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ORLANDI, Eni Puccinelli. Da argumentação na Análise de Discurso.

In: BIZIAK,
Jacob dos Santos; PEREIRA, Fernanda; RESENTE-SOARES, Sheilla Maria. (org.).
Rede de afetos em discurso. Uma homenagem a Mónica Zoppi-Fontana. Campinas,
SP: Pontes, 2021. p. 107-120.

Da argumentação na Análise de Discurso 1

Eni Puccinelli Orlandi2

Como nos diz Plantin (2004), a argumentação tem uma história longa -desde a
Grécia e Roma (V séc. AC) - mas também curta, que se organiza em torno de dois
momentos: fim do século XIX quando ela perde importância (empurrada para o
descrédito junto com a retórica), e, depois da segunda guerra mundial, quando ela ganha
autonomia em relação à retórica, e se desenvolve. Essa mudança de conjuntura para a
argumentação se marca pela publicação de The uses of argument (S.TOULMIN, 1958) e
do Tratado de argumentação de Perelmann e Tyteca que tem como subtítulo “A nova
retórica”. Não se trata mais de uma empresa retórica, mas da argumentação.
Na organização clássica das disciplinas, a argumentação estava ligada à retórica,
vista como arte de bem falar (o que é este “bem”?), e à lógica, como arte de (bem) pensar.
A retórica argumentativa, tal como se desenvolve a partir dos anos 1950 não se filia aos
sofistas (Górgias etc), mas a Aristóteles, que define a retórica como “a faculdade de
descobrir especulativamente aquilo que, em cada caso, é próprio a persuadir”. E se assenta
nuclearmente sobre a figura do “locutor”3. (ORLANDI, 2021, p. 107)

