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MÍDIA E DITADURA MILITAR: O UFANISMO PRESENTE NAS PROPAGANDAS

DOS ANOS DE CHUMBO

Priscylla Alves Lima


Acadêmica do Curso de Letras – UFG / Jataí
priscyllaalves5@gmail.com

Maria de Lourdes Faria dos Santos Paniago


UFG / Jataí
lurdinhapaniago@gmail.com

Resumo: O golpe civil-militar brasileiro de 1964 encontra em Hobsbawm (1995) e Fico


(2004) a descrição da marca usual a todos os outros que ocorreram na América Latina: um
confronto entre esquerdistas céticos à política americana e reacionários basicamente
constituídos pelas Forças Armadas e o terceiro setor. O desenlace político desse embate
mostrou um apoio norte-americano ao regime ditatorial abalroado de tortura e perseguição, no
qual o discurso anticomunista era uma premissa para a união entre ditadores militares e o
governo dos Estados Unidos. É nessa superfície de histeria contra posicionamentos de
esquerda e arbitrariedade política que determinados enunciados emergem. Além da atuação
velada dos torturadores nos porões dos DOI-CODI, da espionagem do famoso SNI – Serviço
Nacional de Informações, da perseguição aos estudantes e guerrilheiros e dos Atos
Institucionais decretados, um cuidadoso esquema de propaganda, esquematizado por agências
do governo (como a AERP e a ARP), servia aos desejos da utopia autoritária divulgando
peças e campanhas nas quais se denegria a imagem dos opositores e se fomentava o ideário de
amor à nação. Para tanto, eram elaboradas campanhas educativas e cívicas que tinham a
concepção de “educar o povo, para que ele soubesse agir no ‘país grandioso’ que se pensou
ser o Brasil” (FICO 2004, p. 55), nas quais os políticos da época eram vistos como
autoridades inquestionáveis e a representação da sociedade miscigenada evocava a união da
sociedade brasileira em torno do dispositivo ufanismo. Tomando principalmente a teoria
proposta por Michel Foucault, este trabalho pretende analisar de que forma os enunciados
ufanistas das propagandas oficiais produzidas durante o período da Ditadura Militar Brasileira
pretendiam fabricar sujeitos dóceis e úteis ao modelo de sociedade proposto.

PALAVRAS-CHAVE: Enunciado. Identidade. Biopolítica. Biopoder. Sociedade de


Controle.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Em Foucault, o estudo do termo “enunciado” resulta em uma reflexão filosófica que


muito interessa à Análise do Discurso e logo, às reflexões preliminares essenciais para o
trabalho ora proposto. O tema, já esgotado nos debates da Linguística, encontra na intersecção
desta com a História e outras áreas do pensamento humano, como a Psicologia, a renovação
necessária para os avanços das pesquisas que envolvem a discussão em torno do sujeito e do
discurso, que no pensamento foucaultiano não é o produto de uma retórica mas sim:
Conjunto de enunciados, na medida em que se apóiem na mesma formação
discursiva; ele é constituído de um número limitado de enunciados, para os quais
podemos definir um conjunto de condições de existência; é de parte a parte,
histórico – fragmento de história, unidade e descontinuidade na própria história, que
coloca o problema de seus próprios limites, de seus cortes, de suas transformações,
dos modos específicos de sua temporalidade (FOUCAULT, 1986, p. 135-36)

Em sua lógica pós-estruturalista, o historiador francês permite que vários campos


científicos se unam em prol do objetivo basilar dos analistas: descrever as condições de
produção em que determinados textos emergem, escrutinando as subjetividades e situações,
bem como a relação destes com a memória e com a tríade verdade-poder-saber. As palavras
de Orlandi complementam :
Partindo da idéia de que a materialidade específica da ideologia é o discurso e a
materialidade específica do discurso é a língua, trabalha a relação língua-discurso-
ideologia. Essa relação se complementa com o fato de que, como diz M. Pêcheux
(1975), não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o indivíduo é
interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido. (2001, p.
17)

A língua, então, se relaciona com as condições de produção sócio-históricas no


discurso, o domínio geral de enunciados que, em sua rotatividade, gera sentidos capazes de
serem elevados ao estatuto de verdade nas relações de poder que envolvem tanto as práticas
discursivas quanto as não-discursivas. E, se reconhecemos que o processo histórico tem uma
relação com a produção de textos, podemos inferir que aquele resguarda uma estreita ligação
com os sujeitos e consequentemente, com suas identidades.
Mas o que é o enunciado? As limitações estruturalistas que giram em torno da frase1 e
do speech act2 foram aperfeiçoadas pelas análises foucaultianas em torno do conceito:
[...] é uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir
da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição se eles ‘fazem
sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e
que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita). Não há
razão para espanto por não se ter podido encontrar para o enunciado critérios
estruturais de unidade; é que ele não é em si mesmo uma unidade, mas sim uma
função que cruza um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que faz com
que apareçam, com conteúdos concretos, no tempo e no espaço. [FOUCAULT,
2000, p. 99]

Evidentemente, a conclusão de que o enunciado não tem as mesmas propriedades que


a frase, a proposição ou o ato de fala, nos leva a pensar que ele não é uma estrutura, mas sim
uma função que permeia as estruturas dos signos e a eles pertence intrinsecamente e pela qual
se pode verificar efeitos de sentido. Sua existência é condicionada a um equilíbrio entre o
lingüístico e a materialidade e ele é necessário para dizer se subsiste ou não a frase, a
proposição, o ato de fala, e a fim de que se possa analisar se a proposição é “legítima e bem

