hoje chamamos de Science-fiction, o


maravilhoso nestas obras são compreensíveis à luz das leis que regem estas histórias. Segundo
Todorov, “são narrativas que, a partir de premissas irracionais, os fatos se encadeiam de uma
maneira perfeitamente lógica.” (TODOROV, 2017, p. 63) No século XIX, eram histórias que explicavam
eventos insólitos pelo magnetismo, sendo esse último tão sobrenatural quanto os próprios eventos.

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Fantástico, estranho ou maravilhoso?
No vídeo, a especialista apresenta e discute as diferenças entre fantástico, estranho e maravilhoso, além de
discorrer sobre gêneros limítrofes.

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Falta pouco para atingir seus objetivos.

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Vamos praticar alguns conceitos?


Questão 1

O fantástico, para Todorov, acontece num período histórico marcado por uma corrente filosófica, que
defendia que a única forma de conhecimento verdadeiro é o científico. Essa doutrina era denominada:

A Classicismo

B Parnasianismo

C Idealismo

D Existencialismo

E Positivismo

Parabéns! A alternativa E está correta.

A narrativa fantástica germina em solo positivista, para dar conta do vazio deixado pelo mundo
transcendente e representar as angústias do sujeito moderno cujo discurso racional e científico não
fornecem respostas.

Questão 2

Todorov estrutura um esquema com categorias que vão do maravilhoso ao estranho. No centro, em
uma fina linha, está situado o fantástico. Entretanto, podemos ver ao seu lado, como gêneros vizinhos,
o fantástico-estranho e o fantástico-maravilhoso. Este último diferencia-se do maravilhoso por um
detalhe. De acordo com as alternativas, diga qual elemento é necessário para se definir um texto como
fantástico-maravilhoso.
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A A presença de eventos sobrenaturais.

B A existência de dispositivos com tecnologias ainda inexistentes para a época.

C A presença de hesitação mediante eventos insólitos.

D O exagero de situações ou seres imaginários.

E A presença de seres com poderes sobre-humanos.

Parabéns! A alternativa C está correta.

O fantástico-maravilhoso se diferencia do maravilhoso devido a hesitação advinda de eventos


sobrenaturais, esse estranhamento aproxima o gênero do fantástico, enquanto o maravilhoso tem
esses eventos incorporados a sua narrativa, logo não provocam estranheza do narrador ou do leitor.

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3 - Realismo mágico e real maravilhoso


Ao final deste módulo, você será capaz de reconhecer narrativas
classificadas nas modalidades real maravilhoso e realismo mágico.

O mágico como forma de ser


Segundo, Pietri (1986):

Não era um jogo da imaginação, mas um realismo que refletia fielmente uma
realidade até então invisível, contraditória e rica em peculiaridades e
deformações, que a tornavam inusitada e surpreendente para as categorias da
literatura tradicional.

(PIETRI, 1986, p. 135)

A citação acima é de Arturo Uslar Pietri, autor venezuelano e criador do conceito “realismo mágico”. Tanto o
realismo mágico, de Pietri, quanto o real maravilhoso, de Carpentier, dizem respeito a um mesmo
movimento literário na América Latina. Distanciando-se do realismo clássico, esta escola literária busca
expandir o conceito de mimesis no intuito de abraçar as particularidades do continente americano, que até
então seguia o modelo literário europeu que, para uma realidade tão sui generis, mostrava-se insuficiente.

Comentário
Com base na mistura de povos, de nativos indígenas, colonizadores europeus e escravos africanos, é feita a
matéria da América Latina. Por tudo isso, Santeria, Popol-Vuh, santos cristãos, entre outras manifestações
religiosas e de fé, figuram no cotidiano enredado por uma atmosfera mágica.

anteria
Religião sincrética, na qual se observam influências da religião iorubá, o cristianismo e as religiões dos povos
indígenas das Américas.

Popol Vul
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Traduzido como “livro da comunidade”, é um registro da cultura maia, no qual está presente a concepção de
criação do mundo maia.

