(IEL-UNICAMP) A construção do conceito de discurso demandou desde o início uma reflexão teórica sobre as articulações constitutivas de duas ordens de real: o da língua e o da história. Em um primeiro momento (Pêcheux, 1969), noções como estrutura e valor da língua (entendida como um sistema de diferenças que intervém enquanto base material na produção do sentido) se articulavam de forma privilegiada a noções como condições de produção e contradição de classe (entendidas como a materialidade dos processos sócio-históricos concretos que determinam os processos discursivos). Neste sentido, no arcabouço teórico vemos articular-se a noção de real à de materialidade simbólica e histórica: o real do discurso consistiria precisamente nessa articulação de duas ordens materiais irredutíveis embora imbricadas de forma constitutiva. Lembramos aqui da definição de discurso como um objeto teórico considerado ao mesmo tempo como sendo integralmente linguístico e integralmente histórico (Courtine, 1981). Somaram-se a estas noções a noção de inconsciente (Pêcheux, 1975) (como suporte do funcionamento da interpelação ideológica no processo de constituição do sujeito do discurso) e a de acontecimento (Pêcheux, 1983) (como cruzamento de uma atualidade e uma memória), que acrescentaram novas inflexões a essa reflexão. Por um lado, propõe-se a consideração da alíngua (lalangue, do impossível que escapa a toda simbolização) e de seus efeitos-sintomas na linguagem: o equívoco, o lapso, o ato falho, todas as modalidades do não-um, em relação aos processos de constituição do sujeito e do sentido (Milner, 1978). Por outro lado, a noção de acontecimento trouxe para o debate a questâo do acaso e da contingência histórica e de seus efeitos sobre as estruturas, o que desloca a reflexão sobre o real da história. Os conceitos de língua e de história são afetados ao se integrarem a esta nova constelação conceitual em que as noções de alíngua e acontecimento são compreendidas como modalidades do real. Por outra parte, com o desenvolvimento de pesquisas sobre diversas materialidades discursivas (Pêcheux, 1981), a própria noção de discurso acolhe abordagens inovadoras que propõem outros sistemas simbólicos como base material para a produção dos efeitos de sentido. Desta maneira, novos desafios estão abertos para a construção conceitual dentro da teoria e para a explicitação de práticas diferenciadas de análise. Algumas respostas a esses desafios teóricos e metodológicos foram apresentadas no primeiro dia do III SEAD. Os trabalhos do Simpósio II Real da língua, do sujeito, da história e do discurso contribuem com suas considerações para o debate do conjunto de questões que acabei de delinear balizado pelas noções de língua, história, discurso, sujeito, inconsciente e acontecimento, todas elas consideradas na sua opacidade conceitual, na sua possibilidade de equívoco quando definidas ou deslocadas de seus campos teóricos originários. Não deixam de ser polêmicas as apresentações deste simpósio quando consideradas no seu conjunto: desde a inovação terminológica que nos propõe Fernando Hartmann: a de “real NA língua”, que se sustenta na afirmação teórica, a partir da Psicanálise, da existência de um único real, às apresentações que introduzem na discussão outras ordens de real, como o corpo (no texto de Simone Hashiguti), os produtos do fazer artístico (a materialidade dos bonecos no texto de Luciene J. de Campos) ou o apelo para centrar o fogo teórico no real dos processos históricos concretos que determinam a discursividade (Helson Sobrinho). Temos ainda a materialidade dos afetos, quando inscrita na memória do discurso amoroso (João Cattelan) e o cruzamento do discursos jurídico, político, pedagógico e publicitário no campo dos livros didáticos (Rosane Pereira). Em todos os trabalhos encontramos, de forma explícita ou não, a afirmação de uma relação entre a noção de real mobilizada na escrita e a de materialidade; dalguma maneira, os autores, convocados a falar sobre o real, o fizeram através de gestos teóricos e analíticos que dizem a respeito de uma materialidade: discursiva, histórica, corporal, lingüística, inconsciente? De forma provocadora, eu colocaria a todos os integrantes do simpósio a questão do real do discurso, no geral tratado de forma tangencial nos textos: a partir de suas tomadas de posição teóricas particulares em relação ao estatuto do real e considerando a especial configuração conceitual que lhe atribuem em seus trabalhos, como