1
Chama-se frequentemente frase uma sucessão de palavras organizada conforme a sintaxe, e enunciado, a
realização de uma frase em determinada situação. (CHARAUDEAU, 2008, p. 196)
2
Definir speech act
construída, se o speech act está em conformidade com as condições exigidas. Em
conformidade com as vontades de verdade e com o arquivo da época.
A partir dessas abordagens teóricas, pensamos que as relações humanas são
erigidas principalmente através dos textos orais e escritos. Tudo que é dito passa por um
agenciamento que resultará num arquivo, uma soma que recebe o estatuto de verdade.
Segundo o teórico francês, o arquivo é um jogo de regras para os tipos de textos aparecerem
em determinada época, a saber:
Chamarei de arquivo não a totalidade de textos que foram conservados por uma
civilização, nem o conjunto de traços que puderam ser salvos de seu desastre, mas o
jogo das regras que, numa cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento
de enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência paradoxal de
acontecimentos e de coisas. Analisar os fatos de discurso no elemento geral do
arquivo é considerá-Ios não absolutamente como documentos (de uma significação
escondida ou de uma regra de construção), mas como monumentos: é - fora de
qualquer metáfora geológica, em nenhum assinalamento de origem, sem o menor
gesto na direção do começo de uma archê - fazer o que poderíamos chamar,
conforme os direitos lúdicos da etimologia, de alguma coisa como uma arqueologia
(FOUCAULT apud REVEL, 2000 p.18).

À luz da abordagem pós-estruturalista, o arquivo abrange o conjunto dos discursos que


foram transformados em textos dentro de um certo recorte temporal, e que prosseguem
através da história.
Existe uma economia que regulamenta a produção dos dizeres e que classifica o
verdadeiro e o falso, e esta é cheia de particularidades, por exemplo: o discurso ufanista3
recebe o estatuto de verdade nas instituições que o produzem e reproduzem. É
constantemente usado pelo poder político sendo espalhado com a ajuda das instituições
educativas, científicas e da indústria da comunicação. Ele é fabricado e disseminado através
das grandes instituições políticas (no caso o exército, a escola, a igreja e a mídia). O bom
cidadão deve marcar o seu lugar de acordo com o que é valorizado como verdade por estas
estruturas, e então, sob pena das retaliações de uma exclusão identitária, o pertencer é
trabalhado. Segundo Hall [2004, p. 13], a identidade é o sentimento de pertença construído
social e historicamente. Ou seja, aspectos básicos que nos levam a nos comportar de
determinada forma, como integrantes de grupos específicos, não estão descritos em nossos
genes, não são biologicamente definidos e sim historicamente formados. Fazer parte de um
grupo significa adotar certos padrões de comportamento, além de formar uma imagem de si
mesmo e dos outros. Essa adoção de determinados paradigmas acontece no decorrer da vida
do sujeito. Baseando-nos no conceito de comunidade imaginada presente em HALL [1994,
pg. 50] acreditamos que uma cultura nacional é um meio de construção de significados que

3
Segundo o dicionário HOUAISS: “orgulho exagerado do país onde se nasceu.”
prepondera sobre nossas ações. Ser sujeito requere que o indivíduo, apesar de sua autonomia,
se identifique, a priori, com algo mais abrangente: uma nação a que ele reconheça como sua
pátria. A nação como lar “tem um poder de gerar um sentimento de identidade e lealdade”
[SCHWARZ apud HALL, 2004, p. 48]
Sendo assim, acreditamos nas afirmações desse mesmo autor quando ele afirma que
“uma cultura nacional [...] é uma estrutura de poder [...]”. O poder, que é a disposição de
autoridade, nesse caso foi exercido pelos civis-militares apoiadores do regime em direção ao
restante da sociedade brasileira, e subdividiu a mesma em “subversivos” e “cidadãos de bem”.
Transmutando uma parte da cultura nacional pela propaganda e trabalhando a identidade
através da mídia, a Sociedade de Controle4, durante o regime militar, constrói uma nova
identidade para o brasileiro, se valendo de uma vontade de verdade:
[...] essa vontade de verdade [...] apóia-se sobre um suporte institucional: é ao
mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas
como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas,
como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também
reconduzida, mais profundamente sem dúvida,pelo modo como o saber é aplicado
em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo
atribuído.[...] creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e
uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos [...] uma
espécie de pressão e como que um poder de coerção. Penso na maneira como a
literatura ocidental teve que buscar apoio, durante séculos, no natural, no verossímil,
na sinceridade, na ciência também – em suma, no discurso verdadeiro [...]
(FOUCAULT, 1996, p. 17-18)

Observando as relações entre o enunciado, o discurso, o arquivo, as vontades de


verdade, vamos observar como se deu a construção da identidade brasileira analisando a
ruptura tanto histórica quanto lingüística que transformou o ufanismo eugênico em ufanismo
territorial, melhor esclarecendo: como um ideal de nação calcado na higiene racial pouco a
pouco foi cedendo lugar a uma comunidade imaginada baseada na valorização das
características do hibridismo racial.

4
Nas sociedades pós-modernas, essa redução do assunto à linguagem também é feita pelos aparatos tecnológicos
e midiáticos. Estes podem objetivar o indivíduo,cuja reação é tender a crer no texto impresso. Marcamos aqui o
curioso papel da mídia na formação dos sujeitos e, consequentemente, o surgimento de uma Sociedade de
Controle que, segundo o historiador e filósofo Michel Foucault, é responsável pela origem do indivíduo
moderno, agindo não só sobre o corpo, mas também sobre a alma deste, tornando-o dócil e útil para a sociedade.
É aí que se salienta certa importância, um lugar estratégico que os meios de comunicação assumem no mundo
contemporâneo, [o que Martín-Barbero – 2003, p.33- designa como “mediacentrismo”], cuja relação se estreita
com o destaque que a mídia toma na atualidade. Torna-se impossível, assim, ignorar essa estrutura e suas ações.
Essa relevância é estudada por uma teoria da comunicação chamada Teoria da Agenda (ou hipótese da Agenda
Setting) definida do seguinte modo: “a teoria da agenda demonstra que a compreensão que as pessoas têm de
grande parte da realidade social é fornecida predominantemente pelos meios de comunicação de massa. [...] O
receptor tende a aceitar a representação apresentada pela mídia como a única possível.” [TEMER, 2009, p. 73]
O A PRIORI HISTÓRICO: PRIMÓRDIOS DE UMA CONSTRUÇÃO
IDENTITÁRIA BRASILEIRA: ROMANTISMO UFANISTA, UFANISMO
EUGÊNICO E O NASCIMENTO DO BIOPODER E DA BIOPOLÍTICA – DO BOM
SELVAGEM AO JECA TATU.

