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TÍTULO: O regimento da morte AUTOR: HASSEL, Sven

TÍTULO DA EDIÇÃ O FRANCESA: La Légion dês Damnés.


LOCAL DA PUBLICAÇÃ O: Lisboa EDITORA: Publicaçõ es Europa-América Data da
publicaçã o: 1963
GÉ NERO: Romance
CLASSIFICAÇÃ O: Dinamarca – Século XX - Ficçã o COLECÇÃ O: Século XX n.º 53
DIGITALIZADO E CORRIGIDO POR: Aventino de Jesus Teixeira Gonçalves Junho de 2004
Badana da capa
«Noventa por cento da presente histó ria apoia-se em factos reais.»
Esta declaraçã o de Sven Hassel a respeito do seu impressionante O Regimento da Morte
sugere o que de intensamente vivido, de verdade arrancada à experiência sentida na
pró pria carne, existe nesta obra esmagadora, que atinge, em relaçã o à guerra que Hitler
desencadeou, o mesmo significado e
a mesma projecçã o que fizeram, relativamente à guerra de 14, a grandeza de A Oeste Nada
de Novo.
Na verdade, dificilmente se poderá encontrar, na bibliografia do género, um tã o vibrante
libelo contra a guerra como o que nos deu Sven Hassel no romance que nos orgulhamos de
apresentar agora ao pú blico português. De ascendência dinamarquesa e austríaca, Hassel,
arrastado na engrenagem da guerra hitleriana, viu-se constrangido a servir no exército
alemã o e, apó s uma tentativa de evasã o, foi enquadrado num regimento disciplinar
que actuou na frente leste.
Quadro extremamente vigoroso de alguns dos mais sombrios aspectos da degradaçã o
humana, O
Regimento da Morte tem ainda a virtude de ser, ao mesmo tempo, uma obra impregnada de
sentimentos de piedade e de amor, recheada de pormenores que põ em
uma nota de humanidade na paisagem apocalíptica dos campos de
batalha.
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COLECÇÃ O SÉ CULO XX
Obras publicadas:
1 - A Centelha da Vida, Erich-Maria Remarque 2 - Tempo para Amar e Tempo para Morrer,
Erich-Maria Remarque
3 - 08/15 - A Caserna, Hans Hel mut Kirst 4 - Filho de Ladrã o, Manuel Rojas 5 - 08/15 - A
Guerra, Hans Hel mut Kirst 6 - O Denunciante, Liam O’Flaherty 7 - 08/15 - A Derrota, Hans
Hel mut Kirst 8 - Uma Mulher em Berlim, Christine Gamier 9 - Trabalho sem Esperança,
Kamala Markandaya 10 - Fim de Semana em Zuydcoote, Robert Merle 11 - A Oeste Nada de
Novo, Erich-Maria Remarque 12 - Um Rapaz de Florença, Vasco Pratolini 13 - A Meta, Yves
Gibeau
14 - A Barca dos Sete Lemes, Alves Redol 15 - Deus Dorme em Masú ria, Hans Hel mut Kirst
16 - Chora, Terra Bem Amada!, Alan Paton 17 - Nem só de Pã o Vive o Homem, Vladimir
Budintsev 18 - Um, Intimo Furor, Kamala Markandaya 19 - A Ná usea. Jean-Paul Sartre 20 -
3455, Cela da Morte, Caryl Chessman ,21 - Fontamara, Ignazio Silone 22 - Uma Família de
Atenas, André Kedros 23 - Era a Madrugada, Emmanuel Robles 24 - Vinho e Pã o, Ignazio
Silone 25 - Entre o Pavor e a Esperança. Loys Masson 26 - A Pousada da Sexta Felicidade,
Alan Burgess 27 - A Morte É o Meu Ofício, Robert Merle 28 - Condenado em nome da Lei,
Caryl Chessman 29 - Gabriela, Cravo e Canela, Jorge Amado 30 - De Víbora na Mã o, Hervé
Bazin 31 - A Face da Justiça, Caryl Chessman 32 - O Ú ltimo Justo, André Schwarz Bart 33 - O
Garoto Era Um Assassino, Caryl Chessman 34 - Desenraizados, Erich-Maria Remarque 35 -
Exodus, Leon Uris
36 - A Felicidade nã o Se Compra, Hans Hel mut Kirst 37 - Sentinela Inú til, René Hardy 38 - A
Ponte, Manfred Gregor

39 - Terra de Nod, Judith Navarro 40 - Infortú nio de Amar, Claude Roy 41 - Um Silêncio de
Desejo, Kamala Markandaya 42 - A ú ltima viagem do «Port Polis», André Kedros 43 -
Esteiros, Soeiro Pereira Gomes 44 - Esmeralda, Stratis Myrivilis 45 - Jantar Mundano,
Claude Mauriac 46 -Mila 18, Leon Uris
47 - Levanta-Te e Caminha, Hervé Bazin 48 - Os Velhos Marinheiros, Jorge Amado 49 - A
Sentença, Manfred Gregor 50 - A Guerra das Bananas, K. H. Poppe 51 - Encontro em
Samarra, John O’Hara 52 - Fá brica de Oficiais, Hans Hel mut Kirst 53 - O Regimento da
Morte, Sven Hassel

O REGIMENTO DA MORTE

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(informaçã o bibliográ fica de Publicaçõ es Europa-América), queira enviar ao editor, Rua das
Flores, 45 - Lisboa-2, num simples postal, o seu nome e morada.

COLECÇÃ O SÉ CULO XX
SVEN HASSEL
O REGIMENTO
DA MORTE
Romance
PUBLICAÇÕ ES EUROPA-AMÉ RICA
RUA DAS FLORES, 45
LISBOA-2

Este romance foi traduzido da ediçã o francesa, com o título La Légion dês Damnés.
A ediçã o original foi publicada na Dinamarca.
Traduçã o de Maria Isabel Braga e Má rio Braga.
Capa de Joaquim Esteves.
Copyright by Sven Hassel.
Todos os direitos reservados para a língua portuguesa por Publicaçõ es Europa-América,
L.da.

Este livro é dedicado aos soldados desconhecidos mortos


por uma causa que nã o era a sua, aos meus melhores companheiros do 27.º regimento
(disciplinar) blindado, assim como à s mulheres corajosas que me ajudaram durante estes
anos terríveis: Oberst Manfried Hinka
Oberstleutnant Erich von Barring Oberfeldwebel Willie Beier
Unteroffizier Hugo Stege
Stabsgefreiter Gustav Eicken Obergefreiter Anton Steyer
Gefreiter Hans Beier
Unteroffizier Bernhard Fleischmann Gefreiter Asmus Broun
e
Eva Schadows, estudante de Direito Ú rsula Schade, médica
Barbara von Harburg, enfermeira

LIVRO I

- Já passaram os cinco minutos. Só te resta agora sofrer as consequências...


Ele premiu um botã o. Dois enormes SS de farda preta entraram na sala. Uma ordem breve...
e arrastaram Eva até uma mesa forrada de cabedal...
IMUNDO DESERTOR
O sapador alto e fortalhã o havia sido julgado na véspera e o tribunal condenara-o a oito
anos de trabalhos forçados. Hoje era a minha vez de ser posto nas grelhas.
Dois «cã es de guarda» conduziram-me perante o conselho
de guerra que estava reunido numa grande sala onde se enfrentavam dois retratos
gigantescos: um de Adolfo Hitler e outro de Frederico-o-Grande. Por detrá s da cadeira do
presidente pendiam, enormes, as bandeiras do exército do
ar, do exército terrestre, da marinha e das SS. Na parede viam-se alinhadas as insígnias das
diversas armas: a cruz negra sobre fundo branco, da infantaria; vermelha, da artilharia:
amarela, da cavalaria; cor-de-rosa, das tropas blindadas; negra com franjas prateadas, da
engenharia; trompa de caça sobre fundo verde, dos caçadores; e assim
sucessivamente. A pró pria cadeira do juiz estava forrada com a bandeira preta, branca e
vermelha, da Wehrmacht.
O tribunal era constituído por um defensor oficioso (coubera o papel a um major), dois
juízes (um Hauptmann e um Feldivebel] e um acusador (Sturmbannfü hrer das SS).
Um imundo desertor nã o tem direito a ser assistido por advogado.
Leitura do acto de acusaçã o. Interrogató rio do acusado.
Ordem de introduzirem as testemunhas... O homem da Gestapo entrou primeiro, aquele
mesmo que nos tinha pren-
14 SVEN HASSEL
dido, a mim e a Eva, enquanto tomá vamos banho perto da foz do Véser; e o murmú rio
estival das vagas preguiçosas afogou, de sú bito, o rumor medonho do tribunal. A areia
branca das dunas cintilava... Eva, de pé, ao sol, enxugando
as coxas roliças... A sua touca de banho... O calor nas minhas costas... O calor, o calor...
- Sim, saltei para cima da secretá ria e em seguida pela janela...
Nessa altura fora interrogado por cinco polícias. Vieram igualmente todos cinco prestar as
suas declaraçõ es.
«Sim, dei-lhes um nome falso... Sim, a explicaçã o que lhes dei também era falsa...»
O mais curioso era ver o Kriminalsekretã r que ordenara a flagelaçã o de Eva. Os outros
haviam dado provas de sadismo. Aquele mostrara-se simplesmente correcto.
Nada
se pode fazer quando as pessoas sã o correctas. E existe demasiada gente dessa espécie
sobre a Terra... Pus-me a
sonhar acordado: toda a gente havia desertado, toda.
Restavam
apenas os oficiais. E que podiam estes fazer? Tinha, mos desertado todos, todos. As
estradas estavam cheias de
grupos a marchar. Eram soldados que regressavam à s suas
casas. Apenas os oficiais se encontravam ainda na frente, na retaguarda da frente, com os
seus planos e os seus mapas,
os seus bonés vistosos e as suas botas bem engraxadas.
Todos os outros voltavam para suas casas e nã o se haviam
esquecido de mim. Dentro de momentos a porta abrir-se-ia.
Invadiriam a sala do tribunal e nã o diriam nada, mas os quatro fantoches erguer-se-iam
num mesmo impulso, com o rosto lívido...
- Façam entrar a testemunha seguinte. Eva Schadows!
Eva! Tu aqui?
Seria Eva, na realidade?
Oh!, sim, era tã o certo ser Eva como eu ser Sven.
Podíamos ainda reconhecer-nos pelos olhos. Tudo o resto, tudo o que havíamos conhecido -
os pequenos segredos vivos, os pequenos pormenores íntimos que só nó s conhecíamos,
que havíamos saboreado ambos com os olhos, com os lá bios, com as mã os omniscientes -.
tudo o resto desaparecera.
Mas os nossos olhos subsistiam, com o seu terror e a promessa de permanecerem sempre
os mesmos.

O REGIMENTO DA MORTE 15
Será possível que tantas coisas desapareçam em tã o poucos dias?
- Eva Schadows, conhece este homem, nã o é verdade?
«Ricto untuoso» é uma expressã o que eu detesto.
Achei-a sempre estú pida, exagerada. Mas nã o existe outra
para descrever a fisionomia do acusador: era um ricto untuoso.
- Sim.
A voz de Eva mal se percebia. Alguém amachucou um papel e o ruído fez-nos estremecer a
todos.
- Onde o conheceu?
- Em Coló nia, durante um alarme.
Aconteciam coisas dessas naquele tempo.
- Ele disse-lhe que era desertor?
- Nã o.
Mas ela nã o pô de suportar o silêncio arrogante e gaguejou:
- Julgo que nã o.
- Veja lá o que diz, menina! Nã o ignora, decerto, que é muito grave prestar declaraçõ es
falsas perante um tribunal
de justiça...
Ela fitava o soalho. Nem por um instante olhara para mim. O seu rosto estava cinzento,
como o de um doente que acaba de sair de uma operaçã o. As mã os tremiam-lhe de medo.
- Entã o em que ficamos? Ele disse-lhe ou nã o que era desertor?
- Sim, talvez mo tenha dito.
- Deve responder sim ou nã o. Queremos respostas concretas.
- Sim.
- E que lhe disse ele mais? Afinal, a senhora levou-o para Brema e deu-lhe dinheiro,
vestuá rio e muitas outras coisas. Nã o foi assim?
- Foi.
- Conte tudo isso ao tribunal, para nã o sermos obrigados a arrancar-lhe palavra por
palavra! Que lhe disse ele exactamente?
16 SVEN HASSEL
- Disseme que tinha fugido do seu regimento; pediu-me que o ajudasse, que lhe arranjasse
papéis. E foi o que eu fiz...
- Quando o encontrou em Coló nia ele andava fardado?
- Sim.
- Que farda era a dele?
- A farda negra dos carros de assalto, com um galã o de Gefreiter.
- Por outras palavras, você nã o podia duvidar de que se tratava de um soldado?
- Nã o.
- E foi ele que lhe pediu que o levasse para Brema?
- Nã o, fui eu que lho propus. E insisti. Ele queria entregar-se à s autoridades, mas eu
convencio a nã o fazer isso...
Eva, Eva. que está s tu para aí a dizer? Porque inventas essas mentiras?
- Por outros termos, foi você quem o impediu de cumprir o dever de se entregar à s
autoridades?
- Sim, impedi-o de cumprir o seu dever.
Eu nã o podia ouvir aquilo! Saltei como um louco, aos berros, gritando ao presidente que ela
mentia para tentar salvar-me, que estava a querer forjar-me circunstâ ncias atenuantes,
mas que nã o podia ter sabido que eu era militar.
visto que despira a farda no comboio, entre Paderborn e Coló nia. Que era preciso deixá -la ir
embora; ela ignorava que eu fosse soldado; ignorava mesmo que eu tivesse estado preso;
juro-o...
O presidente de um conselho de guerra poderá ter alguma coisa de humano? Ignorava-o,
mas queria acreditar
que isso fosse possível. Porém, os olhos dele eram tã o frios como dois pedaços de vidro e o
seu olhar fazia sangrar os meus gritos.
- Acusado, silêncio até ser interrogado! Mais uma palavra, e expulso-o da sala.
Os pedaços de vidro giraram como um farol.
- Eva Schadows, está pronta a jurar que o seu testemunho é conforme à verdade?
- Sim. Se ele me nã o tivesse conhecido, ter-se-ia entregado
à s autoridades.

O REGIMENTO DA MORTE 17
- Você ajudou-o também quando ele fugiu da polícia secreta?
- Sim.
- Obrigado. É quanto basta... Oh!... A propó sito, já foi condenada?
- Estou a cumprir cinco anos de reclusã o num campo de prisioneiros de Ravensbrü ck.
Quando a levaram, lançou-me, enfim um longo olhar e os seus lá bios arredondaram-se num
beijo. Os seus lá bios
estavam azulados e os seus olhos mostravam-se ao mesmo
tempo felizes e infinitamente tristes. Fizera alguma coisa por mim. Tinha a esperança, tinha
a certeza até de que isso me salvaria a vida. E, para dar esse fraco contributo à minha
defesa, sacrificara voluntariamente cinco anos da sua vida. Cinco anos em Ravensbrü ck!
A que ponto eu descera!
Trouxeram igualmente Trudi, mas ela desmaiou pouco tempo depois de se ter lançado nos
meandros de uma histó ria
louca, destinada a confirmar o depoimento de Eva.
O desmaio de uma testemunha numa sala de audiência e a sua saída em braços é um
estranho espectá culo.
Levaram
Trudi para fora e, quando a pequena porta se fechou sobre ela, foi como se todas as portas
se houvessem fechado
simultaneamente sobre mim.
Depois disto a sentença nã o se fez esperar. Toda a gente se pô s de pé para a ouvir ler,
oficiais e funcioná rios executando em conjunto a saudaçã o nazi.
«Em nome do Fü hrer...
Sven Hassel, Gefreiter no 11.º regimento de hussardos, é condenado, pelos presentes, a
quinze anos de trabalhos forçados por deserçã o. Além disso, ordena-se que Sven Hassel
seja expulso do seu regimento e privado de todos os direitos civis e militares durante um
período indefinido.
Heil Hitler!»
E se tu também desmaiasses? Nã o está s a ver tudo negro diante de ti, como no momento
em que eles paravam
de te espancar? Qual era a outra frase feita? Uma vergonha pior do que a morte! Isso
mesmo. Nunca pensaste
vir a utilizá -la. Mas as frases feitas nã o se fizeram R. M. - 2
18 SVEN HASSEL
para outra coisa. E agora já podes dizer a toda A gente o que esta significa.
Rectifiquemos: tu nã o podes ir a parte nenhuma.
Fiquei tã o pasmado, tã o divorciado das coisas reais, que ouvi, primeiro sem compreender,
os comentá rios do presidente.
Dizia ele que, poupando-me a vida, os juízes tinham permitido que a misericó rdia
temperasse a justiça.
Acrescentava
que eu era um Auslandsdeutscher; que fora chamado à Dinamarca e que certas mulheres
irresponsá veis, mulheres que nã o mereciam a honra de serem alemã s, me haviam
persuadido a desertar, e que, por todas essas razõ es,
o tribunal - com a sua infinita tolerâ ncia - nã o julgara ú til condenar-me à morte.