1
Apresentei, na UFAM, um primeiro esboço desse texto. Algumas coisas que estão aqui exploradas,
estão, de algum modo, presentes em outras exposições minhas da época. Mas esta é a versão mais
elaborada dessas ideias. Até o momento.
2
UNICAMP
3
Veremos mais adiante que, na Análise de Discurso, a relação de alteridade, na argumentação, é
fundamental, e não se trata de persuasão, mas de relações entre posições-sujeito e ideologia, na
perspectiva discursiva que tomo aqui.
No final do século XIX a retórica foi fortemente criticada como estudo não
científico, longe do saber positivo que se cultiva então. Nesse momento, reforça-se a
pesquisa histórica. A lógica torna-se uma disciplina formal à qual se opõe a lógica não
formal, substancial. As orientações novas produzem um outro estilo argumentativo (não
clerical, mas crítico).
Depois da segunda guerra mundial, há uma renovação dos estudos da
argumentação. Uma obra a ser citada, na época, é a de S. Tchakhotine (com sua obra A
violação das multidões pela propaganda política). Falando do itinerário de Tchakhotine,
Pêcheux (2011) observa sua obstinação ao mesmo tempo política e científica, fundada na
biopsicologia, pretendendo unir Taylor, Pavlov e Freud. Tem uma preocupação, diz
Pêcheux, que continua a frequentar as preocupações políticas de nosso tempo: a ideia de
que o homem é um “animal influenciável” de uma grande plasticidade.
Na sua obra, Tchakhotine caracteriza a propaganda dos regimes totalitários
(nazista e stalinista) como uma “senso-propaganda”, irracional, que ele caracteriza como
uma questão a ser trabalhada no campo da psicologia. Ele opõe a ela a “ratio-propaganda”
fundada na razão, e propõe a construção de um modo de discurso democrático racional,
por meio da argumentação. Segundo ele, o grande perigo está em três fatos: 1. Os homens
percebem a possibilidade de fazer de outros homens marionetes, para servir a seus fins;
2. A proporção de seres humanos que sucumbem a essa possibilidade é de dez contra um;
3. Essa violação psíquica coletiva dos usurpadores se faz sem que nada se oponha a ela,
pois, mesmo os que se dão conta, não sabem que medidas tomar para impedir.
Outro autor, da época, importante para nossa reflexão, é Domenach que afirma
que a propaganda pode criar, transformar ou confirmar opiniões (1950). Isto corresponde
à definição de argumentação para Perelmann: provocar ou aumentar a adesão dos
espíritos às teses que se propõem a seu assentimento. A diferença é que o Tratado se
interessa só por técnicas discursivas, referentes ao linguageiro (escrita e oralidade), e
Domenach se interessa pelo que ele chama de plurissemiótico que leva (ORLANDI, 2021,
p. 108) em conta não só o componente linguageiro, mas também a música, a imagem, os
movimentos de massa, orquestrados ou espontâneos (podemos exemplificar com:
Manifestações de rua; espetáculo: desfiles da Corea do Norte). Não escapa à senso-
propaganda. A separação não é estanque, mas o elemento explicativo continua a ser
psicológico e é aí que a análise de discurso difere, como veremos.
Ao período dominado pela Nova Retórica, logo após a segunda guerra mundial,
se sucede a que tem como autor de referência O. Ducrot, movimento lógico-linguístico,
com obras como Provar e Dizer, Dizer e não dizer etc. Não mais no campo do discurso
político, mas no campo do estruturalismo. Anos 1970.
Em Ducrot, a noção de argumentação é a da relação do argumento à conclusão
(sustentada na enunciação). A argumentação não regula interesses, ela está na língua, não
na fala que circula. As formas da língua marcam, na língua, as relações de argumentação.
Dá-se no plano da significação e é a relação entre argumento e conclusão e não persuasão.
Segundo esta perspectiva, dizer é argumentar. Mesmo a afirmação da verdade deriva de
uma relação argumentativa.
Os passos dados por Ducrot são importantes para o que se pode dizer da
argumentação a partir de então. Como ele, na análise de discurso, não consideramos a