Segundo Foucault, (2000, p. 146), a condição para que enunciados façam parte de uma
determinada realidade, ou seja, recebam o estatuto de verdade, cristalizando-se,5 é a vontade
de verdade. Na medida em que ela coage o discurso, fazendo com que ele legitime e circule
saberes que vão conduzir ações, é necessário que nos voltemos para a discussão dos efeitos de
poder: as estratégias de objetivação e dominação abordam as políticas divisórias, que
construíram, primeiramente, o espaço ufanista indianista, o ufanista eugênico, e
posteriormente, o espaço ufanista multiétnico na formação de uma identidade brasileira.
No princípio, separa-se o verdadeiro e o falso, depois, o enunciado que recebe o
estatuto de verdade é ligado a efeitos específicos de poder, os quais são representantes de uma
ação política e uma ação econômica, que se materializam nos atos de linguagem.
No procedimento de criação de uma identidade brasileira, a primeira a causar amplo
efeito adveio da literatura de ficção, em que escritores do Romantismo do século XVII como
José de Alencar transformaram o silvícola no símbolo do povo brasileiro e o fundiram ao
conceito rousseauniano do estado de natureza humano, colocando em destaque o mito do
“bom selvagem”. Euclides da Cunha, na virada do século, em sua obra OS SERTÕES, realiza
um elaborado trabalho sobre a identidade brasileira na parte do livro que fala sobre “o
homem” enfatizando a interferência do meio sobre o modo de vida, dissertando sobre a
gênese dos mestiços sem preconceito, além de analisar tipos distintos como o gaúcho e o
jagunço. Ao descrever o sertanejo, Euclides exalta a força do mesmo, algo totalmente
diferente do que se verá num discurso que veio posteriormente, oriundo não do meio da
Literatura de prosa mas do meio acadêmico, um século depois:
Devido a situações econômicas experienciadas no Brasil, já em fins do século XIX a
representação simbólica da totalidade do povo brasileiro por um segmento étnico
singular (o elemento indígena) cai em desuso no campo intelectual. Não obstante, o
componente simbólico da generosidade será apropriado, de diferentes formas, por
inúmeros escritores, obras e canais de comunicação e do poder, a posteriori.
[SILVA, 2007, p.03]

As novas ordens mundiais que estabeleceram as configurações territoriais, cuja gênese estava
inscrita no período que abarcou as duas Guerras Mundiais, trouxeram um arranjo de
5
[...] chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo,[...] para o próprio
enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua referência (FOUCAULT, 1996, p.15)
inquietações usuais a todas as sociedades que, sob a influência do capitalismo, organizavam-
se sob a forma do Estado Nacional (SILVA, 2007) e da comunidade imaginada (HALL,
1994). O historiador Eric Hobsbawn (1996) acredita que, principalmente, o período entre
guerras inscreveu em todo o mundo um novo nacionalismo que instigou a formação das
identidades nacionais e o fortalecimento dos Estados.
O Brasil, não se excluiu desses acontecimentos, e havia uma necessidade premente de
se lançar os fundamentos da nacionalidade. O aspecto da sociedade brasileira naquela época
era representado pela enorme quantidade de escravos alforriados, dos índios e dos vários
imigrantes e descendentes de colonizadores. Um padrão multiétnico com uma alta taxa de
miscigenação delineava as características particulares do nosso país.
Na Europa do século 19 as discussões acadêmicas envolvendo a genética e a evolução
das espécies já aplicava em textos científicos voltados para o estudo da espécie humana os
princípios gerais do darwinismo que estudou a hereditariedade nos animais.
Em 1865, poucos anos depois da leitura do livro “A Origem das Espécies”, escrito
por seu primo Charles Darwin, o cientista britânico Francis Galton publicou dois
artigos na Macmillan´s Magazine em que pretendia provar que a inteligência e as
habilidades humanas não eram funções da educação e do meio, mas sim da
hereditariedade. Quatro anos depois, estes artigos foram expandidos e transformados
no livro “Hereditary Genius” (O Gênio Hereditário), dando origem às discussões
sobre o controle da reprodução human e o papel da seleção social na preservação das
“boas gerações”. Com esta obra, Galton introduziu um conjunto de idéias que, em
1883, ele denominou de eugenia, “a ciência da hereditariedade humana”. Suas
concepções eugênicas sobre o melhoramento racial se associaram intimamente às
discussões sobre evolução, seleção natural e social, progresso e degeneração,
conceitos fundamentais que constituíram as idéias científicas e sociais no final do
século XIX.[SOUZA, 2006, p.13]

Na primeira metade do século XX, começaram a surgir, tanto na Europa, quanto nos
Estados Unidos as primeiras sociedades eugênicas6, formadas por diversos grupos entre eles o
acadêmico e o judiciário, e que procuravam realizar pesquisas de forma acadêmica e científica
divulgando projetos de engenharia social, políticas e leis que incentivassem a implantação das
idéias eugênicas baseadas no conceito de uma raça pura, (a branca) que traria a cura para as
doenças da sociedade como a sífilis, o alcoolismo, a demência mental através da sua ativa