Com ferros nos tornozelos e algemas nos pulsos, está vamos


presos dois a dois, e, além disso, havia uma longa corrente que cercava o destacamento
inteiro. Levaram-nos para a plataforma das mercadorias, sob a guarda de uma escolta de
polícia militar armada até aos dentes.
Ficá mos amontoados nos vagõ es durante três dias e três noites...
MORRIAM DE DIA
E
MORRIAM DE NOITE
«Antes de vos dar as boas-vindas à nossa deliciosa pensã o familiar, quero dizer-vos quem
sois e o que sois!
Nã o sois mais do que um bando de desavergonhadas piolhosas e de porcalhõ es nojentos;
um rebanho de porcos
e bá coras; a escó ria da humanidade. Foi o que vocês sempre
foram e continuarã o a ser até ao fim da vida. E, para que se possam espojar à vontade no
vosso pró prio esterco,
vamos encarregar-nos de vos fazer acabar lentamente, muito lentamente, de modo a
disporem de tempo para apreciar tudo como deve ser. Posso assegurar-vos que ninguém
se sentirá prejudicado seja no que for. Todos aqui se vã o ocupar assiduamente de vó s.
Sentir-me-ia desolado
se faltasse fosse o que fosse a qualquer de vocês.
Dito isto, desejo-vos as boas-vindas ao campo disciplinar SS e ’Wehrmacht de Lengries.
Sejam bem-vindos, minhas senhoras e meus senhores, ao campo de exterminaçã o de
Lengries!»
Bateu com a ponta do chicotinho na bota reluzente e deixou cair o monó culo do olho.
Porque será que os indivíduos
daquele tipo usam sempre monó culo? Deve haver uma explicaçã o psicoló gica.
20 SVEN HASSEL
Um Hauptscharfú hrer das SS leu em voz alta o regulamento,
que se resumia nisto: era tudo proibido e a menor transgressã o seria punida com jejum,
espancamento,
morte.
A prisã o: cinco andares de gaiolas sobrepostas, sem tabiques intermediá rios; unicamente
grades. Fomos revistados,
tomá mos banho e depois raparam-nos metade do crâ nio e aplicaram-nos em todas as zonas
pilosas um produto
químico corrosivo que fazia comichã o e ardia como fogo. Em seguida meteram-nos em
células, onde ficá mos completamente nus durante horas, enquanto os SS nos submetiam a
nova «busca»: seringa nos ouvidos, dedos na
boca, sem esquecer as axilas e as narinas. Finalmente, deram-nos
um clister de cavalo, que nos obrigou a correr para as retretes alinhadas ao longo da
parede. Foi pior ainda para as duas raparigas, pois essas tiveram de sofrer
nã o só as graçolas obscenas dos guardas, como ainda um
«exame especial».
Os fatos que nos deram, blusã o e calças à s riscas, eram de um tecido horrivelmente á spero,
género linhagem, que nos causava a impressã o de estarmos perpetuamente infestados
de piolhos ou formigas venenosas.
Um Oberscharfilh-rer mandou-nos sair de novo e pô r em fila diante de um
Untersturmfú hrer, o qual, indicando logo o ú ltimo prisioneiro da extrema direita,
vociferou: - Anda cá , tu!
Um SS empurrou-o por trá s, atirando-o como um boneco desarticulado para a frente do
oficial baixinho e vaidoso, diante do qual ele retomou automaticamente a posiçã o de
sentido.
- Nome! Idade! Motivo da condenaçã o! Rá pido!
- Johann Schreiber. Vinte e quatro anos. Condenado a vinte anos de trabalhos forçados por
alta traiçã o.
- Diz-me cá uma coisa... Nunca foste soldado?
- Era Feldwebel no 123.º regimento de infantaria.
- Isso significa que é por insubordinaçã o pura e simples que nã o te dá s ao trabalho de
responder correctamente.
Juntas a isto a impertinência de nã o te dirigires a mim como te ensinaram a fazer. Corrige a
posiçã o, monte
de esterco! Vamos tentar agora tirar-te esses maus costu-O REGIMENTO DA MORTE . 21
mes. Se isto nã o bastar, di-lo francamente, para arranjarmos
outros processos.
De olhos fixos no vá cuo, o Untersturmfü hrer berrou com voz estridente:
- Pauladas!
Passados segundos o homem jazia de costas, com os pés nus atados com uma correia.
- Quantas, Herr Untersturmfú hrer?
- Vinte!
O homem desmaiou antes do fim do castigo. Mas eles tinham meios de remediar isso, meios
indescritíveis, e nã o tardou que ele pudesse retomar o seu lugar na fila.
Tirando proveito da experiência do primeiro, o seguinte respondeu correctamente:
- Herr Untersturmfü hrer, o antigo sargento Victor Giese, do 7.º regimento de sapadores,
presente à chamada,
declara que tem vinte e dois anos e foi condenado por roubo a dez anos de trabalhos
forçados.
- Roubo! Que ignomínia! Nã o sabias entã o que um soldado nunca deve roubar?
- Herr Untersturmfú hrer, declaro saber que um soldado nunca deve roubar.
- Mas mesmo assim roubaste.
- Sim, Herr Untersturmfú hrer.
- O que significa que tens a cabeça dura?
- Sim, Herr Untersturmfü hrer, declaro que tenho a cabeça dura,
- Pois bem, vamos ser muito generosos contigo e dar-te algumas liçõ es particulares. Temos
aqui precisamente um excelente professor...
De olhos fixos no vá cuo, o Untersturmfü hrer berrou com voz de estentor:
-- Gato de nove rabos!
Penduraram-no pelos pulsos, com os dedos dos pés a tocar no chã o...
Nenhum de nó s, nem mesmo as mulheres, saiu indemne desta «tomada de contacto». De
resto, aprendemos rapidamente
que em Lengries nã o éramos homens e mulheres, mas sim porcos, montes de esterco,
desavergonhadas.
22 SVEN HASSEL
Quase tudo o que se passava em Lengries é indescritível, revoltante, monó tono. Apesar da
sua fertilidade macabra, a imaginaçã o que se exercita no sadismo é notavelmente limitada,
ao passo que a sensibilidade das vítimas se vai embotando rapidamente. Ver pessoas
sofrerem e morrerem torna-se monó tono com a continuaçã o, mesmo quando morrem e
sofrem de cem maneiras diferentes e tã o
horríveis que, em tempos normais, as consideraríamos inconcebíveis. Os nossos verdugos,
dispondo de carta branca
para saciar em nó s o seu apetite de autoridade e violência,
aproveitavam bem a ocasiã o. Viviam mais intensamente do
que nunca; e as suas almas exalavam um cheiro mais pestilento
ainda do que os corpos doentes, torturados, dos prisioneiros.
Nã o quero de forma alguma censurar os nossos guardas.
Também eles eram vítimas de uma situaçã o que nã o haviam criado e, num certo plano,
saíam dela mais atingidos
do que as suas vítimas: com a alma apodrecida.
Julguei outrora que me bastaria descrever Lengries para comunicar à s pessoas o meu
pró prio nojo e insuflar-lhes uma vontade inabalá vel de reconstruir um mundo, uma
existência, da qual a tortura estivesse excluída. Mas nã o podemos fazer compreender estas
coisas senã o à queles que
as partilharam, e é a esses, precisamente, que se torna inú til recordá -las.
Todos os outros, aqueles que nunca perderam a liberdade,
olham-me como se tivessem vontade de me chamar mentiroso, embora saibam, no fundo,
visto terem devorado com avidez os relató rios da mascarada de Nuremberga, que
nã o exagero, antes pelo contrá rio. Mas recusam-se a olhar as coisas de frente, preferindo
pregar tá bua sobre tá bua em cima da podridã o dos alicerces, queimar sempre mais
incenso, vaporizar sempre mais perfume...
Talvez haja, mesmo assim, uma alma corajosa que ouse ouvir e ver sem um
estremecimento. Preciso absolutamente
de encontrar essa alma, essa pessoa, para que nã o seja tudo apenas solidã o. Preciso
também de contar a minha histó ria, de me libertar dela. É talvez unicamente por isso que a
escrevo. Nã o para tentar, gritando-a para as nuvens, impedir que ela se repita. Talvez que
mesmo, ao procla-O REGIMENTO DA MORTE 23
má -la aos quatro ventos, me esteja a enganar a mim pró prio!
Talvez a minha finalidade seja, simplesmente, atrair sobre mim as atençõ es e a admiraçã o
das gentes! Tornar-me, aos olhos de todos, o heró i de aventuras que nem todos viveram...
É claro que nã o foi dado a toda a gente viver estas aventuras, mas os que as
experimentaram sã o em nú mero mais do que suficiente para que eu tenha a presunçã o de
me julgar um fenó meno. Nã o sei, pois, exactamente porque
me dou ao trabalho de descrever Lengries. Que cada um me atribua, se assim o desejar, um
motivo à sua escolha...
Mas que ninguém esqueça, no entanto, que sã o os incrédulos,
aqueles mesmos cuja imaginaçã o prefere fechar-se diante da verdade, que deverã o arcar
com a maior parte da
nossa culpabilidade futura, se todos os Lengries do mundo nã o forem implacavelmente
procurados e destruídos na casca, em toda a parte onde se atrevam a aparecer. É
inú til
citar nomes, lugares, naçõ es: para quê esses choques ideoló gicos
durante os quais cada país, cada «bloco», está sempre de tal forma ocupado a ofender-se
com o procedimento
dos outros que nã o pensa um instante sequer em examinar e ainda menos em corrigir o
seu?
Lengries é isto:
Um jovem Feldwebel, condenado a trinta anos de trabalhos
forçados por sabotagem contra o Reich, fora surpreendido quando tentava passar um
pedacinho de sabã o a uma das prisioneiras. O guarda chamou o Obersturmfü hrer
Stein, chefe da secçã o, homem dotado de uma imaginaçã o
particularmente fecunda:
- Que é isto que me vieram dizer a vosso respeito, meus pombinhos? Estã o noivos, ao que
parece? Pois bem,
temos de festejar o acontecimento!
O andar inteiro recebeu ordem de descer para um dos pá tios. Quanto aos dois jovens,
mandaram-nos despir.
Estava-se
na véspera do Natal e os flocos de neve dançavam à nossa volta.
- E agora um pouco de fornicaçã o, meus meninos! disse Stein.
24 SVEN HASSEL
Os arenques em molho de escabeche que nos serviam de quando em quando eram
impró prios para consumo, mas
nó s comíamo-los mesmo assim, cabeça, espinhas, escamas
e tudo. Enquanto está vamos nas células, tínhamos as mã os
atadas atrá s das costas. Comíamos portanto de borco, com
a cara na tigela, como porcos. Concediam-nos três minutos
para comer, para devorar um alimento por vezes escaldante.
E quando havia execuçõ es no programa: Esses dias começavam pelo soar de apitos,
enquanto a campainha de alarme retinia por diversas vezes, indicando quais os «andares»
que deviam descer. Ao primeiro apito era preciso ficarmos imediatamente em sentido em
frente da porta da célula. Ao segundo apito todos começavam a marcar passo: plum, plum,
plum. Depois, um mecanismo manobrado por um SS abria ao mesmo tempo todas as
portas, mas nó s continuá vamos a marcar passo nas células
até se fazer ouvir o terceiro apito.
Uma vez no pá tio, formá vamos um semicírculo em volta do cadafalso, um estrado de 3
metros de altura sustentando
dezoito forcas. Dezoito forcas com dezoito nó s corredios baloiçando ligeiramente ao vento.
Junto ao estrado esperavam
dezoito caixõ es de madeira em bruto.
Os homens vestiam calças à s riscas, as mulheres saias do mesmo tecido, e nada mais. O
ajudante lia as sentenças
de morte e os condenados subiam ao cadafalso, parando cada um, em boa ordem, diante da
sua corda. De mangas arregaçadas, dois SS desempenhavam a tarefa de carrascos
e, quando todos os cadá veres se baloiçavam na ponta das
cordas, com urina e excrementos a escorrerem pelas pernas
abaixo, um médico SS vinha lançar ao quadro um olhar indiferente e indicava aos carrascos
que tudo estava nas devidas condiçõ es. Apeavam entã o os corpos, que metiam
nos caixõ es grosseiros.
Mas se alguém desejar saber mais pormenores acerca da morte, posso falar-lhe do
Sturmbannfü hrer Schendrich.
Era belo, jovem, elegante, sempre delicado, amistoso e paciente, mas os pró prios SS que
comandava o temiam.

O REGIMENTO DA MORTE 25
- Vamos ver - disse ele um sá bado à tarde, apó s ter sido feita a chamada -, vamos ver se
vocês compreenderam
bem todas as minhas explicaçõ es. Vou tentar dar uma ordem simples a alguns de vó s e
apreciaremos todos se ela foi ou nã o bem executada.
Chamou cinco homens para fora das fileiras, ordenou-lhes que se voltassem para a cerca da
prisã o, da qual está vamos expressamente proibidos de nos aproximar a me’nos
de 5 metros.
- Em frente... marche!
Olhando a direito, os cinco homens marcharam em direcçã o à parede e caíram sob as balas
dos guardas postados
nos miradouros.
i De novo Schendrich se voltou para nó s.
-Que mais querem? Aqui está como se cumpre uma ordem! Agora vã o todos ajoelhar,
quando eu mandar, e repetir o que eu disser... A...joelhar!
Nã o houve um só retardatá rio.
- Vá , digam, mas em voz alta e inteligível: «Nó s somos porcos e traidores.»
- Nó s somos porcos e traidores!
- Que devem ser destruídos.
- Que devem ser destruídos!
- Porque é isso que nó s merecemos.
- Porque é isso que nó s merecemos!
- Amanhã , domingo, passaremos sem comer.
- Amanhã , domingo, passaremos sem comer!
- Porque quando nã o trabalhamos...
- Porque quando nã o trabalhamos...
- Nã o temos o direito de comer.
- Nã o temos o direito de comer!
Todas as tardes de sá bado estes coros de dementes retumbavam no pá tio e no dia seguinte,
domingo, ficá vamos
sem comer.
Uma mulher chamada Kathe Ragner ocupava a cela contígua à minha. Era horrível, com os
cabelos de um branco de giz e a boca desdentada por falta de vitaminas.
Os braços e as pernas nã o passavam de ossos cobertos por uma epiderme acinzentada.
Todo o corpo estava pintalgado
de chagas purulentas.
26 SVEN HASSEL
- Está s a olhar para mim - disse ela um dia. - Gostava de saber que idade me dá s!
Emitiu um riso seco, isento de toda a alegria. Depois, vendo que eu me calava, prosseguiu: -
Uns bons cinquenta anos, nã o é verdade? Faço vinte e quatro para o mês que vem. Aqui há
ano e meio todos me davam dezoito.
Fora secretá ria, em Berlim, de um oficial do estado-maior e travara conhecimento, no
pró prio gabinete onde trabalhava, com um jovem capitã o de quem ficara noiva.
Estava já fixada a data do casamento, mas este nã o se realizou. Quatro dias apó s terem
detido o noivo, vieram prendê-la a ela. Os homens da Gestapo tinham-na interrogado
por todos os processos durante três meses, acusando-a de haver tirado có pia de certos
documentos. Ela nunca compreendera nada daquilo, mas, juntamente com uma das
suas colegas, apanhara dez anos de trabalhos forçados. O
noivo e dois outros oficiais haviam sido condenados à morte
e um quarto a trabalhos forçados por toda a vida. Antes de mandarem Kathe Ragner para
Lengries obrigaram-na a assistir à execuçã o do noivo.
Certa manhã , quatro mulheres, entre elas Kathe, receberam
ordem de descer a rastejar a comprida escada íngreme que ligava os cinco andares.
Tratava-se de um género de exercício que os guardas gostavam de nos ver praticar. De
mã os e pés atados, nã o tínhamos outro remédio senã o deixarmo-nos
escorregar de cabeça para baixo.
Ignoro se a queda de Kathe foi ou nã o voluntá ria.
Chegara ao extremo da resistência e as duas hipó teses sã o
igualmente plausíveis. Ouvi o seu grito agudo e o barulho que fez o corpo a estatelar-se.
Depois de alguns segundos de silêncio mortal a voz excitada subiu finalmente das
profundezas:
- Esta porca quebrou a espinha!

Alguns dias apó s a morte de Kathe fui transferido, com um punhado de outros prisioneiros,
para o campo de concentraçã o de Fagen, perto de Brema, onde nos esperava
- pelo menos era o que nos diziam - um «trabalho especial de uma enorme importâ ncia».
Saber em que poderia consistir esse trabalho nã o nos interessava absolutamente nada.
Nenhum de nó s podia conceber,
nem por um só momento, que fosse menos penoso do que aquele a que está vamos
habituados. Tínhamo-nos acostumado a trabalhar como bestas de carga, atrelados a
charruas, a arados, a cilindros ou carroças, puxando até
cairmos mortos. Havíamos estado nas fiaçõ es de juta, a respirar aquela porcaria até
ficarmos liquidados no meio de uma hemorragia pulmonar.
Todos os trabalhos possuíam um ponto em comum: acabava-se, mais tarde ou mais cedo,
por cair de vez!
FACEN
Fagen, na verdade, trabalhava em duas frentes. Era na base um centro experimental de
medicina, mas havia também
as bombas.
Nos primeiros dias puseram-me nos trabalhos de terraplanagem.
Tínhamos de correr como forçados, a cavar terra desde as 5 horas da manhã até à s 6 da
tarde, sem outro alimento além de uma papa que continha mais á gua do que farinha e que
nos serviam três vezes por dia.
Depois
surgiu a oportunidade inesperada, que me apressei a agarrar com ambas as mã os, de ser
indultado.
O comandante do campo informou-nos de que só os voluntá rios tinham direito a isso. À
razã o de quinze por
28 SVEN HASSEL
cada ano de pena que nos faltasse cumprir. O que, para mim, representava um total de
duzentas e vinte e cinco.
Mas agora vejo que ainda nã o expliquei nada. Lá vai: para termos a possibilidade de sermos
indultados era necessá rio
desmontar, por cada ano de pena a cumprir, quinze bombas que nã o haviam explodido.
Quinze bombas multiplicadas
por quinze anos - o meu primeiro ano estava longe de terminar - dava duzentas e vinte e
cinco bombas...
Nã o se tratava, evidentemente, de bombas vulgares, mas sim daquelas que nem os tipos da
defesa passiva, nem as unidades militares, se atreviam a enfrentar. Certos prisioneiros
haviam conseguido desmontar umas cinquenta antes de serem pulverizados, mas era
indispensá vel que, mais cedo ou mais tarde, alguém fosse, digamos, até à s duzentas
e vinte e cinco - e eu nã o hesitei em apresentar-me como voluntá rio.
Foi talvez este raciocínio que me decidiu. Ou entã o o facto de, todas as manhã s, antes de
partirmos, nos darem um quarto de pã o de centeio, um pedacinho de salsicha e três
cigarros, à laia de raçã o suplementar...
Apó s um período de instruçã o, sempre extremamente breve -como sã o, em tempo de
guerra, todos os «períodos de instruçã o» --, os SS conduziam-nos todos os dias aos diversos
locais onde nos esperavam as bombas por explodir.
Os nossos guardas mantinham-se a uma distâ ncia respeitá vel,
enquanto nó s cavá vamos a terra em redor da bomba, isto é, por vezes, até 5 ou 6 metros de
profundidade.
Depois da bomba a descoberto, era preciso libertá -la do resto de terra que a envolvia,
cingindo-a primeiro com um cabo e erguendo-a em seguida, centímetro a centímetro,
até a elevar completamente. Logo que o engenho ficava suspenso, com todo o seu peso. nos
mastros instalados
no buraco, toda a gente se punha ao largo, prudentemente, para nã o despertar o monstro,
mas com rapidez.
Um ú nico homem ficava: o prisioneiro encarregado de desmontar o engenho explosivo. Se
fizesse um movimento errado...
Trazíamos sempre um ou dois caixotes de madeira, no camiã o-oficina, destinados a esse
género de desastrados,

O REGIMENTO DA MORTE 29
mas nem todos os dias serviam. Nã o que os movimentos errados constituíssem excepçõ es,
mas por vezes tornava-se muito difícil encontrar qualquer coisa para meter no caixote.
Muitos sentavam-se sobre a bomba para desmontar o explosivo. Era mais fá cil manter
assim o detonador numa posiçã o firme. Mas eu descobri que valia mais deitar-me debaixo
da bomba depois de esta estar suspensa.
Bastava
entã o deixar deslizar o tubo muito devagarinho na mã o metida numa luva de amianto...
A minha 68.ª bomba era um torpedo aéreo e precisá mos de quinze horas para o
desenterrar. Quando se faz este género
de trabalho nã o se fala. Está -se permanentemente na expectativa. Cava-se com prudência,
reflectindo antes de apoiar a enxada, antes de nos servirmos das mã os ou dos pés. Torna-se
necessá rio respirar calmamente, regularmente,
nã o efectuando nenhum movimento irreflectido e nunca mais de um ao mesmo tempo.
Chegados a certa altura, as mã os sã o o melhor utensílio quando se quer evitar qualquer
desabamento de terra. Se um torpedo se deslocar meio centímetro, isso pode significar a
explosã o, a morte. Tal como se encontra agora, mantém-se silencioso e calmo.
Mas
que ideia lhe passará pela cabeça se nos lembrarmos de lhe modificar a posiçã o? Posiçã o
essa que tem necessariamente
de ser modificada... É preciso içar a bomba sobre o derrick que a transportará . É preciso
desmontar o explosivo
da bomba. Entretanto, mais vale nã o respirar, por isso despachemo-nos...
Nã o, nã o, nada de pressas intempestivas.
Devagarinho, mas com segurança. Devagar se vai ao longe.
Cada movimento muito calmo e deliberado...
Um torpedo aéreo é um adversá rio impassível; nã o mostra nada, nã o desvenda os seus
segredos. Nã o se pode fazer batota com um torpedo aéreo.
Proibiram-nos, desta vez, de desmontar a bomba no pró prio
local. Era preciso antes transportá -la para fora da cidade.
Isso tanto podia significar tratar-se de um novo tipo de bomba que ninguém conhecia
ainda, como encontrar-se esta numa posiçã o tal que a explosã o poderia produzir-se logo
que alguém se lembrasse de soprar sobre o explo-
30 SVEN HASSEL
sivo... E a explosã o de semelhante monumento destruiria decerto todo o bairro em volta.
Um camiã o Krupp-Diesd equipado com um derrick aproximou-se, em marcha atrá s, da
beira da escavaçã o.
Foram precisas quatro horas de esforços para trazer a bomba para cima do derrick,
amarrada de tal forma que nã o pudesse deslocar-se nem um milímetro.
Alívio geral... Mas havíamos esquecido uma coisa!
- Qual de vocês sabe guiar?
Silêncio. Quando uma serpente venenosa nos trepa pela perna acima, diz-se que devemos
transformar-nos numa coluna de pedra, numa coisa morta, indigna de prender a atençã o de
uma serpente. Num segundo ficaram apenas no
terreno colunas de pedra, mentalmente recolhidas na sombra
mais espessa, enquanto o olhar do SS pulava, perscrutador,
de rosto para rosto. Nenhum de nó s o fitava, mas está vamos todos tã o dolorosamente
conscientes da sua presença
que os coraçõ es se magoavam cruelmente de encontro à s grades da caixa torá cica e
saltá vamos, em sonhos, por cima das crateras, no meio dos escombros.
- Tu, lá ao fundo, sabes guiar?
Nã o me atrevi a dizer que nã o.
- Entã o, vamos!
Havia bandeiras a indicar o itinerá rio a seguir. O
pavimento
da rua, graças a Deus, fora desimpedido e reparado, de forma a oferecer uma superfície
sensivelmente nivelada. Tudo isto em atençã o à s malditas casinholas deles!
Nem vivalma naquele sector. Os outros veículos seguiam-me a boa distâ ncia. Ninguém
sentia vontade de escoltar o perigo.
Passei diante de uma casa que ardia alegremente em silêncio. O fumo fez-me arder os
olhos, cegou-me, mas nã o
me atrevi a aumentar a velocidade. Apó s cinco minutos de franca agonia consegui de novo
respirar o ar fresco.
Ignoro quais foram os meus pensamentos durante essa viagem sem fim. Sei apenas que
tinha na minha frente todo
o tempo do mundo para reflectir e que estava calmo, interiormente
excitado, talvez, e, pela primeira vez, um pouco feliz. Quando cada segundo que passa pode
ser o ú ltimo, asseguro-vos de que dispomos de tempo para pensar. E, pela
primeira vez também depois de séculos, tinha consciência