argumentação como instrumento de persuasão. Mas, nos distinguimos de Ducrot por
vários pontos, entre eles, porque, embora nos situemos no plano da significação, ou
melhor, do real dos processos de significação, para nós o discurso é efeito de sentidos
entre locutores, e não argumentação. Ou seja, dizer não é só argumentar. A argumentação
é um modo de funcionamento do discurso que se estrutura ideologicamente. Para nós, há
um princípio fundamental que é o da relação da linguagem com a exterioridade. E se os
sentidos são, como consideramos (Canguilhen, s.d.) “relação a” esta relação se dá entre
formações discursivas, em condições determinadas, isto faz parte do funcionamento
argumentativo. Dessa perspectiva, que é a discursiva, temos um argumento quando uma
formulação faz funcionar um confronto, um deslocamento ideológico. (ORLANDI, 2021,
p. 109)
Para exemplificar podemos tomar a palavra “vadia” e seu sentido pejorativo,
ofensivo, para mulheres. Este efeito de sentido se produz em uma formação discursiva
determinada “x”, por gestos de interpretação formulados por sujeitos que com ela se
identificam, e em condições de produção determinadas. Em outras condições de
produção, diversas, temos, por exemplo, em uma manifestação de rua, mulheres
carregando uma faixa “A marcha das vadias”. Nesse caso, nessas condições, “vadias”
funciona como um argumento para criticar, confrontar-se com o que é significado pelos
sujeitos que se identificam com a formação discursiva “x”, nas condições em que foi
formulada a palavra “vadia”. Por este movimento, que implica a metaforização, a palavra
“vadia” torna-se um argumento que inscreve estes sujeitos em outra formação discursiva
“y”, em um movimento que podemos chamar de resistência. Este acontecimento se
estrutura pela antecipação que se produz por uma formulação, de uma formação
discursiva, que se relaciona (confronta?) a outra, de outra formação discursiva, buscando
constituir deslocamentos com seus efeitos de sentidos. Trabalhando as suas margens de
manobra. Há um distanciamento da situação, na própria situação – a de ser mulher -,
argumenta-se, e podemos dizer que temos um argumento, quando uma formulação faz
funcionar um confronto ideológico.
Antes de finalizarmos esta introdução, cabe referir ao que diz Pêcheux sobre
Tchakhotine, em sua obra A violação das multidões, e a questão do homem influenciável.
Segundo Pêcheux (2011), as consequências práticas dos três fatos que ele anuncia sobre
o “homem influenciável”, podem ser resumidas esquematicamente em três teses: Tese 1.
A natureza humana é constituída de pulsões: a alimentar, econômica, lógica, que conduz
a uma propaganda do raciocínio argumentado; e a afetiva, agressiva, combativa,
desembocando em uma propaganda militar de reflexos e emoções; a Tese 2 é que o
processo objetivo dessas pulsões, seu jogo, no cerne da natureza humana, pode, desde que
é conhecido pela ciência moderna, ser controlado, instrumentalizado, colocado a serviço
de não importa que política (são armas como canhões); a Tese 3 é que esta guerra
metafórica engaja o destino de milhões de seres humanos que vão tomar este ou aquele
caminho. (ORLANDI, 2021, p. 110)
Essas teses incidem sobre a partilha do racional e do irracional no indivíduo
humano, e formam um corpo teórico-político instalado nas evidências de nosso tempo. E
Pêcheux (idem) diz que é preciso desalojar isso. Finaliza colocando então a questão
fundamental: seria possível que a raiz desse debate (sobre propaganda política) longe de
estar instalado nas contradições psicológicas da consciência humana, seja, na realidade,
encontrado nas formas históricas de assujeitamento do indivíduo que se desenvolveram
com o próprio capitalismo como uma maneira de administrar os sujeitos, suas práticas e
os corpos?+ Ou seja, chegamos a uma concepção discursiva da argumentação. Que toma
em consideração o confronto do político com o simbólico e pensa o inconsciente e a
ideologia, assim como as formas de dominação, em nosso caso, próprias ao capitalismo.

