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COLECÇÃ O SÉ CULO XX
Obras publicadas:
1 - A Centelha da Vida, Erich-Maria Remarque 2 - Tempo para Amar e Tempo para Morrer,
Erich-Maria Remarque
3 - 08/15 - A Caserna, Hans Hel mut Kirst 4 - Filho de Ladrã o, Manuel Rojas 5 - 08/15 - A
Guerra, Hans Hel mut Kirst 6 - O Denunciante, Liam O’Flaherty 7 - 08/15 - A Derrota, Hans
Hel mut Kirst 8 - Uma Mulher em Berlim, Christine Gamier 9 - Trabalho sem Esperança,
Kamala Markandaya 10 - Fim de Semana em Zuydcoote, Robert Merle 11 - A Oeste Nada de
Novo, Erich-Maria Remarque 12 - Um Rapaz de Florença, Vasco Pratolini 13 - A Meta, Yves
Gibeau
14 - A Barca dos Sete Lemes, Alves Redol 15 - Deus Dorme em Masú ria, Hans Hel mut Kirst
16 - Chora, Terra Bem Amada!, Alan Paton 17 - Nem só de Pã o Vive o Homem, Vladimir
Budintsev 18 - Um, Intimo Furor, Kamala Markandaya 19 - A Ná usea. Jean-Paul Sartre 20 -
3455, Cela da Morte, Caryl Chessman ,21 - Fontamara, Ignazio Silone 22 - Uma Família de
Atenas, André Kedros 23 - Era a Madrugada, Emmanuel Robles 24 - Vinho e Pã o, Ignazio
Silone 25 - Entre o Pavor e a Esperança. Loys Masson 26 - A Pousada da Sexta Felicidade,
Alan Burgess 27 - A Morte É o Meu Ofício, Robert Merle 28 - Condenado em nome da Lei,
Caryl Chessman 29 - Gabriela, Cravo e Canela, Jorge Amado 30 - De Víbora na Mã o, Hervé
Bazin 31 - A Face da Justiça, Caryl Chessman 32 - O Ú ltimo Justo, André Schwarz Bart 33 - O
Garoto Era Um Assassino, Caryl Chessman 34 - Desenraizados, Erich-Maria Remarque 35 -
Exodus, Leon Uris
36 - A Felicidade nã o Se Compra, Hans Hel mut Kirst 37 - Sentinela Inú til, René Hardy 38 - A
Ponte, Manfred Gregor
39 - Terra de Nod, Judith Navarro 40 - Infortú nio de Amar, Claude Roy 41 - Um Silêncio de
Desejo, Kamala Markandaya 42 - A ú ltima viagem do «Port Polis», André Kedros 43 -
Esteiros, Soeiro Pereira Gomes 44 - Esmeralda, Stratis Myrivilis 45 - Jantar Mundano,
Claude Mauriac 46 -Mila 18, Leon Uris
47 - Levanta-Te e Caminha, Hervé Bazin 48 - Os Velhos Marinheiros, Jorge Amado 49 - A
Sentença, Manfred Gregor 50 - A Guerra das Bananas, K. H. Poppe 51 - Encontro em
Samarra, John O’Hara 52 - Fá brica de Oficiais, Hans Hel mut Kirst 53 - O Regimento da
Morte, Sven Hassel
O REGIMENTO DA MORTE
COLECÇÃ O SÉ CULO XX
SVEN HASSEL
O REGIMENTO
DA MORTE
Romance
PUBLICAÇÕ ES EUROPA-AMÉ RICA
RUA DAS FLORES, 45
LISBOA-2
Este romance foi traduzido da ediçã o francesa, com o título La Légion dês Damnés.
A ediçã o original foi publicada na Dinamarca.
Traduçã o de Maria Isabel Braga e Má rio Braga.
Capa de Joaquim Esteves.
Copyright by Sven Hassel.
Todos os direitos reservados para a língua portuguesa por Publicaçõ es Europa-América,
L.da.
LIVRO I
O REGIMENTO DA MORTE 15
Será possível que tantas coisas desapareçam em tã o poucos dias?
- Eva Schadows, conhece este homem, nã o é verdade?
«Ricto untuoso» é uma expressã o que eu detesto.
Achei-a sempre estú pida, exagerada. Mas nã o existe outra
para descrever a fisionomia do acusador: era um ricto untuoso.
- Sim.
A voz de Eva mal se percebia. Alguém amachucou um papel e o ruído fez-nos estremecer a
todos.
- Onde o conheceu?
- Em Coló nia, durante um alarme.
Aconteciam coisas dessas naquele tempo.
- Ele disse-lhe que era desertor?
- Nã o.
Mas ela nã o pô de suportar o silêncio arrogante e gaguejou:
- Julgo que nã o.
- Veja lá o que diz, menina! Nã o ignora, decerto, que é muito grave prestar declaraçõ es
falsas perante um tribunal
de justiça...
Ela fitava o soalho. Nem por um instante olhara para mim. O seu rosto estava cinzento,
como o de um doente que acaba de sair de uma operaçã o. As mã os tremiam-lhe de medo.
- Entã o em que ficamos? Ele disse-lhe ou nã o que era desertor?
- Sim, talvez mo tenha dito.
- Deve responder sim ou nã o. Queremos respostas concretas.
- Sim.
- E que lhe disse ele mais? Afinal, a senhora levou-o para Brema e deu-lhe dinheiro,
vestuá rio e muitas outras coisas. Nã o foi assim?
- Foi.
- Conte tudo isso ao tribunal, para nã o sermos obrigados a arrancar-lhe palavra por
palavra! Que lhe disse ele exactamente?
16 SVEN HASSEL
- Disseme que tinha fugido do seu regimento; pediu-me que o ajudasse, que lhe arranjasse
papéis. E foi o que eu fiz...
- Quando o encontrou em Coló nia ele andava fardado?
- Sim.
- Que farda era a dele?
- A farda negra dos carros de assalto, com um galã o de Gefreiter.
- Por outras palavras, você nã o podia duvidar de que se tratava de um soldado?
- Nã o.
- E foi ele que lhe pediu que o levasse para Brema?
- Nã o, fui eu que lho propus. E insisti. Ele queria entregar-se à s autoridades, mas eu
convencio a nã o fazer isso...
Eva, Eva. que está s tu para aí a dizer? Porque inventas essas mentiras?
- Por outros termos, foi você quem o impediu de cumprir o dever de se entregar à s
autoridades?
- Sim, impedi-o de cumprir o seu dever.
Eu nã o podia ouvir aquilo! Saltei como um louco, aos berros, gritando ao presidente que ela
mentia para tentar salvar-me, que estava a querer forjar-me circunstâ ncias atenuantes,
mas que nã o podia ter sabido que eu era militar.
visto que despira a farda no comboio, entre Paderborn e Coló nia. Que era preciso deixá -la ir
embora; ela ignorava que eu fosse soldado; ignorava mesmo que eu tivesse estado preso;
juro-o...
O presidente de um conselho de guerra poderá ter alguma coisa de humano? Ignorava-o,
mas queria acreditar
que isso fosse possível. Porém, os olhos dele eram tã o frios como dois pedaços de vidro e o
seu olhar fazia sangrar os meus gritos.
- Acusado, silêncio até ser interrogado! Mais uma palavra, e expulso-o da sala.
Os pedaços de vidro giraram como um farol.
- Eva Schadows, está pronta a jurar que o seu testemunho é conforme à verdade?
- Sim. Se ele me nã o tivesse conhecido, ter-se-ia entregado
à s autoridades.
O REGIMENTO DA MORTE 17
- Você ajudou-o também quando ele fugiu da polícia secreta?
- Sim.
- Obrigado. É quanto basta... Oh!... A propó sito, já foi condenada?
- Estou a cumprir cinco anos de reclusã o num campo de prisioneiros de Ravensbrü ck.
Quando a levaram, lançou-me, enfim um longo olhar e os seus lá bios arredondaram-se num
beijo. Os seus lá bios
estavam azulados e os seus olhos mostravam-se ao mesmo
tempo felizes e infinitamente tristes. Fizera alguma coisa por mim. Tinha a esperança, tinha
a certeza até de que isso me salvaria a vida. E, para dar esse fraco contributo à minha
defesa, sacrificara voluntariamente cinco anos da sua vida. Cinco anos em Ravensbrü ck!
A que ponto eu descera!
Trouxeram igualmente Trudi, mas ela desmaiou pouco tempo depois de se ter lançado nos
meandros de uma histó ria
louca, destinada a confirmar o depoimento de Eva.
O desmaio de uma testemunha numa sala de audiência e a sua saída em braços é um
estranho espectá culo.
Levaram
Trudi para fora e, quando a pequena porta se fechou sobre ela, foi como se todas as portas
se houvessem fechado
simultaneamente sobre mim.
Depois disto a sentença nã o se fez esperar. Toda a gente se pô s de pé para a ouvir ler,
oficiais e funcioná rios executando em conjunto a saudaçã o nazi.
«Em nome do Fü hrer...
Sven Hassel, Gefreiter no 11.º regimento de hussardos, é condenado, pelos presentes, a
quinze anos de trabalhos forçados por deserçã o. Além disso, ordena-se que Sven Hassel
seja expulso do seu regimento e privado de todos os direitos civis e militares durante um
período indefinido.
Heil Hitler!»
E se tu também desmaiasses? Nã o está s a ver tudo negro diante de ti, como no momento
em que eles paravam
de te espancar? Qual era a outra frase feita? Uma vergonha pior do que a morte! Isso
mesmo. Nunca pensaste
vir a utilizá -la. Mas as frases feitas nã o se fizeram R. M. - 2
18 SVEN HASSEL
para outra coisa. E agora já podes dizer a toda A gente o que esta significa.
Rectifiquemos: tu nã o podes ir a parte nenhuma.
Fiquei tã o pasmado, tã o divorciado das coisas reais, que ouvi, primeiro sem compreender,
os comentá rios do presidente.
Dizia ele que, poupando-me a vida, os juízes tinham permitido que a misericó rdia
temperasse a justiça.
Acrescentava
que eu era um Auslandsdeutscher; que fora chamado à Dinamarca e que certas mulheres
irresponsá veis, mulheres que nã o mereciam a honra de serem alemã s, me haviam
persuadido a desertar, e que, por todas essas razõ es,
o tribunal - com a sua infinita tolerâ ncia - nã o julgara ú til condenar-me à morte.
O REGIMENTO DA MORTE 25
- Vamos ver - disse ele um sá bado à tarde, apó s ter sido feita a chamada -, vamos ver se
vocês compreenderam
bem todas as minhas explicaçõ es. Vou tentar dar uma ordem simples a alguns de vó s e
apreciaremos todos se ela foi ou nã o bem executada.
Chamou cinco homens para fora das fileiras, ordenou-lhes que se voltassem para a cerca da
prisã o, da qual está vamos expressamente proibidos de nos aproximar a me’nos
de 5 metros.
- Em frente... marche!
Olhando a direito, os cinco homens marcharam em direcçã o à parede e caíram sob as balas
dos guardas postados
nos miradouros.
i De novo Schendrich se voltou para nó s.
-Que mais querem? Aqui está como se cumpre uma ordem! Agora vã o todos ajoelhar,
quando eu mandar, e repetir o que eu disser... A...joelhar!
Nã o houve um só retardatá rio.
- Vá , digam, mas em voz alta e inteligível: «Nó s somos porcos e traidores.»
- Nó s somos porcos e traidores!
- Que devem ser destruídos.
- Que devem ser destruídos!
- Porque é isso que nó s merecemos.
- Porque é isso que nó s merecemos!
- Amanhã , domingo, passaremos sem comer.
- Amanhã , domingo, passaremos sem comer!
- Porque quando nã o trabalhamos...
- Porque quando nã o trabalhamos...
- Nã o temos o direito de comer.
- Nã o temos o direito de comer!
Todas as tardes de sá bado estes coros de dementes retumbavam no pá tio e no dia seguinte,
domingo, ficá vamos
sem comer.
Uma mulher chamada Kathe Ragner ocupava a cela contígua à minha. Era horrível, com os
cabelos de um branco de giz e a boca desdentada por falta de vitaminas.
Os braços e as pernas nã o passavam de ossos cobertos por uma epiderme acinzentada.
Todo o corpo estava pintalgado
de chagas purulentas.
26 SVEN HASSEL
- Está s a olhar para mim - disse ela um dia. - Gostava de saber que idade me dá s!
Emitiu um riso seco, isento de toda a alegria. Depois, vendo que eu me calava, prosseguiu: -
Uns bons cinquenta anos, nã o é verdade? Faço vinte e quatro para o mês que vem. Aqui há
ano e meio todos me davam dezoito.
Fora secretá ria, em Berlim, de um oficial do estado-maior e travara conhecimento, no
pró prio gabinete onde trabalhava, com um jovem capitã o de quem ficara noiva.
Estava já fixada a data do casamento, mas este nã o se realizou. Quatro dias apó s terem
detido o noivo, vieram prendê-la a ela. Os homens da Gestapo tinham-na interrogado
por todos os processos durante três meses, acusando-a de haver tirado có pia de certos
documentos. Ela nunca compreendera nada daquilo, mas, juntamente com uma das
suas colegas, apanhara dez anos de trabalhos forçados. O
noivo e dois outros oficiais haviam sido condenados à morte
e um quarto a trabalhos forçados por toda a vida. Antes de mandarem Kathe Ragner para
Lengries obrigaram-na a assistir à execuçã o do noivo.
Certa manhã , quatro mulheres, entre elas Kathe, receberam
ordem de descer a rastejar a comprida escada íngreme que ligava os cinco andares.
Tratava-se de um género de exercício que os guardas gostavam de nos ver praticar. De
mã os e pés atados, nã o tínhamos outro remédio senã o deixarmo-nos
escorregar de cabeça para baixo.
Ignoro se a queda de Kathe foi ou nã o voluntá ria.
Chegara ao extremo da resistência e as duas hipó teses sã o
igualmente plausíveis. Ouvi o seu grito agudo e o barulho que fez o corpo a estatelar-se.
Depois de alguns segundos de silêncio mortal a voz excitada subiu finalmente das
profundezas:
- Esta porca quebrou a espinha!
Alguns dias apó s a morte de Kathe fui transferido, com um punhado de outros prisioneiros,
para o campo de concentraçã o de Fagen, perto de Brema, onde nos esperava
- pelo menos era o que nos diziam - um «trabalho especial de uma enorme importâ ncia».
Saber em que poderia consistir esse trabalho nã o nos interessava absolutamente nada.
Nenhum de nó s podia conceber,
nem por um só momento, que fosse menos penoso do que aquele a que está vamos
habituados. Tínhamo-nos acostumado a trabalhar como bestas de carga, atrelados a
charruas, a arados, a cilindros ou carroças, puxando até
cairmos mortos. Havíamos estado nas fiaçõ es de juta, a respirar aquela porcaria até
ficarmos liquidados no meio de uma hemorragia pulmonar.
Todos os trabalhos possuíam um ponto em comum: acabava-se, mais tarde ou mais cedo,
por cair de vez!
FACEN
Fagen, na verdade, trabalhava em duas frentes. Era na base um centro experimental de
medicina, mas havia também
as bombas.
Nos primeiros dias puseram-me nos trabalhos de terraplanagem.
Tínhamos de correr como forçados, a cavar terra desde as 5 horas da manhã até à s 6 da
tarde, sem outro alimento além de uma papa que continha mais á gua do que farinha e que
nos serviam três vezes por dia.
Depois
surgiu a oportunidade inesperada, que me apressei a agarrar com ambas as mã os, de ser
indultado.
O comandante do campo informou-nos de que só os voluntá rios tinham direito a isso. À
razã o de quinze por
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cada ano de pena que nos faltasse cumprir. O que, para mim, representava um total de
duzentas e vinte e cinco.
Mas agora vejo que ainda nã o expliquei nada. Lá vai: para termos a possibilidade de sermos
indultados era necessá rio
desmontar, por cada ano de pena a cumprir, quinze bombas que nã o haviam explodido.
Quinze bombas multiplicadas
por quinze anos - o meu primeiro ano estava longe de terminar - dava duzentas e vinte e
cinco bombas...
Nã o se tratava, evidentemente, de bombas vulgares, mas sim daquelas que nem os tipos da
defesa passiva, nem as unidades militares, se atreviam a enfrentar. Certos prisioneiros
haviam conseguido desmontar umas cinquenta antes de serem pulverizados, mas era
indispensá vel que, mais cedo ou mais tarde, alguém fosse, digamos, até à s duzentas
e vinte e cinco - e eu nã o hesitei em apresentar-me como voluntá rio.
Foi talvez este raciocínio que me decidiu. Ou entã o o facto de, todas as manhã s, antes de
partirmos, nos darem um quarto de pã o de centeio, um pedacinho de salsicha e três
cigarros, à laia de raçã o suplementar...
Apó s um período de instruçã o, sempre extremamente breve -como sã o, em tempo de
guerra, todos os «períodos de instruçã o» --, os SS conduziam-nos todos os dias aos diversos
locais onde nos esperavam as bombas por explodir.
Os nossos guardas mantinham-se a uma distâ ncia respeitá vel,
enquanto nó s cavá vamos a terra em redor da bomba, isto é, por vezes, até 5 ou 6 metros de
profundidade.
Depois da bomba a descoberto, era preciso libertá -la do resto de terra que a envolvia,
cingindo-a primeiro com um cabo e erguendo-a em seguida, centímetro a centímetro,
até a elevar completamente. Logo que o engenho ficava suspenso, com todo o seu peso. nos
mastros instalados
no buraco, toda a gente se punha ao largo, prudentemente, para nã o despertar o monstro,
mas com rapidez.
Um ú nico homem ficava: o prisioneiro encarregado de desmontar o engenho explosivo. Se
fizesse um movimento errado...
Trazíamos sempre um ou dois caixotes de madeira, no camiã o-oficina, destinados a esse
género de desastrados,
O REGIMENTO DA MORTE 29
mas nem todos os dias serviam. Nã o que os movimentos errados constituíssem excepçõ es,
mas por vezes tornava-se muito difícil encontrar qualquer coisa para meter no caixote.
Muitos sentavam-se sobre a bomba para desmontar o explosivo. Era mais fá cil manter
assim o detonador numa posiçã o firme. Mas eu descobri que valia mais deitar-me debaixo
da bomba depois de esta estar suspensa.
Bastava
entã o deixar deslizar o tubo muito devagarinho na mã o metida numa luva de amianto...
A minha 68.ª bomba era um torpedo aéreo e precisá mos de quinze horas para o
desenterrar. Quando se faz este género
de trabalho nã o se fala. Está -se permanentemente na expectativa. Cava-se com prudência,
reflectindo antes de apoiar a enxada, antes de nos servirmos das mã os ou dos pés. Torna-se
necessá rio respirar calmamente, regularmente,
nã o efectuando nenhum movimento irreflectido e nunca mais de um ao mesmo tempo.
Chegados a certa altura, as mã os sã o o melhor utensílio quando se quer evitar qualquer
desabamento de terra. Se um torpedo se deslocar meio centímetro, isso pode significar a
explosã o, a morte. Tal como se encontra agora, mantém-se silencioso e calmo.
Mas
que ideia lhe passará pela cabeça se nos lembrarmos de lhe modificar a posiçã o? Posiçã o
essa que tem necessariamente
de ser modificada... É preciso içar a bomba sobre o derrick que a transportará . É preciso
desmontar o explosivo
da bomba. Entretanto, mais vale nã o respirar, por isso despachemo-nos...
Nã o, nã o, nada de pressas intempestivas.
Devagarinho, mas com segurança. Devagar se vai ao longe.
Cada movimento muito calmo e deliberado...
Um torpedo aéreo é um adversá rio impassível; nã o mostra nada, nã o desvenda os seus
segredos. Nã o se pode fazer batota com um torpedo aéreo.
Proibiram-nos, desta vez, de desmontar a bomba no pró prio
local. Era preciso antes transportá -la para fora da cidade.
Isso tanto podia significar tratar-se de um novo tipo de bomba que ninguém conhecia
ainda, como encontrar-se esta numa posiçã o tal que a explosã o poderia produzir-se logo
que alguém se lembrasse de soprar sobre o explo-
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sivo... E a explosã o de semelhante monumento destruiria decerto todo o bairro em volta.
Um camiã o Krupp-Diesd equipado com um derrick aproximou-se, em marcha atrá s, da
beira da escavaçã o.
Foram precisas quatro horas de esforços para trazer a bomba para cima do derrick,
amarrada de tal forma que nã o pudesse deslocar-se nem um milímetro.
Alívio geral... Mas havíamos esquecido uma coisa!