O REGIMENTO DA MORTE 31
de ser de novo alguém. Perdera-me de vista a mim pró prio,
deixara de ter a mínima opiniã o a meu respeito, a minha personalidade estivera
comprimida, esmagada por todas as
formas, mas, apesar disso, sobrevivera e erguia-se de novo
intacta das humilhaçõ es, das degradaçõ es quotidianas.
Eu
te saú do! Pois ainda existes mesmo assim. E continuas a ser o mesmo. Olha para ti: está s
realizando uma coisa que os outros nã o ousam. Podes portanto fazer muito mais.
Algo
de indispensá vel. Atençã o a esses carris!
Deixei a cidade e atravessei os ú ltimos quarteirõ es cobertos de barracas de zinco ondulado,
onde só viviam os
vagabundos, os nó madas, os esfarrapados. Só esses...
Pelo
menos dantes. Agora está vamos em guerra e todas as noites
a cidade se constelava de novas crateras.
Algures um homem cavava um campo. Apoiou-se no cabo da enxada para me ver passar.
Gritei-lhe:
- Eh!... Entã o nã o corres a pô r-te a salvo ?
O estrépito do motor cobriu a sua resposta, mas ele ficou onde estava. Talvez me tivesse
gritado «Boa viagem»!
Que piada esquisita, percorrer assim tã o lentamente estradas
desertas!
Na cidade deviam começar a regressar aos apartamentos,
à s lojas. Primeiro, os mais corajosos. Depois, os outros, contentes e aliviados. Vejam só ,
tudo continua de pé!
As oportunidades de fuga nã o me haviam faltado, ao acaso das ruas vazias. Teria podido
saltar do camiã o, correndo
a pô r-me a salvo, enquanto a bomba continuaria o seu caminho, sem condutor, até ao
primeiro embate antes da grande explosã o. Porque nã o me aproveitei deste ensejo?
Nã o sei dizê-lo. Creio nunca haver saboreado tã o intensamente a alegria de viver.
Está vamos a só s, o meu querido torpedo aéreo e eu, e, enquanto assim nos
conservá ssemos,
ninguém ousaria aproximar-se de nó s sem licença.
Só acordei do meu transe quando já me encontrava em campo raso, no meio da charneca,
num caminho balizado com bandeiras vermelhas, cada vez mais espaçadas. Aí o meu
instinto de conservaçã o levou a melhor. Até onde fariam
eles tençã o de que eu continuasse assim a guiar? Seria
32 SVEN HASSEL
muito estú pido saltar agora, depois de todos aqueles quiló metros,
ao cabo de vinte e quatro horas de trabalho...
Pude, finalmente, livrar-me da bomba no meio das urzes, a 12 ou 13 quiló metros da cidade.
Uma vez que a sua descarga
era manifestamente impossível, fizeram-na explodir juntamente com o derrick.
Esta façanha valeu-me mais três cigarros, acompanhados da habitual observaçã o de que eu
os nã o merecia, mas que
o nosso bem-amado Fü hrer nã o era desprovido de sentimentos
humanos.
Três cigarros suplementares: julguei-me bem pago.
Contava
apenas com um.
Aconteceu-me o mesmo a que está sujeito qualquer prisioneiro:
adoeci. E talvez, por outro lado, essa doença me tenha salvo a vida! Consegui aguentar-me
durante cinco dias. Declarar-me doente equivalia a ser imediatamente enviado
para o hospital do campo, onde se ficava sujeito a experiências que nos inutilizavam para o
serviço; e ficava-se inutilizado para o serviço quando se morria em consequência
de tanto se ter servido. Mas caí sem sentidos durante uma chamada e, quando voltei a mim,
encontrava-me no hospital.
Nã o me disseram o que eu tinha. Nunca o revelavam a nenhum doente. No dia em que me
julgaram suficientemente
restabelecido para me aguentar de pé começaram as experiências. Deram-me inú meras
injecçõ es. Meteram-me num quarto onde reinava um calor de estufa, depois numa câ mara
frigorífica, onde me tiravam um pouco de sangue, com intervalos irregulares. Um dia
davam-me tudo o que eu
podia ingurgitar e no dia seguinte faziam-me rebentar de fome e de sede; ou entã o
obrigavam-me a engolir tubos de
borracha para extrair, no meio da digestã o, tudo aquilo que me haviam permitido e
obrigado a devorar.
A um estado miserá vel sucedia-se outro. Finalmente, fizeram-me
uma dolorosa punçã o à medula espinal, depois prenderam-me os pulsos aos varais de um
carro de mã o cheio de areia e ordenaram-me que o empurrasse, sem uma

O REGIMENTO DA MORTE 33
pausa, à volta de um recinto circular. De quarto em quarto de hora tiravam-me uma
amostra de sangue. Isto durou o dia inteiro, enquanto a cabeça me andava à roda e ia
perdendo
gradualmente a lucidez. Desse tratamento ficaram-me, durante meses, umas enxaquecas
insuportá veis.
No entanto, tive incomparavelmente mais sorte do que muitos outros. Um belo dia
acabaram por decidir que eu já suportara bastante, ou que já nã o podia talvez revelar-lhes
nada de novo. Fizeram-me regressar ao campo. Um SS, a rir à s gargalhadas, informou-me
de que eu já nã o pertencia
à s equipes de especialistas em bombas. As que eu tinha desmontado
nã o contavam. Voltei a esfalfar-me na pedreira.
Depois tornei à desmontagem das bombas, e atingira já de novo uma boa conta quando me
reenviaram para Lengries,
anulando assim mais uma vez todo o meu trabalho...
Sete meses num poço de calhaus em Lengries. Sete meses
de demência letá rgica, monó tona.
Um dia um SS veio buscar-me. Fui examinado por um médico. Encontrava-me coberto de
furú nculos purulentos.
Limparam-nos, desinfectaram-nos e encheram-nos de pomada.
O médico perguntou se eu me sentia bem. «Sim, doutor, sinto-me bem, estou de boa saú de.»
Lamentarmo-nos do estado de saú de era a ú ltima coisa que devíamos fazer.
Enquanto existisse um sopro de vida considerá vamo-nos saudá veis, fortes. :
Levaram-me ao SS Sturmbannfü 1)hrer Schendrich. As janelas do seu gabinete tinham
cortinas, cortinas limpas.
Cortinas, estã o a ver? De um tom verde-claro com desenhos
amarelos. Verde-claro com desenhos amarelos. Verde-claro com...
- Porque está s para aí embasbacado, santo Deus?
Estremeci interiormente:
- Por nada, Herr Sturmbannfü hrer. Desculpe-me, Herr Sturmbannfü hrer, tenho a honra de
declarar que nã o tenho
razã o alguma para estar embasbacado.
Uma inspiraçã o sú bita levou-me a acrescentar em voz baixa:
- Tenho a honra de declarar que nã o faço outra coisa senã o estar embasbacado...
R. M. - 3
34 SVEN HASSEL
Olhou-me, estranhamente interdito. Depois de sacudir nã o sei que importunas ideias,
estendeu-me uma folha de papel.
- Vais declarar aqui que recebeste sempre a alimentaçã o habitual do exército, que nunca
sofreste fome nem sede, que nã o tens nenhuma razã o de queixa das condiçõ es
de existência no interior do campo durante a estada que aqui fizeste.
Assinei. Que importâ ncia tinha aquilo? Iria ser transferido para outro campo? Ou teria
chegado a minha vez de me baloiçar na ponta de uma corda?
Empurrou para mim um segundo documento, de aspecto um tanto impressionante.
- E aqui vais declarar que foste tratado severamente, mas com justiça, em conformidade
com as normas do direito
internacional.
Assinei também. Que me importava?
- Se algum dia pronunciares uma sílaba sequer acerca do que viste ou ouviste aqui, deitar-
te-ei a mã o e preparar-te-ei eu mesmo a cerimó nia de recepçã o, percebeste?
- Percebi, Herr Sturmbannfü hrer.
Portanto, devia tratar-se de uma transferência.
Conduziram-me para uma célula onde me esperava uma farda verde, sem nenhuma
insígnia, que me mandaram
vestir.
- E limpa essas unhas, porcalhã o!
Um SS introduziu-me em seguida no gabinete do comandante,
onde recebi 1 marco e 21 Pfennigs, correspondentes aos meus sete ú ltimos meses de
trabalho. Um Stabscharfü hrer
berrou:
- Prisioneiro 552318 A... prestes a ser libertado...
Marche!
Isto era mais uma forma de tortura. Mas eu conhecia-lhes as manhas e sentia-me muito
ufano por nã o me deixar enganar. Executei meia volta e saí, à espera dê lhes ouvir as
gargalhadas. Mas nã o, a coisa era ainda mais subtil do que eu pensava. Dominavam todos o
riso.
- Sente-se no corredor até virem buscá -lo!
Nã o. Nã o estavam a rir. E, sem querer, comecei a ter esperanças. Esperei além de uma hora,
com os nervos cada

O REGIMENTO DA MORTE 35
vez mais em carne viva. Como era possível que aquela gente, seres aparentemente
humanos, pudessem levar tã o longe a perversã o e o sadismo? E repetia comigo: «Contudo
tu sabes que eles podem ir ainda bastante mais longe.
Julguei que estivesses para sempre vacinado contra esse género de ilusã o pueril...»
Ainda hoje torno a viver intensamente, quando penso nele, esse minuto de estupefacçã o
boquiaberta que se abateu
sobre mim quando segui o Feldwebel ao pequeno Opel cinzento, depois de me haverem
informado de que fora agraciado e que ia servir dali em diante num batalhã o disciplinar.
O pesado portã o bateu atrá s de nó s. Os grandes edifícios de minú sculas janelas com varõ es
de ferro foram desaparecendo, ao mesmo tempo que se afastava o medo,
o pavor sem nome...
Nã o conseguia compreender. Ficara estarrecido; melhor, consternado. O carro atravessava
já o pá tio da caserna de Hanô ver e ainda eu nã o me encontrava totalmente refeito do
choque.
Agora, no fim de todos estes anos, só consigo recordar-me do horror, do susto
inqualificá vel, apenas como uma coisa remota, passada de uma vez para sempre.
Mas porquê, porquê esta consternaçã o ao ver tudo aquilo esfumar-se por detrá s de mim? É
uma pergunta à qual nunca consegui responder.

Vinte vezes por dia, com grande acompanhamento de imprecaçõ es e blasfémias, repetiam-
nos que está vamos a
prestar serviço num batalhã o disciplinar, o que significava
que devíamos ser os melhores soldados do mundo.
Durante as seis primeiras semanas fizemos exercício das 6 horas da manhã à s 7 e meia da
tarde. Exercício, exercício, sempre exercício.
CENTO E TRINTA E CINCO CADÁ VERES
AMBULANTES
Exercício até nos sair sangue das unhas... E isto nã o é dito em sentido figurado!
Passo de ganso com toda a tralha à s costas: capacete de aço, mochila, sacos de muniçõ es
cheios de areia e capote de Inverno, enquanto por toda a parte as pessoas suavam em Liça
com fatos de Verã o.
Marcha forçada em terrenos lamacentos, onde nos enterrá vamos até meio da perna...
Manejo da arma, com o braço no ar, rosto impassível, metidos na á gua até ao pescoço.
Os nossos sargentos formavam uma matilha de cã es rosnadores que vociferavam e nos
descompunham até nos
conduzirem à beira da loucura. Podia-se estar certo de que
nã o perdiam uma ú nica oportunidade de tentar isso.
Nã o era possível castigar-nos proibindo-nos de sair das camaratas pela simples razã o de
que nã o dispú nhamos de
um só instante de liberdade. Serviço a todas as horas, serviço
e mais serviço. Concediam-nos, é certo, sessenta minutos para jantar e era nosso o tempo
que ia das 7 e meia à s 9 da noite. Mas se nã o gastá ssemos essa hora a limpar
as fardas enlameadas, a polir as botas e o resto do equiO REGIMENTO DA MORTE 37
pamento, ensinavam-nos a fazê-lo por meio das mais implacá veis represá lias.
À s 9 horas toda a gente devia estar deitada. O que nã o implicava, de modo nenhum, que
gozá ssemos de um sono reparador. Todas as noites tinham lugar exercícios de alarme e de
rá pida mudança de fardamento.
Logo que tocava o sinal de alarme, saltá vamos das tarimbas, enfiá vamos o uniforme de
campanha e apresentá vamo-nos
à revista. Mandavam-nos entã o envergar os uniformes de parada. Depois a farda de
exercício. Depois, de novo a farda de campanha. Nunca está vamos perfeitamente
equipados como devia ser. Noite apó s noite, os sargentos encurralavam-nos
e perseguiam-nos nas escadas do quartel como a um rebanho de animais assustados, a
ponto de a sombra de um só deles ser o suficiente, ou quase, para nos
fazer desmaiar de terror.
Ao cabo das seis primeiras semanas começou a segunda fase da nossa formaçã o prá tica e,
se nã o tivéssemos sabido
até entã o o que era a fadiga, as manobras de campanha nã o tardariam a ensinar-nos.
Atravessar de rastos quiló metros de um terreno especial para treino, atapetado de
escumalha de ferro ou de sílice cortante, que nos reduzia as palmas das mã os a uma polpa
sanguinolenta; ou entã o coberto por uma lama pú trida que ameaçava sufocar-nos... Porém,
o que ainda assim mais temíamos eram as marchas forçadas.
Certa noite os nossos sargentos irromperam pelas camaratas,
onde dormíamos um sono de mortos. Berravam com mais força ainda do que de costume,
se é possível: - Alerta! Alerta!
Saltos em massa para fora das tarimbas, seguidos de uma luta com as diferentes peças do
equipamento. Uma correia encravada, um mosquete teimoso, meio segundo perdido,
catá strofes! Nã o se haviam passado ainda dois minutos e já os apitos retiniam nos
corredores, já os pés dos sargentos faziam bater as portas...
- 3.ª companhia, reeeeuNIR! Que fazem vocês aí dentro? Ainda nã o desceram, santo nome
de Deus? E as camas todas por fazer. Onde julgam vocês que estã o, sua cambada de
falhados? Num asilo de velhos?
38 SVEN HASSEL
Pelas escadas descia uma torrente de homens aparvalhados,
a apertarem pelo caminho uma ou outra correia.
Dispunham-se em filas mal alinhadas no pá tio da caserna. Depois gritavam-lhes: - 3.ª
companhia... Voltar à camarata... FARDA DE
EXERCÍCIO!
Sempre me pareceu um desafio ao bom senso que homens
pudessem gritar daquela maneira sem que lhes rebentasse uma veia no cérebro. Mas talvez
fosse precisamente
o bom senso deles que estivesse em causa! Nã o sã o capazes de falar como as outras
pessoas. As suas palavras
ligam-se entre si de modo a produzirem uma espécie de balido, com excepçã o do ú ltimo
vocá bulo, que se esforça por estalar como a correia de um chicote. Nunca conseguireis
ouvi-los terminar uma frase com uma sílaba nã o acentuada. Tudo o que dizem é
entrecortado por salvas de interjeiçõ es militares, incompreensíveis. Aqueles urros, aqueles
interminá veis urros! Temos de concordar que esta gente tem uma aduela a menos...
Tal e qual uma onda que varresse tudo na sua passagem, assim os cento e trinta e cinco
recrutas que éramos se precipitavam escada acima, para atingirem a camarata e enfiarem a
farda de exercício antes de soar um novo «ReeeeuNIR!»...
Depois de executar este manejo uma dú zia de vezes, nessa noite, no meio do habitual
concerto de pragas e injú rias, a companhia formou finalmente no meio do pá tio, espavorida
e alagada em suor, mas em boa ordem de marcha,
pronta a partir para o exercício nocturno anunciado no programa.
O nosso comandante de companhia, um capitã o maneta chamado Lopei, observava-nos
com um sorriso nos lá bios.
Impunha aos seus homens uma disciplina de ferro, uma disciplina desumana. E, no entanto,
de todos aqueles algozes,
era o ú nico que possuía, aos nossos olhos, alguma coisa de humano. Tinha, pelo menos, a
decência de executar
ele pró prio tudo o que nos mandava fazer e nunca nos exigia nada que estivesse acima das
suas forças.
Quando
voltá vamos dos exercícios, vinha tã o estoirado como nó s.
Era a sua maneira de se mostrar leal, e a lealdade consO REGIMENTO DA MORTE 39
tituía uma virtude bem rara nos tempos que iam correndo.
Está vamos habituados a que todos quantos dispunham de autoridade armassem os outros
em bodes expiató rios e os
torturassem, os esgotassem com trabalhos, os tornassem definitivamente «inaptos»,
fazendo-os rebentar de fadiga ou
conduzindo-os ao suicídio. O capitã o Lopei nã o tinha favoritos
nem bodes expiató rios. Pertencia à quele tipo raríssimo de oficial que consegue levar os
seus homens ao centro do Inferno seguindo o simples princípio de marchar sempre à frente
deles e de, a seu modo, dar provas de uma inflexível lealdade. Se a coragem e a integridade
desse homem estivessem atreladas a outro carro que nã o fosse o de Adolfo Hitler, se fosse
oficial de outro exército qualquer, eu teria sentido simpatia por ele. Mas, assim, inspirava-
me apenas um inegá vel respeito...
Examinou rapidamente o nosso uniforme. Depois, recuando
alguns passos, comandou:
- 3.ª companhia, seeeenTIDO! Ooooombro ARMA!
Choques rítmicos de cento e trinta e cinco espingardas a caírem simultaneamente sobre
cento e trinta e cinco ombros.
Seguiram-se alguns minutos de silêncio absoluto, em que cada oficial, sargento e soldado
olhava em frente, imó vel como um espeque sob o capacete de aço. Desgraçado de
quem mexesse nem que fosse só a ponta da língua!...
De novo, entre os grandes choupos e os edifícios cinzentos
da caserna, a voz do capitã o mandou: - Direita... VOLVER! Ordiná rio... MARCHE!
Trovoada de botas ferradas sobre o cimento do pá tio, num breve chispar de lume. Quarto
de volta ao sair da caserna e abalada pelo caminho lamacento, ladeado de choupos. Num
batalhã o disciplinar todas as conversas ou cantigas estã o naturalmente proibidas;
indivíduos de quarta
categoria nã o podem aspirar aos privilégios do soldado alemã o. Nã o tínhamos igualmente o
direito de usar a á guia ou os outros símbolos honoríficos: trazíamos simplesmente,
na manga direita, uma fita branca - que devia permanecer sempre branca! - atravessada
pela palavra SONDERABTEILUNG em letras pretas.
Como devíamos ser os melhores soldados do mundo, todas as nossas marchas eram
forçadas. Em menos de um
40 SVEN HASSEL
quarto de hora ficá vamos a suar, os pés começavam a arder e abríamos a boca para poder
respirar, uma vez que o nariz se tornava rapidamente incapaz de nos fornecer a quantidade
necessá ria de oxigénio. As bandoleiras e as correias das espingardas nã o deixavam que o
sangue nos circulasse normalmente pelo corpo, e isso fazia-nos inchar muito os dedos, a
ponto de ficarem brancos e entorpecidos.
Contudo, isto para nó s nã o passava de uma bagatela.
Podíamos
fazer uma marcha forçada de 25 quiló metros sem experimentar o menor desconforto.
Começava entã o o exercício: avanço dos atiradores em saltos sucessivos, um homem de
cada vez. Com os pulmõ es
a arfar como foles de ferreiro, avançá vamos pelo campo raso, em corrida de gatas através
dos campos gelados, encharcados, cavando as nossas tocas provisó rias de animais
perseguidos com as enxadas curtas de trincheira.
Mas isto, bem entendido, nunca era feito com a rapidez necessá ria. Constantemente os
apitos nos chamavam e tentá vamos em vã o recuperar o fô lego, aos soluços e arquejando,
durante uns segundos demasiado breves, enquanto eles nos descompunham até se
fartarem.
Mas logo era preciso voltar à carga. Em frente... em frente... em frente. Ficá vamos envoltos
em terra molhada; as nossas pernas tremiam e o suor escorria-nos em fio pelo
corpo abaixo, fazendo arder e agravando as feridas causadas
pelo atrito das correias de suspensã o do pesado equipamento.
O suor impregnava os uniformes e em muitos casacos viam-se
largas manchas escuras. Acabá vamos por ficar cegos com a transpiraçã o e a pele das nossas
testas, irritada à força de ter sido enxuta com as mã os sujas ou com as mangas á speras,
fazia-nos uma comichã o enorme. Assim que ficá vamos imó veis, o banho de suor
transformava-se num banho de gelo. Eu tinha a pele do interior das coxas e das virilhas
esfolada e a escorrer sangue. E o suor provocado
pelo medo vinha juntar-se ao do esgotamento.
Ao romper do dia encontrá vamo-nos mortos de fadiga, mas era a hora do exercício
antiaéreo.
Partíamos a correr pela estrada má , em que cada pedra, cada poça, cada estú pido rego
reclamavam um esforço de
atençã o permanente, visto que o menor passo em falso