“A fé religiosa e as crendices populares que se alternam com a realidade, permitem a convivência entre os
acontecimentos reais e os sobrenaturais do texto, isto é, tornam possível a incorporação do insólito ao
cotidiano, ao banal (...)” (CAMARANI, 2007, p. 30)

O caráter paradoxal é o que mais se destaca nos dois conceitos, em que real e sobrenatural dividem o
mesmo espaço, sem provocar estranheza. Quando pegamos como referência o gênero fantástico, a
hesitação diante do insólito é a sua premissa. Quando pensamos no gênero maravilhoso, ainda que o
sobrenatural seja verossímil dentro da narrativa, percebemos a dicotomia entre natural e sobrenatural fora
dela.

Todavia, nas modalidades real maravilhoso e realismo mágico, a magia é um


aspecto da realidade latino-americana. É justamente na presença do insólito que
desponta o real.

Para compreender a ebulição de obras hispano-americanas, que em meados do século XX exibem um


realismo acompanhado do cotidiano mágico, é preciso entender o contexto em que essas obras emergem.

Até o início do século XX, as obras latino-americanas espelhavam-se nos movimentos literários europeus.
Com realidades tão distantes, esses modelos passaram a se tornar insuficientes, resultando numa cópia da
literatura europeia com ambientação americana.

Alguns autores que, insatisfeitos, questionavam tais modelos, eram:

Astúrias

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Carpentier

Pietri
Eles conversavam sobre a necessidade de se ter uma literatura identitária, cujo norteamento mimético não
estivesse limitado pelo descritivismo da realidade, como se fazia no início do século XIX, ou ainda
dominado pelo realismo empírico do século XX.

Havia um movimento conspirando na direção de uma remodelagem


literária que não excluísse o realismo, mas excedesse seus limites.

Influenciados pelas vanguardas europeias, principalmente pelo movimento surrealista, a expansão do real
se inscreve para absorver especificidades latino-americanas como o ambiente exuberante, a fé, o milagre, a
santeria etc. Contudo, a narrativa mágica americana traz diferenças bem demarcadas das vanguardas no
emprego do insólito.

Dos encontros desses intelectuais, vem a constatação de que modelo algum europeu seria suficiente para
representar a diversidade “inclassificável de uma mestiçagem contraditória”, segundo palavras do próprio
Pietri. Para o venezuelano, do realismo ao modernismo do século XIX, a literatura hispano-americana não
passou de um contorno escondido sob o véu literário europeu que não permitia toda a exuberância mágica
do cotidiano latino-americano se revelar.

A respeito desta nova representação da realidade, Pietri salienta que esta não compreendia um jogo de
imaginação, mas sim o retrato fiel da realidade que até então estivera deixada de lado, e o espanto que
causara se dava em comparação à literatura tradicional. Como bem observou Leyla Perrone-Moisés:

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O real americano só é maravilhoso se o considerarmos do ponto de


vista não americano, para os americanos é apenas o real.
(PERRONE-MOISÉS, 1997, p. 252)

Realismo mágico
Como disse Gabriel Garcia Marquez (via webstories da Folha de São Paulo): "É só realismo. A realidade é
que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que não seja realidade. Não tenho
imaginação."

Um dos escritores mais brilhantes da história da literatura venezuelana, Arturo


Uslar Pietri foi um dos idealizadores do movimento que pregava a liberdade
literária na América hispânica.

Pietri foi o precursor do conceito “realismo mágico”, cuja primeira menção aparece no texto Letras y
hombres de Venezuela, de 1948, em que utiliza o termo para qualificar os contos venezuelanos da década de
30 e 40.

Comumente vinculado a outros movimentos, como o real maravilhoso de Carpentier, o realismo mágico,
segundo alguns críticos, possui suas particularidades. A junção se deve ao fato de esses movimentos
serem contemporâneos, respondendo a um desejo criativo e, acima de tudo, libertário. Visava, portanto,
produzir uma literatura que funcionasse como afirmação das particularidades da realidade da América
hispânica. Para o próprio Pietri, Carpentier cunha um novo nome para um mesmo fenômeno, dirigindo sua
crítica apenas à imprecisão conceitual do uso do termo maravilhoso. Sobre o conceito “real maravilhoso”
dirá ser um bom nome, todavia, chama a atenção para o fato da magia nem sempre ter a ver com
maravilhas, sendo o elemento mágico o mais comum na realidade americana.

