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O REAL DO DISCURSO E SUAS MATERIALIDADES

Mónica Graciela Zoppi Fontana


(IEL-UNICAMP)
A construção do conceito de discurso demandou desde o início uma reflexão teórica sobre
as articulações constitutivas de duas ordens de real: o da língua e o da história. Em um
primeiro momento (Pêcheux, 1969), noções como estrutura e valor da língua (entendida
como um sistema de diferenças que intervém enquanto base material na produção do
sentido) se articulavam de forma privilegiada a noções como condições de produção e
contradição de classe (entendidas como a materialidade dos processos sócio-históricos
concretos que determinam os processos discursivos). Neste sentido, no arcabouço teórico
vemos articular-se a noção de real à de materialidade simbólica e histórica: o real do
discurso consistiria precisamente nessa articulação de duas ordens materiais irredutíveis
embora imbricadas de forma constitutiva. Lembramos aqui da definição de discurso como
um objeto teórico considerado ao mesmo tempo como sendo integralmente linguístico e
integralmente histórico (Courtine, 1981).
Somaram-se a estas noções a noção de inconsciente (Pêcheux, 1975) (como suporte do
funcionamento da interpelação ideológica no processo de constituição do sujeito do
discurso) e a de acontecimento (Pêcheux, 1983) (como cruzamento de uma atualidade e
uma memória), que acrescentaram novas inflexões a essa reflexão. Por um lado, propõe-se
a consideração da alíngua (lalangue, do impossível que escapa a toda simbolização) e de
seus efeitos-sintomas na linguagem: o equívoco, o lapso, o ato falho, todas as modalidades
do não-um, em relação aos processos de constituição do sujeito e do sentido (Milner, 1978).
Por outro lado, a noção de acontecimento trouxe para o debate a questâo do acaso e da
contingência histórica e de seus efeitos sobre as estruturas, o que desloca a reflexão sobre o
real da história.
Os conceitos de língua e de história são afetados ao se integrarem a esta nova constelação
conceitual em que as noções de alíngua e acontecimento são compreendidas como
modalidades do real.
Por outra parte, com o desenvolvimento de pesquisas sobre diversas materialidades
discursivas (Pêcheux, 1981), a própria noção de discurso acolhe abordagens inovadoras que
propõem outros sistemas simbólicos como base material para a produção dos efeitos de
sentido. Desta maneira, novos desafios estão abertos para a construção conceitual dentro da
teoria e para a explicitação de práticas diferenciadas de análise.
Algumas respostas a esses desafios teóricos e metodológicos foram apresentadas no
primeiro dia do III SEAD. Os trabalhos do Simpósio II Real da língua, do sujeito, da
história e do discurso contribuem com suas considerações para o debate do conjunto de
questões que acabei de delinear balizado pelas noções de língua, história, discurso, sujeito,
inconsciente e acontecimento, todas elas consideradas na sua opacidade conceitual, na sua
possibilidade de equívoco quando definidas ou deslocadas de seus campos teóricos
originários.
Não deixam de ser polêmicas as apresentações deste simpósio quando consideradas no seu
conjunto: desde a inovação terminológica que nos propõe Fernando Hartmann: a de “real
NA língua”, que se sustenta na afirmação teórica, a partir da Psicanálise, da existência de
um único real, às apresentações que introduzem na discussão outras ordens de real, como o
corpo (no texto de Simone Hashiguti), os produtos do fazer artístico (a materialidade dos
bonecos no texto de Luciene J. de Campos) ou o apelo para centrar o fogo teórico no real
dos processos históricos concretos que determinam a discursividade (Helson Sobrinho).
Temos ainda a materialidade dos afetos, quando inscrita na memória do discurso amoroso
(João Cattelan) e o cruzamento do discursos jurídico, político, pedagógico e publicitário no
campo dos livros didáticos (Rosane Pereira). Em todos os trabalhos encontramos, de forma
explícita ou não, a afirmação de uma relação entre a noção de real mobilizada na escrita e a
de materialidade; dalguma maneira, os autores, convocados a falar sobre o real, o fizeram
através de gestos teóricos e analíticos que dizem a respeito de uma materialidade:
discursiva, histórica, corporal, lingüística, inconsciente? De forma provocadora, eu
colocaria a todos os integrantes do simpósio a questão do real do discurso, no geral tratado
de forma tangencial nos textos: a partir de suas tomadas de posição teóricas particulares em
relação ao estatuto do real e considerando a especial configuração conceitual que lhe
atribuem em seus trabalhos, como definiriam ou não definiriam, o real do discurso? Ou real
NO discurso, como aparece no fim do texto de Helson Sobrinho?
Desta maneira, gostaria de deslocar minimamente o olhar para a construção do DISCURSO
como objeto teórico, retomando as questões colocadas como tema deste simpósio:
assumindo ou rejeitando a existência de diversas ordens de real, como caracterizariam,
então, o objeto DISCURSO que nos convoca em um encontro como este? E eu insistiria
ainda, de que maneira se relacionaria com a(s) materialidade(s) discursiva(s)? Em termos
teóricos, que relação os integrantes deste simpósio estabeleceriam entre a noção de real do
discurso, tal como tratado nos seus textos, e a de forma material? Não haveria um
deslizamento sutil nos textos da noção de real para a de materialidade? E se pensarmos,
como alguns autores o fazem (Fernando Hartmann, p.ex.), no real como impossível,
materializado como falta, de que maneira esses pontos de impossível se manifestariam nas
diversas materialidades consideradas?
Se a evidência do sujeito e do sentido são os efeitos ideológicos elementares produzidos
pelos processos discursivos, como descrever o real do discurso enquanto força material
que intervém no real da história? Colocando a questão de outra maneira, no conjunto de
sobredeterminações que tentamos abarcar com uma conceituação sobre o real ou sobre as
diversas ordens de real que trabalham na produção do sujeito como causa de si e do sentido
como literalidade, como inscrever conceitualmente a ordem do discurso compreendido