O REGIMENTO DA MORTE 41
podia significar uma queda, uma entorse ou um castigo.
o facto de colocar um pé à frente do outro, para correr ou para marchar, tudo coisas que se
fazem normalmente,
por há bito e sem pensar nelas, requeria um esforço físico e mental quase sobre-humano. As
nossas pernas estavam
pesadas, cruelmente pesadas. Mas mesmo assim trotá vamos
com obstinaçã o, coxeando, tropeçando, em passo de giná stica. As nossas má scaras, de
ó rbitas cavadas, habitualmente
pá lidas; estavam agora vermelhas como lagostas, com os olhos espavoridos e fixos e as
veias da testa desmedidamente inchadas. Tínhamos a boca seca, franjada
de baba viscosa, e, de tempos a tempos, um soluço desesperado
projectava em redor perdigotos de espuma branca.
Os apitos verrumavam-nos a cabeça, e nó s saltá vamos para a direita e para a esquerda,
mergulhando no fundo dos valados sem ver o que lá havia: silvas, lama podre ou algum
«colega» ainda mais rá pido. Seguia-se depois a montagem frenética dos morteiros e a
colocaçã o das metralhadoras
na devida posiçã o, tarefa esta que tinha de ser cumprida em alguns segundos, ainda que à
custa de uma torcidela de rins ou de uma mã o ensanguentada.
E de novo a marcha, quiló metro apó s quiló metro. Creio saber tudo o que é possível saber-
se acerca das diversas espécies de estradas. Estradas moles, duras, largas, estreitas,
pedregosas, lamacentas, inundadas, cimentadas, asfaltadas,
cobertas de neve, acidentadas, planas, escorregadias, poeirentas.
Os meus pés aprenderam tudo o que é possível conhecer-se sobre estradas. Estradas
detestá veis, inimigas
e algozes dos meus pés.
Depois da chuva, sol. Quer dizer, sede, cabeça pesada, enxaquecas, manchas diante dos
olhos. Pés e tornozelos inchados
dentro das botifarras. Arrastá vamo-nos numa espécie de transe.
Finalmente, ao meio-dia, uma paragem... Os nossos mú sculos encontravam-se de tal modo
torturados que o facto de os querermos imobilizar constituía ainda uma forma de tortura.
Alguns nã o o conseguiam e continuavam com o movimento adquirido, mesmo depois de
ouvida a ordem, até esbarrarem no homem que se achava à sua frente.
42 SVEN HASSEL
E ficavam ali, de cabeça baixa, vacilantes, quase a cair, até que o outro os empurrava sem
contemplaçõ es.
Tínhamos parado à entrada de uma pequena aldeia.
Aproximaram-se dois ou três garotos para nos observarem.
A paragem devia durar meia hora. Esquecendo que nos encontrá vamos a 50 quiló metros da
caserna, cada qual se deixou cair logo ali, sem mesmo desapertar uma só correia,
adormecendo antes de chegar ao chã o.
Um segundo depois novo apito. Um segundo que durara trinta minutos: o tempo do nosso
precioso descanso.
Nova partida, talvez a pior tortura de todas. Os mú sculos rígidos e os pés inchados nã o
estã o pelos ajustes. Cada passo custa uma série de guinadas, que sobem como uma
flecha até ao cérebro. A planta dos pés sente, através do coiro, todos os pregos da sola e
temos a impressã o de caminhar sobre cacos de vidro.
Mas que ninguém pense em afrouxar: nã o levamos atrá s nenhum camiã o para recolher os
que caem. Os que se vã o abaixo, coitados, sã o submetidos a um tratamento especial
administrado pelo tenente e pelos três sargentos mais sá dicos da companhia.
Descompõ em-nos e perseguem-nos
sem piedade até que percam os sentidos ou alcancem a coluna, como loucos furiosos, ou
entã o até que se transformem
em robots sem vontade pró pria, que executam automaticamente
as ordens e que saltariam da janela de um quinto andar se alguém lho ordenasse... Pela
estrada fora íamos ouvindo os sargentos a berrar e a ameaçar os fracalhõ es
de serem espancados por insubordinaçã o se nã o executassem as ordens de modo a
satisfazer aqueles malditos
animais!
À noitinha penetrá mos no pá tio da caserna a cair de esgotamento.
- Passo de parada... MARCHE!
Um ú ltimo esforço que julgá vamos impossível. Pernas rígidas, projectadas
horizontalmente, os pés a martelarem o solo em cadência. Rodopiam faíscas diante dos
nossos olhos. Sentimos rebentar as bolhas dos pés. Mas é preciso
fazê-lo, é preciso. Os pés descem com um ritmo implacá vel,
calcando a poeira, calcando a dor. Ú ltimo esforço arrancado
a que derradeira reserva de energia?

O REGIMENTO DA MORTE 43
O comandante do campo, o Oberstleutnant von der Lenz»
encontrava-se no lugar exacto onde íamos executar o quarto
de volta que nos colocaria em frente do nosso edifício.
O capitã o Lopei vociferou:
- 3.ª companhia... Olhar... à ESQUERDA!
Todas as cabeças se voltaram num só movimento, todo»
os olhares se fitaram na silhueta frá gil do coronel. Mas os gestos rígidos que fazem parte da
continência nã o tinham,
desta vez, nada de rígido. Houve mesmo uma ligeira confusã o. O capitã o Lopei teve um
sobressalto, parou e afastou-se para observar a sua companhia. Depois retiniu a ordem:
- 3.ª companhia... ALTO!
Era o coronel. Houve um momento de silêncio gelado, seguido do urro enraivecido de von
der Lenz: - Capitã o Lopei, chama a isto uma companhia? Se quer ir para a frente com o
pró ximo batalhã o de infantaria, é só dizer! Existem muitos oficiais que se dariam por felizes
se tivessem o seu posto nesta guarniçã o...
A voz do coronel tornou-se um uivo agudo, histérico: - Que vem a ser esta matilha de
cã ezinhos de estimaçã o?
Esta cambada de indisciplinados? Podem lá ser soldados prussianos!... Cã es tinhosos, isso
sim! Mas eu tenho um bom remédio contra a tinha!
Autoritá rio e cheio de arrogâ ncia, passeava os olhos pela nossa companhia de sonâ mbulos
aterrados. Se ao menos
ele se calasse, para podermos ir até à camarata, atirar fora aquela tralha toda e dormir...
- Sim, possuo um bom remédio contra a tinha - repetia ele com um jú bilo ameaçador. - Os
cachorros tinhosos precisam apenas de um pouco de ocupaçã o, um pequeno treino, hem,
capitã o Lopei?
- Sim, meu coronel, um pouco de treino.
Crescia em nó s um ó dio surdo, de mistura com um sentimento
de piedade pelas nossas pró prias pessoas. Esta histó ria ia custar-nos, pelo menos, uma
hora do exercício mais esgotante que jamais se inventou: o passo de parada
alemã , o passo de ganso...
Já alguma vez sentiram todas as glâ ndulas da regiã o inguinal inchadas e duras, a ponto de
vos fazerem sofrer
44 SVEN HASSEL
terrores a cada passo? Os mú sculos das pernas transformados
em bolas maciças, sobre as quais, de tempos a tempos, é preciso dar murros para as obrigar
a trabalhar?
Os mú sculos das barrigas das pernas contraídos pelas cã ibras, de modo que cada bota
parece pesar um quintal e cada perna uma tonelada? E, precisamente nestas condiçõ es,
já experimentaram erguer a perna, de dedos do pé em riste no prolongamento da coxa, tã o
lestamente, tã o graciosamente como uma dançarina clá ssica?
Já tentaram depois disto, quando os artelhos já nã o têm força para vos sustentar, quando os
dedos nã o sã o mais
do que uma massa sangrenta e a planta dos pés está em fogo, cheia de ampolas que
rebentam e sangram por todos
Vos lados, como se fossem chamas de mistura com vidro pisado, já tentaram lançar-se para
a frente, sobre um pé, enquanto o outro vai bater no chã o com uma pancada retumbante?
E tudo isto deve ser executado a compasso, com uma precisã o que transforma os cento e
trinta e cinco homens numa só má quina, cujo martelar rítmico, regular, faz que as pessoas
que param para o escutar digam: - Que magnífico desfile militar! Que maravilha! Meu Deus,
que exército nó s temos!
O passo de ganso causa sempre enorme sensaçã o.
Precisamente aos ingénuos.
Mas o passo de ganso nã o nos impressiona absolutamente
nada. Pelo menos sob esse aspecto. É o exercício m’ais infernal, mais revoltante, de toda a
histó ria militar.
Despedaçou mais mú sculos, avariou mais gâ nglios linfá ticos
do que qualquer outro movimento. Perguntem a um médico a sua opiniã o a tal respeito.
Mas nó s nã o conhecíamos ainda bem o nosso Oberstleutnant.
Nã o iríamos apanhar só uma hora de passo de parada. Havia partido já , o estupor, com o
capitã o Lopei a fazer-lhe continência, mas antes dissera: - Nã o há dú vida de que conheço
um bom remédio!
Capitã o Lopei!
- Meu coronel!
- Vai-me levar esta tropa toda para o terreno de -exercícios e ensinar-lhes a serem soldados
em lugar de uma
matilha de cã es tinhosos... Nã o recolherã o antes das nove

O REGIMENTO DA MORTE 45
horas da manhã ... E se entã o esta companhia nã o for capaz
de me apresentar um passo de parada que enterre as pedras da
calçada, voltarã o à primeira forma. Entendido?
.- Entendido, Herr Oberstleutnant.
Durante toda a noite praticá mos o ataque em terreno descoberto
e o passo de parada.
E no dia seguinte pela manhã , à s 9 horas, passá mos como uma trovoada diante do
Oberstleutnant, que nã o se deu
logo por vencido. Fez-nos desfilar sete vezes na sua frente, e tenho a certeza de que, se um
só de nó s tivesse tido um décimo de segundo apenas de avanço ou de atraso
em relaçã o aos outros, ele nos teria mandado imediatamente de novo para o terreno.
Eram 10 horas quando recebemos, finalmente, a ordem para dispersar, que nos permitiu ir
dormir.
Desumano, sem dú vida, mas nó s nã o éramos realmente seres humanos. É ramos cã es
tinhosos, cã es esfaimados Na verdade, para se fazer uma ideia do que era realmente o
nosso treino, para se ter dele uma visã o completa, é preciso acrescentar ao resto... a fome.
Neste ponto, como em muitos outros, está vamos na verdade
completamente desvairados. No fim da guerra, em 1945, todo o povo alemã o vivia com
raçõ es de fome, mas desde 1940-41 nó s éramos ainda mais mal alimentados do
que a camada mais desprotegida da populaçã o - isto é, os vulgares civis - o devia ser em
1945.
Como nã o dispú nhamos de carta de racionamento, nada podíamos comprar. O almoço era
sempre o mesmo: 1 litro de sopa de beterraba com um punhado de couve fermentada
para lhe dar um pouco de consistência, e isto mesmo nã o era todos os dias, para nã o nos
acostumarmos!
A carne constituía um luxo que desconhecíamos. Todas as noites recebíamos «raçõ es
secas» para vinte e quatro horas: um pedaço de pã o de centeio, que, com um pouco de
prá tica, se podia cortar em cinco fatias, três para a tarde e duas para o dia seguinte de
manhã ; 20 gramas de margarina rançosa e um pedaço de queijo, cuja percentagem
de á gua devia ser a mais elevada do mundo. Aos sá bados
davam-nos uma raçã o suplementar de 50 gramas de marmelada de nabo. O pequeno
almoço compunha-se de
46 SVEN HASSEL
uma taça de Ersatz de café, da cor do chá , com um cheiro e um gosto repugnantes, que, no
entanto, engolíamos com delícia.
Acontecia-nos, por vezes, durante os exercícios, encontrar nos campos uma batata ou um
nabo. Era apenas o tempo de o limpar para lhe extrair a maior parte da terra e o maroto
desaparecia numa boca á vida, tã o rapidamente
que um observador teria imaginado estar a assistir a uma sorte de prestidigitaçã o.
Nã o levá mos também muito tempo a descobrir que a casca de bétula e uma espécie de erva
que crescia na beira
dos valados possuíam um paladar muito aceitá vel e talvez mesmo propriedades nutritivas.
Eram bem toleradas sobretudo
pelo estô mago e acalmavam um pouco a tortura da fome. Eis a receita, que pode vir a ter a
sua utilidade: entre dois capacetes de aço esmagar a casca de bétula ou
a erva dos valados; juntar uma quantidade conveniente de Ersatz de café e comer como um
bolo...
Se, por milagre, algum de nó s recebia um bó nus de pã o, havia festa na camarata do
felizardo! Um pã o inteiro, estã o
a ver?

A inspecçã o de segunda-feira constituía um dos nossos principais terrores... À chamada da


manhã tínhamos de nos apresentar de capacete, casaco de parada, calça branca
como a neve e vinco em lâ mina de faca, mochila cartucheira
e sacos de muniçõ es, pá de trincheira, baioneta e espingarda, o capote, enrolado segundo o
regulamento, em
cruz sobre o peito.
Cada qual devia trazer no bolso um lenço limpo de cor verde. E este lenço tinha de estar
dobrado também conforme
mandava o regulamento.
DE PONTO EM BRANCO
A limpeza nunca fez mal a ninguém. Nem a ordem.
E num exército deve naturalmente existir ordem e limpeza, organizadas e codificadas, uma
e outra, em regulamentos pormenorizados. O soldado consciencioso consagra um tempo
infinito à ordem e à limpeza, mas o soldado que serve um batalhã o disciplinar consagra-lhe
todo o tempo de que dispõ e, ou, antes, o tempo que nã o está ocupado por outras
actividades.
Durante o domingo inteiro nã o fazíamos senã o lavar, limpar, dobrar segundo o
regulamento, arrumar e pendurar segundo o regulamento, numa palavra, dar a cada coisa o
seu lugar segundo o regulamento, depois de lhe havermos dado um aspecto regulamentar.
O nosso equipamento
de coiro devia apresentar o brilho do verniz. Do avesso, como do direito, as nossas diversas
fardas nã o podiam mostrar a mínima nó doa. Posso afirmar com conhecimento
de causa que, quando os homens de um batalhã o disciplinar alemã o se apresentam à
chamada na segunda»
48 SVEN HASSEL
-feira pela manhã , estã o rigorosamente imaculados da cabeça aos pés.
Mas também sou de opiniã o de que a limpeza e a ordem militares nã o devem estar certas
se, tendo trabalhado durante
um domingo inteiro para as conseguir, nã o sentimos depois com elas nenhuma espécie de
satisfaçã o, aquela paz de espírito que teríamos o direito de esperar apó s semelhante
«limpeza geral».
Esta revista de segunda-feira nã o era um festival de purificaçã o, mas sim um pesadelo de
terror, um concentrado
de medo. O soldado limpo e cuidado da cabeça aos pés nem por isso se sentia imaculado.
Sentia-se, mais do que nunca, metido na pele de um animal perseguido.
Creio que abuso um pouco dos termos «animal perseguido»,
«terror pâ nico», «pavor». Sei que semelhantes repetiçõ es sã o desagradá veis e que um bom
estilo literá rio exige, antes de mais nada, uma grande variedade de expressõ es;
mas como variar até ao infinito a descriçã o do que é precisamente uniforme? Talvez outros
o conseguissem!
Eu nã o tenho a certeza de ser capaz. Estou por de mais fatigado, por de mais oprimido,
desesperado, por vezes também
demasiado furioso, para poder gastar uma parte do meu tempo e das minhas forças em
busca de subtilezas vã s e de ligeiras diferenças. Aquilo que tenho a dizer é tã o pouco
literá rio! Mas agora, no fim de tantos anos, essas recordaçõ es obcecam-me, por vezes, a tal
ponto que
me sinto com o direito de vos pedir que suprais a carência do meu vocabulá rio. Se
compreendeis simplesmente o que
eu quis dizer, pouco me importa que a minha pobreza verbal vos faça, de tempos a tempos,
abanar a cabeça, murmurando:
«Ele podia muito bem explicar isto de outra maneira»...
Prosseguindo, nó s, soldados impecá veis, imaculados, sentíamo-nos permanentemente uns
bichos perseguidos.

sabíamos que quanto havia de mau nos cairia em cima.
O mais paradoxal era talvez termos a certeza de que, se o sargento-chefe nos nã o
apanhasse em nenhuma falta, se entregaria a uma fú ria louca e faria pagar a sua frustraçã o
e a sua raiva - e por que preço! - a qualquer de nó s

O REGIMENTO DA MORTE 49
daquele que fosse castigado sem razã o! Pagaria dez vezes mais caro do que se estivesse
realmente culpado.
nã o era fá cil tomar a atitude devida em tal situaçã o.
.- Primeira fila, um passo em frente... MARCHE! Segunda fila, um passo atrá s... MARCHE!
Um... DOIS!
Durante uns minutos infindá veis o sargento-chefe observa as duas filas que acabavam de se
apartar. Quem mexer um cabelo é logo castigado por desobediência.
Mas
nó s havíamo-nos habituado a ficar transformados em pedaços
de pau e a permanecer nesse estado meia hora seguida sempre que necessá rio. É uma
espécie de estado de transe ou de catalepsia, que, para o soldado que for capaz de o atingir,
vale muitas vezes o seu peso em ouro.
Em sentido, tesos como cavacas, literalmente transformados
em pedaços de pau!
O sargento-chefe urra:
--Prontos para a inspecçã o?
Toda a companhia responde em coro: - Sim, Herr Hauptfeldwebel.
Continua:
- Ninguém se esqueceu de limpar nada?
Coro da companhia:
- Nã o, Herr Hauptfeldwebel.
Fuzila-nos a todos com um olhar feroz. Agora é que ele nos apanhou. É este o seu momento
preferido...
- Sério? Se assim for, será a primeira vez na histó ria deste batalhã o! É o que vamos ver...
Lentamente, aproxima-se do primeiro bocado de pau, anda à roda dele, uma vez, duas
vezes... Caminhar à volta de um adversá rio sem pronunciar uma sílaba constitui uma forma
muito eficaz de «guerra de nervos». A nuca arde e as palmas das mã os humedecem-se, os
pensamentos confundem-se
e falta o ar, parecendo-nos até que cheiramos mal!
- Sim, sim! É o que vamos ver! - repete o sargento-chefe atrá s das costas do terceiro homem
da primeira fila.
Reina o silêncio enquanto ele inspecciona o quarto e o quinto. Depois vem o berro: - 3.ª
companhia... SeeeenTIDO!
R. M. - 4
50 SVEN HASSEL
Seguido da avalancha habitual de palavreado sujo.., Acerca do nosso bem-amado
Hauptfeldwebel costumá vamos
nó s dizer que ele nã o podia vomitar merda sem vomitar primeiro merda. Talvez nã o fosse
uma frase muito bem achada, mas nó s nã o éramos exigentes nesse capítulo e ela
descrevia bastante bem aquele pequeno-burguês sá dico, apodrecido até à medula, a quem
fora dado gozar um pouco da volú pia do poder.
- Que trampa de companhia é esta? Vocês passaram o domingo a rebolar-se na merda?
Espojados no esterco, aí é que estã o bem os porcos da vossa laia! Observei cinco homens!
Parecem mesmo cinco alcoviteiros filhos de p...
sifilíticas!
Aquilo nã o era uma boca humana, mas sim um cano de esgoto, uma enorme fossa!
Comprazia-se a falar da «doença francesa», mas ele pró prio sofria da doença prussiana
no seu grau mais adiantado, aquela sede lamentá vel de humilhar o pró ximo. Trata-se de
uma verdadeira doença,
nã o apenas circunscrita aos batalhõ es disciplinares.
Contaminou
todo o exército alemã o, tal como uma epidemia de furunculose. E em cada furú nculo
podemos ter a certeza de
encontrar um sargento, um daqueles tipos que sã o qualquer
coisa, nã o sendo praticamente nada.
O castigo usual, naqueles casos, consiste em três horas de exercícios especiais, cujo prato
de resistência é um longo
fosso cheio até meia altura de uma lama nojenta em plena fermentaçã o, coberta, à
superfície, de uma espuma viscosa, amarelada. Cada vez que a ordem «rastejar» nos envia
para o fundo dessa vala é preciso esfregar os olhos até quase arrancar as pá lpebras para
recuperar o uso da vista. Chega depois a hora do almoço. Engolimos a raçã o tal como
estamos. Temos uma hora para nos apresentar, limpos e reluzentes, à chamada da tarde.
O processo que vos recomendo é simples: basta a gente meter-se debaixo do chuveiro
fardado e equipado. Em seguida
é necessá rio limpar a. espingarda e as outras peças do equipamento, secá -las
cuidadosamente com um trapo enxuto e lubrificá -las. É preciso prestar uma atençã o
especial
ao interior do cano...