Interpretação, Ideologia, Argumentação

De meu ponto de vista, não se pode, pois, desvincular interpretação e ideologia, e


é esta relação que fundamenta o que é argumentação, na perspectiva discursiva. A
argumentação é um modo de funcionamento da ideologia. A ideologia é constitutiva da
argumentação, ela estrutura a argumentação.
A argumentação, por sua vez, se funda no mecanismo de antecipação produzindo
uma relação de sentidos em que se inscreve a relação de forças (o lugar de que significa,
significa em seu poder). A argumentação se dá em certas condições e mobiliza a
articulação de formações discursivas diferentes, em sua filiação à memória discursiva.
Ela se dá na relação do sujeito com o outro. O discurso, como sabemos, é efeito de
sentidos entre locutores, em determinadas condições de produção, e, dada a relação entre
interpretação e ideologia, desencadeia um processo de argumentação. Um argumento
arregimenta interpretações inscritas em uma formação discursiva enquanto lugar
provisório da metáfora (transferência, deriva), face a outra (ou outras) formação
discursiva. (ORLANDI, 2021, p. 111)
O argumento, na retórica antiga é definido como um raciocínio que serve para
afirmar ou negar um fato. Na análise de discurso o argumento resulta de um gesto de
interpretação que produz um efeito de sentido constituído na relação de formações
discursivas. Para trabalhar com a argumentação é preciso conhecer a conjuntura
discursiva e a articulação das formações discursivas.
O argumento não leva a uma conclusão, ele busca um deslocamento de sentidos.