como força material, como prática que intervém na história produzindo movimentos nas
configurações das relações de força ai postas?
Nos trabalhos apresentados neste simpósio, encontramos, no meu entender, duas
modalidades diferentes de explicação para a questão da determinação do real ou
sobredeterminação das diversas ordens de real sobre o sujeito e o sentido, ambos
compreendidos como efeitos dessa determinação:
1-Uma explicação da positividade dos efeitos das relações de determinação: descrever a
necessidade do que é e de como é; “é assim porque...”
2- Uma explicação na negatividade (eu diria denegação) dessas mesmas relações: descrever
a necessidade do que não pode não ser: “não pode não ser assim porque”
Nos dois casos, seja como explicitação das causas de uma existência, seja pela constatação
de um impossível nessa existência, estamos lidando com um pensamento que se alicerça na
necessidade. E aqui coloco outra questão provocadora:
Como pensar a sobredeterminação dos processos de produção de sentido considerando a
contingência: não a contingência da emergência dos efeitos mantendo a necessidade das
causas; mas a contingência das próprias causas, isto é, a contingência dos elementos-
processos de determinação. O que eu estou arriscando pensar é, especificamente no campo
do discurso, o acontecimento como contingência. O que nos leva de volta à pergunta
colocada por M. C. Leandro Ferreira a partir das apresentações da mesa redonda I Análise
do discurso. Política e Movimentos Sociais: articulação do político/simbólico em práticas
discursivas, a saber: que conceito de história se articula na construção do objeto teórico
discurso, ou dito de outro modo, como definir o real da história?
Nestas minhas últimas reflexões estou afetada pela tradução que fiz para a revista Crítica
Marxista nº 20 do texto de L. Althusser (1982) sobre o materialismo do encontro, que como
tantos outros textos do Althusser rachou a comunidade acadêmica e especificamente os
intelectuais de esquerda em dois, os que vêem nesse texto (no último Althusser) um recuo
idealista e um afastamento das teses do materialismo histórico (uma espécie de retificação
de suas posições anteriores) e os que encontram no texto uma reflexão que introduz uma
mudança de terreno para a discussão sobre o real da história. Na minha opinião, o que
Althusser faz nesse texto é, sem negar a sobredeterminação dos processos históricos, abrir o
conceito de história para a indeterminação potencial desses mesmos processos. A imagem
usada é a da chuva de átomos de Epicuro, que caem ininterruptamente no vazio em
trajetórias paralelas: um desvio infinitessimal nessa trajetória leva à colisão, ao encontro de
átomos. O encontro é fortuito, é fruto do acaso, é puro acontecimento, porém Althusser
também afirma a necessidade de duração para esse encontro, é necessário que o encontro
dure o suficiente para que os átomos que colidem entre si grudem, isto é, se dê liga, que
haja pega, que um mundo venha a existir. Na interpretação que eu faço desse texto, se o
encontro é da ordem do acaso, a duração não o é. Embora a indeterminação potencial
dos processos históricos esteja na base, abrindo a história para um campo não fechado nem
previamente definido de possibilidades de ação, a própria ação não se reduz ao encontro,
ela já é duração, liga, pega, aglutinação. É processo, é prática, e por isso tem a ver com as
relações de poder, as instituições e as contradições que conformam toda formação social.
Dois comentários para concluir. O texto de Althusser, de 1982, é contemporâneo do texto
de Pêcheux sobre o acontecimento de 1983. Traduzindo Althusser, o livrinho “O Discurso.
Estrutura e Acontecimento” de Pêcheux, ressoava em mim o tempo todo. Não só porque
como o de Althusser trata-se de um texto último, inacabado, publicado após a morte de seu
autor por decisão dos editores. Também não pelo fato de ter provocado no meio acadêmico
o mesmo racha de interpretação, entre os que lêem nele uma retificação, um abandono de
questões e os que o consideram uma mudança de terreno, um deslocamento da linha de
maior inclinação do seu pensamento crítico e corrosivo no campo das ciências humanas e
da política. A ressonância era efeito do paralelo que pode ser traçado entre as noçoes de
acontecimento de Pêcheux e encontro ou pega de Althusser, entre a noção de duração em
um e de memória no outro, a partir da presença em ambos da noção de estrutura, porém
definida pelo que nela falha.
Do encontro destes dois autores e de vários outros que vieram se pegar na duração de uma
prática intelectual, ao mesmo tempo política e teórica, surgiu a aventura do discurso.
Quais os encontros teóricos que nos permitem hoje continuar com essa aventura?. E aqui
retomo as discussões do primeiro dia do III SEAD. Quais descrições da contemporaneidade
permitem abrir um espaço teoricamente sustentado para produzir práticas intelectuais e
políticas na resistência ao pensamento, permita-se-me o neologismo, “globolobotomizado”.
Se nossa contemporaneidade se caracteriza por um modo de subjetivação que se sustenta no
principio da individualidade radicalizada (como mostrou Eni Orlandi na sua conferência),
se esse modo de subjetivação contemporâneo se define pela indiferença em relação a
qualquer responsabilidade ética (como nos alertou Bethânia Mariani no seu debate à
conferência de Benilton Bezerra), eu colocaria uma questão vital para todos nós na atual
conjuntura histórica: como produzir condições para que se dê a duração de um
encontro, para que se estabeleça um laço social, para que pegue um sujeito coletivo?
Como intelectuais somos interpelados por este desafio, como produzir um pensamento do
lado de fora em uma contemporaneidade que se representa sem dobras? Como animais
políticos que somos, respondamos ao apelo para produzir múltiplas formas de encontro,
apostando numa duração que possibilite que algo pegue, uma liga, uma aglutinação, um
movimento. Enquanto isso, fica ainda a materialidade do gesto, na sua força de intervenção
no real da história e do sentido. Sentar no chão, bater uma panela, ir pra rua, praticar o
discurso, ler ainda Pêcheux.