- Qual de vocês sabe guiar?
Silêncio. Quando uma serpente venenosa nos trepa pela perna acima, diz-se que devemos
transformar-nos numa coluna de pedra, numa coisa morta, indigna de prender a atençã o de
uma serpente. Num segundo ficaram apenas no
terreno colunas de pedra, mentalmente recolhidas na sombra
mais espessa, enquanto o olhar do SS pulava, perscrutador,
de rosto para rosto. Nenhum de nó s o fitava, mas está vamos todos tã o dolorosamente
conscientes da sua presença
que os coraçõ es se magoavam cruelmente de encontro à s grades da caixa torá cica e
saltá vamos, em sonhos, por cima das crateras, no meio dos escombros.
- Tu, lá ao fundo, sabes guiar?
Nã o me atrevi a dizer que nã o.
- Entã o, vamos!
Havia bandeiras a indicar o itinerá rio a seguir. O
pavimento
da rua, graças a Deus, fora desimpedido e reparado, de forma a oferecer uma superfície
sensivelmente nivelada. Tudo isto em atençã o à s malditas casinholas deles!
Nem vivalma naquele sector. Os outros veículos seguiam-me a boa distâ ncia. Ninguém
sentia vontade de escoltar o perigo.
Passei diante de uma casa que ardia alegremente em silêncio. O fumo fez-me arder os
olhos, cegou-me, mas nã o
me atrevi a aumentar a velocidade. Apó s cinco minutos de franca agonia consegui de novo
respirar o ar fresco.
Ignoro quais foram os meus pensamentos durante essa viagem sem fim. Sei apenas que
tinha na minha frente todo
o tempo do mundo para reflectir e que estava calmo, interiormente
excitado, talvez, e, pela primeira vez, um pouco feliz. Quando cada segundo que passa pode
ser o ú ltimo, asseguro-vos de que dispomos de tempo para pensar. E, pela
primeira vez também depois de séculos, tinha consciência
O REGIMENTO DA MORTE 31
de ser de novo alguém. Perdera-me de vista a mim pró prio,
deixara de ter a mínima opiniã o a meu respeito, a minha personalidade estivera
comprimida, esmagada por todas as
formas, mas, apesar disso, sobrevivera e erguia-se de novo
intacta das humilhaçõ es, das degradaçõ es quotidianas.
Eu
te saú do! Pois ainda existes mesmo assim. E continuas a ser o mesmo. Olha para ti: está s
realizando uma coisa que os outros nã o ousam. Podes portanto fazer muito mais.
Algo
de indispensá vel. Atençã o a esses carris!
Deixei a cidade e atravessei os ú ltimos quarteirõ es cobertos de barracas de zinco ondulado,
onde só viviam os
vagabundos, os nó madas, os esfarrapados. Só esses...
Pelo
menos dantes. Agora está vamos em guerra e todas as noites
a cidade se constelava de novas crateras.
Algures um homem cavava um campo. Apoiou-se no cabo da enxada para me ver passar.
Gritei-lhe:
- Eh!... Entã o nã o corres a pô r-te a salvo ?
O estrépito do motor cobriu a sua resposta, mas ele ficou onde estava. Talvez me tivesse
gritado «Boa viagem»!
Que piada esquisita, percorrer assim tã o lentamente estradas
desertas!
Na cidade deviam começar a regressar aos apartamentos,
à s lojas. Primeiro, os mais corajosos. Depois, os outros, contentes e aliviados. Vejam só ,
tudo continua de pé!
As oportunidades de fuga nã o me haviam faltado, ao acaso das ruas vazias. Teria podido
saltar do camiã o, correndo
a pô r-me a salvo, enquanto a bomba continuaria o seu caminho, sem condutor, até ao
primeiro embate antes da grande explosã o. Porque nã o me aproveitei deste ensejo?
Nã o sei dizê-lo. Creio nunca haver saboreado tã o intensamente a alegria de viver.
Está vamos a só s, o meu querido torpedo aéreo e eu, e, enquanto assim nos
conservá ssemos,
ninguém ousaria aproximar-se de nó s sem licença.
Só acordei do meu transe quando já me encontrava em campo raso, no meio da charneca,
num caminho balizado com bandeiras vermelhas, cada vez mais espaçadas. Aí o meu
instinto de conservaçã o levou a melhor. Até onde fariam
eles tençã o de que eu continuasse assim a guiar? Seria
32 SVEN HASSEL
muito estú pido saltar agora, depois de todos aqueles quiló metros,
ao cabo de vinte e quatro horas de trabalho...
Pude, finalmente, livrar-me da bomba no meio das urzes, a 12 ou 13 quiló metros da cidade.
Uma vez que a sua descarga
era manifestamente impossível, fizeram-na explodir juntamente com o derrick.
Esta façanha valeu-me mais três cigarros, acompanhados da habitual observaçã o de que eu
os nã o merecia, mas que
o nosso bem-amado Fü hrer nã o era desprovido de sentimentos
humanos.
Três cigarros suplementares: julguei-me bem pago.
Contava
apenas com um.
Aconteceu-me o mesmo a que está sujeito qualquer prisioneiro:
adoeci. E talvez, por outro lado, essa doença me tenha salvo a vida! Consegui aguentar-me
durante cinco dias. Declarar-me doente equivalia a ser imediatamente enviado
para o hospital do campo, onde se ficava sujeito a experiências que nos inutilizavam para o
serviço; e ficava-se inutilizado para o serviço quando se morria em consequência
de tanto se ter servido. Mas caí sem sentidos durante uma chamada e, quando voltei a mim,
encontrava-me no hospital.
Nã o me disseram o que eu tinha. Nunca o revelavam a nenhum doente. No dia em que me
julgaram suficientemente
restabelecido para me aguentar de pé começaram as experiências. Deram-me inú meras
injecçõ es. Meteram-me num quarto onde reinava um calor de estufa, depois numa câ mara
frigorífica, onde me tiravam um pouco de sangue, com intervalos irregulares. Um dia
davam-me tudo o que eu
podia ingurgitar e no dia seguinte faziam-me rebentar de fome e de sede; ou entã o
obrigavam-me a engolir tubos de
borracha para extrair, no meio da digestã o, tudo aquilo que me haviam permitido e
obrigado a devorar.
A um estado miserá vel sucedia-se outro. Finalmente, fizeram-me
uma dolorosa punçã o à medula espinal, depois prenderam-me os pulsos aos varais de um
carro de mã o cheio de areia e ordenaram-me que o empurrasse, sem uma
O REGIMENTO DA MORTE 33
pausa, à volta de um recinto circular. De quarto em quarto de hora tiravam-me uma
amostra de sangue. Isto durou o dia inteiro, enquanto a cabeça me andava à roda e ia
perdendo
gradualmente a lucidez. Desse tratamento ficaram-me, durante meses, umas enxaquecas
insuportá veis.
No entanto, tive incomparavelmente mais sorte do que muitos outros. Um belo dia
acabaram por decidir que eu já suportara bastante, ou que já nã o podia talvez revelar-lhes
nada de novo. Fizeram-me regressar ao campo. Um SS, a rir à s gargalhadas, informou-me
de que eu já nã o pertencia
à s equipes de especialistas em bombas. As que eu tinha desmontado
nã o contavam. Voltei a esfalfar-me na pedreira.
Depois tornei à desmontagem das bombas, e atingira já de novo uma boa conta quando me
reenviaram para Lengries,
anulando assim mais uma vez todo o meu trabalho...
Sete meses num poço de calhaus em Lengries. Sete meses
de demência letá rgica, monó tona.
Um dia um SS veio buscar-me. Fui examinado por um médico. Encontrava-me coberto de
furú nculos purulentos.
Limparam-nos, desinfectaram-nos e encheram-nos de pomada.
O médico perguntou se eu me sentia bem. «Sim, doutor, sinto-me bem, estou de boa saú de.»
Lamentarmo-nos do estado de saú de era a ú ltima coisa que devíamos fazer.
Enquanto existisse um sopro de vida considerá vamo-nos saudá veis, fortes. :
Levaram-me ao SS Sturmbannfü 1)hrer Schendrich. As janelas do seu gabinete tinham
cortinas, cortinas limpas.
Cortinas, estã o a ver? De um tom verde-claro com desenhos
amarelos. Verde-claro com desenhos amarelos. Verde-claro com...
- Porque está s para aí embasbacado, santo Deus?
Estremeci interiormente:
- Por nada, Herr Sturmbannfü hrer. Desculpe-me, Herr Sturmbannfü hrer, tenho a honra de
declarar que nã o tenho
razã o alguma para estar embasbacado.
Uma inspiraçã o sú bita levou-me a acrescentar em voz baixa:
- Tenho a honra de declarar que nã o faço outra coisa senã o estar embasbacado...
R. M. - 3
34 SVEN HASSEL
Olhou-me, estranhamente interdito. Depois de sacudir nã o sei que importunas ideias,
estendeu-me uma folha de papel.
- Vais declarar aqui que recebeste sempre a alimentaçã o habitual do exército, que nunca
sofreste fome nem sede, que nã o tens nenhuma razã o de queixa das condiçõ es
de existência no interior do campo durante a estada que aqui fizeste.
Assinei. Que importâ ncia tinha aquilo? Iria ser transferido para outro campo? Ou teria
chegado a minha vez de me baloiçar na ponta de uma corda?
Empurrou para mim um segundo documento, de aspecto um tanto impressionante.
- E aqui vais declarar que foste tratado severamente, mas com justiça, em conformidade
com as normas do direito
internacional.
Assinei também. Que me importava?
- Se algum dia pronunciares uma sílaba sequer acerca do que viste ou ouviste aqui, deitar-
te-ei a mã o e preparar-te-ei eu mesmo a cerimó nia de recepçã o, percebeste?
- Percebi, Herr Sturmbannfü hrer.
Portanto, devia tratar-se de uma transferência.
Conduziram-me para uma célula onde me esperava uma farda verde, sem nenhuma
insígnia, que me mandaram
vestir.
- E limpa essas unhas, porcalhã o!
Um SS introduziu-me em seguida no gabinete do comandante,
onde recebi 1 marco e 21 Pfennigs, correspondentes aos meus sete ú ltimos meses de
trabalho. Um Stabscharfü hrer
berrou:
- Prisioneiro 552318 A... prestes a ser libertado...
Marche!
Isto era mais uma forma de tortura. Mas eu conhecia-lhes as manhas e sentia-me muito
ufano por nã o me deixar enganar. Executei meia volta e saí, à espera dê lhes ouvir as
gargalhadas. Mas nã o, a coisa era ainda mais subtil do que eu pensava. Dominavam todos o
riso.
- Sente-se no corredor até virem buscá -lo!
Nã o. Nã o estavam a rir. E, sem querer, comecei a ter esperanças. Esperei além de uma hora,
com os nervos cada
O REGIMENTO DA MORTE 35
vez mais em carne viva. Como era possível que aquela gente, seres aparentemente
humanos, pudessem levar tã o longe a perversã o e o sadismo? E repetia comigo: «Contudo
tu sabes que eles podem ir ainda bastante mais longe.
Julguei que estivesses para sempre vacinado contra esse género de ilusã o pueril...»
Ainda hoje torno a viver intensamente, quando penso nele, esse minuto de estupefacçã o
boquiaberta que se abateu
sobre mim quando segui o Feldwebel ao pequeno Opel cinzento, depois de me haverem
informado de que fora agraciado e que ia servir dali em diante num batalhã o disciplinar.
O pesado portã o bateu atrá s de nó s. Os grandes edifícios de minú sculas janelas com varõ es
de ferro foram desaparecendo, ao mesmo tempo que se afastava o medo,
o pavor sem nome...
Nã o conseguia compreender. Ficara estarrecido; melhor, consternado. O carro atravessava
já o pá tio da caserna de Hanô ver e ainda eu nã o me encontrava totalmente refeito do
choque.
Agora, no fim de todos estes anos, só consigo recordar-me do horror, do susto
inqualificá vel, apenas como uma coisa remota, passada de uma vez para sempre.
Mas porquê, porquê esta consternaçã o ao ver tudo aquilo esfumar-se por detrá s de mim? É
uma pergunta à qual nunca consegui responder.
Vinte vezes por dia, com grande acompanhamento de imprecaçõ es e blasfémias, repetiam-
nos que está vamos a
prestar serviço num batalhã o disciplinar, o que significava
que devíamos ser os melhores soldados do mundo.
Durante as seis primeiras semanas fizemos exercício das 6 horas da manhã à s 7 e meia da
tarde. Exercício, exercício, sempre exercício.
CENTO E TRINTA E CINCO CADÁ VERES
AMBULANTES
Exercício até nos sair sangue das unhas... E isto nã o é dito em sentido figurado!
Passo de ganso com toda a tralha à s costas: capacete de aço, mochila, sacos de muniçõ es
cheios de areia e capote de Inverno, enquanto por toda a parte as pessoas suavam em Liça
com fatos de Verã o.
Marcha forçada em terrenos lamacentos, onde nos enterrá vamos até meio da perna...
Manejo da arma, com o braço no ar, rosto impassível, metidos na á gua até ao pescoço.
Os nossos sargentos formavam uma matilha de cã es rosnadores que vociferavam e nos
descompunham até nos
conduzirem à beira da loucura. Podia-se estar certo de que
nã o perdiam uma ú nica oportunidade de tentar isso.
Nã o era possível castigar-nos proibindo-nos de sair das camaratas pela simples razã o de
que nã o dispú nhamos de
um só instante de liberdade. Serviço a todas as horas, serviço
e mais serviço. Concediam-nos, é certo, sessenta minutos para jantar e era nosso o tempo
que ia das 7 e meia à s 9 da noite. Mas se nã o gastá ssemos essa hora a limpar
as fardas enlameadas, a polir as botas e o resto do equiO REGIMENTO DA MORTE 37
pamento, ensinavam-nos a fazê-lo por meio das mais implacá veis represá lias.
À s 9 horas toda a gente devia estar deitada. O que nã o implicava, de modo nenhum, que
gozá ssemos de um sono reparador. Todas as noites tinham lugar exercícios de alarme e de
rá pida mudança de fardamento.
Logo que tocava o sinal de alarme, saltá vamos das tarimbas, enfiá vamos o uniforme de
campanha e apresentá vamo-nos
à revista. Mandavam-nos entã o envergar os uniformes de parada. Depois a farda de
exercício. Depois, de novo a farda de campanha. Nunca está vamos perfeitamente
equipados como devia ser. Noite apó s noite, os sargentos encurralavam-nos
e perseguiam-nos nas escadas do quartel como a um rebanho de animais assustados, a
ponto de a sombra de um só deles ser o suficiente, ou quase, para nos
fazer desmaiar de terror.
Ao cabo das seis primeiras semanas começou a segunda fase da nossa formaçã o prá tica e,
se nã o tivéssemos sabido
até entã o o que era a fadiga, as manobras de campanha nã o tardariam a ensinar-nos.
Atravessar de rastos quiló metros de um terreno especial para treino, atapetado de
escumalha de ferro ou de sílice cortante, que nos reduzia as palmas das mã os a uma polpa
sanguinolenta; ou entã o coberto por uma lama pú trida que ameaçava sufocar-nos... Porém,
o que ainda assim mais temíamos eram as marchas forçadas.
Certa noite os nossos sargentos irromperam pelas camaratas,
onde dormíamos um sono de mortos. Berravam com mais força ainda do que de costume,
se é possível: - Alerta! Alerta!
Saltos em massa para fora das tarimbas, seguidos de uma luta com as diferentes peças do
equipamento. Uma correia encravada, um mosquete teimoso, meio segundo perdido,
catá strofes! Nã o se haviam passado ainda dois minutos e já os apitos retiniam nos
corredores, já os pés dos sargentos faziam bater as portas...
- 3.ª companhia, reeeeuNIR! Que fazem vocês aí dentro? Ainda nã o desceram, santo nome
de Deus? E as camas todas por fazer. Onde julgam vocês que estã o, sua cambada de
falhados? Num asilo de velhos?
38 SVEN HASSEL
Pelas escadas descia uma torrente de homens aparvalhados,
a apertarem pelo caminho uma ou outra correia.
Dispunham-se em filas mal alinhadas no pá tio da caserna. Depois gritavam-lhes: - 3.ª
companhia... Voltar à camarata... FARDA DE
EXERCÍCIO!
Sempre me pareceu um desafio ao bom senso que homens
pudessem gritar daquela maneira sem que lhes rebentasse uma veia no cérebro. Mas talvez
fosse precisamente
o bom senso deles que estivesse em causa! Nã o sã o capazes de falar como as outras
pessoas. As suas palavras
ligam-se entre si de modo a produzirem uma espécie de balido, com excepçã o do ú ltimo
vocá bulo, que se esforça por estalar como a correia de um chicote. Nunca conseguireis
ouvi-los terminar uma frase com uma sílaba nã o acentuada. Tudo o que dizem é
entrecortado por salvas de interjeiçõ es militares, incompreensíveis. Aqueles urros, aqueles
interminá veis urros! Temos de concordar que esta gente tem uma aduela a menos...
Tal e qual uma onda que varresse tudo na sua passagem, assim os cento e trinta e cinco
recrutas que éramos se precipitavam escada acima, para atingirem a camarata e enfiarem a
farda de exercício antes de soar um novo «ReeeeuNIR!»...
Depois de executar este manejo uma dú zia de vezes, nessa noite, no meio do habitual
concerto de pragas e injú rias, a companhia formou finalmente no meio do pá tio, espavorida
e alagada em suor, mas em boa ordem de marcha,
pronta a partir para o exercício nocturno anunciado no programa.
O nosso comandante de companhia, um capitã o maneta chamado Lopei, observava-nos
com um sorriso nos lá bios.
Impunha aos seus homens uma disciplina de ferro, uma disciplina desumana. E, no entanto,
de todos aqueles algozes,
era o ú nico que possuía, aos nossos olhos, alguma coisa de humano. Tinha, pelo menos, a
decência de executar
ele pró prio tudo o que nos mandava fazer e nunca nos exigia nada que estivesse acima das
suas forças.
Quando
voltá vamos dos exercícios, vinha tã o estoirado como nó s.
Era a sua maneira de se mostrar leal, e a lealdade consO REGIMENTO DA MORTE 39
tituía uma virtude bem rara nos tempos que iam correndo.
Está vamos habituados a que todos quantos dispunham de autoridade armassem os outros
em bodes expiató rios e os
torturassem, os esgotassem com trabalhos, os tornassem definitivamente «inaptos»,
fazendo-os rebentar de fadiga ou
conduzindo-os ao suicídio. O capitã o Lopei nã o tinha favoritos
nem bodes expiató rios. Pertencia à quele tipo raríssimo de oficial que consegue levar os
seus homens ao centro do Inferno seguindo o simples princípio de marchar sempre à frente
deles e de, a seu modo, dar provas de uma inflexível lealdade. Se a coragem e a integridade
desse homem estivessem atreladas a outro carro que nã o fosse o de Adolfo Hitler, se fosse
oficial de outro exército qualquer, eu teria sentido simpatia por ele. Mas, assim, inspirava-
me apenas um inegá vel respeito...
Examinou rapidamente o nosso uniforme. Depois, recuando
alguns passos, comandou:
- 3.ª companhia, seeeenTIDO! Ooooombro ARMA!
Choques rítmicos de cento e trinta e cinco espingardas a caírem simultaneamente sobre
cento e trinta e cinco ombros.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio absoluto, em que cada oficial, sargento e soldado
olhava em frente, imó vel como um espeque sob o capacete de aço. Desgraçado de
quem mexesse nem que fosse só a ponta da língua!...
De novo, entre os grandes choupos e os edifícios cinzentos
da caserna, a voz do capitã o mandou: - Direita... VOLVER! Ordiná rio... MARCHE!
Trovoada de botas ferradas sobre o cimento do pá tio, num breve chispar de lume. Quarto
de volta ao sair da caserna e abalada pelo caminho lamacento, ladeado de choupos. Num
batalhã o disciplinar todas as conversas ou cantigas estã o naturalmente proibidas;
indivíduos de quarta
categoria nã o podem aspirar aos privilégios do soldado alemã o. Nã o tínhamos igualmente o
direito de usar a á guia ou os outros símbolos honoríficos: trazíamos simplesmente,
na manga direita, uma fita branca - que devia permanecer sempre branca! - atravessada
pela palavra SONDERABTEILUNG em letras pretas.