6
Os eugenistas classificavam as medidas eugênicas como “preventiva”, “positiva” e negativa”. Conforme a
definição de Renato Kehl, a “eugenia preventiva” consistia em combater os “venenos raciais” responsáveis pela
degeneração humana, como o álcool e o tabaco; “fazer a profilaxia das moléstias epidêmicas e endêmicas”, bem
como praticar a higiene e o saneamento em todos os seus aspectos. A “eugenia positiva” “cuida, por excelência,
da boa geração; é favorável á educação dos jovens no que diz respeito á sua educação sexual (...); se incumbe
também da educação física, do avigoramento pelas regras da boa higiene, dos exercícios bem compreendidos e
praticados”. Por outro lado, a “eugenia negativa” propunha um rigoroso controle sobre os meios de reprodução
humana, proibindo o matrimônio de indivíduos considerados “inaptos” ou “anormais”; é responsável, ainda, pela
formulação de leis que restrinjam a imigração e que apliquem a esterilização (KEHL, Renato. Sociedade
Eugênica de São Paulo. 1919).
participação no processo miscigenatório (branqueamento) . Logo, estas idéias chegam
também ao Brasil, sendo bem aceitas inclusive por Getúlio Vargas, admirador de estados
totalitários, como o fascista de Mussolini. A busca de uma identidade nacional baseada numa
seleção hereditária pela raça se torna uma preocupação política, o modelo da miscigenação de
preponderância negra e indígena começa a ser considerado como não adequado, pois derivado
de raças consideradas inferiores, infectas, e vários textos vão se entrecruzar e circular para
espalhar a idéia de ordem e progresso através de um embranquecimento da população, de um
novo conceito para o “ser brasileiro”. O sertanejo forte, o índio redentor não tem mais valor
de verdade. O que vale é o brasileiro que passa por problemas de saúde.
Assim, o Estado estatiza o biológico. A questão da vida passa a ser interesse dos
governantes, denominado por Foucault de biopoder, sua forma de ação ocorre através do que
o autor caracteriza como biopolítica. Diferentemente do poder pastoral, que age sobre o
indivíduo, aquele vai exercer controle sobre a população, o coletivo, e tornará públicos
saberes legitimados pelo discurso médico para criar uma nacionalidade agenciada pelo
dispositivo7 do ufanismo eugênico:
Ao que essa nova técnica de poder não disciplinar se aplica e - diferentemente da
disciplina, que se dirige ao corpo - à vida dos homens, ou ainda, se vocês preferirem,
ela se dirige não ao homem-corpo, mas ao homem vivo, ao homem ser vivo; no
limite, se vocês quiserem, ao homem-espécie.[...] a nova tecnologia que se instala se
dirige à multiplicidade dos homens, não na medida em que eles se resumem em
corpos, mas na medida em que ela forma, ao contrário, uma massa global, afetada
por processos de conjunto que são próprios da vida, que são processos como o
nascimento, a morte, a produção, a doença, etc. Logo, depois de uma primeira
tomada de poder sobre o corpo que se fez consoante o modo da individualização,
temos uma segunda tomada de poder que, por sua vez, não é individualizante mas
que é massificante, se vocês quiserem, que se faz em direção não do homem-corpo,
mas do homem-espécie. Depois da anátomo-política do corpo humano, instaurada
no decorrer do século XVIII, vemos aparecer, no fim do mesmo século, algo que já
não é uma anátomo-política do corpo humano, masque eu chamaria de urna
"biopolítica" da espécie humana. [FOUCAULT, 2005]

Ainda segundo o pensador francês, as noções do evolucionismo que versam sobre a


hierarquia das espécies, luta pela vida e seleção que elimina os menos adaptados tornou-se
uma espécie de fusão do discurso biológico com o discurso político no caso da eugenia. Os
enunciados cientificamente fundamentados buscavam provar as discrepâncias entre os

7
O termo "dispositivos" aparece em Foucault nos anos 70 e designa inicialmente os operadores materiais do
poder, isto é, as técnicas, as estratégias e as formas de assujeitamento utilizadas pelo poder. A partir do momento
em que a análise foucaultiana se concentra na questão do poder, o filósofo insiste sobre a importância de se
ocupar não "do edifício jurídico da soberania, dos aparelhos do Estado, das ideologias que o acompanham", mas
dos mecanismos de dominação: é essa escolha metodológica que engendra a utilização da noção de
"dispositivos". Eles são, por definição, de natureza heterogênea: trata-se tanto de discursos quanto de práticas, de
instituições quanto de táticas moventes: é assim que Foucault chega a falar, segundo o caso, de "dispositivos de
poder", de "dispositivos de saber", de "dispositivos disciplinares", de "dispositivos de sexualidade" etc. [REVEL,
2005, p.39]
indivíduos biologicamente superiores e inferiores e: “a medicina vai ser uma técnica política
de intervenção com efeitos de poder próprios. A medicina é um saber-poder que incide ao
mesmo tempo sobre o corpo e sobre a população, sobre o organismo e sobre os processos
biológicos e que vai, portanto, ter efeitos disciplinares e efeitos regulamentadores”
(FOUCAULT, 2005, p. 302) .
Os mais contundentes textos que faziam apologia à eugenia entre as décadas de 10 e
30, no Brasil, foram, notadamente, na área científica as publicações do médico Renato Kehl,
e, na área da Literatura e do Jornalismo, os do escritor Monteiro Lobato. A Sociedade de
Controle vai delineando a sua preponderância. Lancemos um olhar em um trecho de um livro
de Kehl:
“Não há solução para os males sociais fora das leis da biologia. Não há política
racional, independente dos princípios biológicos, capaz de trazer paz e felicidade aos
povos. Política econômica, conservadora, democrática, socialista, fascista,
comunista, todas essas políticas e formas de governo falham se não se inspirarem
nos ditames da ciência da vida. Eis, por que, a política por excelência, é a política
biológica, a política com base na eugenia”.[KEHL, 1933, p. 57]