O REGIMENTO DA MORTE 51
Estas operaçõ es de desmontagem, de limpeza e de lu-brificaçã o só entram uma vez por
semana no emprego do tempo de um soldado «normal». Duas vezes, talvez, em caso de
exercício que suje particularmente. Nó s fazíamo-las, pelo menos, duas vezes por dia.
À chamada da tarde, claro, apresentá vamo-nos encharcados
até aos ossos. Mas nessa altura tinham a bondade de ; nã o exigir que fô ssemos passados a
ferro. A limpeza bastava...
Só havia uma coisa que temíamos tanto como esta horrível inspecçã o da segunda-feira: era
a revista da camarata, todas as noites, à s 22 horas. O que o sargento de serviço podia
inventar para mandar fazer a homens semimortos i como nó s tocava as raias do absurdo...
Antes da chegada do sargento, cada homem devia deitar-se na cama e, naturalmente, na
posiçã o regulamentar, isto é, de costas, os braços ao longo do corpo e os pés descalços
para serem inspeccionados. Incumbia ao chefe da camarata velar por que nenhuma
partícula de poeira subsistisse
nos cantos mais recô nditos da camarata; por que todos os pés estivessem tã o limpos como
os de um recém-nascido;
por que todas as coisas se achassem arrumadas e dobradas estritamente de acordo com o
regulamento.
No início de cada inspecçã o o chefe da camarata era obrigado a recitar a seguinte fó rmula: -
Herr Unteroffizier, o chefe de camarata Brand, presente à chamada, declara que tudo está
em ordem na camarata 26, efectivo doze homens, dos quais onze se encontram nas suas
tarimbas. A sala foi convenientemente arejada e limpa e nã o há nada a assinalar.
O sargento de serviço nã o lhe prestava, -evidentemente, nenhuma atençã o e começava a
coscuvilhar por todos os cantos. E pobre do chefe de camarata se ele descobrisse o
mais leve grã o de poeira ou uma caixa de embalagem mal fechada, ou a sombra de uma
nó doa na sola de um pé!
” Um sargento chamado Geerner - que, segundo julgo, estaria muito melhor numa célula
almofadada - uivava
52 SVEN HASSEL
literalmente como os cã es. Tínhamos a impressã o, ao ouvi-lo,
de que ia desatar aos soluços, e, de facto, nã o era raro vê-lo derramar lá grimas de raiva.
Quando estava de serviço, políamos, lavá vamos, arrumá vamos mais freneticamente
ainda do que de costume...
Recordo-me de uma noite triste em que Schnitzius era chefe de camarata. O desgraçado
costumava ser o bode expiató rio por excelência; bom rapaz até à ponta dos cabelos, mas
tã o desesperadamente pobre de espírito que
servia de vítima a todos os superiores, desde os Stabsfeldwebel
e passando por todos os degraus da escala.
Schnitzius achava-se tã o nervoso como todos nó s, deitados
nas tarimbas, a pensar no que poderíamos haver esquecido
desta vez. Ouvíamos Geerner numa das camaratas vizinhas. Dali tínhamos a impressã o
exacta de que ele estava a reduzir a madeira dos armá rios e das barras das camas a paus de
fó sforo. Tudo isto acompanhado de pragas,
de berros, de soluços, de «cã es tinhosos», de «porcos da merda», etc. Se nã o estivéssemos já
todos lívidos, teríamos
ficado pá lidos de susto. Geerner estava num dos seus dias grandes. Devia encontrar-se ao
rubro quando chegasse
à 26. Mais valia correr o risco de abandonar os catres e percorrer toda a camarata a pente
fino. E foi isso o que fizemos, sem encontrar vestígios de poeira...
Todos haviam regressado à cama quando a porta veio bater violentamente contra a parede.
Oh!, se ao menos nessa noite fosse outro o chefe de camarata em lugar de Schnitzius,
alguém mais expedito!
Mas Schnitzius ficara para ali, sem dizer nada, pá lido como um morto, o cérebro em curto-
circuito. Só era capaz de contemplar Geerner com olhos espantados. Geerner chegou-se
ao pé dele de um pulo e rugiu, com a cara a uma distâ ncia de 5 centímetros da de
Schnitzius: - Entã o essa informaçã o? Fico à espera dela a noite inteira ?
Mais morto do que vivo, Schnitzius repetiu a fó rmula com a voz a tremer.
- Está tudo em ordem? -berrou Geerner Entã o agora dã o-se informaçõ es falsas?

O REGIMENTO DA MORTE 53
.- Nã o, Herr Unteroffizier - balbuciou Schnitzius, girando lentamente sobre si pró prio para
ficar sempre de frente para o sargento.
Durante alguns instantes reinou na camarata um silêncio de morte. Só os nossos olhos
buliam. Os nossos olhos que
seguiam Geerner na sua caça à poeira, de uma ponta à outra da sala. Ergueu, um por um, os
pés da mesa central e passou-lhes a mã o por baixo. Nada. Examinou as solas do
nosso calçado. Impecá veis. As janelas e o fio da lâ mpada.
A
mesma coisa. Inspeccionou-nos os pés com a atençã o apaixonada
de quem cairia morto se nã o encontrasse nada a censurar.
Finalmente, passeou em torno um olhar hostil e ensombrado.
Parecia, na verdade, que teria de se resignar e deixar-nos em paz por esta vez. Apresentava
a expressã o de um tipo cuja amante nã o compareceu à entrevista e que
tem de ir para a cama sozinho, com o seu desejo frustrado e uma dolorosa decepçã o.
Ia para fechar a porta atrá s de si quando mudou bruscamente
de ideias:
- Tudo está entã o em ordem, hem? Vamos lá a ver isso...
Numa corrida sú bita de animal furioso, aproximou-se da nossa cafeteira, um recipiente
enorme de alumínio com a capacidade de 15 litros. Descobrira já , com grande pesar,
que ela se encontrava escrupulosamente areada e cheia de
á gua limpa, segundo o regulamento. Mas cada um percebeu
imediatamente -- e todos os coraçõ es pararam de bater porque
Geerner descobrira qualquer coisa.
Espreitou obliquamente a superfície imó vel da á gua.
Se bem que a cafeteira tivesse sido cheia pouco antes da chegada de Geerner, alguns grã os
de poeira haviam inevitavelmente
caído ali.
O urro de Geerner teve qualquer coisa de fantá stico: - Chamas a isto á gua limpa? Quem foi o
porco que encheu esta cafeteira com líquido da retrete? Vem cá , espé-
cie de nitreira ambulante!
Subiu para um banco e Schnitzius teve de lhe entregar a cafeteira.
54 SVEN HASSEL
- SeeeenTIDO! Deita a cabeça para trá s e abre as goelas!
Lentamente, todo o conteú do da cafeteira deslizou para a boca aberta de Schnitzius, meio
sufocado. Depois disto, o sargento, enraivecido, atirou a cafeteira contra a parede, saiu da
sala a correr e foi fazer uma barulheira desgraçada
na sala dos chuveiros, transportando sucessivamente meia dú zia de baldes de á gua que
atirava para o soalho da
camarata. Como só dispú nhamos de duas serapilheiras todas esfarrapadas para enxugar a
inundaçã o, o serviço levou-nos um certo tempo.
O sargento repetiu a proeza quatro vezes, até se cansar.
Por fim, foi deitar-se, já calmo, deixando-nos em paz.
Os antigos Romanos chamavam furor germanicus ao encarniçamento com que as tribos do
Norte dos Alpes se lhe opunham em combate. Talvez seja uma ligeira consolaçã o
para os Romanos e para os outros inimigos histó ricos da raça germâ nica o saberem que os
Alemã es, entre si, usam a mesma demência com que tratam os vizinhos!
Furor germanicus, a doença prussiana.
Geerner nã o passava de um triste sargento, uma ruína com o cérebro desarranjado, que
tinha de se contentar com
as suas quotidianas escaramuças contra as poeiras.
Que o pó em que ele, enfim, também se transformou repouse finalmente em paz.
O nosso treino terminou em apoteose com um exercício de sete dias e sete noites em claro,
que teve lugar num vastíssimo campo de manobras chamado Sennelager.
Haviam
construído ali aldeias completas, com pontes, encruzilhadas,
carris. Nada faltava, a nã o serem os habitantes, e dispú nhamos de todos os meios para
mostrar os nossos talentos: charcos, ribeiros, silvedos e pontes pênseis lançadas
por cima de verdadeiros precipícios.
Tudo isto pode parecer talvez um pouco româ ntico, estilo brincar aos Peles-Vermelhas em
grande escala, mas
este jogo custou a vida de um dos nossos homens, que caiu

O REGIMENTO DA MORTE 55
do alto de uma dessas pontes mal seguras e quebrou a espinha.
Outra brincadeira geralmente muito apreciada consistia em cavar buracos com a
profundidade apenas necessá ria para nos escondermos e depois enrodilharmo-nos ali,
enquanto
nos passavam por cima do canastro carros pesados.
A uma sensaçã o forte seguia-se logo outra, e assim tínhamos de nos lançar de borco
debaixo dos mesmos tanques, sentindo o seu fundo metá lico a roçar-nos pelas ná degas,
enquanto as lagartas desfilavam com grande estrépito
à direita e à esquerda.
Queriam-nos tornar rijos com o convívio diá rio dos tanques.
Vivíamos num terror quase permanente, o que, no fim de contas, é muito natural, pois o
militar alemã o foi sempre educado com a ajuda do medo, habituado a reagir como uma
má quina sob o aguilhã o do terror, e nã o a combater
com valentia por se sentir inflamado por um ideal nobre a que se sacrificaria alegremente
se o interesse do seu povo assim o exigisse. Talvez que esta inferioridade moral seja
precisamente o traço característico da mentalidade
prussiana e a moléstia cró nica do povo alemã o.
Passados dois dias, a companhia foi desmembrada em pequenos grupos de cinco a quinze
homens, a quem «ofereceram»
novos equipamentos. Recebi, com alguns outros, a farda e a boina preta das tropas
blindadas. No dia seguinte
um Feldwebel conduziu-nos à caserna de Bielefeld, onde fomos imediatamente
incorporados numa companhia
que estava prestes a seguir para a frente e metidos a toda a pressa num comboio militar.

«Como se esta companhia nã o estivesse já saturada de criminosos da vossa espécie! É


desolador ver isto... Mas que eu nunca vos apanhe a cometer a menor infracçã o,
compreendem? Que eu seja enforcado se vos nã o mando
imediatamente para o degredo, onde deveriam ao menos
ter tido a decência de morrer! Na prisã o é que vocês estavam
todos bem...»
Assim me invectivou, para me dar as boas-vindas, o comandante da 5.ª companhia, o gordo
capitã o Meier, o algoz dos recrutas, o terror dos taratas. Mas eu já vinha habituado à quela
espécie de discursos.
Incorporaram-me no 2.º esquadrã o, sob as ordens do tenente von Barring. E ali começaram
as coisas a que eu nã o estava habituado...
O NOSSO PRIMEIRO ENCONTRO
Von Barring estendeu-me a mã o, aprisionou a minha num aperto enérgico, amigá vel... Eu
nem queria acreditar.
Eis uma das coisas que um oficial do exército prussiano nã o pode positivamente fazer; mas
ele fê-la, e no fim disseme:
- Bem-vindo sejas, meu rapaz, bem-vindo sejas à 5.a companhia. Mandaram-te para um
regimento que é uma porcaria, mas aqui todos nos encolhemos e faz-se o que se
pode. Procura o camiã o n.º 24 e apresenta-te ao Unteroffizier
Beier, é ele o chefe da 1.ª secçã o...
Depois sorriu; o sorriso aberto, sincero, amigá vel, de um jovem oficial sem má vontade,
bom rapaz.
Fiquei o que se diz sem fala!
Encontrei o camiã o n.º 24 e alguém me indicou o Unteroffizier Beier, um homenzinho dos
seus 35 anos, en-O REGIMENTO DA MORTE 57
troncado, que jogava as cartas com três outros tipos sentados em volta de um barril. Parei à
distâ ncia regulamentar de três passos, bati os calcanhares com violência e comecei numa
voz tonitruante: -Herr Unteroffizier, o soldado Sven...
Nã o pude continuar. Dois dos outros tipos tinham deixado ao mesmo tempo os baldes
voltados ao contrá rio sobre os quais se sentavam e haviam-se posto em sentido, tesos como
paus de vassoura, os dedos a tocar as costuras das calças, enquanto o sargento e o quarto
parceiro se deixavam cair de pernas para o ar e as cartas voavam por todos os lados como
folhas secas levadas por um vendaval de Outono. Durante um instante todos me olharam
fixamente.
Depois, um Obergefreiter, enorme e ruivo, exclamou: - Caramba, sempre nos pregaste um
destes cagaços, pá ! Até julgá mos que eras o nosso Adolfo nacional disfarçado!
Que mosca te mordeu, pobre idiota, para vires assim interromper as inocentes diversõ es de
uns pacíficos burgueses como nó s? Anda, diz!...
- Soldado Sven Hassel, presente, Herr Obergefreiter.
Ordem do tenente von Barring para me apresentar ao chefe da 1.ª secçã o, Unteroffizier
Beier...
Beier e o quarto homem ergueram-se e o quarteto contemplou-me com olhos cheios de
horror. Bastaria mais um gesto apenas da minha parte, diziam as suas expressõ es
aterrorizadas, para todos largarem a fugir aos berros. Depois, bruscamente, soou uma
gargalhada geral, homérica.
- Vocês ouviram! Herr Obergefreiter, ah, ah, ah! Herr Unteroffizier Beier, ah, ah, ah!...
O Obergefreiter ruivo inclinou-se profundamente diante de Beier e continuou:
- Sua Excelência! Sua Graça, ornada de todas as virtudes!
Sua cativante magnificência, Herr Unteroffizier Beier, imploro a vossa benevolência...
Eu olhava-os estupidamente, ora um, ora outro, incapaz de compreender onde estava a
piada. Quando conseguiram reprimir o acesso de hilaridade, o Unteroffizier perguntou-me
donde é que eu saíra e a minha resposta conquistou-me imediatamente todas as simpatias.
58 SVEN HASSEL
- Nã o digas mais, meu velho! -replicou o ruivo.--
O batalhã o disciplinar de Hanô ver! Agora percebemos tudo!
Na primeira impressã o, pela maneira como batias os calcanhares,
julgá mos que estavas a chuchar com a tropa; mas agora acho que é um verdadeiro milagre
teres ainda calcanhares para bater. Enfim, faz de conta que está s em tua casa!
Estas palavras marcaram a minha entrada na 1.ª secçã o; nã o passara ainda uma hora e já
íamos a caminho de Friburgo,
onde devíamos ser agrupados em unidades de combate, que seriam em seguida expedidas
para os quatro cantos da Europa em fú ria, a fim de serem sujeitas a um treino
complementar. Durante o trajecto, enquanto éramos sacudidos
numa autêntica chocolateira, os meus quatro companheiros
apresentaram-se e foi com eles que eu vim a fazer a guerra.
Wil ie Beier era dez anos mais velho do que nó s e, por essa razã o, chamá vamos-lhe o Velho.
Era casado e pai de
família: tinha dois filhos. Natural de Berlim e marceneiro.
As suas opiniõ es políticas tinham-lhe valido dezoito meses num campo de concentraçã o,
findos os quais foi «indultado»
e expedido para um batalhã o disciplinar.
- E nã o sairei mais daqui - concluía ele sorrindo - até que um destes dias um balá sio venha
ter comigo.
O Velho era um companheiro formidá vel. Sempre calmo e pacífico. Nem uma só vez, no
decorrer daqueles pavorosos
quatro anos que passá mos juntos, o vi perder as estribeiras.
Era um destes patuscos que espalham à sua volta a calma,
aquela calma de que tanto necessitá vamos nos momentos difíceis. Embora nos separassem
dele apenas uns escassos
dez anos, assumia para connosco uma atitude quase paternal
e muitas foram as ocasiõ es em que agradeci à sorte ter-me colocado no seu carro.
Joseph Porta, Obergefreiter, era um destes aldrabõ es que
nada no mundo impressionava. Ligava tanto à guerra como
à primeira camisa que vestira, e creio sinceramente que Deus ou o Diabo jamais ousaram
atravessar-se no seu caminho
com medo de serem metidos a ridículo. Todos os oficiais da companhia o temiam e fugiam
dele como da peste, pois Porta era capaz de lhes fazer perder para sempre

O REGIMENTO DA MORTE 59
todo o prestígio, bastando para isso fitá -los inocentemente nos olhos.
A todos os que se aproximavam dele nunca se esquecia de fazer notar que era vermelho.
Efectivamente, estivera doze meses em Oranienbourg por actividades comunistas,
actividades estas que se haviam limitado, em 1932, a ajudar
alguns companheiros a pendurar duas ou três bandeiras social-democrá ticas na torre da
Igreja de S. Miguel. Esta brincadeira custara-lhe quinze dias de prisã o, de resto
prontamente
esquecidos, até que, em 1938, a Gestapo o prendera sem mais nem menos, fazendo tudo
para o convencer de que
ele conhecia o misterioso esconderijo do enorme mas sempre
invisível Wol weber, chefe dos comunistas. Maltratado e reduzido à fome durante um par
de meses, levaram-no em seguida a julgamento, e como ú nica prova apresentaram uma
gigantesca ampliaçã o fotográ fica que representava Porta
com a sua bandeira vermelha a encaminhar-se para a Igreja
de S. Miguel. Sentença: doze anos de trabalhos forçados por actividades comunistas e
profanaçã o da casa de Deus.
Pouco tempo antes da abertura das hostilidades foi, assim como muitos outros
prisioneiros, indultado da maneira habitual,
quer dizer, atirado para um batalhã o disciplinar.
Os soldados parecem-se com o dinheiro neste sentido: pouco
importa a sua proveniência...
Nascido em Berlim, Porta possuía no mais alto grau o humor equívoco, a língua afiada e o à -
vontade fantá stico do verdadeiro berlinense. Bastava-lhe abrir a boca para que
todos se perdessem de riso, sobretudo quando imitava a pronú ncia arrastada e a insolência
arrogante de um criado de fidalgo camponês prussiano.
Possuía também um talento natural e autêntico para a mú sica; tocava igualmente bem o
berimbau e o ó rgã o de igreja e trazia sempre consigo a flauta, da qual tirava melodias
maravilhosas, sempre com os olhitos manhosos, negros como botõ es, fixos na sua frente e a
trunfa ruiva sacudida pelo vento como uma seara sob a tempestade. Quer interpretasse
uma toada popular, quer improvisasse sobre temas clá ssicos, as notas saíam-lhe do
instrumento saltitantes como
seres vivos. Aos olhos de Porta uma partitura musical mostrava-se
tã o incompreensível como um texto hebreu; bastava,
60 SVEN HASSEL
porém, que o Velho lhe assobiasse a melodia, e logo ele a executava tal como se sempre a
tivesse conhecido, isto é,
tal como se a tivesse pessoalmente composto.
Possuía, enfim, o dom inato de contar histó rias. Narrada por ele, a mais rocambolesca
aventura podia durar vá rios dias, embora meticulosamente inventada de uma ponta
à outra.
Como todo o bom berlinense, Porta era capaz de farejar a quiló metros de distâ ncia
qualquer espécie de paparoca, assim como conhecia todas as artimanhas para se apropriar
dela, e, sempre que lhe era dado escolher, nã o falhava a melhor. Foi talvez um tipo como
este Porta que permitiu aos Hebreus sobreviverem na travessia do deserto!
Afirmava que tinha muita sorte com as mulheres, mas quem o visse de perto nã o podia
deixar de duvidar. Era alto como um escadote e magro na mesma proporçã o. O
seu
pescoço de cegonha saía-lhe teso da gola da farda e, enquanto
falava, a maçã -de-adã o causava-nos vertigens com os movimentos que executava
continuamente. O seu rosto triangular
era um crivo de sardas. Tinha uns olhinhos de porco, esverdeados, que pareciam crivar de
flechas maliciosas os
seus interlocutores. Os cabelos, de um ruivo-ardente, mantinham-se-lhe
permanentemente eriçados como o colmo de um telhado. E, sabe-se lá porquê, o nariz
constituía para ele
o principal motivo de orgulho. Quando abria a boca, deixava
ver um dente solitá rio no meio da maxila superior.
Ele afirmava possuir mais outros dois, mas, como se tratava
de queixais, nã o se podiam ver. Constituía um mistério o saber-se onde a secçã o de
equipamento fora descobrir botas
que lhe servissem. Devia calçar, pelo menos, 47!
Plutã o, o terceiro membro do quarteto, era uma montanha de mú sculos. Tinha a patente de
Stabsgefreiter e chamava-se,
na realidade, Gustav Eicken. No caso deste nã o fora a política, mas sim umas honestas
infracçõ es ao direito
comum que o haviam conduzido por três vezes aos campos
de concentraçã o. Estivador em Hamburgo, fora levado por alguns colegas a fazer mã o baixa
nos armazéns e na carga
dos navios. Estas actividades mereceram a todos seis meses
de prisã o.