Como devíamos ser os melhores soldados do mundo, todas as nossas marchas eram
forçadas. Em menos de um
40 SVEN HASSEL
quarto de hora ficá vamos a suar, os pés começavam a arder e abríamos a boca para poder
respirar, uma vez que o nariz se tornava rapidamente incapaz de nos fornecer a quantidade
necessá ria de oxigénio. As bandoleiras e as correias das espingardas nã o deixavam que o
sangue nos circulasse normalmente pelo corpo, e isso fazia-nos inchar muito os dedos, a
ponto de ficarem brancos e entorpecidos.
Contudo, isto para nó s nã o passava de uma bagatela.
Podíamos
fazer uma marcha forçada de 25 quiló metros sem experimentar o menor desconforto.
Começava entã o o exercício: avanço dos atiradores em saltos sucessivos, um homem de
cada vez. Com os pulmõ es
a arfar como foles de ferreiro, avançá vamos pelo campo raso, em corrida de gatas através
dos campos gelados, encharcados, cavando as nossas tocas provisó rias de animais
perseguidos com as enxadas curtas de trincheira.
Mas isto, bem entendido, nunca era feito com a rapidez necessá ria. Constantemente os
apitos nos chamavam e tentá vamos em vã o recuperar o fô lego, aos soluços e arquejando,
durante uns segundos demasiado breves, enquanto eles nos descompunham até se
fartarem.
Mas logo era preciso voltar à carga. Em frente... em frente... em frente. Ficá vamos envoltos
em terra molhada; as nossas pernas tremiam e o suor escorria-nos em fio pelo
corpo abaixo, fazendo arder e agravando as feridas causadas
pelo atrito das correias de suspensã o do pesado equipamento.
O suor impregnava os uniformes e em muitos casacos viam-se
largas manchas escuras. Acabá vamos por ficar cegos com a transpiraçã o e a pele das nossas
testas, irritada à força de ter sido enxuta com as mã os sujas ou com as mangas á speras,
fazia-nos uma comichã o enorme. Assim que ficá vamos imó veis, o banho de suor
transformava-se num banho de gelo. Eu tinha a pele do interior das coxas e das virilhas
esfolada e a escorrer sangue. E o suor provocado
pelo medo vinha juntar-se ao do esgotamento.
Ao romper do dia encontrá vamo-nos mortos de fadiga, mas era a hora do exercício
antiaéreo.
Partíamos a correr pela estrada má , em que cada pedra, cada poça, cada estú pido rego
reclamavam um esforço de
atençã o permanente, visto que o menor passo em falso
O REGIMENTO DA MORTE 41
podia significar uma queda, uma entorse ou um castigo.
o facto de colocar um pé à frente do outro, para correr ou para marchar, tudo coisas que se
fazem normalmente,
por há bito e sem pensar nelas, requeria um esforço físico e mental quase sobre-humano. As
nossas pernas estavam
pesadas, cruelmente pesadas. Mas mesmo assim trotá vamos
com obstinaçã o, coxeando, tropeçando, em passo de giná stica. As nossas má scaras, de
ó rbitas cavadas, habitualmente
pá lidas; estavam agora vermelhas como lagostas, com os olhos espavoridos e fixos e as
veias da testa desmedidamente inchadas. Tínhamos a boca seca, franjada
de baba viscosa, e, de tempos a tempos, um soluço desesperado
projectava em redor perdigotos de espuma branca.
Os apitos verrumavam-nos a cabeça, e nó s saltá vamos para a direita e para a esquerda,
mergulhando no fundo dos valados sem ver o que lá havia: silvas, lama podre ou algum
«colega» ainda mais rá pido. Seguia-se depois a montagem frenética dos morteiros e a
colocaçã o das metralhadoras
na devida posiçã o, tarefa esta que tinha de ser cumprida em alguns segundos, ainda que à
custa de uma torcidela de rins ou de uma mã o ensanguentada.
E de novo a marcha, quiló metro apó s quiló metro. Creio saber tudo o que é possível saber-
se acerca das diversas espécies de estradas. Estradas moles, duras, largas, estreitas,
pedregosas, lamacentas, inundadas, cimentadas, asfaltadas,
cobertas de neve, acidentadas, planas, escorregadias, poeirentas.
Os meus pés aprenderam tudo o que é possível conhecer-se sobre estradas. Estradas
detestá veis, inimigas
e algozes dos meus pés.
Depois da chuva, sol. Quer dizer, sede, cabeça pesada, enxaquecas, manchas diante dos
olhos. Pés e tornozelos inchados
dentro das botifarras. Arrastá vamo-nos numa espécie de transe.
Finalmente, ao meio-dia, uma paragem... Os nossos mú sculos encontravam-se de tal modo
torturados que o facto de os querermos imobilizar constituía ainda uma forma de tortura.
Alguns nã o o conseguiam e continuavam com o movimento adquirido, mesmo depois de
ouvida a ordem, até esbarrarem no homem que se achava à sua frente.
42 SVEN HASSEL
E ficavam ali, de cabeça baixa, vacilantes, quase a cair, até que o outro os empurrava sem
contemplaçõ es.
Tínhamos parado à entrada de uma pequena aldeia.
Aproximaram-se dois ou três garotos para nos observarem.
A paragem devia durar meia hora. Esquecendo que nos encontrá vamos a 50 quiló metros da
caserna, cada qual se deixou cair logo ali, sem mesmo desapertar uma só correia,
adormecendo antes de chegar ao chã o.
Um segundo depois novo apito. Um segundo que durara trinta minutos: o tempo do nosso
precioso descanso.
Nova partida, talvez a pior tortura de todas. Os mú sculos rígidos e os pés inchados nã o
estã o pelos ajustes. Cada passo custa uma série de guinadas, que sobem como uma
flecha até ao cérebro. A planta dos pés sente, através do coiro, todos os pregos da sola e
temos a impressã o de caminhar sobre cacos de vidro.
Mas que ninguém pense em afrouxar: nã o levamos atrá s nenhum camiã o para recolher os
que caem. Os que se vã o abaixo, coitados, sã o submetidos a um tratamento especial
administrado pelo tenente e pelos três sargentos mais sá dicos da companhia.
Descompõ em-nos e perseguem-nos
sem piedade até que percam os sentidos ou alcancem a coluna, como loucos furiosos, ou
entã o até que se transformem
em robots sem vontade pró pria, que executam automaticamente
as ordens e que saltariam da janela de um quinto andar se alguém lho ordenasse... Pela
estrada fora íamos ouvindo os sargentos a berrar e a ameaçar os fracalhõ es
de serem espancados por insubordinaçã o se nã o executassem as ordens de modo a
satisfazer aqueles malditos
animais!
À noitinha penetrá mos no pá tio da caserna a cair de esgotamento.
- Passo de parada... MARCHE!
Um ú ltimo esforço que julgá vamos impossível. Pernas rígidas, projectadas
horizontalmente, os pés a martelarem o solo em cadência. Rodopiam faíscas diante dos
nossos olhos. Sentimos rebentar as bolhas dos pés. Mas é preciso
fazê-lo, é preciso. Os pés descem com um ritmo implacá vel,
calcando a poeira, calcando a dor. Ú ltimo esforço arrancado
a que derradeira reserva de energia?
O REGIMENTO DA MORTE 43
O comandante do campo, o Oberstleutnant von der Lenz»
encontrava-se no lugar exacto onde íamos executar o quarto
de volta que nos colocaria em frente do nosso edifício.
O capitã o Lopei vociferou:
- 3.ª companhia... Olhar... à ESQUERDA!
Todas as cabeças se voltaram num só movimento, todo»
os olhares se fitaram na silhueta frá gil do coronel. Mas os gestos rígidos que fazem parte da
continência nã o tinham,
desta vez, nada de rígido. Houve mesmo uma ligeira confusã o. O capitã o Lopei teve um
sobressalto, parou e afastou-se para observar a sua companhia. Depois retiniu a ordem:
- 3.ª companhia... ALTO!
Era o coronel. Houve um momento de silêncio gelado, seguido do urro enraivecido de von
der Lenz: - Capitã o Lopei, chama a isto uma companhia? Se quer ir para a frente com o
pró ximo batalhã o de infantaria, é só dizer! Existem muitos oficiais que se dariam por felizes
se tivessem o seu posto nesta guarniçã o...
A voz do coronel tornou-se um uivo agudo, histérico: - Que vem a ser esta matilha de
cã ezinhos de estimaçã o?
Esta cambada de indisciplinados? Podem lá ser soldados prussianos!... Cã es tinhosos, isso
sim! Mas eu tenho um bom remédio contra a tinha!
Autoritá rio e cheio de arrogâ ncia, passeava os olhos pela nossa companhia de sonâ mbulos
aterrados. Se ao menos
ele se calasse, para podermos ir até à camarata, atirar fora aquela tralha toda e dormir...
- Sim, possuo um bom remédio contra a tinha - repetia ele com um jú bilo ameaçador. - Os
cachorros tinhosos precisam apenas de um pouco de ocupaçã o, um pequeno treino, hem,
capitã o Lopei?
- Sim, meu coronel, um pouco de treino.
Crescia em nó s um ó dio surdo, de mistura com um sentimento
de piedade pelas nossas pró prias pessoas. Esta histó ria ia custar-nos, pelo menos, uma
hora do exercício mais esgotante que jamais se inventou: o passo de parada
alemã , o passo de ganso...
Já alguma vez sentiram todas as glâ ndulas da regiã o inguinal inchadas e duras, a ponto de
vos fazerem sofrer
44 SVEN HASSEL
terrores a cada passo? Os mú sculos das pernas transformados
em bolas maciças, sobre as quais, de tempos a tempos, é preciso dar murros para as obrigar
a trabalhar?
Os mú sculos das barrigas das pernas contraídos pelas cã ibras, de modo que cada bota
parece pesar um quintal e cada perna uma tonelada? E, precisamente nestas condiçõ es,
já experimentaram erguer a perna, de dedos do pé em riste no prolongamento da coxa, tã o
lestamente, tã o graciosamente como uma dançarina clá ssica?
Já tentaram depois disto, quando os artelhos já nã o têm força para vos sustentar, quando os
dedos nã o sã o mais
do que uma massa sangrenta e a planta dos pés está em fogo, cheia de ampolas que
rebentam e sangram por todos
Vos lados, como se fossem chamas de mistura com vidro pisado, já tentaram lançar-se para
a frente, sobre um pé, enquanto o outro vai bater no chã o com uma pancada retumbante?
E tudo isto deve ser executado a compasso, com uma precisã o que transforma os cento e
trinta e cinco homens numa só má quina, cujo martelar rítmico, regular, faz que as pessoas
que param para o escutar digam: - Que magnífico desfile militar! Que maravilha! Meu Deus,
que exército nó s temos!
O passo de ganso causa sempre enorme sensaçã o.
Precisamente aos ingénuos.
Mas o passo de ganso nã o nos impressiona absolutamente
nada. Pelo menos sob esse aspecto. É o exercício m’ais infernal, mais revoltante, de toda a
histó ria militar.
Despedaçou mais mú sculos, avariou mais gâ nglios linfá ticos
do que qualquer outro movimento. Perguntem a um médico a sua opiniã o a tal respeito.
Mas nó s nã o conhecíamos ainda bem o nosso Oberstleutnant.
Nã o iríamos apanhar só uma hora de passo de parada. Havia partido já , o estupor, com o
capitã o Lopei a fazer-lhe continência, mas antes dissera: - Nã o há dú vida de que conheço
um bom remédio!
Capitã o Lopei!
- Meu coronel!
- Vai-me levar esta tropa toda para o terreno de -exercícios e ensinar-lhes a serem soldados
em lugar de uma
matilha de cã es tinhosos... Nã o recolherã o antes das nove
O REGIMENTO DA MORTE 45
horas da manhã ... E se entã o esta companhia nã o for capaz
de me apresentar um passo de parada que enterre as pedras da
calçada, voltarã o à primeira forma. Entendido?
.- Entendido, Herr Oberstleutnant.
Durante toda a noite praticá mos o ataque em terreno descoberto
e o passo de parada.
E no dia seguinte pela manhã , à s 9 horas, passá mos como uma trovoada diante do
Oberstleutnant, que nã o se deu
logo por vencido. Fez-nos desfilar sete vezes na sua frente, e tenho a certeza de que, se um
só de nó s tivesse tido um décimo de segundo apenas de avanço ou de atraso
em relaçã o aos outros, ele nos teria mandado imediatamente de novo para o terreno.
Eram 10 horas quando recebemos, finalmente, a ordem para dispersar, que nos permitiu ir
dormir.
Desumano, sem dú vida, mas nó s nã o éramos realmente seres humanos. É ramos cã es
tinhosos, cã es esfaimados Na verdade, para se fazer uma ideia do que era realmente o
nosso treino, para se ter dele uma visã o completa, é preciso acrescentar ao resto... a fome.
Neste ponto, como em muitos outros, está vamos na verdade
completamente desvairados. No fim da guerra, em 1945, todo o povo alemã o vivia com
raçõ es de fome, mas desde 1940-41 nó s éramos ainda mais mal alimentados do
que a camada mais desprotegida da populaçã o - isto é, os vulgares civis - o devia ser em
1945.
Como nã o dispú nhamos de carta de racionamento, nada podíamos comprar. O almoço era
sempre o mesmo: 1 litro de sopa de beterraba com um punhado de couve fermentada
para lhe dar um pouco de consistência, e isto mesmo nã o era todos os dias, para nã o nos
acostumarmos!
A carne constituía um luxo que desconhecíamos. Todas as noites recebíamos «raçõ es
secas» para vinte e quatro horas: um pedaço de pã o de centeio, que, com um pouco de
prá tica, se podia cortar em cinco fatias, três para a tarde e duas para o dia seguinte de
manhã ; 20 gramas de margarina rançosa e um pedaço de queijo, cuja percentagem
de á gua devia ser a mais elevada do mundo. Aos sá bados
davam-nos uma raçã o suplementar de 50 gramas de marmelada de nabo. O pequeno
almoço compunha-se de
46 SVEN HASSEL
uma taça de Ersatz de café, da cor do chá , com um cheiro e um gosto repugnantes, que, no
entanto, engolíamos com delícia.
Acontecia-nos, por vezes, durante os exercícios, encontrar nos campos uma batata ou um
nabo. Era apenas o tempo de o limpar para lhe extrair a maior parte da terra e o maroto
desaparecia numa boca á vida, tã o rapidamente
que um observador teria imaginado estar a assistir a uma sorte de prestidigitaçã o.
Nã o levá mos também muito tempo a descobrir que a casca de bétula e uma espécie de erva
que crescia na beira
dos valados possuíam um paladar muito aceitá vel e talvez mesmo propriedades nutritivas.
Eram bem toleradas sobretudo
pelo estô mago e acalmavam um pouco a tortura da fome. Eis a receita, que pode vir a ter a
sua utilidade: entre dois capacetes de aço esmagar a casca de bétula ou
a erva dos valados; juntar uma quantidade conveniente de Ersatz de café e comer como um
bolo...
Se, por milagre, algum de nó s recebia um bó nus de pã o, havia festa na camarata do
felizardo! Um pã o inteiro, estã o
a ver?
O REGIMENTO DA MORTE 49
daquele que fosse castigado sem razã o! Pagaria dez vezes mais caro do que se estivesse
realmente culpado.
nã o era fá cil tomar a atitude devida em tal situaçã o.
.- Primeira fila, um passo em frente... MARCHE! Segunda fila, um passo atrá s... MARCHE!
Um... DOIS!
Durante uns minutos infindá veis o sargento-chefe observa as duas filas que acabavam de se
apartar. Quem mexer um cabelo é logo castigado por desobediência.
Mas
nó s havíamo-nos habituado a ficar transformados em pedaços
de pau e a permanecer nesse estado meia hora seguida sempre que necessá rio. É uma
espécie de estado de transe ou de catalepsia, que, para o soldado que for capaz de o atingir,
vale muitas vezes o seu peso em ouro.
Em sentido, tesos como cavacas, literalmente transformados
em pedaços de pau!
O sargento-chefe urra:
--Prontos para a inspecçã o?
Toda a companhia responde em coro: - Sim, Herr Hauptfeldwebel.
Continua:
- Ninguém se esqueceu de limpar nada?
Coro da companhia:
- Nã o, Herr Hauptfeldwebel.
Fuzila-nos a todos com um olhar feroz. Agora é que ele nos apanhou. É este o seu momento
preferido...
- Sério? Se assim for, será a primeira vez na histó ria deste batalhã o! É o que vamos ver...
Lentamente, aproxima-se do primeiro bocado de pau, anda à roda dele, uma vez, duas
vezes... Caminhar à volta de um adversá rio sem pronunciar uma sílaba constitui uma forma
muito eficaz de «guerra de nervos». A nuca arde e as palmas das mã os humedecem-se, os
pensamentos confundem-se
e falta o ar, parecendo-nos até que cheiramos mal!
- Sim, sim! É o que vamos ver! - repete o sargento-chefe atrá s das costas do terceiro homem
da primeira fila.
Reina o silêncio enquanto ele inspecciona o quarto e o quinto. Depois vem o berro: - 3.ª
companhia... SeeeenTIDO!
R. M. - 4
50 SVEN HASSEL
Seguido da avalancha habitual de palavreado sujo.., Acerca do nosso bem-amado
Hauptfeldwebel costumá vamos
nó s dizer que ele nã o podia vomitar merda sem vomitar primeiro merda. Talvez nã o fosse
uma frase muito bem achada, mas nó s nã o éramos exigentes nesse capítulo e ela
descrevia bastante bem aquele pequeno-burguês sá dico, apodrecido até à medula, a quem
fora dado gozar um pouco da volú pia do poder.
- Que trampa de companhia é esta? Vocês passaram o domingo a rebolar-se na merda?
Espojados no esterco, aí é que estã o bem os porcos da vossa laia! Observei cinco homens!
Parecem mesmo cinco alcoviteiros filhos de p...
sifilíticas!
Aquilo nã o era uma boca humana, mas sim um cano de esgoto, uma enorme fossa!
Comprazia-se a falar da «doença francesa», mas ele pró prio sofria da doença prussiana
no seu grau mais adiantado, aquela sede lamentá vel de humilhar o pró ximo. Trata-se de
uma verdadeira doença,
nã o apenas circunscrita aos batalhõ es disciplinares.
Contaminou
todo o exército alemã o, tal como uma epidemia de furunculose. E em cada furú nculo
podemos ter a certeza de
encontrar um sargento, um daqueles tipos que sã o qualquer
coisa, nã o sendo praticamente nada.
O castigo usual, naqueles casos, consiste em três horas de exercícios especiais, cujo prato
de resistência é um longo
fosso cheio até meia altura de uma lama nojenta em plena fermentaçã o, coberta, à
superfície, de uma espuma viscosa, amarelada. Cada vez que a ordem «rastejar» nos envia
para o fundo dessa vala é preciso esfregar os olhos até quase arrancar as pá lpebras para
recuperar o uso da vista. Chega depois a hora do almoço. Engolimos a raçã o tal como
estamos. Temos uma hora para nos apresentar, limpos e reluzentes, à chamada da tarde.
O processo que vos recomendo é simples: basta a gente meter-se debaixo do chuveiro
fardado e equipado. Em seguida
é necessá rio limpar a. espingarda e as outras peças do equipamento, secá -las
cuidadosamente com um trapo enxuto e lubrificá -las. É preciso prestar uma atençã o
especial
ao interior do cano...
O REGIMENTO DA MORTE 51
Estas operaçõ es de desmontagem, de limpeza e de lu-brificaçã o só entram uma vez por
semana no emprego do tempo de um soldado «normal». Duas vezes, talvez, em caso de
exercício que suje particularmente. Nó s fazíamo-las, pelo menos, duas vezes por dia.
À chamada da tarde, claro, apresentá vamo-nos encharcados
até aos ossos. Mas nessa altura tinham a bondade de ; nã o exigir que fô ssemos passados a
ferro. A limpeza bastava...
Só havia uma coisa que temíamos tanto como esta horrível inspecçã o da segunda-feira: era
a revista da camarata, todas as noites, à s 22 horas. O que o sargento de serviço podia
inventar para mandar fazer a homens semimortos i como nó s tocava as raias do absurdo...
Antes da chegada do sargento, cada homem devia deitar-se na cama e, naturalmente, na
posiçã o regulamentar, isto é, de costas, os braços ao longo do corpo e os pés descalços
para serem inspeccionados. Incumbia ao chefe da camarata velar por que nenhuma
partícula de poeira subsistisse
nos cantos mais recô nditos da camarata; por que todos os pés estivessem tã o limpos como
os de um recém-nascido;
por que todas as coisas se achassem arrumadas e dobradas estritamente de acordo com o
regulamento.