Assim, os conceitos sobre raça e formação de uma identidade nacional impulsionaram


a elaboração do pensamento eugênico no Brasil, considerado uma das nações mais
miscigenadas do mundo. O futuro racial e a formação de uma nova identidade do brasileiro se
destacam. A ideia do atraso nacional perante os outros países mais industrializados como
Inglaterra e Estados Unidos era atribuído à miscigenação com raças ditas inferiores e somente
uma miscigenação com imigrantes europeus seria o remédio para evitar o colapso da nação
brasileira, pensamento que preenchia o imaginário ufanista das elites nacionais8. Nas palavras
de Souza houve, primeiramente, uma desaprovação explícita em textos internacionais, que
colocava o Brasil numa situação de desprestígio internacional:
A partir da metade do século XIX, muitos cientistas, viajantes e intelectuais
estrangeiros, apoiados nas teorias científicas e nos (pre)conceitos raciais, haviam
pronunciado diversos veredictos extremamente desfavoráveis ao futuro do Brasil.
Escritores como Arthur de Gobineau, Louis Couty e Louis Agassis - que estiveram
no Brasil durante a década de 1860 - além do inglês Thomas Buckle, consideravam
o Brasil como um “território vazio” e “pernicioso à saúde”, enquanto os brasileiros
eram vistos como “seres assustadoramente feios” e “degenerados”.Para estes
viajantes, uma conjunção de fatores climáticos e raciais, sobretudo a “larga
miscigenação”, era mobilizada para explicar a suposta inferioridade do homem

8
Neste período, o sistema republicano brasileiro estava dominado por amplas oligarquias regionais que
administravam o Estado a partir de relações políticas corruptas, como o coronelismo, o mandonismo e o
clientelismo. De acordo com José Murilo de Carvalho, pelo menos até o final da Primeira Guerra Mundial, o
sistema republicano brasileiro não fez nenhum esforço para incorporar a grande maioria da população, em
especial os negros, mestiços e sertanejos. Para esse autor, a própria idéia de povo era puramente abstrata e,
devido a falta de direitos que garantissem a cidadania, o próprio povo era, em sua grande maioria, hostil ou
totalmente indiferente ao sistema republicano (CARVALHO, José Murilo de. Brasil 1870-1914: A força da
tradição. In: ____________. Pontos e Bordados. escritos de história e política. Belo Horizonte: Editora
daUFMG, 1998, p. 120).
brasileiro e a impossibilidade do Brasil acessar os valores do “mundo civilizado”.
Essas representações negativas sobre a realidade nacional, quando não influenciaram
a opinião dos brasileiros sobre o seu próprio país, ao menos colocaram em dúvida a
viabilidade do Brasil no cenário internacional. [ 2006, p.23]

Assim, o enunciado científico do sertanejo como um tipo inferior e inapto vai ser
elevado ao estatuto de verdade pela elite intelectual e transmitido por grandes veículos de
comunicação de massa nacionais e famosos escritores. Jornais como O Estado de São Paulo,
Correio Paulistano, Jornal do Comércio, além da Revista Brazil- Médico e da Revista do
Brasil publicaram ampla propaganda, pareceres e notas sobre a fundação da Sociedade
eugênica, difundindo a eugenia entre o público bem como prestando informações sobre as
suas ocupações. O Jornal O Estado de São Paulo deu um enorme apoio ao movimento
eugenista em São Paulo, principalmente para os membros da Sociedade Eugênica, tendo em
vista que Julio de Mesquita, diretor e proprietário do referido jornal, era casado com a filha de
Arnaldo Vieira de Carvalho, presidente da Sociedade, o que teria possibilitado o estreito
contato entre estas instituições (DIWAN, 2003, p. 39).
Além de publicações como a Revista do Brasil9, temos ícones da Literatura Brasileira
apoiando a eugenia, como Monteiro Lobato, que lança, em 1914, na primeira revista citada, o
personagem Jeca Tatu, num artigo intitulado “Velha praga”. O personagem é um sertanejo
preguiçoso, indolente, um trabalhador rural inapto a ser inserido na “civilização”, tal qual o
Brasil era inapto a ser aceito em uma comunidade internacional. É uma alegoria da
preocupação das elites com o povo brasileiro.
Porém, muitos estudiosos do tema eugenia discordavam de alguns princípios da
hereditariedade na formação da identidade, atribuindo à pobreza do meio e à falta de
condições sanitárias básicas, as mazelas da sociedade nacional. O avanço das pesquisas
bacteriológicas influenciou muito na mudança de posicionamento de muitos intelectuais :
“Se, até então, a mestiçagem e o clima eram vistos como as principais causas da
degeneração racial, a ciência demonstrava, agora, que o atraso do país estaria
relacionado às doenças e a falta de saneamento. De uma interpretação determinista
sobre os problemas sociais, a ciência abriria caminho para uma interpretação
médico-sanitarista.” (SOUZA, 2006, p.28)