definiriam ou não definiriam, o real do discurso? Ou real NO discurso, como aparece no fim do texto de Helson Sobrinho? Desta maneira, gostaria de deslocar minimamente o olhar para a construção do DISCURSO como objeto teórico, retomando as questões colocadas como tema deste simpósio: assumindo ou rejeitando a existência de diversas ordens de real, como caracterizariam, então, o objeto DISCURSO que nos convoca em um encontro como este? E eu insistiria ainda, de que maneira se relacionaria com a(s) materialidade(s) discursiva(s)? Em termos teóricos, que relação os integrantes deste simpósio estabeleceriam entre a noção de real do discurso, tal como tratado nos seus textos, e a de forma material? Não haveria um deslizamento sutil nos textos da noção de real para a de materialidade? E se pensarmos, como alguns autores o fazem (Fernando Hartmann, p.ex.), no real como impossível, materializado como falta, de que maneira esses pontos de impossível se manifestariam nas diversas materialidades consideradas? Se a evidência do sujeito e do sentido são os efeitos ideológicos elementares produzidos pelos processos discursivos, como descrever o real do discurso enquanto força material que intervém no real da história? Colocando a questão de outra maneira, no conjunto de sobredeterminações que tentamos abarcar com uma conceituação sobre o real ou sobre as diversas ordens de real que trabalham na produção do sujeito como causa de si e do sentido como literalidade, como inscrever conceitualmente a ordem do discurso compreendido como força material, como prática que intervém na história produzindo movimentos nas configurações das relações de força ai postas? Nos trabalhos apresentados neste simpósio, encontramos, no meu entender, duas modalidades diferentes de explicação para a questão da determinação do real ou sobredeterminação das diversas ordens de real sobre o sujeito e o sentido, ambos compreendidos como efeitos dessa determinação: 1-Uma explicação da positividade dos efeitos das relações de determinação: descrever a necessidade do que é e de como é; “é assim porque...” 2- Uma explicação na negatividade (eu diria denegação) dessas mesmas relações: descrever a necessidade do que não pode não ser: “não pode não ser assim porque” Nos dois casos, seja como explicitação das causas de uma existência, seja pela constatação de um impossível nessa existência, estamos lidando com um pensamento que se alicerça na necessidade. E aqui coloco outra questão provocadora: Como pensar a sobredeterminação dos processos de produção de sentido considerando a contingência: não a contingência da emergência dos efeitos mantendo a necessidade das causas; mas a contingência das próprias causas, isto é, a contingência dos elementos- processos de determinação. O que eu estou arriscando pensar é, especificamente no campo do discurso, o acontecimento como contingência. O que nos leva de volta à pergunta colocada por M. C. Leandro Ferreira a partir das apresentações da mesa redonda I Análise do discurso. Política e Movimentos Sociais: articulação do político/simbólico em práticas discursivas, a saber: que conceito de história se articula na construção do objeto teórico discurso, ou dito de outro modo, como definir o real da história? Nestas minhas últimas reflexões estou afetada pela tradução que fiz para a revista Crítica Marxista nº 20 do texto de L. Althusser (1982) sobre o materialismo do encontro, que como tantos outros textos do Althusser rachou a comunidade acadêmica e especificamente os intelectuais de esquerda em dois, os que vêem nesse texto (no último Althusser) um recuo idealista e um afastamento das teses do materialismo histórico (uma espécie de retificação de suas posições anteriores) e os que encontram no texto uma reflexão que introduz uma mudança de terreno para a discussão sobre o real da história. Na minha opinião, o que Althusser faz nesse texto é, sem negar a sobredeterminação dos processos históricos, abrir o conceito de história para a indeterminação potencial desses mesmos processos. A imagem usada é a da chuva de átomos de Epicuro, que caem ininterruptamente no vazio em trajetórias paralelas: um desvio infinitessimal nessa trajetória leva à colisão, ao encontro de átomos. O encontro é fortuito, é fruto do acaso, é puro acontecimento, porém Althusser também afirma a necessidade de duração para esse encontro, é necessário que o encontro dure o suficiente para que os átomos que colidem entre si grudem, isto é, se dê liga, que haja