Para Pietri, o desejo de criar uma literatura distinta dos modelos estrangeiros nasce da percepção de uma
realidade latino-americana que difere, em diversos aspectos, da realidade europeia. Para ele, a necessidade
de desvincular o mágico americano da concepção de mágico europeu se dá, primordialmente, porque:

Mágico europeu
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Possui uma conotação imaginária, abstrata.

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Mágico americano

Na América Latina, este elemento não se separa do concreto.

Ao passo que o elemento sobrenatural das narrativas fantásticas partia do imaginário, na latino-américa ele
emerge do real. Logo, o papel do autor consiste na percepção sensível desses elementos mágicos e na sua
representação literária.

Nas palavras de Pietri:

O que aqueles escritores americanos estavam propondo era completamente


diferente. Eles não queriam fazer jogos inusitados com os objetos e palavras
da tribo, pelo contrário, revelar, descobrir, expressar, em toda a sua inusitada
plenitude, aquela realidade quase desconhecida e quase alucinatória que era a
da América Latina, para penetrar no grande mistério criativo da miscigenação
cultural.

(PIETRI, 1986, p. 135, tradução livre)

Ora, se a realidade ficcional dialoga com o real, e daí desponta seu objeto; logo, do cotidiano, percebido
como mágico, emerge uma nova noção de realismo literário. Para Pietri, a literatura da América hispânica
estava transbordando de fantasias sobrepostas à realidade. Contudo, a expressão do fenômeno mágico,
para o autor, era entendida como revelação, apenas direcionada à tradição literária, pois, no dia a dia latino-
americano, a magia sempre se fez presente.

Comentário

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Um dos desdobramentos do realismo mágico é o seu entendimento, pelos autores e pelo público hispano-
americano, enquanto uma espécie de reescritura da história da América Latina, ou ainda, a sua
redescoberta. É, pois, uma escrita feita pelo olhar do colonizado, com suas manifestações da vida coletiva e
suas particularidades, o que contribui para uma nova compreensão do passado e interpretação do presente
latino-americano. Em outras palavras, uma história escovada à contrapelo.

Deste viés, é possível empreender uma leitura crítica de velhos problemas que assolam a América Latina, da
hegemonia ideológica, que resume esta parte do continente a uma eterna colônia, às questões de
desigualdade social. Daí o investimento de Pietri ao escrever o ensaio Godos, Insurgentes y Visionarios
(1986). Nele, exibe toda a sua concepção de história e cultura latino-americana, rompendo com a ideologia
do colonizador e exaltando a cultura nacional, olhando para a mestiçagem de forma positiva, onde residiria
a verdadeira riqueza cultural.

Dentro desta perspectiva, de reescritura, podemos recortar um período literário que vai das Lendas da
Guatemala (1930), de Miguel Ángel Astúrias, a Cem anos de solidão (1967), de Gabriel García Márquez.

Real maravilhoso
O conceito de “real maravilhoso” surge pela primeira vez no ensaio de Alejo Carpentier de 1948. No ano
seguinte, o autor retorna a esse texto no prólogo do seu romance intitulado O reino deste mundo, que
podemos ler como a concretização dessas ideias. No ensaio, inspirado numa viagem que Carpentier fez ao
Haiti, o autor idealiza a natureza do maravilhoso, que infere não ser privilégio daquele país, mas de toda
América.