No início de cada inspecçã o o chefe da camarata era obrigado a recitar a seguinte fó rmula: -
Herr Unteroffizier, o chefe de camarata Brand, presente à chamada, declara que tudo está
em ordem na camarata 26, efectivo doze homens, dos quais onze se encontram nas suas
tarimbas. A sala foi convenientemente arejada e limpa e nã o há nada a assinalar.
O sargento de serviço nã o lhe prestava, -evidentemente, nenhuma atençã o e começava a
coscuvilhar por todos os cantos. E pobre do chefe de camarata se ele descobrisse o
mais leve grã o de poeira ou uma caixa de embalagem mal fechada, ou a sombra de uma
nó doa na sola de um pé!
” Um sargento chamado Geerner - que, segundo julgo, estaria muito melhor numa célula
almofadada - uivava
52 SVEN HASSEL
literalmente como os cã es. Tínhamos a impressã o, ao ouvi-lo,
de que ia desatar aos soluços, e, de facto, nã o era raro vê-lo derramar lá grimas de raiva.
Quando estava de serviço, políamos, lavá vamos, arrumá vamos mais freneticamente
ainda do que de costume...
Recordo-me de uma noite triste em que Schnitzius era chefe de camarata. O desgraçado
costumava ser o bode expiató rio por excelência; bom rapaz até à ponta dos cabelos, mas
tã o desesperadamente pobre de espírito que
servia de vítima a todos os superiores, desde os Stabsfeldwebel
e passando por todos os degraus da escala.
Schnitzius achava-se tã o nervoso como todos nó s, deitados
nas tarimbas, a pensar no que poderíamos haver esquecido
desta vez. Ouvíamos Geerner numa das camaratas vizinhas. Dali tínhamos a impressã o
exacta de que ele estava a reduzir a madeira dos armá rios e das barras das camas a paus de
fó sforo. Tudo isto acompanhado de pragas,
de berros, de soluços, de «cã es tinhosos», de «porcos da merda», etc. Se nã o estivéssemos já
todos lívidos, teríamos
ficado pá lidos de susto. Geerner estava num dos seus dias grandes. Devia encontrar-se ao
rubro quando chegasse
à 26. Mais valia correr o risco de abandonar os catres e percorrer toda a camarata a pente
fino. E foi isso o que fizemos, sem encontrar vestígios de poeira...
Todos haviam regressado à cama quando a porta veio bater violentamente contra a parede.
Oh!, se ao menos nessa noite fosse outro o chefe de camarata em lugar de Schnitzius,
alguém mais expedito!
Mas Schnitzius ficara para ali, sem dizer nada, pá lido como um morto, o cérebro em curto-
circuito. Só era capaz de contemplar Geerner com olhos espantados. Geerner chegou-se
ao pé dele de um pulo e rugiu, com a cara a uma distâ ncia de 5 centímetros da de
Schnitzius: - Entã o essa informaçã o? Fico à espera dela a noite inteira ?
Mais morto do que vivo, Schnitzius repetiu a fó rmula com a voz a tremer.
- Está tudo em ordem? -berrou Geerner Entã o agora dã o-se informaçõ es falsas?
O REGIMENTO DA MORTE 53
.- Nã o, Herr Unteroffizier - balbuciou Schnitzius, girando lentamente sobre si pró prio para
ficar sempre de frente para o sargento.
Durante alguns instantes reinou na camarata um silêncio de morte. Só os nossos olhos
buliam. Os nossos olhos que
seguiam Geerner na sua caça à poeira, de uma ponta à outra da sala. Ergueu, um por um, os
pés da mesa central e passou-lhes a mã o por baixo. Nada. Examinou as solas do
nosso calçado. Impecá veis. As janelas e o fio da lâ mpada.
A
mesma coisa. Inspeccionou-nos os pés com a atençã o apaixonada
de quem cairia morto se nã o encontrasse nada a censurar.
Finalmente, passeou em torno um olhar hostil e ensombrado.
Parecia, na verdade, que teria de se resignar e deixar-nos em paz por esta vez. Apresentava
a expressã o de um tipo cuja amante nã o compareceu à entrevista e que
tem de ir para a cama sozinho, com o seu desejo frustrado e uma dolorosa decepçã o.
Ia para fechar a porta atrá s de si quando mudou bruscamente
de ideias:
- Tudo está entã o em ordem, hem? Vamos lá a ver isso...
Numa corrida sú bita de animal furioso, aproximou-se da nossa cafeteira, um recipiente
enorme de alumínio com a capacidade de 15 litros. Descobrira já , com grande pesar,
que ela se encontrava escrupulosamente areada e cheia de
á gua limpa, segundo o regulamento. Mas cada um percebeu
imediatamente -- e todos os coraçõ es pararam de bater porque
Geerner descobrira qualquer coisa.
Espreitou obliquamente a superfície imó vel da á gua.
Se bem que a cafeteira tivesse sido cheia pouco antes da chegada de Geerner, alguns grã os
de poeira haviam inevitavelmente
caído ali.
O urro de Geerner teve qualquer coisa de fantá stico: - Chamas a isto á gua limpa? Quem foi o
porco que encheu esta cafeteira com líquido da retrete? Vem cá , espé-
cie de nitreira ambulante!
Subiu para um banco e Schnitzius teve de lhe entregar a cafeteira.
54 SVEN HASSEL
- SeeeenTIDO! Deita a cabeça para trá s e abre as goelas!
Lentamente, todo o conteú do da cafeteira deslizou para a boca aberta de Schnitzius, meio
sufocado. Depois disto, o sargento, enraivecido, atirou a cafeteira contra a parede, saiu da
sala a correr e foi fazer uma barulheira desgraçada
na sala dos chuveiros, transportando sucessivamente meia dú zia de baldes de á gua que
atirava para o soalho da
camarata. Como só dispú nhamos de duas serapilheiras todas esfarrapadas para enxugar a
inundaçã o, o serviço levou-nos um certo tempo.
O sargento repetiu a proeza quatro vezes, até se cansar.
Por fim, foi deitar-se, já calmo, deixando-nos em paz.
Os antigos Romanos chamavam furor germanicus ao encarniçamento com que as tribos do
Norte dos Alpes se lhe opunham em combate. Talvez seja uma ligeira consolaçã o
para os Romanos e para os outros inimigos histó ricos da raça germâ nica o saberem que os
Alemã es, entre si, usam a mesma demência com que tratam os vizinhos!
Furor germanicus, a doença prussiana.
Geerner nã o passava de um triste sargento, uma ruína com o cérebro desarranjado, que
tinha de se contentar com
as suas quotidianas escaramuças contra as poeiras.
Que o pó em que ele, enfim, também se transformou repouse finalmente em paz.
O nosso treino terminou em apoteose com um exercício de sete dias e sete noites em claro,
que teve lugar num vastíssimo campo de manobras chamado Sennelager.
Haviam
construído ali aldeias completas, com pontes, encruzilhadas,
carris. Nada faltava, a nã o serem os habitantes, e dispú nhamos de todos os meios para
mostrar os nossos talentos: charcos, ribeiros, silvedos e pontes pênseis lançadas
por cima de verdadeiros precipícios.
Tudo isto pode parecer talvez um pouco româ ntico, estilo brincar aos Peles-Vermelhas em
grande escala, mas
este jogo custou a vida de um dos nossos homens, que caiu
O REGIMENTO DA MORTE 55
do alto de uma dessas pontes mal seguras e quebrou a espinha.
Outra brincadeira geralmente muito apreciada consistia em cavar buracos com a
profundidade apenas necessá ria para nos escondermos e depois enrodilharmo-nos ali,
enquanto
nos passavam por cima do canastro carros pesados.
A uma sensaçã o forte seguia-se logo outra, e assim tínhamos de nos lançar de borco
debaixo dos mesmos tanques, sentindo o seu fundo metá lico a roçar-nos pelas ná degas,
enquanto as lagartas desfilavam com grande estrépito
à direita e à esquerda.
Queriam-nos tornar rijos com o convívio diá rio dos tanques.
Vivíamos num terror quase permanente, o que, no fim de contas, é muito natural, pois o
militar alemã o foi sempre educado com a ajuda do medo, habituado a reagir como uma
má quina sob o aguilhã o do terror, e nã o a combater
com valentia por se sentir inflamado por um ideal nobre a que se sacrificaria alegremente
se o interesse do seu povo assim o exigisse. Talvez que esta inferioridade moral seja
precisamente o traço característico da mentalidade
prussiana e a moléstia cró nica do povo alemã o.
Passados dois dias, a companhia foi desmembrada em pequenos grupos de cinco a quinze
homens, a quem «ofereceram»
novos equipamentos. Recebi, com alguns outros, a farda e a boina preta das tropas
blindadas. No dia seguinte
um Feldwebel conduziu-nos à caserna de Bielefeld, onde fomos imediatamente
incorporados numa companhia
que estava prestes a seguir para a frente e metidos a toda a pressa num comboio militar.
O REGIMENTO DA MORTE 59
todo o prestígio, bastando para isso fitá -los inocentemente nos olhos.
A todos os que se aproximavam dele nunca se esquecia de fazer notar que era vermelho.
Efectivamente, estivera doze meses em Oranienbourg por actividades comunistas,
actividades estas que se haviam limitado, em 1932, a ajudar
alguns companheiros a pendurar duas ou três bandeiras social-democrá ticas na torre da
Igreja de S. Miguel. Esta brincadeira custara-lhe quinze dias de prisã o, de resto
prontamente
esquecidos, até que, em 1938, a Gestapo o prendera sem mais nem menos, fazendo tudo
para o convencer de que
ele conhecia o misterioso esconderijo do enorme mas sempre
invisível Wol weber, chefe dos comunistas. Maltratado e reduzido à fome durante um par
de meses, levaram-no em seguida a julgamento, e como ú nica prova apresentaram uma
gigantesca ampliaçã o fotográ fica que representava Porta
com a sua bandeira vermelha a encaminhar-se para a Igreja
de S. Miguel. Sentença: doze anos de trabalhos forçados por actividades comunistas e
profanaçã o da casa de Deus.
Pouco tempo antes da abertura das hostilidades foi, assim como muitos outros
prisioneiros, indultado da maneira habitual,
quer dizer, atirado para um batalhã o disciplinar.
Os soldados parecem-se com o dinheiro neste sentido: pouco
importa a sua proveniência...
Nascido em Berlim, Porta possuía no mais alto grau o humor equívoco, a língua afiada e o à -
vontade fantá stico do verdadeiro berlinense. Bastava-lhe abrir a boca para que
todos se perdessem de riso, sobretudo quando imitava a pronú ncia arrastada e a insolência
arrogante de um criado de fidalgo camponês prussiano.
Possuía também um talento natural e autêntico para a mú sica; tocava igualmente bem o
berimbau e o ó rgã o de igreja e trazia sempre consigo a flauta, da qual tirava melodias
maravilhosas, sempre com os olhitos manhosos, negros como botõ es, fixos na sua frente e a
trunfa ruiva sacudida pelo vento como uma seara sob a tempestade. Quer interpretasse
uma toada popular, quer improvisasse sobre temas clá ssicos, as notas saíam-lhe do
instrumento saltitantes como
seres vivos. Aos olhos de Porta uma partitura musical mostrava-se
tã o incompreensível como um texto hebreu; bastava,
60 SVEN HASSEL
porém, que o Velho lhe assobiasse a melodia, e logo ele a executava tal como se sempre a
tivesse conhecido, isto é,
tal como se a tivesse pessoalmente composto.
Possuía, enfim, o dom inato de contar histó rias. Narrada por ele, a mais rocambolesca
aventura podia durar vá rios dias, embora meticulosamente inventada de uma ponta
à outra.
Como todo o bom berlinense, Porta era capaz de farejar a quiló metros de distâ ncia
qualquer espécie de paparoca, assim como conhecia todas as artimanhas para se apropriar
dela, e, sempre que lhe era dado escolher, nã o falhava a melhor. Foi talvez um tipo como
este Porta que permitiu aos Hebreus sobreviverem na travessia do deserto!
Afirmava que tinha muita sorte com as mulheres, mas quem o visse de perto nã o podia
deixar de duvidar. Era alto como um escadote e magro na mesma proporçã o. O
seu
pescoço de cegonha saía-lhe teso da gola da farda e, enquanto
falava, a maçã -de-adã o causava-nos vertigens com os movimentos que executava
continuamente. O seu rosto triangular
era um crivo de sardas. Tinha uns olhinhos de porco, esverdeados, que pareciam crivar de
flechas maliciosas os
seus interlocutores. Os cabelos, de um ruivo-ardente, mantinham-se-lhe
permanentemente eriçados como o colmo de um telhado. E, sabe-se lá porquê, o nariz
constituía para ele
o principal motivo de orgulho. Quando abria a boca, deixava
ver um dente solitá rio no meio da maxila superior.
Ele afirmava possuir mais outros dois, mas, como se tratava
de queixais, nã o se podiam ver. Constituía um mistério o saber-se onde a secçã o de
equipamento fora descobrir botas
que lhe servissem. Devia calçar, pelo menos, 47!
Plutã o, o terceiro membro do quarteto, era uma montanha de mú sculos. Tinha a patente de
Stabsgefreiter e chamava-se,
na realidade, Gustav Eicken. No caso deste nã o fora a política, mas sim umas honestas
infracçõ es ao direito
comum que o haviam conduzido por três vezes aos campos
de concentraçã o. Estivador em Hamburgo, fora levado por alguns colegas a fazer mã o baixa
nos armazéns e na carga
dos navios. Estas actividades mereceram a todos seis meses
de prisã o.
O REGIMENTO DA MORTE 61
Nã o haviam decorrido ainda vinte e quatro horas depois de ter sido solto, quando a polícia
o foi de novo buscar, desta vez tratava-se do irmã o, que falsificara um passaporte
e a quem, por esse motivo, cortaram a cabeça. Plutã o voltou
a cumprir nove meses de cadeia sem nunca haver sido interrogado.
Um belo dia puseram-no na rua, depois de o haverem sovado com selvajaria, mas sempre
sem lhe darem
a mínima explicaçã o.
Três meses mais tarde prenderam-no de novo. Agora por roubo de um camiã o de farinha.
Plutã o nã o sabia absolutamente
nada acerca desse furto, mas mesmo assim levou nova tareia, foi acariado com um tipo que
jurou tê-lo como cú mplice no «negó cio da farinha» e ouviu-se condenar, no fim de um
julgamento de doze minutos, a seis anos de trabalhos
forçados. Passou dois num campo de internamento, foi depois transferido, como toda a
gente, para um batalhã o
disciplinar e acabou por vir cair, juntamente connosco, no 271.º regimento disciplinar.
Quem quisesse vê-lo com um autêntico ataque de fú ria bastava pronunciar uma frase onde
se falasse de «camiã o» e de «farinha».
O ú ltimo dos quatro, Anton Steyer, Obergefreiter, nã o era conhecido senã o por
Polegarzinho. Media apenas 1,50
metros e viera de Coló nia, onde trabalhava numa fá brica de perfumes. Uma altercaçã o
violenta numa cervejaria conduzira-o
direitinho ao campo de concentraçã o com dois dos companheiros. Um caíra já na Poló nia. O
outro fora dado como desertor, recapturado e executado.
O nosso comboio levou seis dias para chegar ao destino, isto é, a Friburgo, a pitoresca
cidade do Sul da Alemanha.
Tínhamos conhecimento de que nã o íamos ficar ali por muito tempo. O destino de um
regimento disciplinar nã o é na retaguarda, mas sempre na primeira linha, onde se
escrevem as pá ginas mais sangrentas da histó ria dos povos.
Corria o boato de que íamos ser enviados para a Líbia, via Itá lia, mas, na realidade, ninguém
sabia nada ao certo.
O primeiro dia gastou-se em formalidades de classificaçã o,
entrega de guias de marcha e outros pormenores.
Tivemos
tempo até de passar alguns momentos agradá veis na taberna
Zum Goldenen Hirsch, cujo jovial patrã o se chamava, evi-
62 SVEN HASSEL
dentemente, Schultze e, nã o menos evidentemente, acontecia
ser um velho amigo do nosso Joseph Porta.
O vinho era abundante, as raparigas bonitas e, se as nossas vozes nã o soavam em completa
harmonia, tinham, pelo menos, o mérito de serem fortes.
Havia muito tempo que eu nã o tomava parte neste género de patuscadas e tantas coisas
horríveis me pesavam ainda em cima dos ombros que me custava um esforço imenso
enterrar o passado ou, mais exactamente, esquecê-lo,
quando se me oferecia, como naquela noite, a ocasiã o de o fazer. Se, finalmente, o consegui
entã o e outras vezes depois, foi graças a Porta, ao Velho, a Plutã o e ao Polegarzinho.
Todos eles se haviam visto nos mesmos transes, estavam agora endurecidos e, quando
havia vinhaça, raparigas dó ceis e cançõ es no programa, nã o ligavam meia ao passado
nem ao futuro.
O REGIMENTO DA MORTE 65
Consultou-nos a todos com os olhos.
- Eu creio que sei - disse o Polegarzinho.
- Entã o diz lá !
- Gritamos e ’damos vivas porque nunca se ouviu falar de uma guerra onde se nã o berrasse
nem se dessem vivas!
Polegarzinho olhou-nos solenemente e depois acrescentou,
numa sú bita inspiraçã o:
- E também porque vamos a caminho de uma nobre missã o. Vamos ajudar o nosso querido
Fü hrer, o nosso grande Adolfo, a alcançar uma derrota magnífica, para que esta guerra
porca acabe o mais depressa possível e para que a maravilhosa derrocada deste regime
apodrecido se torne numa gloriosa realidade!
Porta ergueu-o do chã o, beijou-o nas duas faces, poisou-o de novo, esticou o pescoço de
cegonha e lançou um rugido
de puro jú bilo, que o Fü hrer provavelmente ouviu, mas cujo significado nã o compreendeu.
Nã o estou em posiçã o de fornecer um parecer desinteressado,
mas, do ponto de vista do simples magala, o famoso sentido de organizaçã o germâ nico
parece-me estar
muito aquém do que se apregoava, pelo menos no que respeita
ao transporte de tropas. A impressã o do soldado acerca dos famosos planos do Estado-
Maior General é que, quando
é preciso levá -lo de um ponto para o outro, o mais importante
é transportá -lo em ziguezague. Conduzir um simples soldado do ponto A ao ponto B em
linha recta e sem paragens
prolongadas no meio dos campos ou nas vias de resguardo
das pequenas estaçõ es, numa palavra, sem a menor perda de tempo e de combustível,
equivaleria a revolucionar
a arte da guerra, realizando todos aqueles belos planos previstos sem a menor barafunda.
Ora é um facto bem conhecido
de todos os soldados rasos do mundo que nã o se faz uma guerra sem confusã o. A confusã o
da guerra e o desperdício titâ nico de vidas humanas, de alimentos, de material e de
inteligência mal empregada, que se subentende
por expressõ es semelhantes a «avanço efectuado conforme
o plano», para nã o falar já em «reconstituiçõ es da frente» e em «defesa elá stica», têm
qualquer coisa de tã o desmedidamente trá gico que mal o podemos imaginar.
Parece-me,
no entanto, que existe uma explicaçã o para a bara-R. M. 5
66 SVEN HASSEL
funda incoercível da guerra. Deve-se talvez, entre outras causas, ao facto de que, sem
confusã o, as responsabilidades
seriam muito mais fá ceis de determinar. Se admitirmos que
a confusã o torna praticamente impossível a atribuiçã o de responsabilidades, esta
explicaçã o torna-se muitíssimo plausível:
se guerra = confusã o
e confusã o = irresponsabilidade entã o guerra = irresponsabilidade E eis aqui uma equaçã o
à qual voltaremos muitas vezes a referir-nos.
Atravessá mos assim a fronteira sérvia, onde nos informaram
de que, até nova ordem éramos o 18.º batalhã o da 12.ª divisã o Panzer e que nos iam
mandar para algures, nos Balcã s, a fim de aprendermos o manejo de um novo tanque, apó s
o que nos enviariam para a frente. Logo que soube a notícia, Porta exclamou com um
sorriso está tico: - Pelo caminho que as coisas levam, isso nã o acontecerá nestes trinta e
quatro anos mais chegados. A nossa felicidade está assegurada. Vamos todos ser felizes
como reis e tornar-nos rapidamente milioná rios. E vou explicar-vos porquê. Nos Balcã s os
negó cios estã o mais florescentes do que em qualquer outra parte da Europa, e isto porque
ali se pratica, no plano comercial, o método directo: eu roubo-te, tu também me roubas, e
ficamos quites! E que é um soldado, antes de tudo, senã o um homem de negó cios?