Os tempos atuais: tempos de equívoco e de sentidos difusos

Pensando o momento atual, a noção de nuance, que tomo a Nietzsche (2008,


1960), que critica as posições sujeito que seguem a tropa, permite-nos observar sentidos
difusos que circulam. Nessa conjuntura do difuso, as nuances significam mais que
qualquer declaração de sentido.
Deus, Pátria e Família é um slogan que prossegue em marcha. Nos anos 1960, há
uma organização específica para isso (E. ORLANDI, 2019), católica, tradicionalista: TFP
(tradição, família, propriedade). Era um movimento que alimentava uma formação
discursiva de direita. Hoje, não é nem do mesmo Deus, nem da mesma Pátria, nem da
mesma família que estamos falando. Por isso é importante ouvir as nuances. É outra
conjuntura sócio-política e ideológica. Não é mais o Deus das imagens, é o da leitura da
Bíblia; não é mais só a pátria do exército, mas a pátria amada/armada de patriotismo e de
censura, com a imposição de um modelo de país para nossas aspirações sociais: não é
mais a família burguesa, mas a família modelar cristã (sobretudo pentecostal), quanto ao
sexo, aos costumes, e à religião. O inimigo construído por essa formação discursiva
dominante atual, assim constituída, difere do das outras conjunturas, como a maçonaria,
o socialismo e o comunismo (difuso). Quanto à política, e ao político, podemos dizer que
esta é uma formação discursiva de extrema-direita (FREDERICO CAMPEAN, 2019)4.
(ORLANDI, 2021, p. 112)
O que funciona, na relação entre esses tempos sombrios - o dos anos 1960 e o de
hoje -, é o equívoco, que significa, porque há um efeito de pré-construído da ditadura de
64 trabalhando esses sentidos, mas há, também, produzidos pelos efeitos metafóricos,
deriva, transferência, deslizamento de sentidos. Palavras falam com palavras, como tenho
insistido em afirmar, ao falar em metáfora, declinando seus sentidos. Essas outras
palavras, que aí habitam silenciosamente, irrompem nas condições de produção atuais, da
conjuntura atual. No entanto, temos, agora, a mundialização (com seus discursos das
minorias, da ecologia, das Ongs, do terrorismo etc) como conjuntura, e o discurso é o de
extrema direita, que retoma com força a frente de cena no mundo, e não só no Brasil.
Convivemos em uma sociedade em que temos insegurança jurídica e controle
difuso da constitucionalidade (E. ORLANDI, 2019). O Estado é autoritário, mas a censura
não é feita diretamente pelo Estado. Ela está disseminada difusamente por diversas
instituições e pelo imaginário social. Há um processo de produção de sentidos difusos,
diluídos, mas efetivos. A tortura aparece individualizada aqui e lá, feita difusamente,
causada, dizem, pelo “descontrole”. Ou resulta de “agentes” cuja denominação é
indistinta. Mata-se muito, mas é sem querer. Há insegurança nas palavras. Insegurança
político-simbólica. Produção de palavras, produção de sentidos inseguros, instáveis,
como também são instáveis os sujeitos (E. ORLANDI, idem).
É importante tomar o equívoco – que torna difusa a palavra ideologia - como
vestígio de um processo discursivo pelo qual se constitui um mecanismo de
argumentação. O efeito de pré-construído da ditadura de 1964 aí significa, como eu disse,
repetindo dizeres fixados: o perigo é comunista, nós viemos para resguardar o país dessa
ideologia. O difuso, ou melhor, sentidos difusos são produzidos como argumentos; não
estamos em 1960 e não é dos mesmos “comunistas” que se está falando. Estamos
submetidos a um movimento com seus sentidos e sua ideologia que aprofunda o que já se
chamou Tradição, Família e Propriedade, e hoje se diz pelo slogan “O Brasil acima de
todos e Deus acima de tudo”, cujo governo tem como lema: “Pátria amada, Brasil” (trecho
do hino nacional). (ORLANDI, 2021, p. 113)

4
CF. tese defendida sob minha orientação com o título “O discurso bolsonarista e a desconstrução do
Brasil”.
Exibe-se sobre a mesa, lado a lado, a Bíblia e Constituição (E. Orlandi, 2019).
Sentidos da Bíblia contaminam os da Constituição. “Tornar o Brasil um país
extremamente cristão”, dizem. Nuance: o sentido aí de cristão não é universal.
Instabilidade da palavra. É essa relação que faz funcionar a discursividade atual, tomando
a Constituição não como a lei maior que rege um país, uma nação, mas um livro de
costumes, com uma declinação moralista, e “patriotismo” adjetivado: conservador. Por aí
se “argumenta”.