O real maravilhoso encontra-se a cada passo nas vidas dos homens


que inscreveram datas na história do Continente.
(CARPENTIER, 1985, p. 14)

Contrapondo-se à literatura fantástica, produzida na Europa e reproduzida nas Américas, o maravilhoso


manifesta-se em algumas obras de literatura hispano americana imbricado à realidade. Carpentier,
idealizador e atento a esse movimento latino, cria o conceito de real maravilhoso, situando-o no lado oposto
da narrativa batida, entediante e burocrática a que havia se tornado o modelo maravilhoso europeu. Embora
apresente semelhanças com as vanguardas europeias, mais precisamente com o movimento surrealista, o
real maravilhoso está conectado com o real extrapolando seus limites.

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Para Carpentier, ele deve ser compreendido pelo viés cultural e, principalmente, percebido no contexto da fé,
pois surge na alteração da realidade, exibindo riquezas só alcançadas a partir da elevação do espírito. A
partir desta concepção, marca as diferenças entre ele e o surrealismo, como também fizera seu amigo
Pietri.

Daí que o maravilhoso invocado na descrença – como fizeram os surrealistas


durante tantos anos – nunca tivesse passado de uma artimanha literária
bastante aborrecida, ao prolongar-se, como certa literatura onírica ‘regrada’ e
certos elogios da loucura, dos quais já começamos a estar fartos.

(CARPENTIER, 1985, p. 13)

Logo, o surrealismo padeceria de ausência de fé naquilo que representava, incapazes, nas palavras de
Carpentier, de conceber uma mística válida, não passando de uma falsificação do maravilhoso.

No ensaio Lo Barroco y lo Real Maravilloso, Carpentier reafirma esse distanciamento pela seguinte sentença:
“O extraordinário não é belo forçosamente. Não é bonito nem feio; é antes de tudo surpreendente pelo
insólito.” (CARPENTIER, 1969, p. 143)

Assim, o maravilhoso se inscreve no que é incomum e está ligado diretamente à história e à cultura de um
povo, e, sobretudo, representa um mundo ainda encantado.

No romance O reino deste mundo, Carpentier deixa claro o embate entre o mundo desencantado do
colonizador e o mundo mágico dos escravos.

Como podemos ver nas duas passagens a seguir, a personagem Mackandal está a cumprir sua sentença,
morrer na fogueira. De um lado, escravos veem Mackandal metamorfosear-se em mosquito e voar,
vencendo a morte trágica, do outro, os homens brancos assistem Mackandal queimar e chocam-se com a
reação dos negros a quem julgam sem compaixão.

Veja, a seguir, as duas passagens do romance O reino deste mundo:

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O reino deste mundo expand_more

“Mackandal já estava amarrado com as costas coladas ao poste de tortura. O verdugo tinha presa
uma brasa nas tenazes. Repetindo um gesto que ensaiara na véspera em frente ao espelho, o
governador desembainhou o sabre e deu ordem para que se cumprisse a sentença. O fogo começou
a subir até o maneta, chamuscando-lhe as pernas. Nesse momento, Mackandal agitou o coto, que
não tinham podido amarrar, num gesto ameaçador, que nem por minguado era menos terrível,
urrando conjuros desconhecidos e jogando o torso violentamente para a frente. As cordas caíram, e
o corpo do negro esticou-se no ar, voando sobre as cabeças, antes de mergulhar nas ondas do negro
mar de escravos. Um só grito ressoou na praça:

— Mackandal sauvé!

(...)

Naquela tarde os escravos regressaram para as fazendas rindo durante todo o trajeto. Mackandal
tinha cumprido sua promessa, permanecendo no reino deste mundo. Uma vez mais os brancos eram
batidos pelos Altos Poderes da Outra Costa. E enquanto Monsieur Lenormand de Mezy, de touca de
dormir, comentava com sua beata esposa a insensibilidade dos negros ante o suplício de um
semelhante — tirando disso certas considerações filosóficas sobre a desigualdade das raças
humanas, que pretendia desenvolver num discurso cheio de citações latinas (...)” (CARPENTIER,
1985, p. 20)

O real maravilhoso conta a história da América, que é permeada de elementos mágicos por conta da
diversidade de povos, que chegam a esse continente carregados de elementos míticos. Devido à aura
mágica, que constitui a realidade latino-americana, não podemos confundir o real maravilhoso com o
realismo descritivo ou com o fantástico europeu, até mesmo com os movimentos vanguardistas. Embora
suas contribuições sejam inegáveis, afinal, o colonizador europeu é, também, matéria constitutiva da
América, a escola literária latino-americana deve ser compreendida em seu movimento de libertação e
promoção de uma literatura identitária.