Sejamos pois bons soldados, recordemos o que aprendemos
e pratiquemo-lo em grande escala. Quando abandonar estes adorá veis Balcã s, irei
transformado num jovem rico, satisfeito e bem equipado!
De Zagreb até Bania-Luka e de Bania-Luka a Serajevo, seguido de um brusco mergulho até
Brod, ao norte, e de novo para leste, atravessando a fronteira hú ngara... Assim prosseguia
na sua viagem o 18.º batalhã o, executando feitos
memorá veis, se bem que duma natureza ligeiramente diversa
da dos que sã o publicados todos os dias nos comunicados
ou se projectam nos écrans dos cinemas, na rubrica das actualidades, para gozo de uma
assistência entusiasmada
O REGIMENTO DA MORTE 67
por mú sicas extremamente marciais. Nã o (diga-se de passagem),
o 18.º batalhã o nunca foi nem filmado, nem sequer referido em qualquer comunicado. Nã o
era mais do que um destes batalhõ es incolores, anó nimos, dizimados e reformados,
dizimados e reformados, dizimados e reformados, sem tréguas nem descanso, por uma
causa que odiá vamos,
embora nã o tivéssemos o dom de exprimir os nossos sentimentos
com a concisã o de Porta, a quem nunca faltavam comentá rios pessoais para acrescentar aos
inverosímeis comentá rios
dos comentadores da rá dio.
Uma vez, na pequena cidade de Melykut, a nordeste de Pecs, íamos deixando Porta em
terra. Subiu já com o comboio
em andamento, no ú ltimo instante, com o auxílio dos companheiros, e, passados dois
minutos, ao desfilarmos diante de uns casebres dos arredores, vimos três ciganas a
agitarem freneticamente os braços em sinal de despedida.
Porta retribuiu-lhes o adeus, vociferando: --Adeus, garotas. Se vocês tiverem um bebé e que
seja um rapaz, ponham-lhe o nome de Joseph, como o pai.
Mas,
pelo amor de Deus, nã o façam dele um soldado; antes um chulo, que é menos degradante!
Em seguida Porta instalou-se confortavelmente num canto, tirou da algibeira um baralho
de cartas incrivelmente ensebadas e convidou-nos logo para a inevitá vel partida de
vinte e um. Jogá vamos havia quatro horas quando o comboio
parou na pequena cidade fronteiriça de Mako, ligeiramente
ao sul de Szeged.
Informaram-nos de que faríamos ali uma paragem de dez horas antes de penetrarmos na
Roménia. Saltá mos em
terra para deitar uma vista de olhos à s redondezas. Como de costume, Porta foi adiante
para explorar o terreno e, voltando um bocado depois, aproximou-se de mim e do Velho
com o seu ar mais inocente e murmurou: - Venham daí!
A cidade - um misto de aldeia e vila rural - jazia morta no calor hú mido da tarde. Os nossos
fatos colavam-se a pele enquanto descíamos lado a lado, suando e resfolegando,
a rua principal, onde camponeses esfarrapados dormiam no chã o, à sombra das á rvores.
Bruscamente, Porta transpô s uma estacaria, atravessou uma sebe e encontramo-
68 SVEN HASSEL
-nos numa rua estreita, ladeada de casas com jardinzinhos
do tamanho de lenços de assoar.
- Eu tenho faro! - anunciou Porta.
Partiu a trote... e teve de passar ao galope um pouco mais tarde, perseguido por uma dú zia
de homens e mulheres
furiosos, enquanto eu e o Velho passá vamos despercebidos
atrá s de uma sebe, com um pato estrangulado em cada mã o.
Voltá mos a correr ao comboio para fazer desaparecer os patos e regressá mos em socorro
dele.
Porta já vinha, de resto, ao nosso encontro, bem escoltado por um tenente hú ngaro, dois
Honved, de baioneta aperrada, um par dos nossos pró prios polícias militares e cerca de
cinquenta civis hú ngaros, romenos, eslovacos e boémios, todos barafustando e
gesticulando.
Porta parecia encarar a aventura com a maior calma.
--Como vêem -declarou ele, o regente hú ngaro Horty, o melhor amigo do nosso Fü hrer
neste país, mandou-me
acompanhar por uma guarda de honra.
Felizmente que foi o major Hinka quem recebeu esta procissã o no momento em que ela ia
mesmo a chegar à carruagem-estado-maior do comboio. Hinka, nã o só era jovem
e simpá tico, como se revelara também o protector particular
de Porta. Ouviu calmamente as acusaçõ es proferidas pelo tenente hú ngaro; depois, quando
este terminou, principiou
ele:
- Que mais temos? Roubo e tentativa de assassinato!
Como se nã o bastasse haveres amotinado toda a populaçã o
com o roubo dos patos, diabos me levem se nã o tiveste ainda a ousadia de atacar soldados
hú ngaros, nossos irmã os
de armas! E de perseguir a pontapé um cã o de luxo! E de quebrar a dentadura postiça do
juiz! E de provocar dois abortos! Que tens a dizer em tua defesa, espécie de indecente
gorila de pernas cambadas?
Tudo isto foi gritado em voz sonora, de forma que a multidã o excitada compreendeu que o
seu agressor estava a
apanhar uma valente reprimenda.
No mesmo tom, Porta respondeu: -- Herr Major, estes idiotas congénitos sã o tã o mentirosos
que a minha alma piedosa se sente abalada até aos alicerces. Por Santa Isabel eu juro que
passeava pacifica-O REGIMENTO DA MORTE 70
mente, gozando, com toda a inocência, este belo tempo e este encantador panorama.
Achava-me no meio de uma prece de acçã o de graças ao Senhor por me haver permitido
fazer parte das fileiras privilegiadas dos soldados do nosso
bem-amado Fü hrer e de ter ao mesmo tempo, ocasiã o de
visitar os vastos arredores da nossa bela cidade de Berlim,
quando, de repente, com uma rapidez altamente prejudicial
para os meus delicados nervos, fui arrancado à s minhas piedosas meditaçõ es por um bando
de demó nios enraivecidos
que surgiram detrá s das sebes onde me esperavam emboscados.
Ignoro o que eles têm a censurar-me; e que podia eu fazer senã o soltar um grito de terror e
dar à s de vila-diogo?
Os malandros queriam acabar comigo, estava-se mesmo a ver. Repare que um deles traz
reló gio e os outros
vêm a fumar cachimbo. Portanto nã o pretendiam que eu lhes dissesse as horas nem que
lhes desse lume. E
depois,
quando eu descrevia uma curva com a velocidade compreensível
nestes casos, achei-me cara a cara com um destes guerreiros
de opereta mais o seu estú pido capacete empenachado e a barra de cores garridas no peito.
Que podia eu fazer quando tentou deter-me senã o dar-lhe um ligeiro empurrã o,
com toda a cortesia, como ele estava mesmo a pedir? Na verdade,
creio que ele caiu de uma forma bastante desastrosa, mas. se ainda nã o conseguiu levantar-
se, eu dar-lhe-ei de boa vontade uma ajuda para o levarem ao hospital.
Depois
deste encontro todas as galiná ceas da vizinhança se precipitaram
sobre mim a gritar como os índios na senda da guerra; pelo menos se formos a acreditar
naquele livrinho, que o Herr Major certamente já leu, O Caçador de Antílopes,
sim, este mesmo, e, se o nã o leu, Herr Major, posso escrever à minha avó , pois sei que ela o
tem lá na biblioteca...
- Basta, Porta! -rugiu o major. Podes dizer-me o que significa esta histó ria dos patos?
Divertidíssimos, víamos agora lá grimas autênticas a correrem
pelo rosto sujo de Porta.
- Herr Major -disse ele numa voz lamentosa, nã o sei de que patos está a falar. Mas lembra-
se perfeitamente
das vezes que eu tenho sido confundido com outro. Sou o homem mais infeliz do mundo e
estou convencido de que
70 SVEN HASSEL
possuo, pelo menos, dois só sias, A minha avó sempre o afirmou...
Os mú sculos das bochechas do major Hinka tremeram perigosamente, mas conseguiu
manter-se sério e, voltando-se
para o tenente hú ngaro, afirmou-lhe que Porta seria severamente
castigado por pilhagem em territó rio aliado.
Nessa noite até o major Hinka comeu também pato assado.
SVEN HASSEL
ESPLENDORES DOS BALCÃ S
Fomos aboletados numa caserna romena perto do rio Dombrovitza, a pouca distâ ncia da
cidade. Um sá bado à tarde Porta dirigiu-se a Bucareste com o intuito de jogar o poker com
alguns romenos seus conhecidos e, no domingo
pela manhã , nã o estava presente à chamada. Respondi em
vez dele, mas tornava-se evidente que uma tal situaçã o nã o
podia prolongar-se.
A ideia -de Plutã o era que Porta, depois de ter jogado e perdido tudo quanto possuía,
incluindo o vestuá rio, esperava
agora, na companhia de alguma pega romena, que o fô ssemos lá buscar. Essa versã o
pareceu-nos difícil de engolir,
pois Porta era um batoteiro emérito. A explicaçã o mais prová vel, e também muito mais
inquietante, era a de que ele
devia ter limpo as algibeiras aos outros todos e que alguém
lhe tivesse feito uma espera.
Logo apó s a «sopa» do meio-dia fomos explorar a cidade.
Encontrar Porta numa terra com um milhã o de habitantes constituía uma empresa
bastante difícil pelo facto de Bucareste cobrir uma superfície considerá vel com os seus
parques imensos, as suas largas avenidas, as suas ruas interminá veis,
onde cada casa possui um jardim particular.
Mas era escusado ralarmo-nos. Ao percorrermos em todos
os sentidos um dos mais belos bairros residenciais da cidade,
a nossa atençã o foi atraída por uma estranha e barulhenta procissã o. De tal forma
barulhenta e de tal forma estranha que toda a gente corria para a ver passar.
Quatro homens - dois soldados romenos, um bersaglier italiano e um civil em trajo de
cerimó nia - oscilavam alegremente
sob o peso de uma cadeirinha do tamanho do compartimento de uma carruagem de
caminho de ferro e, enquanto faziam avançar aquela bizarra equipagem, berravam,
qual deles com mais força, a mú sica do Mercado Persa, estimulados e acompanhados por
uma flauta invisível.
Das entranhas do monstro de oiro e laca vermelha saiu, de sú bito, a voz do flautista:
O REGIMENTO DA MORTE
«-Alto, escravos! Preparem a aterragem! Atençã o...
ALTO!
A traquitana, ao tocar no solo, fez um grande estardalhaço, que devia ter sido ouvido a
quiló metros de distâ ncia, e surgiu entã o o nosso Porta, blindado até à s orelhas.
Também ele vinha em trajo de cerimó nia, com peitilho engomado,
casaca, chapéu alto e monó culo! Saudou-nos com um desses gestos que os maus
romancistas franceses do fim do
século qualificavam de indescritível e dirigiu-se-nos com voz
afectada:
- Meus queridos! Meus irmã os! Permiti que me apresente: conde de la Porta, pela graça de
Deus. E, se nã o estou em erro, julgo conhecer-vos... Como vai a sorte das armas alemã s?
Deixem-me ver a lista das vitó rias de hoje!
- Que significa - inquiriu Polegarzinho - esta traquitana á rabe em que te fazes transportar?
Os nossos honestos vagõ es de gado já te nã o servem?
- Tenciono ser conduzido à frente oriental nesta cadeirinha, especialmente reservada aos
melhores soldados do exército alemã o. James...
Dirigia-se agora a mim:
- James, tu seguir-me-á s e passar-me-á s a espingarda quando for preciso. Assegurar-te-á s
igualmente de que o melhor
atirador de toda a Alemanha fez bem pontaria antes de o deixares puxar o gatilho! Nã o
podemos tolerar que se perca nenhuma bala, é uma questã o de prestígio...
- E a tua farda?
- Meus senhores, esta guerra é uma guerra de cavalheiros...
Além desta cadeirinha e desta irrepreensível rabona, ganhei 2300 lei e uma linda caixa de
mú sica, que vocês vã o ouvir pela primeira vez...
Mergulhou no interior da cadeirinha e voltou com uma magnífica caixa de mú sica que fazia
dançar, ao som de um
frá gil minuete, dois pastores de porcelana. Era indubitavelmente
um objecto de valor. No dia seguinte ofereceu-o a um condutor de eléctrico.
- E finalmente -prosseguiu ganhei uma amante...
Com coxas e tudo.
-- Uma quê ?
74 SVEN HASSEL
-··.Uma quê... uma quê? -arremedou-nos Porta.— En-tã o vocês ignoram, meus filhos, o que é
uma amante? É
um
brinquedo de luxo para os condes e barõ es. Tem coxas, seios, ancas. É precisamente com
tudo isso que se brinca.
Compram-se em lojas muito caras onde se bebe champanhe
enquanto se examinam os modelos. Tem de se lhes dar corda com um cheque para
poderem funcionar, mas, enquanto
funcionam, agitam-se de cima para baixo e de baixo para cima até gastarem a corda, e entã o
é preciso dar-lhes mais com novo cheque. Se os cheques nunca faltarem, elas
nunca deixam de funcionar.
Porta atirou com uma garrafa de vinho aos moços da cadeirinha, gritando:
- Aí têm carburante, escravos! Bebam e sejam felizes!
Depois estendeu-me duas ou três garrafas de Schnaps e concluiu com um gesto largo: -
Agora cantemos louvores aos queridos deuses antigos!
Levou a flauta à boca e recomeçou a tocar, enquanto os moços da cadeirinha, encantados,
vociferavam em coro: Chegou o tempo de esvaziarmos a taça cheia, Chegou, a tempo de
bater o solo com as danças dos [nossos pés livres,
Chegou, o tempo de cobrirmos o leito dos deuses...
Eu gritei, dirigindo-me a Porta: - Eh, onde diabo foste tu agora desencantar Horá cio ?
Retorquiu, sem a mínima vergonha, que os versos eram compostos por ele.
- Nã o me digas! -replicou o Velho. Nã o te julgava tã o idoso! Os Romanos, nã o os Romenos!,
já cantavam isso aqui há uns mil anos!
Os escravos de Porta forneceram-nos uma descriçã o pormenorizada
dos acontecimentos daquela noite. Porta tinha jogado o poker com um jovem barã o,
fazendo ambos batota
com tanto descaramento que uma criancinha teria percebido.
Porta ganhara tudo, claro, incluindo os fatos do barã o. No fim haviam festejado o
acontecimento todos juntos e agora os quatro pâ ndegos iam transportar Porta a casa da
jovem senhora que o infeliz barã o havia igualmente perdido.
O REGIMENTO DA MORTE 75
Vimos a procissã o pô r-se de novo em marcha, aos tropeçõ es,
enquanto nó s ficá vamos a abanar a cabeça, apertando preciosamente contra o peito as
nossas garrafas de Schnaps.
Ao fim da tarde os quatro escravos depuseram Porta, a cadeirinha, a flauta e tudo o resto
em frente do muro da caserna. Nó s está vamos de atalaia e, logo que o vimos em segurança
na enfermaria, comprá mos a cumplicidade de
um jovem esculá pio, que o guardou debaixo da sua asa protectora durante os dois dias de
sono reparador que lhe foram necessá rios para se recompor dos abusos. Andou sempre,
durante a guerra inteira, com a casaca cuidadosamente
dobrada dentro da maleta de soldado. De tempos a tempos, quando julgava necessá rio
festejar qualquer acontecimento,
envergava-a, e eu hei-de ver sempre, no écran das minhas recordaçõ es, a sua silhueta
esgalgada a exibir-se
de casaca e peitilho branco nas trincheiras da frente oriental.
Talvez a cadeirinha ainda se encontre no mesmo lugar, ao pé do muro da caserna de
Bucareste, em comemoraçã o
pacífica de um acontecimento obscuro, mas glorioso, desta
guerra! Se assim for, penso que os Romenos devem considerá -la
com um ar menos sombrio do que à s ruínas deixadas atrá s de si pelos exércitos «aliados»
da grande Alemanha.
Se tivessem existido mais Portas e muito menos capitã es do tipo de Meier, nã o restam
dú vidas de que haveríamos conquistado todos os povos e feito deles nossos amigos, nossos
irmã os. Tê-los-íamos vencido, nã o no campo do horror, mas em vastos concursos de
bebedeira, que possuem,
pelo menos, a vantagem de satisfazer os que neles participam...
E nã o é muito mais fá cil curar uma carraspana do que uma perna arrancada por um
estilhaço de obus?
Havíamos trocado muitas cartas afectuosas depois de nos termos separado em Friburgo,
mas em todas as missivas
de Ú rsula eu achava um tom desanimador que me fazia quase perder a cabeça,
mergulhando-me naquele inferno de
sentimentos nã o correspondidos, ao mesmo tempo que me
assaltava o desejo de lhe demonstrar que ela estava enganada,
que ela também me amava, mas nã o queria confessá -
lo...
A resposta dela ao meu telegrama veio nessa mesma tarde, igualmente por telegrama:
ENCONTRAMO-NOS EM VIENA STOP ESPERA-ME BUFETE
PRIMEIRA CLASSE STOP Ú RSULA.
Ú RSULA
Ú RSULA nã o compareceu ao encontro. O comboio devia vir atrasado. Iria chegar de um
momento para o outro. Da mesa que escolhera eu podia vigiar a porta. Havia um
movimento
contínuo de entradas e saídas; em certas ocasiõ es penetrava tanta gente na sala ao mesmo
tempo que eu nã o
conseguia abranger todas as pessoas com o olhar, e entã o
erguia-me de um pulo, tomado de uma espécie de furor.
Decorreu mais de uma hora.
Tirei as suas cartas de um bolso interior e reli-as pela milésima vez, linha por linha,
deitando no fim de cada uma um olhar para a porta. Bruscamente sentime invadido pelo
pâ nico: nã o me haveria conservado tempo de mais sem levantar a cabeça? Talvez ela
tivesse entrado enquanto eu lia uma das cartas? Talvez me nã o tivesse visto? Talvez se
tivesse ido embora? Talvez houvesse tomado já um comboio
para Munique?
O REGIMENTO DA MORTE 77
Ao cabo de duas horas abandonei o bufete e perguntei se o comboio de Munique vinha
atrasado. Disseram-me que
chegara uma hora antes do meu. O sujeito mostrou-se delicado,
amá vel, mas nada interessado no meu problema pessoal.
Portanto, nã o lhe disse palavra a tal respeito! Mas devia ler-se claramente na minha cara...
Desnorteado, indeciso, caminhava ao acaso. Que diabo viera eu fazer a Viena? Voltei para a
minha mesa. no bufete, e ali fiquei sentado, abatido, com os olhos perdidos
no vá cuo, tentando reflectir, chorando interiormente, construindo
teorias, inventando mil planos engenhosos para a descobrir, supondo mil acontecimentos
capazes de justificarem
a sua ausência e odiando o mundo inteiro, enquanto na sala, à minha volta, as vozes
zumbiam, a loiça tilintava, as duas caixas registadoras ressoavam ao abrir-se e fechar-se.
Todos estavam ocupados a servir, a comer, a beber, a tagarelar
ou a rir, numa palavra: a viver. Eu era o ú nico que ninguém conhecia, de quem ninguém se
ocupava e que, nã o podendo viver, tinha de ficar simplesmente sentado, cada vez mais
tenso, enquanto a sua vida interior tomava as formas mais fantá sticas. Nã o creio que possa
existir ser
mais anormal do que o indivíduo que, tranquilamente sentado
numa sala de restaurante, espera em vã o pela bem-amada.
A hora do nosso encontro passara já havia mais de cento e oitenta minutos; ela nã o viria. A
minha loucura era de uma espécie particularmente dolorosa e talvez se houvesse tornado
incurá vel se ela nã o tivesse aparecido.
Mas veio, doce, graciosa e esbelta como uma chama. Os meus dedos esmagavam o cigarro
em que segurava e este
queimava-me a mã o, mas o meu cérebro estava provisoriamente
incapaz de registar a dor; todo ele se entregava a servir os meus olhos, quê fixavam,
fixavam... Fixavam o saia e casaco cinzento, os sapatos rasos e a malinha com
as iniciais U. S., assim como a mã o que a segurava, essa deliciosa mã o que se devia adaptar
tã o bem à nuca de um homem.
- Enganei-me no comboio. Nã o tenho desculpa nenhuma...
Apesar dos seus protestos, beijei-lhe a mã o e fi-la sentar junto de mim, no banco ao longo
da parede.
78 SVEN HASSEL
- Querida...
- Meu amor, é preciso, em primeiro lugar, dar de comer à tua querida se nã o queres que ela
caia de fraqueza...