O REGIMENTO DA MORTE 61
Nã o haviam decorrido ainda vinte e quatro horas depois de ter sido solto, quando a polícia
o foi de novo buscar, desta vez tratava-se do irmã o, que falsificara um passaporte
e a quem, por esse motivo, cortaram a cabeça. Plutã o voltou
a cumprir nove meses de cadeia sem nunca haver sido interrogado.
Um belo dia puseram-no na rua, depois de o haverem sovado com selvajaria, mas sempre
sem lhe darem
a mínima explicaçã o.
Três meses mais tarde prenderam-no de novo. Agora por roubo de um camiã o de farinha.
Plutã o nã o sabia absolutamente
nada acerca desse furto, mas mesmo assim levou nova tareia, foi acariado com um tipo que
jurou tê-lo como cú mplice no «negó cio da farinha» e ouviu-se condenar, no fim de um
julgamento de doze minutos, a seis anos de trabalhos
forçados. Passou dois num campo de internamento, foi depois transferido, como toda a
gente, para um batalhã o
disciplinar e acabou por vir cair, juntamente connosco, no 271.º regimento disciplinar.
Quem quisesse vê-lo com um autêntico ataque de fú ria bastava pronunciar uma frase onde
se falasse de «camiã o» e de «farinha».
O ú ltimo dos quatro, Anton Steyer, Obergefreiter, nã o era conhecido senã o por
Polegarzinho. Media apenas 1,50
metros e viera de Coló nia, onde trabalhava numa fá brica de perfumes. Uma altercaçã o
violenta numa cervejaria conduzira-o
direitinho ao campo de concentraçã o com dois dos companheiros. Um caíra já na Poló nia. O
outro fora dado como desertor, recapturado e executado.
O nosso comboio levou seis dias para chegar ao destino, isto é, a Friburgo, a pitoresca
cidade do Sul da Alemanha.
Tínhamos conhecimento de que nã o íamos ficar ali por muito tempo. O destino de um
regimento disciplinar nã o é na retaguarda, mas sempre na primeira linha, onde se
escrevem as pá ginas mais sangrentas da histó ria dos povos.
Corria o boato de que íamos ser enviados para a Líbia, via Itá lia, mas, na realidade, ninguém
sabia nada ao certo.
O primeiro dia gastou-se em formalidades de classificaçã o,
entrega de guias de marcha e outros pormenores.
Tivemos
tempo até de passar alguns momentos agradá veis na taberna
Zum Goldenen Hirsch, cujo jovial patrã o se chamava, evi-
62 SVEN HASSEL
dentemente, Schultze e, nã o menos evidentemente, acontecia
ser um velho amigo do nosso Joseph Porta.
O vinho era abundante, as raparigas bonitas e, se as nossas vozes nã o soavam em completa
harmonia, tinham, pelo menos, o mérito de serem fortes.
Havia muito tempo que eu nã o tomava parte neste género de patuscadas e tantas coisas
horríveis me pesavam ainda em cima dos ombros que me custava um esforço imenso
enterrar o passado ou, mais exactamente, esquecê-lo,
quando se me oferecia, como naquela noite, a ocasiã o de o fazer. Se, finalmente, o consegui
entã o e outras vezes depois, foi graças a Porta, ao Velho, a Plutã o e ao Polegarzinho.
Todos eles se haviam visto nos mesmos transes, estavam agora endurecidos e, quando
havia vinhaça, raparigas dó ceis e cançõ es no programa, nã o ligavam meia ao passado
nem ao futuro.

A princípio o ferroviá rio recusou-se. Um bom nacional-socialista nã o podia decentemente


aceitar fazer recados a antigos engaiolados! Mas, quando Porta lhe murmurou ao
ouvido algumas palavras relativas a uma garrafa de rum, o ferroviá rio esqueceu por um
instante a sua qualidade de
ser superior, correu a casa de Schultze, o nosso gordo taberneiro,
e voltou muito depressa com um volumoso embrulho, que nos entregou imediatamente.
- Tu és membro do partido? - perguntou Porta (Joseph) com uma mistura inefá vel de
inocência e jovialidade.
O ferroviá rio mostrou o enorme emblema do partido nazi que desempenhava as funçõ es de
ornamento no bolso
da sua farda.
- Pois claro! Porque perguntas isso?
Os olhos verdes de Porta encarquilharam-se: - Vou-te explicar, meu velho. Se és membro do
partido, obedeces à s ordens do Fü hrer, que coloca o bem comum
antes do individual. Por conseguinte, vais dizer-nos mais ou menos isto: «Bravo guerreiro
do 27.º ferro-e-fogo! A fim
de te ajudar a combater melhor pelo Fü hrer e pelo povo, ofereço-te, como prova de
gratidã o, esta garrafa de rum que o senhor Joseph Porta, Obergefreiter pela graça de Deus,
tinha, na sua bondade infinita, resolvido entregar à minha miserá vel pessoa.» Nã o era isto
exactamente o que
estavas a preparar-te para nos dizer? Estas palavras nã o estavam mesmo a sair da ponta da
tua língua? Meu caro amigo, agradecemos-te do fundo do coraçã o e, dito isto, podes retirar-
te...
A mã o de Joseph Porta descreveu um magnífico molinete.
Depois ergueu o boné, gritando: - Grö ss Gott!
E, logo que o infeliz ferroviá rio nazi se afastou ran-gendo os dentes, abrimos o embrulho.
64 SVEN HASSEL
Trazia lá dentro cinco garrafas de vinho, um enorme bocado de carne de porco assada, dois
frangos tostados, mais...
CURIOSIDADES DOS BALCÃ S
- Mas nó s devemos lembrar-nos que vamos partir para a guerra - disse ele com a voz a
tremer - e que a guerra pode à s vezes ser uma coisa muito perigosa. Segundo ouvi
dizer, tem mesmo havido quem lá fique. Suponhamos que uma bala perdida nos rapa a
todos. Ou suponhamos...
A voz de Porta nã o era mais do que um murmú rio horrorizado.
--...suponhamos que ninguém será atingido, mas que ela vai partir estas três garrafas
quando tiverem ainda alguma coisa dentro! É a isto que eu chamo os horrores da
guerra!
Apesar destas terríveis perspectivas, guardá mos uma parte para depois.
E nã o tardou que o comboio se pusesse em marcha.
-Pronto, cá vamos, cá vamos!
Só Deus sabe por que motivo sentíamos necessidade de berrar daquela maneira, pois a
partida do comboio era um facto evidente, tanto para nó s, que íamos instalados no furgã o,
como para todos aqueles que ficavam em terra. As grandes portas corrediças estavam
abertas de ambos os lados
e nó s pendurá vamo-nos em cachos, agarrados uns aos outros,
a ver qual gritava mais. Tudo servia para dar vivas sonoros:
um gato, uma vaca ou, com mais razã o, uma mulher!
- Vocês nã o saberã o dizer-me porquê tanto berreiro?
- inquiriu de repente o Velho. - Estaremos todos assim tã o contentes por irmos para a
matança?
Porta interrompeu-se no meio de um viva e reflectiu profundamente.
--Porquê tanto berreiro? Pois bem, minha cabecinha de libélula, nã o to sei dizer ao certo.
Berramos, sim, mas porquê?

O REGIMENTO DA MORTE 65
Consultou-nos a todos com os olhos.
- Eu creio que sei - disse o Polegarzinho.
- Entã o diz lá !
- Gritamos e ’damos vivas porque nunca se ouviu falar de uma guerra onde se nã o berrasse
nem se dessem vivas!
Polegarzinho olhou-nos solenemente e depois acrescentou,
numa sú bita inspiraçã o:
- E também porque vamos a caminho de uma nobre missã o. Vamos ajudar o nosso querido
Fü hrer, o nosso grande Adolfo, a alcançar uma derrota magnífica, para que esta guerra
porca acabe o mais depressa possível e para que a maravilhosa derrocada deste regime
apodrecido se torne numa gloriosa realidade!
Porta ergueu-o do chã o, beijou-o nas duas faces, poisou-o de novo, esticou o pescoço de
cegonha e lançou um rugido
de puro jú bilo, que o Fü hrer provavelmente ouviu, mas cujo significado nã o compreendeu.
Nã o estou em posiçã o de fornecer um parecer desinteressado,
mas, do ponto de vista do simples magala, o famoso sentido de organizaçã o germâ nico
parece-me estar
muito aquém do que se apregoava, pelo menos no que respeita
ao transporte de tropas. A impressã o do soldado acerca dos famosos planos do Estado-
Maior General é que, quando
é preciso levá -lo de um ponto para o outro, o mais importante
é transportá -lo em ziguezague. Conduzir um simples soldado do ponto A ao ponto B em
linha recta e sem paragens
prolongadas no meio dos campos ou nas vias de resguardo
das pequenas estaçõ es, numa palavra, sem a menor perda de tempo e de combustível,
equivaleria a revolucionar
a arte da guerra, realizando todos aqueles belos planos previstos sem a menor barafunda.
Ora é um facto bem conhecido
de todos os soldados rasos do mundo que nã o se faz uma guerra sem confusã o. A confusã o
da guerra e o desperdício titâ nico de vidas humanas, de alimentos, de material e de
inteligência mal empregada, que se subentende
por expressõ es semelhantes a «avanço efectuado conforme
o plano», para nã o falar já em «reconstituiçõ es da frente» e em «defesa elá stica», têm
qualquer coisa de tã o desmedidamente trá gico que mal o podemos imaginar.
Parece-me,
no entanto, que existe uma explicaçã o para a bara-R. M. 5
66 SVEN HASSEL
funda incoercível da guerra. Deve-se talvez, entre outras causas, ao facto de que, sem
confusã o, as responsabilidades
seriam muito mais fá ceis de determinar. Se admitirmos que
a confusã o torna praticamente impossível a atribuiçã o de responsabilidades, esta
explicaçã o torna-se muitíssimo plausível:
se guerra = confusã o
e confusã o = irresponsabilidade entã o guerra = irresponsabilidade E eis aqui uma equaçã o
à qual voltaremos muitas vezes a referir-nos.
Atravessá mos assim a fronteira sérvia, onde nos informaram
de que, até nova ordem éramos o 18.º batalhã o da 12.ª divisã o Panzer e que nos iam
mandar para algures, nos Balcã s, a fim de aprendermos o manejo de um novo tanque, apó s
o que nos enviariam para a frente. Logo que soube a notícia, Porta exclamou com um
sorriso está tico: - Pelo caminho que as coisas levam, isso nã o acontecerá nestes trinta e
quatro anos mais chegados. A nossa felicidade está assegurada. Vamos todos ser felizes
como reis e tornar-nos rapidamente milioná rios. E vou explicar-vos porquê. Nos Balcã s os
negó cios estã o mais florescentes do que em qualquer outra parte da Europa, e isto porque
ali se pratica, no plano comercial, o método directo: eu roubo-te, tu também me roubas, e
ficamos quites! E que é um soldado, antes de tudo, senã o um homem de negó cios?
Sejamos pois bons soldados, recordemos o que aprendemos
e pratiquemo-lo em grande escala. Quando abandonar estes adorá veis Balcã s, irei
transformado num jovem rico, satisfeito e bem equipado!
De Zagreb até Bania-Luka e de Bania-Luka a Serajevo, seguido de um brusco mergulho até
Brod, ao norte, e de novo para leste, atravessando a fronteira hú ngara... Assim prosseguia
na sua viagem o 18.º batalhã o, executando feitos
memorá veis, se bem que duma natureza ligeiramente diversa
da dos que sã o publicados todos os dias nos comunicados
ou se projectam nos écrans dos cinemas, na rubrica das actualidades, para gozo de uma
assistência entusiasmada

O REGIMENTO DA MORTE 67
por mú sicas extremamente marciais. Nã o (diga-se de passagem),
o 18.º batalhã o nunca foi nem filmado, nem sequer referido em qualquer comunicado. Nã o
era mais do que um destes batalhõ es incolores, anó nimos, dizimados e reformados,
dizimados e reformados, dizimados e reformados, sem tréguas nem descanso, por uma
causa que odiá vamos,
embora nã o tivéssemos o dom de exprimir os nossos sentimentos
com a concisã o de Porta, a quem nunca faltavam comentá rios pessoais para acrescentar aos
inverosímeis comentá rios
dos comentadores da rá dio.
Uma vez, na pequena cidade de Melykut, a nordeste de Pecs, íamos deixando Porta em
terra. Subiu já com o comboio
em andamento, no ú ltimo instante, com o auxílio dos companheiros, e, passados dois
minutos, ao desfilarmos diante de uns casebres dos arredores, vimos três ciganas a
agitarem freneticamente os braços em sinal de despedida.
Porta retribuiu-lhes o adeus, vociferando: --Adeus, garotas. Se vocês tiverem um bebé e que
seja um rapaz, ponham-lhe o nome de Joseph, como o pai.
Mas,
pelo amor de Deus, nã o façam dele um soldado; antes um chulo, que é menos degradante!
Em seguida Porta instalou-se confortavelmente num canto, tirou da algibeira um baralho
de cartas incrivelmente ensebadas e convidou-nos logo para a inevitá vel partida de
vinte e um. Jogá vamos havia quatro horas quando o comboio
parou na pequena cidade fronteiriça de Mako, ligeiramente
ao sul de Szeged.
Informaram-nos de que faríamos ali uma paragem de dez horas antes de penetrarmos na
Roménia. Saltá mos em
terra para deitar uma vista de olhos à s redondezas. Como de costume, Porta foi adiante
para explorar o terreno e, voltando um bocado depois, aproximou-se de mim e do Velho
com o seu ar mais inocente e murmurou: - Venham daí!
A cidade - um misto de aldeia e vila rural - jazia morta no calor hú mido da tarde. Os nossos
fatos colavam-se a pele enquanto descíamos lado a lado, suando e resfolegando,
a rua principal, onde camponeses esfarrapados dormiam no chã o, à sombra das á rvores.
Bruscamente, Porta transpô s uma estacaria, atravessou uma sebe e encontramo-
68 SVEN HASSEL
-nos numa rua estreita, ladeada de casas com jardinzinhos
do tamanho de lenços de assoar.
- Eu tenho faro! - anunciou Porta.
Partiu a trote... e teve de passar ao galope um pouco mais tarde, perseguido por uma dú zia
de homens e mulheres
furiosos, enquanto eu e o Velho passá vamos despercebidos
atrá s de uma sebe, com um pato estrangulado em cada mã o.
Voltá mos a correr ao comboio para fazer desaparecer os patos e regressá mos em socorro
dele.
Porta já vinha, de resto, ao nosso encontro, bem escoltado por um tenente hú ngaro, dois
Honved, de baioneta aperrada, um par dos nossos pró prios polícias militares e cerca de
cinquenta civis hú ngaros, romenos, eslovacos e boémios, todos barafustando e
gesticulando.
Porta parecia encarar a aventura com a maior calma.
--Como vêem -declarou ele, o regente hú ngaro Horty, o melhor amigo do nosso Fü hrer
neste país, mandou-me
acompanhar por uma guarda de honra.
Felizmente que foi o major Hinka quem recebeu esta procissã o no momento em que ela ia
mesmo a chegar à carruagem-estado-maior do comboio. Hinka, nã o só era jovem
e simpá tico, como se revelara também o protector particular
de Porta. Ouviu calmamente as acusaçõ es proferidas pelo tenente hú ngaro; depois, quando
este terminou, principiou
ele:
- Que mais temos? Roubo e tentativa de assassinato!
Como se nã o bastasse haveres amotinado toda a populaçã o
com o roubo dos patos, diabos me levem se nã o tiveste ainda a ousadia de atacar soldados
hú ngaros, nossos irmã os
de armas! E de perseguir a pontapé um cã o de luxo! E de quebrar a dentadura postiça do
juiz! E de provocar dois abortos! Que tens a dizer em tua defesa, espécie de indecente
gorila de pernas cambadas?
Tudo isto foi gritado em voz sonora, de forma que a multidã o excitada compreendeu que o
seu agressor estava a
apanhar uma valente reprimenda.
No mesmo tom, Porta respondeu: -- Herr Major, estes idiotas congénitos sã o tã o mentirosos
que a minha alma piedosa se sente abalada até aos alicerces. Por Santa Isabel eu juro que
passeava pacifica-O REGIMENTO DA MORTE 70
mente, gozando, com toda a inocência, este belo tempo e este encantador panorama.
Achava-me no meio de uma prece de acçã o de graças ao Senhor por me haver permitido
fazer parte das fileiras privilegiadas dos soldados do nosso
bem-amado Fü hrer e de ter ao mesmo tempo, ocasiã o de
visitar os vastos arredores da nossa bela cidade de Berlim,
quando, de repente, com uma rapidez altamente prejudicial
para os meus delicados nervos, fui arrancado à s minhas piedosas meditaçõ es por um bando
de demó nios enraivecidos
que surgiram detrá s das sebes onde me esperavam emboscados.
Ignoro o que eles têm a censurar-me; e que podia eu fazer senã o soltar um grito de terror e
dar à s de vila-diogo?
Os malandros queriam acabar comigo, estava-se mesmo a ver. Repare que um deles traz
reló gio e os outros
vêm a fumar cachimbo. Portanto nã o pretendiam que eu lhes dissesse as horas nem que
lhes desse lume. E
depois,
quando eu descrevia uma curva com a velocidade compreensível
nestes casos, achei-me cara a cara com um destes guerreiros
de opereta mais o seu estú pido capacete empenachado e a barra de cores garridas no peito.
Que podia eu fazer quando tentou deter-me senã o dar-lhe um ligeiro empurrã o,
com toda a cortesia, como ele estava mesmo a pedir? Na verdade,
creio que ele caiu de uma forma bastante desastrosa, mas. se ainda nã o conseguiu levantar-
se, eu dar-lhe-ei de boa vontade uma ajuda para o levarem ao hospital.
Depois
deste encontro todas as galiná ceas da vizinhança se precipitaram
sobre mim a gritar como os índios na senda da guerra; pelo menos se formos a acreditar
naquele livrinho, que o Herr Major certamente já leu, O Caçador de Antílopes,
sim, este mesmo, e, se o nã o leu, Herr Major, posso escrever à minha avó , pois sei que ela o
tem lá na biblioteca...
- Basta, Porta! -rugiu o major. Podes dizer-me o que significa esta histó ria dos patos?
Divertidíssimos, víamos agora lá grimas autênticas a correrem
pelo rosto sujo de Porta.
- Herr Major -disse ele numa voz lamentosa, nã o sei de que patos está a falar. Mas lembra-
se perfeitamente
das vezes que eu tenho sido confundido com outro. Sou o homem mais infeliz do mundo e
estou convencido de que
70 SVEN HASSEL
possuo, pelo menos, dois só sias, A minha avó sempre o afirmou...
Os mú sculos das bochechas do major Hinka tremeram perigosamente, mas conseguiu
manter-se sério e, voltando-se
para o tenente hú ngaro, afirmou-lhe que Porta seria severamente
castigado por pilhagem em territó rio aliado.
Nessa noite até o major Hinka comeu também pato assado.