É sob essa nova verdade do saber científico que Monteiro Lobato redime Jeca Tatu de
sua culpa pelo seu fracasso e fracasso da nação, analisando o quanto as condições do meio
perenizam o seu sofrimento e as suas precárias condições de vida, construindo novos
9
Através das páginas da Revista do Brasil, Coelho-Neto ressaltava a importância da propaganda que as
autoridades médicas de São Paulo vinham fazendo em torno da Sociedade Eugênica de São Paulo: “realizando
conferências, espalhando Boletins, pregando, demonstrando, vai conseguindo realizar, ainda que lentamente, a
obra filantrópica da regeneração do homem, para cuidar, em seguida, do aperfeiçoamento da espécie” [SOUZA,
2006, p. 35]
enunciados ele cria uma verdade resultante do abrandamento do discurso eugênico na sua
fusão com o discurso ufanista. :
A nossa gente rural possui ótimas qualidades de resistência e adaptação. É boa por
índole, meiga e dócil. O pobre caipira é positivamente um homem como o italiano, o
português, o espanhol. Mas é um homem em estado latente. Possui dentro de si
grande riqueza em forças. Mas força em estado de possibilidade. E é assim porque
está amarrado pela ignorância e falta de assistência às terríveis endemias que lhe
depauperam o sangue, caquetizam o corpo e atrofiam o espírito. O caipira não é
assim. Está assim. Curado, recuperará o lugar a que faz jus no concerto
etnológico.[LOBATO, 1918, p. 34]

Podemos perceber que havia um mosaico de ideias que se misturavam tentando


reconstruir a identidade nacional através do reconhecimento de que os problemas do Brasil
poderiam ser mitigados. A inferioridade do homem brasileiro pregada pelos eugenistas mais
radicais deu lugar à uma discussão sobre o meio na qual este era mostrado como um ambiente
inóspito e letal pelas suas parcas condições de higiene e pela falta de interesse, das
oligarquias, de inserir os excluídos como os índios e os negros socialmente dando-lhes
condições dignas de sobrevivência. Os sanitaristas tentaram reverter estes efeitos de poder
através dos estudos bacteriológicos, que versavam ser a saúde debilitada do brasileiro uma
decorrência não da hereditariedade, mas de microorganismos presentes no meio. O biopoder
pouco a pouco vai modificando seus enunciados. Também havia uma asserção de que o
cruzamento racial feito com imigrantes europeus era um processo totalmente eugênico pelo
fato da freqüência racial branca ser maior. A construção de enunciados que faziam apologia à
miscigenação com imigrantes fortes (de descendência européia) era considerada como de
cunho eugênico e fator preponderante para a formação de uma nova identidade. Como vemos,
esta formação discursiva em torno da questão identitária nacional carrega elementos
contraditórios, que se contradizem e refutam um ao outro. [CLEUDEMAR, 2005,p.49].
Desaparece o Jeca Tatu fraco e doente. Aparece um homem forte e trabalhador, essencial para
a nova imagem identitária que vai se instaurar no regime militar, do qual falaremos agora.

O DISCURSO COMUNISTA, O GOLPE E O NOVO UFANISMO ANTICOMUNISTA


E MULTIÉTNICO.

O período pós Segunda Guerra Mundial foi de intensas trocas entre as forças armadas
brasileiras e norte-americanas. Os militares nacionais passaram a pressionar o governo de
forma que esse aumentasse sua força bélica e de inteligência. Esses esforços revelavam uma
tendência anticomunista que se espalhava também na sociedade civil e que era apoiada pelo
governo dos Estados Unidos. O governo federal nacional de situação, cujo presidente era João
Goulart, era de tendência comunista. A Aliança para o Progresso foi um programa criado no
governo do presidente John Kennedy que financiava os opositores de Jango, favoráveis a um
golpe militar. Em 18 de março de 1964 a Doutrina Mann é proclamada: os Estados Unidos
apóiam o governo de qualquer aliado, mesmo que este esteja sob os auspícios de um regime
autoritário como uma ditadura, contanto que fosse anticomunista [SUPERINTERESSANTE,
2014, p. 41].
Porém o presidente João Goulart se mostra favorável, em seus discursos, às reformas
de base, como a agrária, e também é de acordo com a expropriação de multinacionais. O
embaixador de Kennedy no Brasil, Lincoln Gordon, em uma das conversas telefônicas com a
liderança norte-americana demonstra toda a insatisfação ianque com os rumos do governo
brasileiro:
[GORDON] – Creio que uma de nossas tarefas mais importantes consiste em
fortalecer a espinha militar. É preciso deixar claro, porém com discrição, que não
somos necessariamente hostis a qualquer tipo de ação militar, contanto que fique
claro o motivo.
_ Contra a esquerda – cortou Kennedy.
_ Ele está entregando o país aos ...
_ Comunistas – completou o presidente.
_ Exatamente. Há vários indícios de que Goulart, contra a sua vontade ou
não...[GASPARI, 2002, p. 60]

Deste modo, a Aliança para o Progresso intensifica suas ações de financiamento e


frentes de propaganda foram criadas:
Outra frente de propaganda ficava por conta do Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (IPES) e do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), dois órgãos
brasileiros que contavam com financiamento dos Estados Unidos. Ambos produziam
conteúdo para rádio, televisão, cinema e jornais pregando o anticomunismo e a
oposição a Goulart, frequentemente misturando as duas coisas. Além das campanhas
amplas, o plano americano também contemplava ações focadas em público
diferenciado e formador de opinião: os militares brasileiros. Gastaram atuais US$ 60
mil em livros para os oficiais, e só em 1963 organizaram 1.706 exibições de filmes
“progressistas” em quartéis, bases, escolas e navios. [ SUPERINTERESSANTE,
2014, p. 39]

Em 30 de março de 1964 João Goulart proferiu um discurso no Automóvel Clube


para militares aliados exaltando as reformas de base. A informação chegou à oposição que,
receosa da iminência de um golpe comunista de Jango nas próximas 48 horas. Este foi
informado de que a movimentação militar de tendência liberal progressista teria apoio dos
Estados Unidos e foge para o Uruguai, em primeiro de abril de 1964, Castello Branco avisou
a Lincoln Gordon que o apoio bélico não seria necessário. Estava instaurada a ditadura.