Nã o, nã o, tem juízo e manda vir qualquer coisa boa e uma garrafa de vinho. Só depois te
direi o que vamos
fazer...
Mandei vir arroz de frango, molho paprika e indiquei um nú mero na lista dos vinhos.
Continuava ainda horrivelmente
abalado, mas conservei a presença de espírito suficiente para, durante o primeiro quarto de
hora, nã o dizer senã o a palavra «querida». Isto era a prova cabal de que a minha
cachimó nia nã o trabalhava bem e, ao mesmo tempo,
uma prova de ternura que nã o podia deixar de a satisfazer...
Dispú nhamos ainda de uma hora antes de partirmos para Hochfilzen.
- Quando me telegrafaste a dizer que tinhas cinco dias de licença, pensei logo que seria esse
o sítio ideal para os passarmos. Tu adoras a montanha, tal como eu, nã o é verdade?
- Querida...
- Está s impossível! Com certeza bebeste de mais. Tenho de te fazer voltar ao teu estado
normal. Nã o quero viajar na companhia de um idiota. Embora eu pró pria também nã o
esteja em perfeito juízo! Em que aventura me vim meter!
Esvaziei o meu copo, depois enchi-o novamente, assim como o dela. Nã o toquei no prato,
enquanto a minha companheira
devorava a sua raçã o de frango e de molho paprika, de pã o e de arroz, sempre a tagarelar e
a dar provas de uma vitalidade reconfortante. Fiquei um pouco inquieto por ela nã o prestar
atençã o à minha falta de apetite. Era um assunto que muito costumava interessá -la. Dizia-
me sempre que eu estava magro como um espeto, que devia comer mais. Mas hoje nã o
parecia preocupar-se com isso.
Havia nela qualquer coisa de diferente e, por momentos, tinha a impressã o de que estava
tã o nervosa como eu e que
nos procurá vamos à s escuras, estranhos um ao outro, e que
era por isso que ela desenvolvia aquela actividade...
devoradora!
O REGIMENTO DA MORTE 79
- Meteste-te numa histó ria de lua-de-mel - respondi-lhe.
- Da nossa lua-de-mel.
Ela desatou a rir; e depois, de repente, apó s um longo momento de imobilidade sonhadora,
pegou-me na mã o e apertou-a de encontro à sua face.
- Nã o sei - disse, nã o sei... Mas, visto que só tens cinco dias e por muitas outras razõ es mais...
terá s o que desejas. Está s contente?
A resposta dela tinha-me desorientado, e por isso murmurei
com alguma incoerência:
- O que eu desejo nã o é fazer o que quero, mas sim o que tu desejares... Nã o serã o já horas
desse famoso comboio?
Na gare ela tornou a pegar-me na mã o, deteve-se e olhou para mim.
--Volta atrá s para comprar uma garrafa de conhaque...
Quando o capitã o do estado-maior nos viu no compartimento,
uma mulher bonita e elegante, uma garrafa de conhaque e um miserá vel soldado de um
regimento disciplinar,
deu meia volta e nã o tardou que surgissem dois polícias militares. Abateu-se sobre nó s um
silêncio de morte
enquanto eu lhes mostrava os papéis e o meu bilhete de 2.ª classe e Ú RSULA enfrentava os
seus olhares curiosos com
um furor glacial e ostensivo. Mas dominou-se, graças a Deus! O capitã o desceu em Linz, sem
que os olhos de Ú RSULA o tivessem desfitado um só instante. Eu sentia-me feliz por nã o
estar no lugar dele. O par de civis desceu em Setztal, deixando a carruagem por nossa conta.
Com grande
surpresa minha, foi Ú RSULA que tomou a iniciativa de me beijar. Longamente. Um beijo
trémulo, desesperado, que a deixou ofegante.
- Tudo o que -desejares - arquejou ela, voltando-se para a janela. - O que eles se julgam no
direito de te fazer também tem limites...
E voltou para mim o seu olhar inflamado de có lera.
- Terá s tudo o que desejas. E imediatamente, se quiseres...
É formidá vel poder rir. Rir sem o menor constrangimento.
80 SVEN HASSEL
- Nã o penses neles. Vamos fazer como se nã o existissem.
Sã o mesquinhos e desprezíveis. À s vezes escorrega, mos neles, evidentemente; outras, nã o
podemos evitar pisá -los.
Mas no fim limpamos os pés e seguimos em frente...
Desarrolhei a garrafa de conhaque.
- Bebamos à saú de dos pés bem limpos...
Lá fora as montanhas corriam e desfilavam diante das janelas, juntamente com a chuva, os
postes telegrá ficos e o crepú sculo. Em seguida, a obscuridade veio fazer-nos companhia.
Quando despertá mos, eram 3 horas da manhã e devíamos ter descido em Hochfilzen, à
meia-noite e um quarto.
- Innsbruck, Innsbruck - clamava o altifalante que nos despertara.
Saltá mos do comboio, bêbedos de sono. Ú RSULA arranjou-se
rapidamente nos gabinetes de toilette enquanto eu telefonava para todos os hotéis da
cidade.
Fui ter com ela debaixo do reló gio, como havíamos combinado.
- Arranjaste quarto? - perguntou-me.
- Arranjei, no Hotel Jã gerhof.
- Agora estou com frio. Tiveste dificuldade, nã o?
Eu ligara para vinte e quatro hotéis, mas fingi que fora fá cil, que eles nã o haviam podido
resistir por muito tempo à minha bela voz de barítono. A sala de espera estava
deserta e mergulhada na penumbra. Alguém tropeçou num balde, algures, perto de nó s,
enquanto um varredor espalhava
metodicamente serradura sobre os mosaicos de cores vivas.
- Lua-de-mel em Innsbruck - disse ela. - Ficaste aborrecido ?
- Nã o. Aqui também há montanhas! Deixa-me levar a tua mala...
A praça, em frente da estaçã o, achava-se igualmente deserta. Tinha chovido e o ar era
glacial. Onde diabo ficaria
o Hotel Jã gerhof?
Eu murmurei:
- Espera por mim um minuto.
Voltei ao grande á trio da estaçã o. Nem vivalma. Porém, junto ao quiosque dos jornais,
abriam-se as portas de uma
O REGIMENTO DA MORTE 81
cabine telefó nica. Com um pouco de sorte talvez conseguisse
arranjar um tá xi...
- Eh, tu aí!...
Larguei o manípulo da porta. Esta fechou-se atrá s de mim com uma espécie de suspiro.
--Segue-me imediatamente!
O gabinete da polícia militar estava cruamente iluminado.
Sentia escorrer-me o suor na raiz dos cabelos. Aquelas luzes eram demasiado claras. Ainda
hoje uma luz demasiado
clara tem o poder de me fazer transpirar.
O sargento de serviço interrogou com o olhar os dois tipos que me tinham levado. Depois
perscrutou curiosamente
o meu rosto.
- Entã o?
Hirtos, em sentido, os dois outros explicaram: - Achá mo-lo a vaguear pela estaçã o.
O sargento voltou-se para mim.
- Que diabo fazias ali a esta hora da noite?
Eu pusera-me também em sentido: - Queria chamar um tá xi. Eu e a minha mulher viemos
de Viena, no expresso da noite, para gozar aqui a minha licença. Aí tem os meus
documentos...
Ele examinou-os.
- Um preso de licença! Parece esquisito, à primeira vista!
Esforcei-me por lhe sustentar o olhar. Uma mosca zumbia, zumbia... atravessava a sala em
ziguezague.
- Onde está a tua mulher?
- Lá fora, à minha espera, junto da porta principal.
Ele fez sinal a um dos esbirros: - Vai buscá -la.
Eu ouvia ressoar as botas do tipo na sala de espera e seguia maquinalmente o voo
caprichoso daquela mosca idiota... O sargento mexeu-se na cadeira. Numa porta
entreaberta
apareceu uma cabeça ensonada a perguntar: - Que horas sã o?
- Três e meia.
A cabeça desapareceu de novo.
- Tens aí o teu bilhete?
82 SVEN HASSEL
Estremeci. Poderia dizer que o tinha atirado fora?
Ele havia de querer saber se eu nã o tinha um bilhete de regresso a Viena. Havia de querer
ver o bilhete de Ú RSULA.
Nã o tínhamos nenhuma maneira de escapar.
- Este bilhete dava só até Hochfilzen. Podes dar... uma explicaçã o?
- Adormecemos. Só acordá mos em Innsbruck.
- Queres dizer que vieste até aqui sem pagar ?
- Sim. Mal tivemos tempo de descer. Mas estamos prontos a dar a diferença...
Nã o respondeu. O telefone desatou a tocar e ele pegou no auscultador.
--Polícia da estaçã o... Quem?... Um momento...
Percorreu com o dedo uma lista afixada na parede, junto de si.
-Nã o, nã o tenho cá esse nome... Foi com certeza engano... Sim, a trapalhada do costume, há
sempre sari lhos nessas coisas... Vou dar uma vista de olhos, mas nã o devemos lucrar nada
com isso...
Ú RSULA penetrou no gabinete e olhou-me, visivelmente assustada. Esperá mos. A mosca
zumbia. Batalhã o disciplinar.
Um preso. Um preso. Um preso. O sargento disse uma graçola mais ao telefone e desligou
vagarosamente.
Examinou os documentos de Ú RSULA e tivemos de com-fessar que nã o éramos casados.
-- Ainda nã o somos -- admitiu Ú RSULA. - Vamos casar amanhã ...
Subitamente recuperou o sangue-frio: --Oiça lá ... Tudo isto é apenas o resultado de um erro
lamentá vel... Se nã o fosse o sono, teríamos descido em Hochfilzen e nada disto se passaria.
Bem sabe como é difícil para os soldados dos batalhõ es disciplinares obterem
uma licença. O meu marido conseguiu arranjá -la. Nã o cometeu nenhuma falta... Os senhores
compreendem, há tanto tempo que nã o nos víamos...
Exibiu a garrafa de conhaque.
- Fui eu que lhe disse para a comprar, queria que ele se sentisse completamente satisfeito...
Bebemos um bocado
e... e... depois fui eu mesma que o encorajei a... a...
- Sim?...
O REGIMENTO DA MORTE 83
Ela era formidá vel. Corada e furiosa, com o olhar flamejante,
atingia em cheio o coraçã o do homem, com aquela maneira directa, sem escrú pulos, que as
mulheres têm.
- E pronto... tínhamos o compartimento por nossa conta. Eu nã o estava com ele há muito
tempo. Ele nã o fez nada de mal; conduziu-se como um bom soldado, nada mais!
Esta ú ltima observaçã o fora genial. O sargento restituiu-nos os documentos.
- Podem-se ir embora...
Depois voltou-se para mim:
- E tu continua a portar-te como um bom soldado!
A porta fechou-se sobre um coro de gargalhadas maliciosas.
- Vamos já sair daqui para fora - segredou ela, arrastando-me quase a correr. Fujamos
daqui, tenho medo...
Achá mo-nos de novo na praça deserta, saturada de chuva, e reparei que Ú rsula estava
lívida e que a sua testa lisa se cobria, na raiz da cabeleira negra, de gotículas que nada
tinham a ver com a cacimba.
- Segura-me bem - implorou ela. - Parece-me que vou desmaiar.
Larguei a mala a toda a pressa para amparar Ú rsula e fazê-la sentar num degrau.
- Mergulha a cabeça entre os joelhos. Assim! Nã o te mexas. Isso passa já ...
- Agora sinto-me melhor - afirmou ela passado um bocado. Nã o ficaste muito zangado
comigo?
- Zangado!
- Por causa deste... desmaio. Nã o te sirvo de grande ajuda...
- Nã o digas isso! Se tu nã o tivesses salvo a situaçã o, Deus sabe o que nos aconteceria.
Teriam começado a procurar
confirmaçõ es por todos os lados e fica sabendo que uma comunicaçã o telefó nica com
Bucareste nã o se consegue
num quarto de hora. Em qualquer caso, eu teria sido obrigado
a passar a noite na companhia daqueles trastes! Tu foste formidá vel e deste provas de uma
coragem espantosa...
Mas deves sentir-te esgotada! Queres que tente arranjar um tá xi?
84 SVEN HASSEL
- Nã o, nã o. Vou contigo. Nã o quero que nos separemos nem por um só instante. Vamos ficar
aqui sentados ainda mais um ou dois minutos e depois procuraremos juntos o tá xi...
Apertei-a contra mim durante um momento e depois ela estremeceu.
- Vamos, estou cheia de frio.
- Sim, vamos embora...
Encontrá mos um fiacre que nos levou ao hotel. O
Jagerhof era um edifício branco, vasto, adormecido por detrá s das portadas, ao fundo de
uma alameda cujos calhaus
fizeram abrandar a marcha do cavalo. O velho porteiro da noite riscou o nome de Ú rsula
que eu escrevera no registo, dizendo-me num tom amigá vel que nã o havia necessidade
de mencionar o nome de solteira da minha mulher.
--O senhor e a senhora de tal... -concluiu com um sorriso. - É quanto basta.
Fiquei vermelho como um tomate. O garoto do elevador sorriu-nos também, enquanto eu
olhava a direito na minha frente...
Enquanto a criada abria a cama, Ú rsula saiu para a varanda. Aclarei a voz e entrei na casa
de banho. Em seguida a criada retirou-se e encontrá mo-nos frente a frente,
no meio do quarto, a fitar-nos nos olhos...
- Pronto, cá estamos...! Queres um cigarro?
A mã o dela tremia, a ponto de partir o fó sforo.
A nossa atrapalhaçã o era tremenda. O ar seco daquele quarto desconhecido, onde tudo era
tã o limpo, mas também
tã o anó nimo. A excitaçã o. A fadiga. A emoçã o. Uma quebra
emocional? Eu sentia-me tã o pesado, tã o fatigado, como no fim de uma semana de
manobras. Ela mantinha-se muito
direita na minha frente, de ombros caídos, e os seus olhos eram cor de avelã . Nã o conheço
olhos capazes de exprimir
tanta tristeza, tanto cansaço, como os olhos cor de avelã .
A quem competiria agora dar o primeiro passo? E
sentiríamos
nó s o desejo, teríamos a força necessá ria, nã o iríamos estragar tudo, afogar tudo para
sempre na amargura de uma
recordaçã o penosa? Que devíamos ou poderíamos esperar
agora um do outro?
O REGIMENTO DA MORTE 85
- Vou acabar de fumar este cigarro na varanda enquanto tu te dei... te despes.
Era horrível. Eu nem sequer tivera coragem para dizer: enquanto te deitas.
Haverá alguma coisa mais terrivelmente penosa do que a noite? As montanhas, no escuro,
com as suas pesadas massas, esperavam que o dia nos revelasse o que realmente
eram. Montanhas altas, montanhas negras, amanhã saberemos
como sois. Amanhã já teremos dormido; amanhã tomaremos o pequeno almoço convosco,
conversando acerca
das futuras escaladas. Esta noite tudo está demasiado escuro
e vó s nã o tendes nada para nos oferecer...
- Podes vir, querido...
Um dos dois copos da casa de banho estava meio de conhaque. O outro nã o tinha nada, mas
eu bem via que tivera conhaque também. Agarrei no segundo.
Se eu lhe dissesse que está vamos muito cansados, pensaria
que eu o fazia em atençã o a ela, confessar-se-ia de acordo e ficaríamos ambos lado a lado,
cada um cheio de medo de ceder primeiro ao sono. E talvez se sentisse horrivelmente
desiludida, apesar do cansaço! E se eu lhe dissesse...
Nã o era fá cil resolver aquele género de problema. Os toiros e os garanhõ es dos romances
negros americanos, os
heró is emotivos como os de Hemingway, com coraçõ es de
aço, batem recordes sexuais... Nesse momento decisivo senti
inveja deles. Mas nã o. Só para a morte nã o há remédio.
Enquanto há vida...
- Bebo à saú de dos pés bem limpos - disse eu, esvaziando
o meu copo.
- Meu amor...-murmurou ela com uma voz infantil.
Deitei-lhe a cabeça no meu ombro e puxei-lhe a roupa para o peito.
- Amanhã cometerei excessos à maneira de Hemingway...
A montanha encarrega-me de te dizer que amanhã também ela te mostrará as suas
habilidades. Mas esta noite...
caramba, quero dormir...
Ela riu em surdina:
- Meu amor...
Acho que nã o me saí nada mal.
86 SVEN HASSEL
Passado um momento ela acrescentou:
- Obrigada, querido.
Depois poisou a cabeça na almofada, enfiou o braço no meu e, passado meio minuto, era
como se ali nã o estivesse
ninguém. Algumas horas de sono bem alcoolizado.
de um espesso sono de seres primitivos, e em seguida o despertar simultâ neo na mesma
posiçã o exacta... E a montanha
mostrou-nos entã o tudo de que era capaz. Escalá mo-la e repousá mos lá no cimo...
Nunca se deve forçar nada; nestes casos deve-se simplesmente
dormir...
O REGIMENTO DA MORTE 89
no firmamento. Uma á guia a sério, uma criatura viva, e nã o a á guia herá ldica que mantinha
a Europa aprisionada nas suas garras sangrentas.
Uma paisagem tã o ostensivamente idílica pode tornar-se rapidamente insuportá vel. Tudo
ali era demasiado belo, demasiado claro; os picos nevados pareciam também demasiado
calmos. Destoavam bastante de uma alma agitada.
Era entã o necessá rio regressar ou dormir naquele calor perfumado, cheio do zumbido de
mil insectos.
Idílio na montanha. Refeiçõ es pantagruélicas regadas com vinho do Reno, servido em
cá lices cheirando a â mbar.
A minha mã o sobre a coxa de Ú rsula, que se esquiva, e aquela brusca sensaçã o de abismo
prestes a tragar-me: só
mais dois dias,, só dois...
- Pensa que temos ainda dois dias. Ainda dois dias, está s a ver?
O que de maneira nenhuma me impede de chorar e de me sentir tã o infeliz como me sinto.
O hoteleiro grita-nos: «Griiss Gott», e segue-nos com os olhos, gravemente, enquanto
retomamos o atalho íngreme. Ao cabo de alguns minutos Ú rsula volta-se. Ele continuava a
observar-nos com
a mesma gravidade e ergue o braço para um ú ltimo adeus.
- Que homem tã o simpá tico! - exclama ela.
- Pois é.
Ela poisa o braço sobre o meu ombro: - Nã o me parece que compreendas que inferno seria
a minha vida se me apaixonasse por ti!
- Se te apaixonasses por mim? Mas eu julgava que já o estavas...
- Julgavas... quando eu me esfalfo a repetir-te o contrá rio?
É para desanimar... Seja como for, nã o consegui resistir ao teu apelo. Tu és de um género...
de um género que as mulheres nã o estã o habituadas a encontrar. Eu, pelo
menos. Mas talvez nã o seja a especialmente indicada para...
- Oh, és! Se és!
Tinha o seio dela na minha mã o. Pegou-me no braço e voltou a colocá -lo no seu ombro.
- Falemos de outra coisa, queres? Tudo isto é já de si bastante complicado. Mas eu... nã o sei
como te hei-de dizer...
90 SVEN HASSEL
- Pois sei eu. Queres dizer que nã o está s apaixonada por mim. Nã o procuremos palavras tã o
pomposas, Ú rsula.
Eu pró prio cometi esse pecado, mas tu mantiveste-me tanto
tempo afastado e, de repente... Por isso torna-se difícil exprimirmo-nos objectivamente.
-- E tu és tã o magro e desajeitado. Sabes que gritas a dormir?
- Sério? Mas à parte isso tudo corre bem!
- Talvez. Mas estou a pensar na minha vida, que agora vai ser um inferno...
Subitamente perdeu a cabeça e atirou-se a mim a soluçar: - Nã o quero que me deixes! Nã o
quero que eles me afastem de ti! Compreendes?
--Nã o, nã o! Sim, sim!...
Eu nã o conseguia dizer outra coisa. Batia-lhe nas costas e repetia: «Nã o, nã o. Sim, sim», ao
acaso. Nã o conseguia perceber nada.
Nessa noite ela envergou um vestido preto, simples, muito justo, pondo, como ú nico enfeite,
um colar de contas negras e verdes. Eu sabia que a minha farda preta dos carros de assalto
me conferia uma espécie de elegâ ncia macabra, acentuada ainda pela ausência de qualquer
condecoraçã o.
Notei com certo orgulho que as pessoas nos observavam enquanto caminhá vamos para a
nossa mesa.
Durante o jantar passou junto de nó s um tenente que deixou cair sobre a mesa um pedaço
de papel dobrado.
Curioso, abri-o e li:
Se está aqui sem licença, trate de se pô r ao fresco.