Rastejando no tejadilho e por baixo de uma quantidade de vagõ es de mercadorias,


chegá mos junto de um, enorme,
fechado com o selo da Wehrmacht. No entanto, nem selo nem cadeado conseguiram resistir
durante muito tempo, e o
Velho acabou por empurrar para o lado a porta corrediça.
- Olhem só para isto - resmungou ele - e digam-me o que pensam.
O espectá culo que se oferecia aos nossos olhos fez-nos cair para trá s, de pernas para o ar.
Deus do Céu! Seria possível existirem ainda coisas daquelas? Latas de ananá s,
de peras, bifes de vaca, presunto, espargos, lagostas, camarõ es,
azeitonas, sardinhas portuguesas, frascos de gengibre, de alperches, de pêssegos. Chá
verdadeiro, autêntico café,
chocolate, cigarros e vinhos finos. Vinho branco, tinto, conhaque,
champanhe. Uma mercearia rolante, um poema épico, uma fantasia oriental.
--Deus Todo-Poderoso! -gaguejou Polegarzinho A quem será destinado este vagã o?
- A quem era destinado, queres tu dizer - rectificou Plutã o. - Até um monstro como tu é
capaz de perceber que foi Deus que me guiou os passos. E se Deus se deu a esse trabalho,
nã o foi decerto para que fiques aí de pé nas patas traseiras a fazer perguntas estú pidas!
Quando, no dia seguinte, penetrá mos na grande estaçã o ferroviá ria de mercadorias de
Bucareste, onde devíamos ter
transbordo, Porta desapareceu, levando um caixote de conservas
e, pouco depois, surgiu uma locomotiva-guindaste que veio buscar o nosso vagã o para o
arrumar numa via de recolha
afastada, ao abrigo de olhares indiscretos.
Porta mandou mesmo preencher um boletim de frete a atestar que o vagã o era propriedade
legítima do 18.º
batalhã o.

SVEN HASSEL
ESPLENDORES DOS BALCÃ S
Fomos aboletados numa caserna romena perto do rio Dombrovitza, a pouca distâ ncia da
cidade. Um sá bado à tarde Porta dirigiu-se a Bucareste com o intuito de jogar o poker com
alguns romenos seus conhecidos e, no domingo
pela manhã , nã o estava presente à chamada. Respondi em
vez dele, mas tornava-se evidente que uma tal situaçã o nã o
podia prolongar-se.
A ideia -de Plutã o era que Porta, depois de ter jogado e perdido tudo quanto possuía,
incluindo o vestuá rio, esperava
agora, na companhia de alguma pega romena, que o fô ssemos lá buscar. Essa versã o
pareceu-nos difícil de engolir,
pois Porta era um batoteiro emérito. A explicaçã o mais prová vel, e também muito mais
inquietante, era a de que ele
devia ter limpo as algibeiras aos outros todos e que alguém
lhe tivesse feito uma espera.
Logo apó s a «sopa» do meio-dia fomos explorar a cidade.
Encontrar Porta numa terra com um milhã o de habitantes constituía uma empresa
bastante difícil pelo facto de Bucareste cobrir uma superfície considerá vel com os seus
parques imensos, as suas largas avenidas, as suas ruas interminá veis,
onde cada casa possui um jardim particular.
Mas era escusado ralarmo-nos. Ao percorrermos em todos
os sentidos um dos mais belos bairros residenciais da cidade,
a nossa atençã o foi atraída por uma estranha e barulhenta procissã o. De tal forma
barulhenta e de tal forma estranha que toda a gente corria para a ver passar.
Quatro homens - dois soldados romenos, um bersaglier italiano e um civil em trajo de
cerimó nia - oscilavam alegremente
sob o peso de uma cadeirinha do tamanho do compartimento de uma carruagem de
caminho de ferro e, enquanto faziam avançar aquela bizarra equipagem, berravam,
qual deles com mais força, a mú sica do Mercado Persa, estimulados e acompanhados por
uma flauta invisível.
Das entranhas do monstro de oiro e laca vermelha saiu, de sú bito, a voz do flautista:

O REGIMENTO DA MORTE
«-Alto, escravos! Preparem a aterragem! Atençã o...
ALTO!
A traquitana, ao tocar no solo, fez um grande estardalhaço, que devia ter sido ouvido a
quiló metros de distâ ncia, e surgiu entã o o nosso Porta, blindado até à s orelhas.
Também ele vinha em trajo de cerimó nia, com peitilho engomado,
casaca, chapéu alto e monó culo! Saudou-nos com um desses gestos que os maus
romancistas franceses do fim do
século qualificavam de indescritível e dirigiu-se-nos com voz
afectada:
- Meus queridos! Meus irmã os! Permiti que me apresente: conde de la Porta, pela graça de
Deus. E, se nã o estou em erro, julgo conhecer-vos... Como vai a sorte das armas alemã s?
Deixem-me ver a lista das vitó rias de hoje!
- Que significa - inquiriu Polegarzinho - esta traquitana á rabe em que te fazes transportar?
Os nossos honestos vagõ es de gado já te nã o servem?
- Tenciono ser conduzido à frente oriental nesta cadeirinha, especialmente reservada aos
melhores soldados do exército alemã o. James...
Dirigia-se agora a mim:
- James, tu seguir-me-á s e passar-me-á s a espingarda quando for preciso. Assegurar-te-á s
igualmente de que o melhor
atirador de toda a Alemanha fez bem pontaria antes de o deixares puxar o gatilho! Nã o
podemos tolerar que se perca nenhuma bala, é uma questã o de prestígio...
- E a tua farda?
- Meus senhores, esta guerra é uma guerra de cavalheiros...
Além desta cadeirinha e desta irrepreensível rabona, ganhei 2300 lei e uma linda caixa de
mú sica, que vocês vã o ouvir pela primeira vez...
Mergulhou no interior da cadeirinha e voltou com uma magnífica caixa de mú sica que fazia
dançar, ao som de um
frá gil minuete, dois pastores de porcelana. Era indubitavelmente
um objecto de valor. No dia seguinte ofereceu-o a um condutor de eléctrico.
- E finalmente -prosseguiu ganhei uma amante...
Com coxas e tudo.
-- Uma quê ?
74 SVEN HASSEL
-··.Uma quê... uma quê? -arremedou-nos Porta.— En-tã o vocês ignoram, meus filhos, o que é
uma amante? É
um
brinquedo de luxo para os condes e barõ es. Tem coxas, seios, ancas. É precisamente com
tudo isso que se brinca.
Compram-se em lojas muito caras onde se bebe champanhe
enquanto se examinam os modelos. Tem de se lhes dar corda com um cheque para
poderem funcionar, mas, enquanto
funcionam, agitam-se de cima para baixo e de baixo para cima até gastarem a corda, e entã o
é preciso dar-lhes mais com novo cheque. Se os cheques nunca faltarem, elas
nunca deixam de funcionar.
Porta atirou com uma garrafa de vinho aos moços da cadeirinha, gritando:
- Aí têm carburante, escravos! Bebam e sejam felizes!
Depois estendeu-me duas ou três garrafas de Schnaps e concluiu com um gesto largo: -
Agora cantemos louvores aos queridos deuses antigos!
Levou a flauta à boca e recomeçou a tocar, enquanto os moços da cadeirinha, encantados,
vociferavam em coro: Chegou o tempo de esvaziarmos a taça cheia, Chegou, a tempo de
bater o solo com as danças dos [nossos pés livres,
Chegou, o tempo de cobrirmos o leito dos deuses...
Eu gritei, dirigindo-me a Porta: - Eh, onde diabo foste tu agora desencantar Horá cio ?
Retorquiu, sem a mínima vergonha, que os versos eram compostos por ele.
- Nã o me digas! -replicou o Velho. Nã o te julgava tã o idoso! Os Romanos, nã o os Romenos!,
já cantavam isso aqui há uns mil anos!
Os escravos de Porta forneceram-nos uma descriçã o pormenorizada
dos acontecimentos daquela noite. Porta tinha jogado o poker com um jovem barã o,
fazendo ambos batota
com tanto descaramento que uma criancinha teria percebido.
Porta ganhara tudo, claro, incluindo os fatos do barã o. No fim haviam festejado o
acontecimento todos juntos e agora os quatro pâ ndegos iam transportar Porta a casa da
jovem senhora que o infeliz barã o havia igualmente perdido.

O REGIMENTO DA MORTE 75
Vimos a procissã o pô r-se de novo em marcha, aos tropeçõ es,
enquanto nó s ficá vamos a abanar a cabeça, apertando preciosamente contra o peito as
nossas garrafas de Schnaps.
Ao fim da tarde os quatro escravos depuseram Porta, a cadeirinha, a flauta e tudo o resto
em frente do muro da caserna. Nó s está vamos de atalaia e, logo que o vimos em segurança
na enfermaria, comprá mos a cumplicidade de
um jovem esculá pio, que o guardou debaixo da sua asa protectora durante os dois dias de
sono reparador que lhe foram necessá rios para se recompor dos abusos. Andou sempre,
durante a guerra inteira, com a casaca cuidadosamente
dobrada dentro da maleta de soldado. De tempos a tempos, quando julgava necessá rio
festejar qualquer acontecimento,
envergava-a, e eu hei-de ver sempre, no écran das minhas recordaçõ es, a sua silhueta
esgalgada a exibir-se
de casaca e peitilho branco nas trincheiras da frente oriental.
Talvez a cadeirinha ainda se encontre no mesmo lugar, ao pé do muro da caserna de
Bucareste, em comemoraçã o
pacífica de um acontecimento obscuro, mas glorioso, desta
guerra! Se assim for, penso que os Romenos devem considerá -la
com um ar menos sombrio do que à s ruínas deixadas atrá s de si pelos exércitos «aliados»
da grande Alemanha.
Se tivessem existido mais Portas e muito menos capitã es do tipo de Meier, nã o restam
dú vidas de que haveríamos conquistado todos os povos e feito deles nossos amigos, nossos
irmã os. Tê-los-íamos vencido, nã o no campo do horror, mas em vastos concursos de
bebedeira, que possuem,
pelo menos, a vantagem de satisfazer os que neles participam...
E nã o é muito mais fá cil curar uma carraspana do que uma perna arrancada por um
estilhaço de obus?

Havíamos trocado muitas cartas afectuosas depois de nos termos separado em Friburgo,
mas em todas as missivas
de Ú rsula eu achava um tom desanimador que me fazia quase perder a cabeça,
mergulhando-me naquele inferno de
sentimentos nã o correspondidos, ao mesmo tempo que me
assaltava o desejo de lhe demonstrar que ela estava enganada,
que ela também me amava, mas nã o queria confessá -
lo...
A resposta dela ao meu telegrama veio nessa mesma tarde, igualmente por telegrama:
ENCONTRAMO-NOS EM VIENA STOP ESPERA-ME BUFETE
PRIMEIRA CLASSE STOP Ú RSULA.
Ú RSULA
Ú RSULA nã o compareceu ao encontro. O comboio devia vir atrasado. Iria chegar de um
momento para o outro. Da mesa que escolhera eu podia vigiar a porta. Havia um
movimento
contínuo de entradas e saídas; em certas ocasiõ es penetrava tanta gente na sala ao mesmo
tempo que eu nã o
conseguia abranger todas as pessoas com o olhar, e entã o
erguia-me de um pulo, tomado de uma espécie de furor.
Decorreu mais de uma hora.
Tirei as suas cartas de um bolso interior e reli-as pela milésima vez, linha por linha,
deitando no fim de cada uma um olhar para a porta. Bruscamente sentime invadido pelo
pâ nico: nã o me haveria conservado tempo de mais sem levantar a cabeça? Talvez ela
tivesse entrado enquanto eu lia uma das cartas? Talvez me nã o tivesse visto? Talvez se
tivesse ido embora? Talvez houvesse tomado já um comboio
para Munique?

O REGIMENTO DA MORTE 77
Ao cabo de duas horas abandonei o bufete e perguntei se o comboio de Munique vinha
atrasado. Disseram-me que
chegara uma hora antes do meu. O sujeito mostrou-se delicado,
amá vel, mas nada interessado no meu problema pessoal.
Portanto, nã o lhe disse palavra a tal respeito! Mas devia ler-se claramente na minha cara...
Desnorteado, indeciso, caminhava ao acaso. Que diabo viera eu fazer a Viena? Voltei para a
minha mesa. no bufete, e ali fiquei sentado, abatido, com os olhos perdidos
no vá cuo, tentando reflectir, chorando interiormente, construindo
teorias, inventando mil planos engenhosos para a descobrir, supondo mil acontecimentos
capazes de justificarem
a sua ausência e odiando o mundo inteiro, enquanto na sala, à minha volta, as vozes
zumbiam, a loiça tilintava, as duas caixas registadoras ressoavam ao abrir-se e fechar-se.
Todos estavam ocupados a servir, a comer, a beber, a tagarelar
ou a rir, numa palavra: a viver. Eu era o ú nico que ninguém conhecia, de quem ninguém se
ocupava e que, nã o podendo viver, tinha de ficar simplesmente sentado, cada vez mais
tenso, enquanto a sua vida interior tomava as formas mais fantá sticas. Nã o creio que possa
existir ser
mais anormal do que o indivíduo que, tranquilamente sentado
numa sala de restaurante, espera em vã o pela bem-amada.
A hora do nosso encontro passara já havia mais de cento e oitenta minutos; ela nã o viria. A
minha loucura era de uma espécie particularmente dolorosa e talvez se houvesse tornado
incurá vel se ela nã o tivesse aparecido.
Mas veio, doce, graciosa e esbelta como uma chama. Os meus dedos esmagavam o cigarro
em que segurava e este
queimava-me a mã o, mas o meu cérebro estava provisoriamente
incapaz de registar a dor; todo ele se entregava a servir os meus olhos, quê fixavam,
fixavam... Fixavam o saia e casaco cinzento, os sapatos rasos e a malinha com
as iniciais U. S., assim como a mã o que a segurava, essa deliciosa mã o que se devia adaptar
tã o bem à nuca de um homem.
- Enganei-me no comboio. Nã o tenho desculpa nenhuma...
Apesar dos seus protestos, beijei-lhe a mã o e fi-la sentar junto de mim, no banco ao longo
da parede.
78 SVEN HASSEL
- Querida...
- Meu amor, é preciso, em primeiro lugar, dar de comer à tua querida se nã o queres que ela
caia de fraqueza...
Nã o, nã o, tem juízo e manda vir qualquer coisa boa e uma garrafa de vinho. Só depois te
direi o que vamos
fazer...
Mandei vir arroz de frango, molho paprika e indiquei um nú mero na lista dos vinhos.
Continuava ainda horrivelmente
abalado, mas conservei a presença de espírito suficiente para, durante o primeiro quarto de
hora, nã o dizer senã o a palavra «querida». Isto era a prova cabal de que a minha
cachimó nia nã o trabalhava bem e, ao mesmo tempo,
uma prova de ternura que nã o podia deixar de a satisfazer...
Dispú nhamos ainda de uma hora antes de partirmos para Hochfilzen.
- Quando me telegrafaste a dizer que tinhas cinco dias de licença, pensei logo que seria esse
o sítio ideal para os passarmos. Tu adoras a montanha, tal como eu, nã o é verdade?
- Querida...
- Está s impossível! Com certeza bebeste de mais. Tenho de te fazer voltar ao teu estado
normal. Nã o quero viajar na companhia de um idiota. Embora eu pró pria também nã o
esteja em perfeito juízo! Em que aventura me vim meter!
Esvaziei o meu copo, depois enchi-o novamente, assim como o dela. Nã o toquei no prato,
enquanto a minha companheira
devorava a sua raçã o de frango e de molho paprika, de pã o e de arroz, sempre a tagarelar e
a dar provas de uma vitalidade reconfortante. Fiquei um pouco inquieto por ela nã o prestar
atençã o à minha falta de apetite. Era um assunto que muito costumava interessá -la. Dizia-
me sempre que eu estava magro como um espeto, que devia comer mais. Mas hoje nã o
parecia preocupar-se com isso.
Havia nela qualquer coisa de diferente e, por momentos, tinha a impressã o de que estava
tã o nervosa como eu e que
nos procurá vamos à s escuras, estranhos um ao outro, e que
era por isso que ela desenvolvia aquela actividade...
devoradora!

O REGIMENTO DA MORTE 79
- Meteste-te numa histó ria de lua-de-mel - respondi-lhe.
- Da nossa lua-de-mel.
Ela desatou a rir; e depois, de repente, apó s um longo momento de imobilidade sonhadora,
pegou-me na mã o e apertou-a de encontro à sua face.
- Nã o sei - disse, nã o sei... Mas, visto que só tens cinco dias e por muitas outras razõ es mais...
terá s o que desejas. Está s contente?
A resposta dela tinha-me desorientado, e por isso murmurei
com alguma incoerência:
- O que eu desejo nã o é fazer o que quero, mas sim o que tu desejares... Nã o serã o já horas
desse famoso comboio?
Na gare ela tornou a pegar-me na mã o, deteve-se e olhou para mim.
--Volta atrá s para comprar uma garrafa de conhaque...
Quando o capitã o do estado-maior nos viu no compartimento,
uma mulher bonita e elegante, uma garrafa de conhaque e um miserá vel soldado de um
regimento disciplinar,
deu meia volta e nã o tardou que surgissem dois polícias militares. Abateu-se sobre nó s um
silêncio de morte
enquanto eu lhes mostrava os papéis e o meu bilhete de 2.ª classe e Ú RSULA enfrentava os
seus olhares curiosos com
um furor glacial e ostensivo. Mas dominou-se, graças a Deus! O capitã o desceu em Linz, sem
que os olhos de Ú RSULA o tivessem desfitado um só instante. Eu sentia-me feliz por nã o
estar no lugar dele. O par de civis desceu em Setztal, deixando a carruagem por nossa conta.
Com grande
surpresa minha, foi Ú RSULA que tomou a iniciativa de me beijar. Longamente. Um beijo
trémulo, desesperado, que a deixou ofegante.
- Tudo o que -desejares - arquejou ela, voltando-se para a janela. - O que eles se julgam no
direito de te fazer também tem limites...
E voltou para mim o seu olhar inflamado de có lera.
- Terá s tudo o que desejas. E imediatamente, se quiseres...
É formidá vel poder rir. Rir sem o menor constrangimento.
80 SVEN HASSEL
- Nã o penses neles. Vamos fazer como se nã o existissem.
Sã o mesquinhos e desprezíveis. À s vezes escorrega, mos neles, evidentemente; outras, nã o
podemos evitar pisá -los.
Mas no fim limpamos os pés e seguimos em frente...
Desarrolhei a garrafa de conhaque.
- Bebamos à saú de dos pés bem limpos...
Lá fora as montanhas corriam e desfilavam diante das janelas, juntamente com a chuva, os
postes telegrá ficos e o crepú sculo. Em seguida, a obscuridade veio fazer-nos companhia.
Quando despertá mos, eram 3 horas da manhã e devíamos ter descido em Hochfilzen, à
meia-noite e um quarto.
- Innsbruck, Innsbruck - clamava o altifalante que nos despertara.
Saltá mos do comboio, bêbedos de sono. Ú RSULA arranjou-se
rapidamente nos gabinetes de toilette enquanto eu telefonava para todos os hotéis da
cidade.
Fui ter com ela debaixo do reló gio, como havíamos combinado.
- Arranjaste quarto? - perguntou-me.
- Arranjei, no Hotel Jã gerhof.
- Agora estou com frio. Tiveste dificuldade, nã o?
Eu ligara para vinte e quatro hotéis, mas fingi que fora fá cil, que eles nã o haviam podido
resistir por muito tempo à minha bela voz de barítono. A sala de espera estava
deserta e mergulhada na penumbra. Alguém tropeçou num balde, algures, perto de nó s,
enquanto um varredor espalhava
metodicamente serradura sobre os mosaicos de cores vivas.
- Lua-de-mel em Innsbruck - disse ela. - Ficaste aborrecido ?
- Nã o. Aqui também há montanhas! Deixa-me levar a tua mala...
A praça, em frente da estaçã o, achava-se igualmente deserta. Tinha chovido e o ar era
glacial. Onde diabo ficaria
o Hotel Jã gerhof?
Eu murmurei:
- Espera por mim um minuto.
Voltei ao grande á trio da estaçã o. Nem vivalma. Porém, junto ao quiosque dos jornais,
abriam-se as portas de uma