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Realismo mágico e real maravilhoso

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No vídeo, a especialista apresenta o realismo mágico e o real maravilhoso, relacionando-os ao contexto do


qual emergem.

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Falta pouco para atingir seus objetivos.

Vamos praticar alguns conceitos?


Questão 1

A seguinte frase é de Gabriel García Márquez e foi proferida pelo escritor durante uma entrevista em
que falava a respeito de suas obras. Leia abaixo a declaração de García Márquez e marque a opção do
movimento literário ao qual ele se refere.

"É só realismo. A realidade é que é mágica. Não invento nada. Não há uma linha nos meus livros que
não seja realidade. Não tenho imaginação."

A Naturalismo

B Realismo

C Fantástico-maravilhoso

D Parnasianismo

E Realismo mágico

Parabéns! A alternativa E está correta.

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27/02/2023, 11:50 Fundamentos filosóficos e críticos do conceito de fantástico

A sentença de García Márquez resume o que foi o movimento realismo mágico, que buscava na magia
do cotidiano o verdadeiro realismo, sem fórmulas artificiais ou invenções sobrenaturais, era apenas a
representação do dia a dia de uma cultura rica em misticismos e eventos maravilhosos.

Questão 2

O realismo mágico e o real imaginário foram movimentos limitados à expressão literária. Uma de suas
intenções era a de criar uma literatura identitária, mas para isso era necessário romper com modelos
anteriores. Leia as alternativas e marque aquela que melhor corresponde a essa afirmativa.

Os movimentos literários da segunda metade do século XX na América Latina rompem


A
com o modelo europeu como forma de afirmação de uma cultura nacional.

Os movimentos literários da segunda metade do século XX na América Latina rompem


B com o modelo norte-americano como forma de rechaçar o neoliberalismo econômico
reproduzido nas artes.

Os movimentos literários do século XIX na América Latina rompem com o modelo


C
europeu como forma de afirmação de uma cultura nacional.

Os movimentos literários do século XX retomam o modelo europeu como forma de


D
afirmação de uma cultura colonial.

E No século XX, nas Américas, nada se produziu de inovador no campo literário.

Parabéns! A alternativa A está correta.

Alguns autores de países hispano-americanos em meados do século XX realizaram um movimento na


direção de uma literatura identitária. Para isso, foi necessário romper com a reprodução de modelos
hegemônicos europeus, que não davam conta de representar as particularidades histórico-culturais da
América Latina.

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Considerações finais
Por meio de um breve recorte histórico, pudemos entender como os gêneros literários se constroem como
estrutura classificatória, estabelecendo as variedades literárias através de generalizações. Vimos também a
influência da historicidade nos estudos de gênero e de que forma a classificação do fantástico, neste
conceito, despertou críticas avessas a ela.

A partir das críticas à teoria do fantástico como gênero, e da defesa de seu enquadramento dentro dos
parâmetros de modo literário, conseguimos perceber a sua expansão na história da literatura.

Por fim, percorremos os movimentos identitários da América Latina, que buscavam se libertar dos modelos
europeus, para então construir uma literatura nacional, partindo dos elementos de sua rica cultura.

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Referências

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Explore +
Para saber mais a respeito da classificação do fantástico como gênero, pesquise o artigo Notas sobre a
teoria estruturalista do gênero fantástico de Tzvetan Todorov, de Aline Sobreira de Oliveira.

Para saber mais a respeito do realismo mágico, pesquise o termo “realismo mágico” no e-dicionário de
termos literários.

Para saber mais a respeito do real maravilhoso, pesquise o termo “real maravilhoso” no e-dicionário de
termos literários.

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