Anda por aí a polícia militar. Se precisar de ajuda, encontra-me
no á trio.
De comum acordo com Ú rsula, decidi ir agradecer-lhe e informá -lo, ao mesmo tempo, de
que tinha os documentos
em ordem.
Avistei-o logo, a fumar, num canto do vestíbulo.
Apresentei-me
rapidamente, agradeci-lhe e indaguei: - Será indiscreto perguntar-lhe a razã o da sua
gentileza?
-De forma nenhuma. O meu irmã o encontra-se igualmente nos tanques. Chama-se Hugo
Stege.
O REGIMENTO DA MORTE 91
Hugo! É um dos melhores camaradas que tenho na companhia!
- De verdade ? Um encontro destes tem de ser comemorado.
Dá -me licença que os convide aos dois esta noite?
Conheço um sítio divertido onde podemos ir no fim do jantar.
Fomos ambos ter com Ú rsula. Ele estava em engenharia e chamava-se Paul Stege. Quando o
deixá mos, depois de uma noite bem passada, deu-nos um nú mero de telefone, para onde
poderíamos falar-lhe se precisá ssemos de qualquer
coisa.
De regresso ao quarto, começá mos por fumar um ú ltimo cigarro. Aproximava-se a aurora.
Fui erguer as persianas e
depois liguei o rá dio. Havia habitualmente boa mú sica à quela hora, o chamado «programa
para a frente». Uma orquestra, provavelmente a Grande Orquestra Sinfó nica de Berlim,
atacava o ú ltimo andamento dos Prelú dios de List.
Hitler e Gö ebbels haviam conseguido estragar aquele trecho
comovente de mú sica româ ntica, transformando-o em mú sica
de propaganda para a sua maldita guerra. A U. F. A.
utilizava-a como fundo sonoro para os seus filmes de actualidades
sobre as proezas da Luftwaffe. Era a Luftwaffe a preparar o caminho para nó s, as tropas
blindadas. Era a Luftwaffe a arrasar o ghetto de Varsó via em três dias e três
noites de horror. Uma vez restabelecida a calma e disperso
o fumo, nada do que restava em toda aquela vasta extensã o
media mais do que 1 metro e meio de altura. De vá rias centenas de milhares de judeus,
somente um punhado saíra
com vida, entre os cordõ es de SS à s gargalhadas. Um punhado de judeus e alguns milhares
de ratos.
- Ao som dos Prelú dios de Lizst.
- E se fechasses isso? - sugeriu Ú rsula. - Esse trecho faz-me mal aos nervos.
Desliguei o rá dio e despi-me.
- Que dia maravilhoso. E em breve estará outra vez claro. É quase uma vergonha dormir...
- Eu creio que será maravilhoso dormir um pouco.
Apenas algumas horas. Estamos fatigados, nã o é verdade?
- Se a vida pudesse ser sempre assim deliciosa! Comer quando se tem fome. Beber quando
se tem sede. O
suficiente
92 SVEN HASSEL
para nos sentirmos leves e espirituosos. Abrir os olhos e acharmo-nos bem despertos,
porque chegou um novo dia que só pede para ser vivido. Ficar-se fatigado com uma fadiga
agradá vel. Como estou neste momento. Nada mais desejo no mundo...
Isto nã o era rigorosamente exacto. Eu desejava tirar-lhe o colar. E os sapatos. E o vestido.
Aquele fecho eclair, oh!,
aquele fecho eclair... Pronto!
- Como as tuas mã os estã o calmas, amor! Tã o senhoras de si! E o outro sapato? É para hoje
ou para amanhã ?
Nã o, nã o! O sapato primeiro!
- Nã o, primeiro as meias!
Tirei-lhe depois o outro sapato.
- Vê se nã o estragas nenhuma malha com as unhas; é este o meu ú ltimo par... Oh, nã o
acabaste de dizer que estavas fatigado?
Nã o respondi. Tinha a minha boneca para brincar e ela a sua. Está vamos os dois prontos.
Eu, pronto para ela, ela, pronta para mim. Sem complicaçõ es, sem impaciências,
sem reticências. Todo o tempo do mundo diante de nó s...
Contemplar olhos no fundo dos quais vai e vem uma onda. Sermos tã o amigos que os
deuses nos emprestem a
acuidade dos seus pró prios sentidos e nos permitam notar uma pressã o de um miligrama,
um frémito ténue de uma fracçã o de milímetro. Uniã o total dos corpos e das almas.
- Um pouco mais acima, sim ?
Num murmú rio:
- Sim. E que mais?
Nã o era preciso responder. A vaga desabava sobre nó s e arrastava-nos no seu maelstrom.
Agora ela repousava encostada a mim. Percorria-a um frémito de vez em quando e eu
estremecia ao mesmo tempo.
Está vamos abalados até ao â mago da nossa substâ ncia, vencidos um e outro. Para quê
falar? Nada havia a dizer.
Puxei para cima a roupa antes que o frio nos atingisse.
«...as armas soviéticas utilizadas para este ataque. A ofensiva está desencadeada, do oceano
Á rctico até ao mar
»do Norte, e já recebemos comunicados sobre as conquistas
O REGIMENTO DA MORTE 93
de territó rios e sobre à s vitó rias alcançadas pelas forças reunidas alemã s, italianas e
romenas...»
Eu ligara o rá dio em surdina. Chamei Ú rsula em voz baixa. Ela dormia, graças a Deus. E dou
graças, também, por me ter sido possível conhecer, antes de ouvir estas notícias, aquilo a
que se convencionou chamar a felicidade total. Aqueles que possuem ideias bem definidas
acerca da alma e do corpo, do espírito e da matéria, da superioridade deste ou daquela
sobre os outros, sorrirã o, sem dú vida.
Deixá -los falar. Deixá -los rir. Todo o mal que lhes desejo é que conheçam um dia esta
espécie de felicidade, e talvez entã o compreendam! Talvez!
O nosso casamento teve lugar no dia seguinte, no pequeno convento... Paul Stege serviu de
padrinho a Ú rsula.
Levou-lhe um enorme ramo de rosas brancas, que lhe fez vir as lá grimas aos olhos. O padre
dos cabelos brancos nã o estava lá muito resolvido a casar-nos, por causa da minha
qualidade de «disciplinar». Mas, assim que soube que eu era um Auslandsdcutscher (1) de
ascendência austro-dinamarquesa e praticamente naturalizado escandinavo, consentiu
logo:
- Passei alguns anos da minha juventude nesse pequeno país nó rdico. É um oá sis no
coraçã o da Europa. Esperemos que a guerra o poupe e, se assim acontecer, volte para lá ,
caso lhe seja possível...
As prendas de Ú rsula compunham-se de alguns tesouros de origem romena: uma camisa de
noite toda de seda com rendas verdadeiras, dois adereços diá fanos, cinco pares de meias de
seda e um anel que Porta me tinha arranjado.
Um anel de ouro com uma grande safira rodeada de diamantes minú sculos. Tudo isto
representava uma fortuna no mercado negro.
Do ú ltimo dia só me restam recordaçõ es fragmentadas: - Que temos nó s a ver com esta
guerra idiota? Agora que pertencemos um ao outro...
- Nã o, nã o, nã o. Tens de me prometer. Se acontecer qualquer coisa, deves livrar-te de tudo
isso o mais depressa (1) Alemã o do exterior. (N. do A.)
94 SVEN HASSEL
possível. Temos de esperar pelo fim da guerra para ver em que estado fica o país...
- Querido! Recordas-te de que, em Viena, nã o sabias dizer outra coisa senã o «querida»,
Agora sou eu que só sei dizer «querido» e só «querido»... Promete-me que terá s
muito cuidado contigo. Que nunca te oferecerá s como voluntá rio
seja para o que for. Promete escrever-me muitas vezes, muitas vezes... Oh! Sven, Sven!
- Entã o, entã o! Nã o deves chorar. Vamos, vamos...
- Adeus, Sven. Lembrar-te-á s...
Ú rsula, Ú rsula. Um rosto pá lido que se esfuma. Ú rsula.
Ú rsula. Tactactac... tactactac... O comboio a deslizar. Os postes telegrá ficos a fugirem noutro
sentido. Em sentido contrá rio. O compartimento ia à cunha. -As pessoas discutiam,
discutiam até mais nã o. Acreditavam piamente na veracidade dos comunicados e a sua
estupidez crassa duplicava
a profundeza da minha desolaçã o.
A qual destas criaturas insensatas, bem vestidas, poderia eu fazer compreender que a
grande má quina militar montada
pelos generais alemã es rolava a uma velocidade enorme para um fim miserá vel? A quem
poderia eu explicar que a sua perfeiçã o era apenas aparente? Que consistia sobretudo
numa série de reflexos condicionados, aperfeiçoadíssimos,
dos quais, em primeiro lugar, se destacava a capacidade de um povo se manter em posiçã o
de sentido?
Capacidade talvez espectacular, mas que nã o produzia mais
do que robots, má quinas. E nã o ensinava de maneira alguma
a reconhecer e a avaliar a solidez do caminho sobre o qual avançavam os robots, passo a
passo, passo a passo...
Diziam-lhes
para seguirem por ali e os autó matos obedeciam cegamente...
A má quina atacava com fú ria insana um inimigo que possuía o ú nico factor autêntico da
vitó ria: a superioridade moral.
- Pela parte que me toca - respondeu o Velho -, passei uma bela licença com a minha mulher
e os garotos.
Muito
boa, mas que diabo se pode fazer em menos de uma semana?
A minha mulher é condutora de eléctricos, trabalha agora num 61. Sempre é melhor do que
ser revisora. Desta maneira
quase chega a manter a casa. Só foi pena ter de voltar a toda esta merda. Se ao menos um
gajo tivesse a sorte de
lhe terem de cortar uma gâ mbia, entã o, sim. Ficava livre desta porca de guerra nazi!
- Eu, por mim, antes queria um braço - declarou Joseph Porta.
Eu interrompi:
- Ainda nã o nos vimos no meio da refrega. Mas, santo Deus, talvez consigamos escapar...
O Velho escondeu o rosto nas mã os.
- Eu cá já vi que baste - murmurou. - Nã o peço mais. Nã o tenho necessidade de vitó rias
gloriosas. Tudo o
que desejo é a paz! Escapar desta? Quem nos ficará reconhecido
se escaparmos desta? Ninguém, nem. mesmo nó s.
Maldita porcaria...
Porta guardou a flauta no estojo. Pela primeira vez nã o tivera a coragem de tocar.
A LICENÇA DE PORTA
- Podem metê-lo no c..., o tal relató rio! Antes de ele chegar já estarei no deserto, e sempre
quero vê-los irem lá buscar-me, só porque o palerma de um empregado do caminho de
ferro apanhou uma castanha muito bem dada nas jó ias da família!
Porta assoou-se aos dedos e escarrou na parede, mesmo no meio de um aviso que dizia ser
proibido cuspir.
96 SVEN HASSEL
- Em resumo - prosseguiu amargamente -, nã o tive sorte nenhuma com a minha licença. Mal
lá cheguei, apareceu
uma espécie de tarada que vinha de Spandau com um pimpolho que queria fazer passar por
meu filho. Eu disse-lhe muito delicadamente que devia tratar-se de um mal-entendido
lamentá vel e que podia ir lamber sabã o; mas que eu seja general de brigada se aquela
maldita nã o me levou perante um tribunal, onde uma espécie de palhaço,
sempre a gritar por detrá s de uma secretá ria, me acusou de ser o pai do resíduo de aborto
da dama em questã o!
Eu disse-lhe muito calmamente que até o mais cegueta podia
ver a olho nu que se tratava de uma impossibilidade física flagrante: um belo rapaz como
eu nã o podia engendrar um ranhoso daqueles! E trata logo de me fazerem um teste de
sangue, com um palerma que se diz médico e promete esclarecer toda esta embrulhada!
Imaginem com que alegria
, me prestei logo à quilo, visto eles afirmarem que depois tudo se esclareceria. Pois fiquem
sabendo mais uma vez que ninguém se pode fiar nos médicos: este em questã o ! foi depor
no fim, afirmando que eu podia muito bem ser ; o pai da criança!
- Mas entã o, Porta, se a tua caderneta indica que nã o estiveste em Berlim no momento
crítico, eles nã o podem...
- Pois nisso é que vocês se enganam! Eles sã o capazes ; de tudo! E no ú ltimo dia, quando
estava a despedir-me dos
meus velhotes, no meio do ranger de dentes e da comoçã o
geral, surge outra burra a declarar-me que ia parir! «Para-bens», disse eu. «Felicidades. O
nosso Filho vai ficar bem contente! Os meus cumprimentos ao seu marido e que
ele nã o se esqueça de lhe despejar o caixote do lixo todas as manhã s...» Está visto que nada
daquilo me dizia respeito, mas ou se é bem educado ou se nã o é. Conversei um
um pouco com a tal burra, falei-lhe da grande felicidade que
ia entrar em sua casa e, palavra puxa palavra, passá mos para
o quarto contíguo com ideias de experimentar o colchã o.
Eu, como um idiota, estava para ali sem pensar em nada quando aquela burra me segreda
ao ouvido: «O pai és tu, meu querido. Ficaste contente?» «Contente!», digo-lhe eu.
«Está s a delirar?» Mandei-a vestir sem lhe dar mais cavaco.
Parecia-me estar a ser perseguido pela fatalidade. Nã o sei o
O REGIMENTO DA MORTE 97
que se passa com os outros, mas, comigo, basta que uma mulher se sente nos meus joelhos,
pumba!, é uma desgraça!
- Experimenta apertar a berguilha - aconselhou o velho. Sinceramente, Porta, tu nã o foste,
de verdade, a Berlim aqui há uns meses?
- Basta veres a minha caderneta...
- Lá o que figura na caderneta é uma coisa e o que nã o figura é outra...
- E tu, Bruto? -exclamou Porta ofendido. Fui a Berlim, na época em questã o, mas, santo
Deus, só lá estive
meio dia.
- Era mais do que suficiente se estavas interessado em assunto de coxas - retorquiu o Velho,
no meio das gargalhadas
gerais.
R. M. - 7
O REGIMENTO DA MORTE 99
para que alguém respeitasse a ordem. Os salva-vidas pendiam,
a postos, na ponta do cordame. Viam-se canhõ es aos pares na ponte, e íamos escoltados por
três torpedeiros italianos, cujas chaminés atarracadas vomitavam torrentes de fumo negro.
O balanço era tremendo e o cheiro a vomitado
tã o intenso, a impregnar o navio da popa à proa, que Porta, o Velho e eu nos deitá mos ao ar
livre, enrolados nos
capotes e protegidos do vento pela ponte. Nã o me recordo
acerca de que falá vamos, mas sei que íamos muito satisfeitos
com a nossa sorte. Julgo que conversá mos apenas, emitindo opiniõ es de interesse geral e
fazendo pequenas observaçõ es maduramente reflectidas. Falá vamos como simples
camponeses que se tivessem sentado no chã o, para merendar, à borda da sua jeira.
Havíamos deixado provisoriamente
de ser cadastrados e o pró prio Porta se conduzia normalmente, abstendo-se de temperar as
suas frases com expressõ es obscenas. Eu pensava em Ú rsula, cuja presença,
só por si, teria podido dar realidade à s tréguas que está vamos saboreando, três
companheiros isolados num transporte
de tropas pesadamente carregado de homens e material.
Porta sentiu necessidade de tocar qualquer coisa e descobriu
que a sua mala ficara em terra, no armazém de fardamentos, e teve entã o uma nova crise de
raiva.
- Socorro! Socorro! Assassinos! Estou morto! Malandros!
Pulhas! Porcos nazis! Estou roubado! Roubaram-me a flauta!
Nada conseguiu consolá -lo, nem mesmo a promessa de lhe comprarmos outra nova em
Tripoli. Nenhuma seria tã o boa como a que perdera!
Pouco a pouco todos adormeceram.
Fomos acordados em sobressalto por um grande ruído de motores, mesmo por cima das
nossas cabeças.
Desciam
do céu sobre nó s muitas línguas de fogo. Rangidos e assobios
rasgavam-nos os tímpanos e uma saraivada de aço martelava os flancos blindados do navio.
Os nossos canhõ es
de pequeno calibre deitavam, por sua vez, a língua de fora aos bombardeiros assaltantes:
bum! bum! bum!, e as metralhadoras
matraqueavam o mais que podiam.
100 SVEN HASSEL
Apertados de encontro à ponte, ao mesmo tempo assustados e agradavelmente cheios de
excitaçã o -ou nã o fosse
o nosso baptismo de fogo -, tentá vamos em vã o compreender
o que se estava passando. Os aviõ es voltavam agora à carga, picando sobre nó s e rugindo,
raivosos; -depois um chiar característico dominou a voz dos motores e o Velho gritou:
- Deitem-se! Aquela é para nó s!
Seguiu-se a explosã o e o navio estremeceu. Ouviam-se assobiar outras bombas, mas essas
destinavam-se ao outro
transporte. Rodearam-no jactos de á gua e de fogo, iluminando
os nossos rostos petrificados. Passados segundos, o outro navio era pasto das chamas
atroadoras, que ardiam
em turbilhã o. A sua D. C. A. continuava a atirar, despedindo
os seus raios vermelhos e amarelos através do fumo espesso. Um aviã o veio cair sobre o
castelo da proa, sendo
logo devorado pelas chamas. Tive de sú bito a impressã o de que os meus tímpanos
acabavam de rebentar. Nã o ouvi mais nada. A banda sonora do meu filme ” avariara-se.
Ergui-me para contemplar o mar ardente, caí de pernas para
o ar e descobri que voltara a ouvir. Repuxos de fogo e á gua
subiam para o céu. Soaram vá rias explosõ es nas entranhas
do navio. Uma das nossas três chaminés elevou-se lentamente
no escuro. Visã o estranha, irreal, inverosímil.
- Merda, vamos ao fundo!
Saíam continuamente estilhaços do interior do barco, donde se exalava o terror de
centenas de homens aprisionados
nos porõ es. A inclinaçã o agravava-se de segundo para segundo. Trocá mos um olhar
indeciso e depois saltá mos.
A distâ ncia que nos separava da á gua era tã o fantá stica que me parecia impossível
percorrê-la. E depois, de repente,
esta fechou-se sobre mim e eu continuei a descer, a descer,
com a impressã o de que o meu corpo acabara de se partir
pelo meio. Os ouvidos zumbiam-me e roncavam, qualquer coisa pulsava na minha cabeça,
cada vez com mais força, cada vez mais depressa. Por fim, nã o aguentei mais.
Desisti.
Está s liquidado. Vais rebentar. E precisamente nesse instante
a minha cabeça surgiu à superfície das á guas e os meus pulmõ es sorveram gulosamente
aquele ar raríssimo que lhes
fora recusado. Mas logo uma vaga me submergiu e eu lutei
O nosso comboio deslizava para leste, com destino à s estepes imensas e à s negras florestas
selvagens da Rú ssia,
Mantínhamos o fogã o ao rubro dentro do nosso vagã o, mas sentíamo-nos gelados.
Ficá vamos noite e dia sentados
em cima dos capotes, com os bonés enterrados até à s orelhas.
Mas, por mais que carregá ssemos o fogã o, que enfiá ssemos
camisolas sobre camisolas e nos apertá ssemos uns contra os outros, continuá vamos
sempre irremediavelmente,
miseravelmente gelados
NA IGREJA
Penetrá mos na estaçã o de Pinsk no meio de uma tempestade
de neve. Deram-nos feijã o seco e, caso raro, com tanta fartura que cada um pô de encher
confortavelmente o estô mago.
Uma das irmã s da Cruz Vermelha recomendou ao Velho que fosse ver uma antiga e
belíssima igreja, mesmo por trá s da estaçã o, e, como nã o tínhamos nada que fazer, fomos
todos...
Velhíssima e impregnada do incenso de muitos séculos, a igreja era na verdade magnífica,
cheia de objectos maciços
e esculturas delicadas, repleta de sumptuosos dourados e de conforto cató lico, de
lampadazinhas e luzes, de Pequenos recantos guarnecidos de santos familiares pintados
de cores vivas e simples; ao centro da nave abria-se um imenso espaço com altura bastante
para deixar ascender sem obstá culos as almas dos bons filhos do Senhor até.
ao
Reino Divino, que estava pronto a recebê-las.
Porta achou muito ridículo o facto de ficarmos embasbacados
perante uma igreja e, sem nenhuma cerimó nia, fez troça de nó s.
122 SVEN HASSEL
Depois reparou no ó rgã o e, logo todo sorridente como uma criança entusiasmada,
exclamou: - Agora é que vocês vã o ouvir qualquer coisa!