Argumentação

No domínio da análise de discurso materialista, tomo, pois, a argumentação como


processo discursivo que se dá na instância das “coisas a saber”, que nos chegam não pelo
conhecimento, pela aprendizagem, mas pela ideologia, domínio do imaginário e do
inconsciente, que funciona pela instância pragmática. Instância em que o sujeito
“responde” à demanda da ideologia. A argumentação se sustenta no mecanismo da
antecipação, funcionando pelas relações imaginárias, produzindo seus sentidos
(imaginariamente) naquilo que o outro poderia significar. Antecipa-se. As redes sociais,
em geral, ao repercutirem, também são parte da produção dessa argumentação, dão-lhe
forma. E, como toda rede, prende os discursos no emaranhado desses argumentos: ou se
está a favor ou contra. Produzindo polarização e confronto.
Se é assim que funciona a argumentação, como lidar com ela?
Não caindo na rede, nas voltas que o mundo dá: não há só o a favor ou contra. Isto
é o efeito pragmático, imaginário. É preciso atravessar o imaginário e buscar o real dos
sentidos que trabalham nossa conjuntura histórica, sócio-política contemporânea. Há aí
muito silêncio significativo a ser explorado. Há também uma larga margem de
incompreensível que pode nos levar, pela metaforização, com palavras que falam com
outras, como a concebo, a outros lados e sentidos, ainda silenciados. Plurais. É nessa
direção que falamos da metáfora, lembrando que a metáfora, segundo Pêcheux, se localiza
no ponto preciso em que o sentido se produz no non-sens. (ORLANDI, 2021, p. 114)
Como tenho dito, sentido se combate com sentidos. O que a insegurança das
palavras demanda é outra posição-sujeito discursiva, pondo em movimento outro
conjunto de formações discursivas à dominante, e outros efeitos de sentidos, que
colocariam em causa as evidências da política de extrema direita a que estamos
submetidos, que se sustenta na polarização política e na destruição da ciência.
Como disse, a argumentação, no modo como a considero, é um processo
discursivo que se dá na instância das “coisas a saber”, (Pêcheux, 1990), que nos chegam
não pelo conhecimento, mas por um “saber” que não se aprende, e funciona produzindo
seus efeitos, que nos dão garantias de viver “num mundo semanticamente normal”, ou
seja, a ideologia. A argumentação é estruturada pela ideologia.
Como ela se sustenta no mecanismo discursivo de “antecipação”, funciona por
relações imaginárias: a imagem que eu faço da imagem que fazem de alguém, ou de algo
etc, produzindo-se, assim, sobre aquilo que o outro poderia interpretar, significar.
Enquanto mecanismo de administrar as interpretações, a argumentação é ideologicamente
estruturada, ou seja, é a ideologia que fundamenta a argumentação. O que aí conta é o
imaginário, que, para o analista de discurso, é uma prática.
Distinguimos realidade e real. Da perspectiva da ideologia, é o imaginário que
produz a ilusão subjetiva, que constitui o sujeito, e que se presentifica na realidade.
Quanto ao real, ele pressupõe ruptura com o imaginário, deslocamento. Processo pelo
qual, sendo a ideologia um ritual com falhas, e, também, podendo ser falho o modo pelo
qual o sujeito é individuado na articulação simbólico-política do Estado, por instituições
e discursos, os sujeitos podem-se deslocar, resistir, inscrevendo-se em outras formações,
identificando-se com outros sentidos. Produzindo outras versões, por gestos de
interpretação outros. Há aí transformação, movimento. Porque há real.
Tenho retomado, para a reflexão, em meus trabalhos recentes, o que diz Pêcheux
quando parte da seguinte tese: “o real existe, necessariamente, independentemente do
pensamento e fora dele, mas o pensamento depende, necessariamente, do real, isto é, não
existe fora do real” (idem). (ORLANDI, 2021, p. 115) Ele formula, desse modo, um
princípio fundamental para a análise de discurso: o “primado do ser sobre o pensamento”.
Da afirmação do primado do ser sobre o pensamento podemos derivar outra
formulação: a de que é “a existência que precede a consciência e não o contrário”. Nessa
conjugação teórica, materialista, é que pensamos a argumentação.
Considerando a relação linguagem, pensamento e mundo, Pêcheux afirma que o
pensamento “não tem, em absoluto, (...), a interioridade subjetiva da “consciência” – que,
sem trégua, as variedades do idealismo lhe atribuíram” (idem, 1975). Os processos de
significação são sempre historicamente determinados no confronto do simbólico com o
político.
Se considerarmos, pois, as atuais discursividades, vemos que o processo, em que
se instalam funcionamentos discursivos e se constituem posições-sujeito, com “suas”
verdades, tem menos a ver com a “interioridade” subjetiva – ou com sua “consciência” –
do que com seus gestos de interpretação, na produção de efeitos de sentidos.
Há disputa pelo sentido, há fato a ser significado. Há palavras que significam na
incerteza. Os discursos atuais carregam uma polemização do estatuto significativo do real
nos processos de significação.