O ATO INSTITUCIONAL NÚMERO 5: O LÉXICO DA DITADURA E O


SURGIMENTO DA ARP E DA AERP.
Podemos verificar que, dentro do discurso uma situação curiosa acontece: o léxico,
que é o conjunto de palavras de uma língua pode fazer aumentar a freqüência, na sociedade,
de alguns vocábulos. Os enunciados, determinados como partes do discurso recebem assim,
também efeitos de poder que podem agenciar as manifestações tanto escritas quanto verbais.
As palavras recebem o entrecruzamento de diferentes discursos. [CLEUDEMAR, 2005, p. 41]
A violência política percorreu um ciclo no regime brasileiro. Introduziu palavras no
léxico cotidiano, tais como cassar, eufemismos no vocabulário político,como a
expressão “maus tratos”, para designar pura e simplesmente a tortura; siglas no
direito constitucional, como AI, abreviatura dos dezessete atos institucionais
baixados na desordem legiferante nascida com a noção segundo a qual “a Revolução
legitima a si própria” proclamada no preâmbulo do AI-1. Coroando essa confusão
semântica, o próprio regime, autoproclamado “Revolução” [...] foi ao jazigo
aceitando a classificação de “autoritário”, quando para conhecê-lo, não se dispõe, há
mais de dois mil anos, de palavra melhor que ditadura. [GASPARI, 2002, p. 141]

Com o fechamento do Congresso, através do Ato Institucional número 5, no governo


de costa e silva, o regime ampliava muito os seus poderes: poderia cassar mandatos, demitir
sumariamente, suspendia direitos políticos, a liberdade de expressão (censura) e a reunião
pública, o confisco de bens, além de um artigo que permitida que se proibisse ao cidadão
exercer a sua profissão. Tais medidas feriam o cerne do texto constitucional. Urgia uma
necessidade de mascarar o autoritarismo do regime. A opinião pública precisava ficar do lado
dos militares e dos civis que apoiavam o regime (os industriais em sua maioria, temendo a
perda de suas propriedades através da reforma agrária proclamada por Jango), e isto
significava também apoiar um discurso anticomunista criado no seio da sociedade norte-
americana pós Segunda Guerra Mundial. Havia uma demanda de um certo tipo de brasileiro,
cordato para com os comandos militares, obediente, patriota. Para isso, era necessária a ajuda
da Sociedade de Controle e da Propaganda de Estado. A propaganda, que como já foi
comentado neste trabalho, recebia apoio financeiro dos Estados Unidos. Podemos concluir
então que esta nova formação discursiva brasileira, ufanista, multiétnica e dócil se apóia na
formação discursiva estadunidense anticomunista.
Não há dúvida de que um dos principais assuntos da história do século 20,
seguramente nos Estados Unidos, é a propaganda corporativa. É uma indústria
gigantesca. Estende-se, obviamente, sobre a mídia comercial, mas também sobre
todo o âmbito de sistemas que atingem a população: a indústria do entretenimento, a
televisão, uma boa quantidade do que aparece em escolas, muito do que aparece
consumado nos jornais e por aí vai, uma quantidade estraordinária do que vem se
consumando na indústria das relações públicas, que foi estabelecida nos Estados
Unidos no início desse século e desenvolveu-se principalmente a partir da década de
20. Tornou-se uma indústria enorme, espalhando-se pelo resto do mundo.[...] Seu
objetivo, desde o início, perfeitamente claro e consciente, foi “ controlar o juízo
público [...] Todos os mecanismos de controle serão arquitetados para substituir o
uso eficiente da força e da violência [...] [CHOMSKY, 1999, p. 10-11]
Por este panorama lançado, percebemos que o biopoder é preponderante também na
ditadura militar, mas seu discurso ufanista vai se modificando de acordo com os
acontecimentos históricos. Tenta-se regulamentar a população não mais pelos fatores
eugênicos e sim pelo oposto disso: a miscigenação seja ela qual for. Os enunciados não são
mais a respeito de um brasileiro que precisa se curar, mas de um brasileiro que precisa amar o
seu país e trabalhar. Ao tentar estruturar o campo de ação dos brasileiros pela propaganda,
recorrendo à violência nos casos de resistência, vemos outro conceito foucaultiano presente
nas relações ditatoriais com o povo, o de governamentalidade. De um lado, uma histeria
referente à ameaça comunista que se materializava principalmente na perda da propriedade
privada e uma identidade de brasileiro patriota obediente. De outro, uma normatização como
o AI-5 pronta a impor retaliações a quem se desviasse da norma. Assim, o sujeito cuida de si
influenciado apenas no campo do discurso, governamentalizado, não há necessidade de uso da
violência contra esse sujeito: ele foi objetivado pelo ufanismo.
A governamentalidade moderna coloca pela primeira vez o problema da
"população", isto é, não a soma dos sujeitos de um território, o conjunto de sujeitos
de direito ou a categoria geral da "espécie humana", mas o objeto construído pela
gestão política global da vida dos indivíduos (biopolítica). Essa biopolítica implica,
entretanto, não somente uma gestão da população, mas um controle das estratégias
que os indivíduos, na sua liberdade, podem ter em relação a eles mesmos e uns em
relação aos outros. As tecnologias governamentais concernem, portanto, também ao
governo da educação e da transformação dos indivíduos, àquele das relações
familiares e àquele das instituições. [REVEL, 2002, p. 54]

