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Por vezes o requinte era de tal que alguns dos algozes vinham para São Paulo contar
com pormenor o que se tinha passado nos fuzilamentos. Refira-se um exemplo.
Kapalakata e mais uns dezasseis condenados foram fuzilados por ordem do Tribunal.
Ora, no dia seguinte, aquele mesmo que tinha ordenado o fuzilamento estava em São
Paulo a contar como tudo se tinha passado perante o horror estampado no rosto dos
ouvintes – diziam que esse método era do agrado dos dirigentes máximos do MPLA.
NA BARRA DO CUANZA
Chegam, por fim, ao local destinado. É noite cerrada. Uma clareira perto da estrada, uma
barraca de apoio aos militares que guardam esta zona, e tudo o mais é deserto. Os
prisioneiros são descidos das viaturas e a gasolina descarregada. As viaturas são
dispostas de forma a iluminarem o sítio indicado pelo guarda militar local. Este
policiamento local e permanente justificava-se pela frequência destas execuções (nota
3).
Tino levava instruções para fazer sofrer os condenados até aos limites da sua
imaginação e experiência. E, de facto, Tino revelou-se um notável executor de tais
instruções. Este é, sem dúvidas, um dos testemunhos mais eloquentes da violência
arbitrária e brutal que o MPLA fez perpetuar no território angolano.
Com o pelotão de execução já alinhado, dirige a palavra aos condenados, como se de
um julgamento se tratasse:
Camaradas, houve um golpe em Luanda. Determino que vocês, aqui perante mim, digam
a verdade. – e acrescenta – Quem não disser a verdade será imediatamente abatido!
De seguida aponta para o primeiro e pergunta:
Fizeste parte do levantamento?
Camarada, eu fazia parte da 9a Brigada... – Responde este com a voz inundada de
medo.
Camarada, eu não tomei parte em nada – afirma o segundo.
Ah! Não tomaste parte! Muito bem! – Ordena que este oficial seja colocado de costas
para o mar e grita:
-- Fuzilar!
Os militares disparam. O barulho é ensurdecedor (por isso procuraram um local como
este, descampado, com uma única testemunha isenta, o oceano). O terror aumenta no
rosto dos oficiais. O corpo fuzilado cai no chão trespassado de balas. Sob as ordens de
Tino o corpo é regado com gasolina e incendiado. Arde como um archote e incha como
se de um balão se tratasse. Por fim rebenta, ardendo até ficar reduzido a cinza. O
arrepiamento estampa-se no rosto dos próprios militares da DISA. Mas o aviso está feito:
-- Digam a verdade, caso contrário vai já acontecer o mesmo – vocifera Tino.
Seria difícil imaginar um processo de execução mais violento, sádico e, sobretudo, mais
eficaz na fermentação do medo na consciência daquelas vítimas seleccionadas para este
“abate”. A noite, a completa irracionalidade do interrogatório, os tiros, o sangue, a
gasolina... Adensaram o terror, fazendo desta antecâmara da morte um verdadeiro
inferno. De facto, diante de tudo aquilo que viram e ouviram, todos optaram por confessar
o que lhes era pedido. Porém, quando o último se acusou, logo recomeçou a execução;
a morte tinha sido adiada por poucos minutos. Foram mortos um a um, para que cada
um fosse obrigado a ver na morte dos companheiros, prelúdio da sua própria. No fim,
depois dos “ritos” das balas, seguiu-se o banho de gasolina e a respectiva cremação dos
corpos num autêntico gesto de ostentação do horror. A pá lançou os últimos resíduos ao
mar, selando o destino trágico desta geração angolana de oficiais e procurando calar
qualquer evidência que denunciasse estes fuzilamentos.
Por agora tinha acabado, mas no dia seguinte a sessão continuou. Moisés, entre outros
elementos da DISA, tentaria esquivar-se a este serviço certamente por acharem que
aquelas modalidades de fuzilamentos se revestiam de uma desumanidade insuportável.
NOTAS:
1. Inferno, motorista e amigo de Agostinho Neto, dizia que por várias vezes militares
haviam sido forçados a matar os seus familiares. Inferno tinha pertencido ao MPLA no
tempo da guerrilha pela independência. Depois passou a trabalhar no Palácio
Presidencial.
2. Carlos Pacheco refere-se desta forma aos acontecimentos trágicos que aqui se
descrevem: “Neto de certeza nunca soube quem, de facto, matou Bula, Nzagi e outros
dirigentes encontrados dentro de uma ambulância; e também o que aconteceu com duas
brigadas de elite, cujos soldados, durante a noite, em praias distantes de Luanda, foram
trucidados um a um, na presença uns dos outros, num espectáculo de inenarrável terror,
em que as vítimas, trespassadas pela loucura do medo, choraram até ao último instante,
suplicando que as poupassem.” (Repensar Angola, Lisboa: Vega 2000, 118.)