pega, que um mundo venha a existir. Na interpretação que eu faço desse texto, se o encontro é da ordem do acaso, a duração não o é. Embora a indeterminação potencial dos processos históricos esteja na base, abrindo a história para um campo não fechado nem previamente definido de possibilidades de ação, a própria ação não se reduz ao encontro, ela já é duração, liga, pega, aglutinação. É processo, é prática, e por isso tem a ver com as relações de poder, as instituições e as contradições que conformam toda formação social. Dois comentários para concluir. O texto de Althusser, de 1982, é contemporâneo do texto de Pêcheux sobre o acontecimento de 1983. Traduzindo Althusser, o livrinho “O Discurso. Estrutura e Acontecimento” de Pêcheux, ressoava em mim o tempo todo. Não só porque como o de Althusser trata-se de um texto último, inacabado, publicado após a morte de seu autor por decisão dos editores. Também não pelo fato de ter provocado no meio acadêmico o mesmo racha de interpretação, entre os que lêem nele uma retificação, um abandono de questões e os que o consideram uma mudança de terreno, um deslocamento da linha de maior inclinação do seu pensamento crítico e corrosivo no campo das ciências humanas e da política. A ressonância era efeito do paralelo que pode ser traçado entre as noçoes de acontecimento de Pêcheux e encontro ou pega de Althusser, entre a noção de duração em um e de memória no outro, a partir da presença em ambos da noção de estrutura, porém definida pelo que nela falha. Do encontro destes dois autores e de vários outros que vieram se pegar na duração de uma prática intelectual, ao mesmo tempo política e teórica, surgiu a aventura do discurso. Quais os encontros teóricos que nos permitem hoje continuar com essa aventura?. E aqui retomo as discussões do primeiro dia do III SEAD. Quais descrições da contemporaneidade permitem abrir um espaço teoricamente sustentado para produzir práticas intelectuais e políticas na resistência ao pensamento, permita-se-me o neologismo, “globolobotomizado”. Se nossa contemporaneidade se caracteriza por um modo de subjetivação que se sustenta no principio da individualidade radicalizada (como mostrou Eni Orlandi na sua conferência), se esse modo de subjetivação contemporâneo se define pela indiferença em relação a qualquer responsabilidade ética (como nos alertou Bethânia Mariani no seu debate à conferência de Benilton Bezerra), eu colocaria uma questão vital para todos nós na atual conjuntura histórica: como produzir condições para que se dê a duração de um encontro, para que se estabeleça um laço social, para que pegue um sujeito coletivo? Como intelectuais somos interpelados por este desafio, como produzir um pensamento do lado de fora em uma contemporaneidade que se representa sem dobras? Como animais políticos que somos, respondamos ao apelo para produzir múltiplas formas de encontro, apostando numa duração que possibilite que algo pegue, uma liga, uma aglutinação, um movimento. Enquanto isso, fica ainda a materialidade do gesto, na sua força de intervenção no real da história e do sentido. Sentar no chão, bater uma panela, ir pra rua, praticar o discurso, ler ainda Pêcheux.
Simpósio II: O real da língua, do sujeito, da história e do discurso
Porto Alegre, 30 de outubro de 2007 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALTHUSSER, Louis (1982) “ A corrente subterrânea do materialismo do encontro”. Trad.
Mónica G. Zoppi Fontana. In: Crítica marxista 20, p.9-48. RJ, Ed. Revan, 2005 COURTINE, Jean-Jacques. "Quelques problèmes théoriques et méthodologiques en analyse du discours; à propos du discours communiste adressé aux chrétiens". Em: Langages 62, p.9-127, 1981 MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Trad. Ângela Cristina Jesuíno. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987. PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso. 1ª ed. 1969.Trad. Eni P. de Orlandi. Em: F. Gadet & T. Hak (orgs) Por uma Análise Automática do Discurso. Uma Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campinas, Editora da UNICAMP, 1990. ----------------. Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. 1ª ed. 1975. Trad. Eni P. de Orlandi et alii. Campinas, Editora da UNICAMP, 1988. PÊCHEUX, M et alii. "La frontière absente (un bilan)". Em: Matérialités discursives. Lille, Presses Universitaires de Lille.1981. ----------------. O discurso: Estrutura ou Acontecimento. 1ª ed. 1983a .Trad: Eni P. de Orlandi. Campinas: Pontes, 1990.