A Análise

Somos, desde muito tempo, e todo o tempo, alvejados por linguagens de todos os
tipos, tamanhos e cores. Nós conhecíamos a direita no poder, a ditadura. O inusitado, eu
diria, foi nos defrontarmos com a extrema-direita. O nazismo, o fascismo são tão
inaceitáveis, grotescos mesmo, que parecem inconcebíveis. Principalmente se os
considerarmos a partir da posição-sujeito de uma formação discursiva de esquerda. No
entanto, foi eleito um presidente de extrema-direita, dizendo com todas as palavras ser de
extrema-direita. Passamos do inusitado para o que, para nós, era inconcebível. Mas
existente. Isso é real. Impossível que não seja assim. Há guerra de sentidos: qualquer
besteira vale para “bagunçar” sentidos, criar a confusão, o mal-entendido, a contradição,
o equívoco, o desarrazoado. (ORLANDI, 2021, p. 116) Porque essas são condições
favoráveis para a sobrevivência do discurso da extrema-direita. Nessa conjuntura, o
processo dominante, creio, é o da produção de processos de dessignificação. A cada
momento aparecem declarações, são produzidos sentidos no twitter, que depois mudam,
ou são negados, ou aparecem outros, que desdizem-se, etc. Confusão. Estado de tensão
significativa permanente. Dessignifica-se o político, pela guerra ideológica. Tentam-se
silenciar formações discursivas, apagam-se distinções. Como distinguir-se, como tomar
distância? Como desfazer o equívoco? Como argumentar? Não há como apoiar-se no
sentido, quando ele está sendo dessignificado. Penso que um modo de se produzir uma
escuta nessas condições, é não responder diretamente à dessignificação, não querer
compreender ou ser compreendido. Aceitar o desafio do incognoscível. Nestas condições,
vale arriscar-se no non-sense. Trabalhar e produzir nuances, delicadezas, finuras da
linguagem, inteligência. Não ir nunca direto ao ponto. Isto é fatal. A mídia tem feito
frequentemente isso e fica respondendo, girando em falso na insegurança das palavras,
na dessignificação, aumentando o barulho. O barulho é a voz deste tipo de governo de
extrema-direita. Estado permanente do desarrozoado. Fake News. Negacionismo. Disso
alimenta-se a extrema-direita. Que resulta no constrangimento do discurso social.
A superação da compreensibilidade é a recusa de que se possa ser compreendido
universalmente, pois, segundo Nietzsche, não se pode pensar que “a comunicação em
nada altera o comunicado”.
O que é preciso é distanciar-se da situação na própria situação; diz Nietzsche “eu
sinto a distância para ser diferente em cada entendimento, igualmente inconfundível, e
para estar acima em comparação com cada elemento opaco”5. É também Nietzsche que
diz que a vida não é argumento. Não se pode esperar uma compreensão universal. Isso, a
meu ver, prepara para a diferença, para o incompreensível, e para a ideia de que um
argumento não é entendido do mesmo modo por todos. Não se iguala o que é dissimétrico.
De novo intervém a ideologia na interpretação. Argumentativamente, não se pode aceitar
a briga corpo-a-corpo. Os sentidos estão sempre mais além. Tampouco se têm acesso
direto aos processos (ORLANDI, 2021, p. 117) de dessignificação. É no desvio, no outro
lugar que os sentidos podem fazer sentido, que se podem descosturar os processos de
dessignificação. Fazer significar, de preferência, o que está silenciado. Ao desarrazoado
se responde com o equívoco, a ironia, a reversão.
A ironia tem sido uma maneira de fazer significar o dessignificado, trazer à tona
o incognoscível. O humor sempre se carregou dessa possibilidade. O músico que tem
feito isso é Arnaldo Antunes. Uma de suas músicas é exemplar: O real resiste.
Para analisar essa música, você não pode interpretar diretamente, tampouco pelo
avesso. Trabalho da metáfora em alto nível de sofisticação, tem-se que superar a
compreensibilidade. Des-entender. “Autoritarismo não existe (....), homofobia não existe
(...) fantasma, bicho papão não existe”. “É só pesadelo e depois passa”. “Não, não, não”.
Dizer que não existe, que tudo é ilusão e, ao mesmo tempo, afirmar: o real resiste. Seria
então, possível pensar que o real, que existe, não existe? É ilusão? Mas o real resiste. E
isto é significado por dizeres e imagens que atestam fortemente o real que está sendo
negado. E que resiste. A linguagem, esticada ao seu limite, significa a dessignificação
como resposta ao processo de dessignificação. Veneno, contra o veneno, cura. Mas não é
tão simples assim. “O real resiste/é só pesadelo e depois passa”, isso dito do fascismo que
nos espia dia-a-dia é de uma força que atordoa. No vídeo, imagens, cores, dizeres, tudo
são argumentos para “o real resiste”. “O real existe”. Arnaldo Antunes é um poeta dos
que melhor lidam com este discurso. Pulos, derivas contínuas, desamarrando equívocos,
se expondo a eles. Indistintos, confusos, de difícil compreensão. A interpretação não tem