Simpósio II: O real da língua, do sujeito, da história e do discurso


Porto Alegre, 30 de outubro de 2007
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALTHUSSER, Louis (1982) “ A corrente subterrânea do materialismo do encontro”. Trad.


Mónica G. Zoppi Fontana. In: Crítica marxista 20, p.9-48. RJ, Ed. Revan, 2005
COURTINE, Jean-Jacques. "Quelques problèmes théoriques et méthodologiques en
analyse du discours; à propos du discours communiste adressé aux chrétiens". Em:
Langages 62, p.9-127, 1981
MILNER, Jean-Claude. O amor da língua. Trad. Ângela Cristina Jesuíno. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1987.
PÊCHEUX, Michel. Análise Automática do Discurso. 1ª ed. 1969.Trad. Eni P. de Orlandi.
Em: F. Gadet & T. Hak (orgs) Por uma Análise Automática do Discurso. Uma
Introdução à Obra de Michel Pêcheux. Campinas, Editora da UNICAMP, 1990.
----------------. Semântica e Discurso. Uma Crítica à Afirmação do Óbvio. 1ª ed. 1975. Trad.
Eni P. de Orlandi et alii. Campinas, Editora da UNICAMP, 1988.
PÊCHEUX, M et alii. "La frontière absente (un bilan)". Em: Matérialités discursives. Lille,
Presses Universitaires de Lille.1981.
----------------. O discurso: Estrutura ou Acontecimento. 1ª ed. 1983a .Trad: Eni P. de
Orlandi. Campinas: Pontes, 1990.

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