Descobrimos a escada que conduzia aos teclados dos grandes ó rgã os. Porta pediu-nos para
irmos lá para trá s manejar os foles, mas Plutã o acenou-nos que ficá ssemos quietos. Ele
sozinho valia por três homens vulgares e era suficiente para aquela tarefa. Porta lançou-nos
um novo sorriso e sentou-se no banco do executante.
- Agora, meus amigos, ides ver como Joseph Porta toca ó rgã o.
Empoleirado na grade da galeria, o Velho tirou da boca o cachimbo que ele pró prio fizera.
- Toca lá esse trecho de Bach que te ouvi uma vez na Jugoslá via.
Porta nã o sabia de que trecho se tratava, mas Polegarzinho
assobiou alguns compassos. Era a Tocata e Fuga de Joã o-Sebastiã o Bach. Assim que se
identificou a á ria que lhe
pediam, o rosto de Porta iluminou-se. Depois ordenou a Plutã o:
- Dá aos foles com força, velho degredado! E Joseph Porta, Obergefreiter pela graça de Deus,
vai mostrar-te do que é capaz...
Respirou profundamente e as suas feiçõ es esvaziaram-se de qualquer expressã o, como um
copo sujo de um resíduo de cerveja que se lava antes de se encher até à s bordas de um
vinho generoso.
E Porta começou a tocar. Parecia que brincava, sem ligar importâ ncia ao que fazia, mas as
notas brotavam dentro da igreja como revoadas de pá ssaros, alguns minú sculos
e rá pidos como libélulas, outros majestosos, agitando o ar com as asas. Quando acabou,
exprimimos o nosso entusiasmo
com uma risada. Porta acendeu um cigarro e sentou-se mais confortavelmente. O Velho
deu-me uma cotovelada
e, sem desfitar dele os olhos, murmurou: - Agora é que tu vais ouvir qualquer coisa. Agora é
que ele está verdadeiramente em forma...
O Velho era como um pai orgulhoso, cujo coraçã o transborda de afecto perante o
verdadeiro mérito.
Saímos da aldeia por companhias. A noite era de um negro-opaco e a tarefa mais difícil
consistia em nã o ir de encontro ao tanque precedente. Para facilitar a tarefa de Porta, que
manejava os comandos do nosso carro, Plutã o
e eu, está vamos instalados na torre e comunicá vamos-lhe as instruçõ es pelo telefone.
Progredíamos com grande estré-
pito a 50, 55 à hora. Bruscamente ouviu-se um ruído de fó sforos quebrados, mas muito
mais violento. Passado meio
minuto o barulho repetiu-se e roçaram-nos pelas orelhas grandes pedaços de madeira.
Depois de este estranho incidente se haver repetido cinco vezes consecutivas, descobrimos
que está vamos a derrubar os postes telegrá ficos e
fizemos que Porta voltasse à estrada. Um pouco mais longe,
por um triz que nã o colidimos com o tanque da frente, que parara junto de uma ponte onde
os carros de assalto só podiam passar um de cada vez. Era necessá rio pô r um
homem de cada lado da ponte, a fim de guiar os nossos monstros com o auxílio de cigarros
acesos. Alguns centí-
metros mais à direita ou mais à esquerda, e as á guas do Upa receberiam a presa que
espreitavam.
Pelas 4 da manhã fizemos alto à entrada de um bosque.
Desligá mos os motores e um silêncio pesado caiu-nos em
cima. Do coraçã o da noite brotava apenas o gaguejar ridí-
culo, intermitente, dos «moinhos de café». De quando em
quando uma luminá ria, descendo em pá ra-quedas, iluminava
o sector tã o claramente como um sol em miniatura.
Enquanto os nossos oficiais recebiam instruçõ es para a batalha, todos tentá mos dormir,
dobrados em quatro, no
fundo metá lico dos tanques. Mal havíamos cerrado os olhos,
fomos logo obrigados a retomar as posiçõ es. Os nossos chefés de secçã o distribuíram-nos
as ordens.
LIVRO II
m
Em vista das grandes perdas sofridas pelo 27.º blindado, ia haver promoçõ es para nó s,
veteranos.
Tendo sido morto o comandante, o Obersleutnant von Lindenau foi nomeado Oberst, com
as funçõ es de comandante
de batalhã o, e von Barring passou a Hauptmann da nossa companhia. O Velho foi nomeado
Feldwebel e chefe
de pelotã o. Tínhamos um novo tanque do tipo Pantera, que seria dali em diante cabeça de
fila do 3.º pelotã o.
Porta devia ser promovido a sargento, mas recusou terminantemente.
Isso deu lugar a uma trapalhada memorá vel, que terminou, por fim, a contento de todos.
- Pronto, meu macaco ruivo! - resmungou o Obersleutnant
Hinka. Nã o te fazemos Unteroffizier, mas sim Stabsgefreiter.
Isto cheira-te?
Porta concordou. Um Stabsgefreiter é um soldado fora da classe, e nã o um sargento.
Estaline, o nosso gato, que possuía agora a sua caderneta
em miniatura, foi nomeado Obergefreiter e cosemos-lhe dois galõ es na manga do casaco
novo. Também ele apanhou
uma grossura monstro para celebrar dignamente a promoçã o.
A MORTE CEIFA
- Bebe, Sven. Uma boa golada... Malditos! Grandes cã es! Esperemos que nã o venha longe o
dia em que lhes havemos de dar cabo da pele!
Porta quis saber o que tinha acontecido.
- Vou ler-te a carta - respondeu o Velho. - Deixa ver o Schnaps, para que o Sven possa
embebedar-se à vontade
e esquecer isto. E nó s embebedamo-nos com ele!
188 SVEN HASSEL
Entã o desdobrou a carta do pai de Ú rsula: Munique, Abril de 1943
Meu querido filho:
Tenho a dar-te uma terrível notícia. Peço-te que a recebas tã o calmamente quanto possível
e promete-me nã o fazer depois nenhuma tolice.
A nossa querida Ú rsula está morta. Assassinaram-na os nazis. Quando vieres a Munique,
dar-te-ei todos os pormenores. Por ora só te posso contar o essencial.
Um Gauleiter veio fazer uma parlenga aos estudantes da Universidade, mas o seu discurso
foi interrompido por uma manifestaçã o de hostilidade declarada.
Foram presos muitos estudantes, entre eles a nossa querida filha. Passados alguns dias
compareceram diante
do «Tribunal do Povo» e foram condenados à morte.
Ao ser pronunciada a sentença, Ú rsula respondeu: «Vem perto o dia em que vó s, nossos
juízes e acusadores, tereis
de vos sentar no banco dos réus, enquanto os nossos camaradas serã o os vossos juízes. E
ficai certos de que, nesse dia, também as vossas cabeças rolarã o sob o machado».
Foi isto o que ela respondeu aos juízes nazis e o futuro há -de dar-lhe razã o, se é que ainda
existe justiça sobre a Terra.
Consegui vê-la na véspera do seu assassinato e ela pediu-me para te dizer que morria com
o teu nome nos lá bios e com a certeza de te encontrar um dia no Céu, onde pedirá a Deus
que te conceda a fé.
A sua coragem impressionou os pró prios guardas da prisã o, que lhe levaram nos ú ltimos
dias uma quantidade de coisas proibidas, muito embora ela recusasse aceitar o menor
favor de homens vestidos com a farda odiada.
Um amigo meu foi testemunha da execuçã o daqueles jovens e disseme que eles haviam
cantado muitas cançõ es
proibidas, que os outros prisioneiros entoavam também, à janela das suas celas. Nem as
pancadas nem as
206-SVEN HASSEL
Massacrá mos um regimento cercado que, precisamente como o nosso 104.º de granadeiros,
nã o pudera ou nã o quisera render-se. Três horas de lança-chamas deram como
resultado um espectá culo apocalíptico: armas e camiõ es reduzidos
a cinzas, soldados horrivelmente mutilados, e nem um só homem se encontrava entre esses
soldados, apenas
mulheres, muitas das quais tinham sido jovens e bonitas, com admirá veis dentes brancos e
mã os bem tratadas.
Este
magnífico feito de armas teve lugar a menos de 2
quiló metros
a leste da aldeia de Livny.
O rosto do Velho estava esverdeado.
- Temos de jurar que, se algum de nó s sobreviver a esta carnificina, escreverá um livro
acerca da patifaria em que todos participá mos. Um livro que faça compreender
aos povos alemã o, russo, americano, a todos os povos, a imunda canalhice que é a guerra!
Um livro que torne impossível
a existência de todos esses montes de esterco portadores de medalhas e tilintadores de
sabres...
Tínhamos ordem de destruir tudo na retirada. O resultado dessa famosa tá ctica da «terra
queimada» é quase impossível de descrever. Pontes, aldeias, estradas, caminhos
de ferro, tudo ficou dinamitado. As reservas de víveres que tínhamos, de abandonar eram
regadas com gasolina, com alcatrã o ou com o conteú do das latrinas. Os vastos campos, os
maravilhosos campos de girassó is ardiam ou ficavam arrasados debaixo dos tanques e dos
tractores.
Os
porcos e outros animais domésticos eram abatidos e deixados
ao sol, onde apodreciam em poucas horas. Por toda a parte
ficavam armadilhas. Uma casa parcialmente intacta, por exemplo, ia pelos ares ao tentar-se
abrir-lhe a porta. Era qualquer sítio onde os olhos poisassem só se via a desolaçã o
e a morte.
Como de costume, o nosso 27.º blindado atingiu em poucas semanas o ponto de
volatilizaçã o total; é que, está claro, constituíamos a retaguarda e lutá vamos
permanentemente
contra as forças russas, muito superiores a nó s em nú mero e material. Só uma diferença
havia entre esta e as precedentes retiradas: nã o éramos rendidos. Teria secado
finalmente a fonte? Dentro de poucas semanas, dias talvez,
a unidade acabaria de se dissolver. - -
Uns dedos gelados esmagaram-me o coraçã o quando vi A que ponto ele estava mudado.
Tinha os cabelos grisalhos,
a pele amarela e sob os olhos cansados afundavam-se umas
olheiras negras. Estava magro, curvado, e o uniforme caía-lhe
em pregas flá cidas ao longo do corpo emagrecido.
Pobre, pobre Velho!
Plutã o tinha exactamente a mesma aparência do Velho.
Von Barring confundia-se com eles.
O aspecto de todos era igual.
Todos?
Os que restavam, claro.
; Havíamos sido seis mil a principio.
É ramos sete agora. Sete homens. Sete sobreviventes.
A GUERRA PROSSEGUE SEGUNDO O PLANO
ESTABELECIDO
Sentaram-se em volta do bolo e contemplaram-no longamente,
como se se tratasse de uma coisa sublime, sagrada.
Por fim Porta estendeu a mã o, mas o Velho bateu-lhe nos dedos com a colher.
- Um bolo que foi feito por verdadeiras mulheres tem de ser saboreado com todas as regras.
Nunca com as unhas
pretas e as mã os porcas!
Toda a gente aprovou esta profissã o de fé e a mesa foi devidamente posta, colocando-se
dois guardanapos limpos
a servir de toalha e as tampas das marmitas em vez de pratos. Lavagem, limpeza de unhas,
cabelos e uniformes
escovados, um pouco de lustro nas botas, tudo isto nos levou aí uns vinte minutos.
Sentá mo-nos em seguida
à «mesa» e comemos devotamente o bolo de Bá rbara, acompanhado pela geleia de
Margaret.
236 SVEN HASSEL
- Estava-se lá bem?
- Era formidá vel!
Esperavam que eu lhes fornecesse uma narrativa completa,
rica de perfumes, de cores, de sons esquecidos. Pensei vagamente: «É chegado o momento
de lhes dar o melhor de mim pró prio»; reflecti uns segundos e principiei: -Nunca vi
vestidos tã o limpos como os delas. Quando se debruçavam para bater o colchã o ou para
puxar o lençol, chegava-nos ao nariz um delicioso cheirinho a roupa passada a ferro,
levemente engomada, que se acabou
de tirar do armá rio. Um odor completamente estranho a qualquer porcaria, um odor
«seco», ligeiramente a queimado.
Fora das horas de serviço usavam os seus pró prios vestidos, que nã o eram menos
imaculados, desprendendo-se
deles qualquer coisa de quente e de fresco ao mesmo tempo.
Elas possuíam diversos vestidos. Recordo-me de um, azul-celeste,
com pá ssaros brancos e cinzentos-claros. Era de manga curta e formava um plissado em
volta do pescoço, um plissado que se prolongava para as costas e para o peito. Quando
puxá vamos por uma fita de seda branca, apareciam
os ombros, mas era preciso também desapertar os pequenos laços das mangas «presunto».
Este pertencia a Bá rbara. À minha Bá rbara. Margaret, a de Hugo, tinha um belo vestido
vermelho-fogo, de uma espécie de lã fina que lhe moldava o corpo como uma camada de
tinta. Quando ela dava uma reviravolta, parecia mesmo uma chama.
Havia
ainda outra, que usava uma saia de pregas que rodava em volta dela, seguindo-lhe os
movimentos com um leve atraso...
Fechei os olhos para melhor recordar Bá rbara e prossegui num tom que era quase um hino:
- A que tinha o vestido azul-celeste... a minha... Bá rbara...
Depois de eu lhe desatar os lacinhos e desapertar as duas molas e o colchete lateral, o
vestido escorregava até ao chã o e ela ficava de pé sobre uma espécie de nuvem
azul que lhe rodeava os tornozelos... Eram tã o limpas, estavam sempre tã o
maravilhosamente perfumadas como o vestuá rio...
- Perfumadas?
Passados momentos disse com a mesma voz sibilante: - Quando se der a revoluçã o contra
os generais e os nazis, nã o se esqueçam de pregar em meu nome dois valentes
borrachos no focinho do Adolfo...
- Está prometido, Porta - replicou o Velho. - Vamos aplicar-lhe tantas nos bigodes, em teu
nome, que, se fosses
tu a dar-lhas, ficarias estafado! . ; - Bom! Seguiu-se um silêncio. O cachimbo do Velho
crepitava
furiosamente.
- Eh, Velho, tens aí o teu instrumento?
O Velho tirou a harmó nica da algibeira.
- Toca lá aquela cantiga da moça a pentear os cabelos loiros sentada sobre uma rocha...
O Velho fez-lhe a vontade e eu cantei os versos em surdina, enquanto Porta olhava
fixamente o tecto: i
Ich weiss nicht, was soil es bedeuten, Dass ich so traurig bin.
Ein Má rchen aus alter Zeiten, Das kommt mir nicht aus dem Sinn. i Todos nó s chorá vamos e
Porta murmurou: - E agora, Joseph Porta, Stabsgefreiter pela graça de Deus, vai reunir-se
ao seu Criador! Custa um bocado.
Prometam-me
encarregar-se de Estaline. Gostava bem de o ver antes de levantar ferro.
O Velho aproximou o bichano do rosto de Porta.
- Nã o se esqueçam dos meus socos no focinho do Adolfo e de Himmler! Até à vista...
Um líquido negro e amarelo escorria-lhe lentamente da comissura dos lá bios e as suas
mã os apertaram mais fortemente
as nossas. Depois a pressã o afrouxou. Joseph Porta estava morto.
- Querida!
--Querido! Oh!, que bom voltarmos a estar juntos., Sven! Fizeste-me tanta falta...
- E tu também, Bá rbara, me fizeste muita falta. Deixa ver a mala. Tenho ali um carro à
espera. Tens fome?
- Se tenho fome? Já vais ver.,.
Depois da refeiçã o acompanhei-a ao hotel, onde tomou banho e repousou meia hora das
fadigas desta nova viagem.
Caso curioso: nã o nos aproveitá mos da solidã o para cair nos braços um do outro. Sentíamo-
nos bem assim, tã o senhores de nó s, e tínhamos tantas coisas a dizer... O resto podia
esperar. Jantá mos em Potsdam antes de irmos passear, de mã os dadas, sobre o relvado do
Parque Sans-Souci.
Novo raid maciço trovejava sobre Berlim. Bá rbara apertou-se nervosamente de encontro a
mim enquanto observa—
vamos as chamas e o fumo a subirem de Neukõ ln. Os bombardeiros sobrevoavam a cidade
em vagas sucessivas,
enquanto despejavam a carga.
De sú bito um silvo prolongado... Num gesto rá pido, atirei Bá rbara por terra e deitei-me
junto dela. Outra bomba aproximava-se, rugindo. Tomada de pâ nico, Barbara ergueu-se
dum salto e correu pela estrada fora a gritar.
Pus-me de pé e precipitei-me atrá s dela: - Bá rbara! Bá rbara! Deita-te de bruços, Bá rbara!...
»!
Outro silvos fizeram-me mergulhar na valeta. Apanhei com uma saraivada de terra e
levantei-me com esforço ao
fim de alguns segundos. Bá rbara havia desaparecido.
Encontrei-a a 200 metros, deitada num mar de sangue.
Eu nã o via nem sentia nada. Nã o ouvi as sirenes a darem o fim do alarme. Parou um carro.
Um homem fardado arrastou-me. Envolveram o corpo de Bá rbara num cobertor...
270 SVEN HASSEL
Despiram-me. Um médico disse «choque». Uma mã o apalpou-me o pulso da mesma
maneira suave e competente
como o fazia Bá rbara... Bá rbara, que eles me haviam morto.
COMANDANTE DE COMPANHIA
Fui reunir-me ao meu regimento com a patente de Oberleutnant e as funçõ es de
comandante da minha velha companhia. Von Barring fora promovido a Oberstleutnant e
comandava o batalhã o. Nã o restava, da antiga ninhada, senã o von Barring, Hinka, o Velho e
eu. O Velho era agora Oberfeldtvebel.
Por uma manhã cinzenta e fria, uma triste manhã de chuva, o Velho e eu regressá vamos da
frente.
Aproximá mo-nos
da nossa aldeia, seguindo a linha do caminho de ferro, íamos a chegar à estaçã o provisó ria,
onde se encontrava
um enorme depó sito de muniçõ es, quando se ouviu nos arredores um assobio bem
conhecido. O Velho deu-me um encontrã o que me atirou para a valeta de cabeça para baixo
e estendeu-se ao pé de mim com um só pulo.
Durante meia hora foi um daqueles fins do mundo a que já está vamos habituados. As
explosõ es sucediam-se em
cadência rá pida, num ribombar de trovã o, num concerto inconcebível de rugidos, silvos e
deflagraçõ es titâ nicas.
Chamas altíssimas de uma brancura ofuscante estalavam nos ares como fitas de chicote. As
caixas dos obuses explodiam
a meio da sua trajectó ria, espalhando o recheio em todas as direcçõ es. Duas carruagens de
caminho de ferro levantaram voo e foram cair a 150 metros do ponto de partida, no meio
das terras lavradas. O esqueleto inteiro de um pesado vagã o de mercadorias furou o tecto
de um armazém e aterrou perto de nó s. Duas altas chaminés de uma oficina desabaram.
Uma delas pareceu quebrar-se ao
mesmo tempo em vá rios sítios. A outra tombou lentamente,
numa só peça, e desapareceu atrá s de uma enorme nuvem
de fumo. De todas as casas situadas num raio vastíssimo em torno da estaçã o nã o ficou
pedra sobre pedra.
Badana da contra-capa
A GUERRA !E A LITERATURA
A guerra tem sido um fecundo tema de inspiraçã o romanesca, sobretudo depois da
conflagraçã o mundial de 1914-18. Na convicçã o de cumprir um dever ao divulgar o que de
melhor se tem escrito nos ú ltimos tempos sobre o fla·
. gelo da guerra e certas das suas · consequências pró ximas, Publica-
çõ es Europa-América conta nas suas colecçõ es com algumas das mais notá veis obras em:
que o tema foi abordado com coragem e independência.
Erich Maria Remarque
A CENTELHA DA VIDA 40$00
DESENRAIZADOS 40$00
TEMPO PARA AMAR TEMPO PARA MORRER 40$00
A OESTE NADA DE Novo 30$00
Hans Hellmut Kirst
FÁ BRICA DE OFICIAIS 68$00
Robert Merle
A MORTE É o MEU OFÍCIO 35$00.
André Schwarz-Bart
O Ú LTIMO JUSTO 40$00
Leon Uris
EXODUS 78$00
MILA 18 68$00
Manfred Gregor
A PONTE 30$00
R K. H. Poppe
A GUERRA DAS BANANAS 35$00
Elio Vittoríni
Os HOMENS E OS OUTROS 15$00
Lord Russel of Liverpool
O FLAGELO DA SUÁ STICA 35$00