5
Pêcheux nos diz de expor o olhar à opacidade.
a ver com a lógica, com o racional. E argumenta face o incompreensível, ao improvável,
ao insensato, ao inusitado, ao espantoso, ao irracional.
O discurso que enfrentamos é o que busca desfazer sentidos e se dar o tempo de
aparelhar o Estado como Estado Fascista. E isso com deboche, com ignorância
escancarada, com a grosseria dos que não gostam, não respeitam a vida. Não é um
discurso de desconstrução, mas de destruição, cabal e simples. O que a música de Arnaldo
Antunes traz amplamente? Nega, para afirmar mais fortemente. Isto, na retórica, se chama
lítotes (ORLANDI, 2021, p. 118) (H. Lausberg,1966), ou seja, argumenta-se com o
“não”, para afirmar o “sim”. Mais que isto, podemos compreender a lítotes como um
misto de ironia e ênfase.
Já trabalhei sobre a ironia (E. Orlandi, 1986) e gostaria, aqui, de fazer referência
ao que acho fundamental na compreensão discursiva da ironia: a ironia produz o sentido
de interrogação. Ao ironizar você está interrogando e fazendo o sujeito que é intérprete
(se) interrogar. E isso vai-se dando gradualmente, em que aparece muito a repetição, a
restrição do espaço de significação e a insistência. O paradoxo está presente na música de
Arnaldo Antunes, e é, também, uma das propriedades da lítotes. Contradição da
contradição. O argumento aí realiza seus efeitos de sentidos: nega-se o contrário do que
se quer afirmar, e, por aí, se produz o repúdio forte pelo afrontamento com a violência do
que é negado. Ao mesmo tempo que, na música, Arnaldo afirma que x não existe, ele
exibe imagens que mostram cenas do negado, e, no entremeio, repete o refrão “O real
resiste”. A relação de existe e resiste atrapalhados por um “não”, impossibilita qualquer
paralelismo, qualquer reversibilidade. E nos joga para o “onde”, o “o quê”, a interrogação
que nos balança no ar ritmado pelo ressoo de palavras, sons, cores e imagens. Que se
metaforizam. E por aí podemos ir além da compreensibilidade. Atravessando a
dessignificação. Vamos ao encontro do non-sens.
Esta música argumenta com palavras, com ironia, com cores, com imagens em
suas relações. Ao dizer “o real resiste” e o cocar do índio acender-se em amarelo, a cor
passa a ser um argumento tanto do real como da resistência. E, ao longo da música, os
argumentos vão-se apresentando ao colorirem-se formas, pessoas, árvores, etc. A cor aí é
argumento. As imagens contrastadas com as palavras também são argumentos. A relação
de figuras de contos com figuras da vida – bicho papão e homofobia, por exemplo –
funcionam como argumentos. Para: o real resiste. A formulação “é só pesadelo e depois
passa” relaciona-se com as imagens de autoritarismo, com palavras como terraplanismo,
funcionando como argumento de “existe”. Face ao “real resiste”. (ORLANDI, 2021, p.
119)
A questão é, pois, a da argumentação, observatório do político, concebida
discursivamente, ou seja, como tenho proposto, a argumentação se estruturando
ideologicamente e é aí que se pode confrontar ao discurso político atual. Não respondendo
a ele, mas produzindo um distanciamento, tirando dele o sentido universal, evidente, que
ele tenta passar e devolvendo-o a seus compromissos com a formação discursiva em que
ele produz e faz sentido (o da extrema-direita). Desse modo, vamos além da
compreensibilidade e trazemos o que ainda não está significado. Afinal, nesses processos
de silenciamento, de apagamentos, de volatilização de sentidos, não podemos esquecer
que o discurso tem materialidade e minha aposta é, pela análise, conseguir atingir o real
do processo de significação. E é nessa sua materialidade que o real (r)existe.

Bibliografia
CANGUILHEM, G. “Le cerveau et la pensée”, conferência na Sorbonne, Paris:
Editions du Mouvement Universel de la responsabilité scientifique.
DUCROT, O. La preuve et le dire , Paris: Mame, 1973.
PLANTIN, C. Situation des études d´argumentation: de déligitimations en réinventions,
in : ______ L´argumentation aujourd´hui, Paris: PressesSorbonne Nouvelle, 2004.
ORLANDI, Eni P. Destruição e construção do sentido: um estudo da ironia. In: Série
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ORLANDI, E. P. A terra não é plana e o mundo das palavras não têm só dois lados –
ainda o silêncio em suas formas”, SEAD, Recife, 2019.
PÊCHEUX, M. Análise de Discurso – Textos escolhidos por Eni Puccinelli Orlandi,
Campinas: Pontes, 2011.
PERELMANN, CH E OLBRECHTS-TYTECA, L. Tratado de Argumentação: a nova
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