Esse contexto aparece com a ajuda da AERP, que foi criada em 12 de janeiro de 1968,
durante o governo do general Costa e Silva. Sua missão era difundir uma imagem melhor do
governo para a opinião pública. Em 1970, o general Médici fundou um sistema de
comunicação social para o Poder Executivo, cuja tarefa era “formular e aplicar uma política
capaz de, no campo interno, predispor, motivar e estimular a vontade coletiva para o esforço
nacional de desenvolvimento e, no campo externo, contribuir para o melhor conhecimento da
realidade brasileira” [ FICO, 1997, p. 34]. Geisel, em 1974, a aboliu e implantou a Assessoria
de Imprensa e Relações Públicas [AIRP] , para guiar a comunicação social do governo. Em
1976, porém, desmantelou a Airp em duas partes: Assessoria de Imprensa e Assessoria de
Relações Públicas [ARP] , subordinada à Assessoria de Imprensa e não à Casa Militar, como
costumava ser.
No decorrer do regime militar foram criados vários órgãos com a finalidade de fazer a
propaganda das realizações do governo e passar uma imagem favorável dos presidentes
militares, sem a preocupação de enaltecer as suas figuras porque se temiam comparações com
o Departamento de Imprensa e Propaganda [DIP], que agiu no Estado Novo. A propaganda
disfarçada era produzida por órgãos designados como “assessorias”. Tal estruturação tinha
filiais em estados como São Paulo e Rio de Janeiro. Havia também o Instituto Nacional do
Cinema, cuja produção era exibida, obrigatoriamente, em todas as emissoras de televisão. As
campanhas oficiais então revelaram o seu caráter ufanista, otimista, de cunho emotivo,
mobilizando a população sentimentalmente como o slogan criado após o AI-5: “Brasil, ame-o
ou deixe-o”:

Amar o país, no efeito de sentido procurado pelo discurso ufanista significava


orgulhar-se em exagero, trabalhar com afinco e acreditar na política totalitária, não questionar
a censura. A profusão de slogans progressistas pode ser verificada em exemplos como
“Ninguém segura este país”, ou “Este é um país que vai pra frente”, como podem ser
verificados nas imagens abaixo:

Como podemos observar, a característica primordial desse tipo de propaganda é a


utilização do slogan, frase curta e impactante. As agências de publicidade produziam grande
quantidade de material para a Aerp. [FICO, 1997]. A combinação do slogan progressista “país
que vai pra frente” com caricaturas de pessoas de diferentes etnias se dando as mãos celebra
um simulacro de união motivada pelas relações trabalhistas. É recorrente neste tipo de
veiculação a apologia a uma miscigenação, a um espírito de união que exclui o preconceito
racial, todos os desenhos apresentam pessoas se dando as mãos ou realizando um trabalho
colaborativo. A Norton Publicidade, uma agência que participou da produção de muitos
anúncios oficiais, tinha como sua maior cliente a Willys Overland do Brasil, empresa norte-
americana de automóveis, que na época produzia o Aero-Willys. Vejamos uma propaganda
desta agência:

A mensagem em letras pequenas diz:


Qualquer gigante ficaria uma fera no lugar dele. Há muito tempo que esse gigante
acorda cedo e trabalha até tarde. Por isso, esperamos sinceramente que esta seja a
última vez que alguém fala em gigante adormecido. E, agora, a mensagem do nosso
gigante: Pare de falar e trabalhe. Porque o futuro não existe até que você mesmo o
faça. E o seu país é este, nos outros você não passa de um estrangeiro.”

A frase em modo Imperativo (modo do autoritarismo, da ordem): “Pare de falar e


trabalhe” reflete duas características do governo vigente na época: censura (pare de falar) e
tentativa de subjetivação de um brasileiro trabalhador e dócil (obedeça-nos, trabalhe, não fale,
caso contrário, sofrerá um castigo físico – bordoada).
A propaganda oficial militar usou o dispositivo ufanista, o tema da união étnica e o
progresso através do trabalho e seu discurso acabou governamentalizando algumas instâncias
da música popular brasileira, como podemos perceber nessa capa de disco do grupo OS
INCRÍVEIS:
Na capa do disco, a presença da imagem que prevaleceu na propaganda institucional
de slogan “um país que vai pra frente”. Nela, se delineiam três pombas, que representam as
três etnias mais presentes aqui (branco, negro e índio). Podemos ver também ao fundo, abaixo
das pombas, a mulher, a criança, o trabalhador rual e o asiático e na frente, novamente uma
caricatura das três etnias segurando simultaneamente com o trabalhador rural uma corda que
guiará as três pombas, cujo efeito de sentido corresponde à delegar o controle da nação ao
povo, como se esta fosse a ideia principal da ditadura: o povo no poder.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pelo seu status de autoridade suprema, o militarismo exerceu o paroxismo do


Biopoder (FOUCAULT, 2002, p. 302) que é o poder de assegurar a vida, mas que no seu
auge, é “uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos em relação a outros”
fazendo uns viverem pela morte de outrem. Assim, camuflando e justificando essas práticas
por meio da propaganda, a ditadura conseguiu ativar em certos grupos o apoio ao regime e
aos crimes por este perpetrados, através de um discurso ufanista e anticomunista. O
importante era fazer o trabalhador obediente morrer e deixar o comunista morrer, sendo que o
terror ao comunismo inculcado no ideário do cidadão comum era uma das premissas para o
apoio à tortura, à morte. Nas palavras de Foucault: “vai aparecer nesse momento, a ideia de
uma guerra interna como defesa da sociedade contra os perigos que nascem em seu próprio
corpo e do seu próprio corpo”.
Os enunciados são as unidades mínimas deste processo, e foram gerados tanto por
sociedades científicas (no caso do ufanismo eugenista) quanto por sociedades de controle (no
caso do ufanismo multiétnico patriota). O discurso que controla todos esses textos pode não
ser o mesmo, mas a função enunciativa que transversalmente os perpassa é a mesma: criar
uma identidade que torne os indivíduos dóceis e suscetíveis às biopolíticas.
Assim, esta propaganda faz com que a burguesia brasileira reconheça uma “história” a
partir da reelaboração do conceito de nação, que abandona a biopolítica eugênica e abraça
mais um biopoder que celebra a união étnica.O poder se exerce no jogo das heterogeneidades
discursivas.

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