O REGIMENTO DA MORTE 81
cabine telefó nica. Com um pouco de sorte talvez conseguisse
arranjar um tá xi...
- Eh, tu aí!...
Larguei o manípulo da porta. Esta fechou-se atrá s de mim com uma espécie de suspiro.
--Segue-me imediatamente!
O gabinete da polícia militar estava cruamente iluminado.
Sentia escorrer-me o suor na raiz dos cabelos. Aquelas luzes eram demasiado claras. Ainda
hoje uma luz demasiado
clara tem o poder de me fazer transpirar.
O sargento de serviço interrogou com o olhar os dois tipos que me tinham levado. Depois
perscrutou curiosamente
o meu rosto.
- Entã o?
Hirtos, em sentido, os dois outros explicaram: - Achá mo-lo a vaguear pela estaçã o.
O sargento voltou-se para mim.
- Que diabo fazias ali a esta hora da noite?
Eu pusera-me também em sentido: - Queria chamar um tá xi. Eu e a minha mulher viemos
de Viena, no expresso da noite, para gozar aqui a minha licença. Aí tem os meus
documentos...
Ele examinou-os.
- Um preso de licença! Parece esquisito, à primeira vista!
Esforcei-me por lhe sustentar o olhar. Uma mosca zumbia, zumbia... atravessava a sala em
ziguezague.
- Onde está a tua mulher?
- Lá fora, à minha espera, junto da porta principal.
Ele fez sinal a um dos esbirros: - Vai buscá -la.
Eu ouvia ressoar as botas do tipo na sala de espera e seguia maquinalmente o voo
caprichoso daquela mosca idiota... O sargento mexeu-se na cadeira. Numa porta
entreaberta
apareceu uma cabeça ensonada a perguntar: - Que horas sã o?
- Três e meia.
A cabeça desapareceu de novo.
- Tens aí o teu bilhete?
82 SVEN HASSEL
Estremeci. Poderia dizer que o tinha atirado fora?
Ele havia de querer saber se eu nã o tinha um bilhete de regresso a Viena. Havia de querer
ver o bilhete de Ú RSULA.
Nã o tínhamos nenhuma maneira de escapar.
- Este bilhete dava só até Hochfilzen. Podes dar... uma explicaçã o?
- Adormecemos. Só acordá mos em Innsbruck.
- Queres dizer que vieste até aqui sem pagar ?
- Sim. Mal tivemos tempo de descer. Mas estamos prontos a dar a diferença...
Nã o respondeu. O telefone desatou a tocar e ele pegou no auscultador.
--Polícia da estaçã o... Quem?... Um momento...
Percorreu com o dedo uma lista afixada na parede, junto de si.
-Nã o, nã o tenho cá esse nome... Foi com certeza engano... Sim, a trapalhada do costume, há
sempre sari lhos nessas coisas... Vou dar uma vista de olhos, mas nã o devemos lucrar nada
com isso...
Ú RSULA penetrou no gabinete e olhou-me, visivelmente assustada. Esperá mos. A mosca
zumbia. Batalhã o disciplinar.
Um preso. Um preso. Um preso. O sargento disse uma graçola mais ao telefone e desligou
vagarosamente.
Examinou os documentos de Ú RSULA e tivemos de com-fessar que nã o éramos casados.
-- Ainda nã o somos -- admitiu Ú RSULA. - Vamos casar amanhã ...
Subitamente recuperou o sangue-frio: --Oiça lá ... Tudo isto é apenas o resultado de um erro
lamentá vel... Se nã o fosse o sono, teríamos descido em Hochfilzen e nada disto se passaria.
Bem sabe como é difícil para os soldados dos batalhõ es disciplinares obterem
uma licença. O meu marido conseguiu arranjá -la. Nã o cometeu nenhuma falta... Os senhores
compreendem, há tanto tempo que nã o nos víamos...
Exibiu a garrafa de conhaque.
- Fui eu que lhe disse para a comprar, queria que ele se sentisse completamente satisfeito...
Bebemos um bocado
e... e... depois fui eu mesma que o encorajei a... a...
- Sim?...

O REGIMENTO DA MORTE 83
Ela era formidá vel. Corada e furiosa, com o olhar flamejante,
atingia em cheio o coraçã o do homem, com aquela maneira directa, sem escrú pulos, que as
mulheres têm.
- E pronto... tínhamos o compartimento por nossa conta. Eu nã o estava com ele há muito
tempo. Ele nã o fez nada de mal; conduziu-se como um bom soldado, nada mais!
Esta ú ltima observaçã o fora genial. O sargento restituiu-nos os documentos.
- Podem-se ir embora...
Depois voltou-se para mim:
- E tu continua a portar-te como um bom soldado!
A porta fechou-se sobre um coro de gargalhadas maliciosas.
- Vamos já sair daqui para fora - segredou ela, arrastando-me quase a correr. Fujamos
daqui, tenho medo...
Achá mo-nos de novo na praça deserta, saturada de chuva, e reparei que Ú rsula estava
lívida e que a sua testa lisa se cobria, na raiz da cabeleira negra, de gotículas que nada
tinham a ver com a cacimba.
- Segura-me bem - implorou ela. - Parece-me que vou desmaiar.
Larguei a mala a toda a pressa para amparar Ú rsula e fazê-la sentar num degrau.
- Mergulha a cabeça entre os joelhos. Assim! Nã o te mexas. Isso passa já ...
- Agora sinto-me melhor - afirmou ela passado um bocado. Nã o ficaste muito zangado
comigo?
- Zangado!
- Por causa deste... desmaio. Nã o te sirvo de grande ajuda...
- Nã o digas isso! Se tu nã o tivesses salvo a situaçã o, Deus sabe o que nos aconteceria.
Teriam começado a procurar
confirmaçõ es por todos os lados e fica sabendo que uma comunicaçã o telefó nica com
Bucareste nã o se consegue
num quarto de hora. Em qualquer caso, eu teria sido obrigado
a passar a noite na companhia daqueles trastes! Tu foste formidá vel e deste provas de uma
coragem espantosa...
Mas deves sentir-te esgotada! Queres que tente arranjar um tá xi?
84 SVEN HASSEL
- Nã o, nã o. Vou contigo. Nã o quero que nos separemos nem por um só instante. Vamos ficar
aqui sentados ainda mais um ou dois minutos e depois procuraremos juntos o tá xi...
Apertei-a contra mim durante um momento e depois ela estremeceu.
- Vamos, estou cheia de frio.
- Sim, vamos embora...
Encontrá mos um fiacre que nos levou ao hotel. O
Jagerhof era um edifício branco, vasto, adormecido por detrá s das portadas, ao fundo de
uma alameda cujos calhaus
fizeram abrandar a marcha do cavalo. O velho porteiro da noite riscou o nome de Ú rsula
que eu escrevera no registo, dizendo-me num tom amigá vel que nã o havia necessidade
de mencionar o nome de solteira da minha mulher.
--O senhor e a senhora de tal... -concluiu com um sorriso. - É quanto basta.
Fiquei vermelho como um tomate. O garoto do elevador sorriu-nos também, enquanto eu
olhava a direito na minha frente...
Enquanto a criada abria a cama, Ú rsula saiu para a varanda. Aclarei a voz e entrei na casa
de banho. Em seguida a criada retirou-se e encontrá mo-nos frente a frente,
no meio do quarto, a fitar-nos nos olhos...
- Pronto, cá estamos...! Queres um cigarro?
A mã o dela tremia, a ponto de partir o fó sforo.
A nossa atrapalhaçã o era tremenda. O ar seco daquele quarto desconhecido, onde tudo era
tã o limpo, mas também
tã o anó nimo. A excitaçã o. A fadiga. A emoçã o. Uma quebra
emocional? Eu sentia-me tã o pesado, tã o fatigado, como no fim de uma semana de
manobras. Ela mantinha-se muito
direita na minha frente, de ombros caídos, e os seus olhos eram cor de avelã . Nã o conheço
olhos capazes de exprimir
tanta tristeza, tanto cansaço, como os olhos cor de avelã .
A quem competiria agora dar o primeiro passo? E
sentiríamos
nó s o desejo, teríamos a força necessá ria, nã o iríamos estragar tudo, afogar tudo para
sempre na amargura de uma
recordaçã o penosa? Que devíamos ou poderíamos esperar
agora um do outro?

O REGIMENTO DA MORTE 85
- Vou acabar de fumar este cigarro na varanda enquanto tu te dei... te despes.
Era horrível. Eu nem sequer tivera coragem para dizer: enquanto te deitas.
Haverá alguma coisa mais terrivelmente penosa do que a noite? As montanhas, no escuro,
com as suas pesadas massas, esperavam que o dia nos revelasse o que realmente
eram. Montanhas altas, montanhas negras, amanhã saberemos
como sois. Amanhã já teremos dormido; amanhã tomaremos o pequeno almoço convosco,
conversando acerca
das futuras escaladas. Esta noite tudo está demasiado escuro
e vó s nã o tendes nada para nos oferecer...
- Podes vir, querido...
Um dos dois copos da casa de banho estava meio de conhaque. O outro nã o tinha nada, mas
eu bem via que tivera conhaque também. Agarrei no segundo.
Se eu lhe dissesse que está vamos muito cansados, pensaria
que eu o fazia em atençã o a ela, confessar-se-ia de acordo e ficaríamos ambos lado a lado,
cada um cheio de medo de ceder primeiro ao sono. E talvez se sentisse horrivelmente
desiludida, apesar do cansaço! E se eu lhe dissesse...
Nã o era fá cil resolver aquele género de problema. Os toiros e os garanhõ es dos romances
negros americanos, os
heró is emotivos como os de Hemingway, com coraçõ es de
aço, batem recordes sexuais... Nesse momento decisivo senti
inveja deles. Mas nã o. Só para a morte nã o há remédio.
Enquanto há vida...
- Bebo à saú de dos pés bem limpos - disse eu, esvaziando
o meu copo.
- Meu amor...-murmurou ela com uma voz infantil.
Deitei-lhe a cabeça no meu ombro e puxei-lhe a roupa para o peito.
- Amanhã cometerei excessos à maneira de Hemingway...
A montanha encarrega-me de te dizer que amanhã também ela te mostrará as suas
habilidades. Mas esta noite...
caramba, quero dormir...
Ela riu em surdina:
- Meu amor...
Acho que nã o me saí nada mal.
86 SVEN HASSEL
Passado um momento ela acrescentou:
- Obrigada, querido.
Depois poisou a cabeça na almofada, enfiou o braço no meu e, passado meio minuto, era
como se ali nã o estivesse
ninguém. Algumas horas de sono bem alcoolizado.
de um espesso sono de seres primitivos, e em seguida o despertar simultâ neo na mesma
posiçã o exacta... E a montanha
mostrou-nos entã o tudo de que era capaz. Escalá mo-la e repousá mos lá no cimo...
Nunca se deve forçar nada; nestes casos deve-se simplesmente
dormir...

«Amo-te, amo-te com toda a minha alma...»


Nas suas pestanas cintilavam lá grimas grossas que percorriam
devagar a curva das suas faces. Ela mantinha os olhos obstinadamente fechados...
OS Ú LTIMOS DIAS
O sol da manhã banhava-nos com a sua luz quente, através das portas abertas da varanda.
Está vamos sentados
à mesa do pequeno almoço: um pequeno almoço pantagruélico
que o criado acabava de nos trazer. Sorridente, Ú rsula estendeu-me mais uma fatia de pã o
com manteiga.
- Vamos, tens de comer!
- Mas eu nã o posso comer tanto! Já estou habituado a apertar o cinto, é por isso...
- Tens de perder todos esses maus há bitos. Nã o comes nada! Meu Deus, Sven, só tens a pele
e o osso!
Nã o pude deixar de olhar para mim pró prio e de verificar que ela tinha razã o. Os meus
braços estavam tã o magros que conseguia rodeá -los com os dedos. Senhor, que
podia ela esperar de um franganote como eu? Uma mulher sã e robusta, de seios firmes,
ancas redondas, toda em curvas
harmoniosas, junto de mim, todo em â ngulos duros e desengraçados... Ela que parecia feita
para ocupar o centro
de uma família bronzeada, de bebés gorduchos, rapazolas loiros e raparigas tagarelas,
sempre cá e lá , a pedirem pã o
com manteiga! E casada com um tipo alto e forte, que voltasse para casa à noite. Um tipo
possante como um urso!
Muito diferente de mim...
- Vamos, come, em lugar de estares para aí a lamentar a tua sorte. Nã o és nada mau assim, e
espero muito mais depois do pequeno almoço. Mas primeiro tens de comer.
88 SVEN HASSEL
Vá , mais estes dois ovos. Depois cederei de boa vontade a
todos os teus caprichos orientais...
- Ora, ora, isto nã o pode ser!
Dava voltas ao pã o dentro da boca sem conseguir engoli-lo.
- O quê? O que é que nã o pode ser?
- Empanturrar-me calmamente e esperar pelo que se segue.
- E quem te manda esperar pelo que se segue? Isso virá a seu tempo. Por agora trata de
comer. Olha,, bebe este copo de leite, deves estar cheio de sede. Nã o te levantará s da cama
enquanto nã o tiveres barriga, mesmo que eu
me veja obrigada a encher-te o estô mago como se faz aos patos. Nã o te esqueças de que sou
médica, e portanto acho-me habilitada a classificar os teus sintomas. Tens falta
de vitaminas e de outras coisas... muito embora conheças bem as subtilezas orientais!
- Essas sim, conheço-as bem.
--E posso perguntar-te quem te ensinou tudo isso?
- Assim que recebi o teu telegrama fui-me treinar com três mil odaliscas e um tamborileiro
turco especialmente
importado de Constança.
Comi e bebi tudo quanto ela me deu. Passá mos depois à s subtilezas orientais, e isso, devo
dizê-lo, com grande satisfaçã o de ambos. É ridículo afirmar que os homens só procuram
isso. Os homens procuram o que as mulheres procuram também. Procuram o que está na
raiz e constitui o alimento de toda a cultura: o conhecimento.
Caminhá mos depois até ao cemitério, empoleirado na encosta da montanha, que um padre
de cabelos brancos nos fez visitar. E a montanha nã o nos ocultou nenhum dos seus
tesouros. Encontrá mos rebanhos de cabras e vacas de
vá rias cores, guardados por um pastor pitoresco, de barbas
até à cinta e calçado com grossas botas alpinas. Mais adiante instalá mo-nos num talude
para contemplar uma aldeia de ruelas sinuosas, com as casas pintadas de cores
vivas, como brinquedos de crianças. Os chocalhos pendura
dos ao pescoço das vacas acompanhavam alegremente os
cantares de algumas raparigas e, lá do alto, descia a alegre
resposta: «Holidorio! Holidorio!» Via-se até uma á guia

O REGIMENTO DA MORTE 89
no firmamento. Uma á guia a sério, uma criatura viva, e nã o a á guia herá ldica que mantinha
a Europa aprisionada nas suas garras sangrentas.
Uma paisagem tã o ostensivamente idílica pode tornar-se rapidamente insuportá vel. Tudo
ali era demasiado belo, demasiado claro; os picos nevados pareciam também demasiado
calmos. Destoavam bastante de uma alma agitada.
Era entã o necessá rio regressar ou dormir naquele calor perfumado, cheio do zumbido de
mil insectos.
Idílio na montanha. Refeiçõ es pantagruélicas regadas com vinho do Reno, servido em
cá lices cheirando a â mbar.
A minha mã o sobre a coxa de Ú rsula, que se esquiva, e aquela brusca sensaçã o de abismo
prestes a tragar-me: só
mais dois dias,, só dois...
- Pensa que temos ainda dois dias. Ainda dois dias, está s a ver?
O que de maneira nenhuma me impede de chorar e de me sentir tã o infeliz como me sinto.
O hoteleiro grita-nos: «Griiss Gott», e segue-nos com os olhos, gravemente, enquanto
retomamos o atalho íngreme. Ao cabo de alguns minutos Ú rsula volta-se. Ele continuava a
observar-nos com
a mesma gravidade e ergue o braço para um ú ltimo adeus.
- Que homem tã o simpá tico! - exclama ela.
- Pois é.
Ela poisa o braço sobre o meu ombro: - Nã o me parece que compreendas que inferno seria
a minha vida se me apaixonasse por ti!
- Se te apaixonasses por mim? Mas eu julgava que já o estavas...
- Julgavas... quando eu me esfalfo a repetir-te o contrá rio?
É para desanimar... Seja como for, nã o consegui resistir ao teu apelo. Tu és de um género...
de um género que as mulheres nã o estã o habituadas a encontrar. Eu, pelo
menos. Mas talvez nã o seja a especialmente indicada para...
- Oh, és! Se és!
Tinha o seio dela na minha mã o. Pegou-me no braço e voltou a colocá -lo no seu ombro.
- Falemos de outra coisa, queres? Tudo isto é já de si bastante complicado. Mas eu... nã o sei
como te hei-de dizer...
90 SVEN HASSEL
- Pois sei eu. Queres dizer que nã o está s apaixonada por mim. Nã o procuremos palavras tã o
pomposas, Ú rsula.
Eu pró prio cometi esse pecado, mas tu mantiveste-me tanto
tempo afastado e, de repente... Por isso torna-se difícil exprimirmo-nos objectivamente.
-- E tu és tã o magro e desajeitado. Sabes que gritas a dormir?
- Sério? Mas à parte isso tudo corre bem!
- Talvez. Mas estou a pensar na minha vida, que agora vai ser um inferno...
Subitamente perdeu a cabeça e atirou-se a mim a soluçar: - Nã o quero que me deixes! Nã o
quero que eles me afastem de ti! Compreendes?
--Nã o, nã o! Sim, sim!...
Eu nã o conseguia dizer outra coisa. Batia-lhe nas costas e repetia: «Nã o, nã o. Sim, sim», ao
acaso. Nã o conseguia perceber nada.
Nessa noite ela envergou um vestido preto, simples, muito justo, pondo, como ú nico enfeite,
um colar de contas negras e verdes. Eu sabia que a minha farda preta dos carros de assalto
me conferia uma espécie de elegâ ncia macabra, acentuada ainda pela ausência de qualquer
condecoraçã o.
Notei com certo orgulho que as pessoas nos observavam enquanto caminhá vamos para a
nossa mesa.
Durante o jantar passou junto de nó s um tenente que deixou cair sobre a mesa um pedaço
de papel dobrado.
Curioso, abri-o e li:
Se está aqui sem licença, trate de se pô r ao fresco.
Anda por aí a polícia militar. Se precisar de ajuda, encontra-me
no á trio.
De comum acordo com Ú rsula, decidi ir agradecer-lhe e informá -lo, ao mesmo tempo, de
que tinha os documentos
em ordem.
Avistei-o logo, a fumar, num canto do vestíbulo.
Apresentei-me
rapidamente, agradeci-lhe e indaguei: - Será indiscreto perguntar-lhe a razã o da sua
gentileza?
-De forma nenhuma. O meu irmã o encontra-se igualmente nos tanques. Chama-se Hugo
Stege.

O REGIMENTO DA MORTE 91
Hugo! É um dos melhores camaradas que tenho na companhia!
- De verdade ? Um encontro destes tem de ser comemorado.
Dá -me licença que os convide aos dois esta noite?
Conheço um sítio divertido onde podemos ir no fim do jantar.
Fomos ambos ter com Ú rsula. Ele estava em engenharia e chamava-se Paul Stege. Quando o
deixá mos, depois de uma noite bem passada, deu-nos um nú mero de telefone, para onde
poderíamos falar-lhe se precisá ssemos de qualquer
coisa.
De regresso ao quarto, começá mos por fumar um ú ltimo cigarro. Aproximava-se a aurora.
Fui erguer as persianas e
depois liguei o rá dio. Havia habitualmente boa mú sica à quela hora, o chamado «programa
para a frente». Uma orquestra, provavelmente a Grande Orquestra Sinfó nica de Berlim,
atacava o ú ltimo andamento dos Prelú dios de List.
Hitler e Gö ebbels haviam conseguido estragar aquele trecho
comovente de mú sica româ ntica, transformando-o em mú sica
de propaganda para a sua maldita guerra. A U. F. A.
utilizava-a como fundo sonoro para os seus filmes de actualidades
sobre as proezas da Luftwaffe. Era a Luftwaffe a preparar o caminho para nó s, as tropas
blindadas. Era a Luftwaffe a arrasar o ghetto de Varsó via em três dias e três
noites de horror. Uma vez restabelecida a calma e disperso
o fumo, nada do que restava em toda aquela vasta extensã o
media mais do que 1 metro e meio de altura. De vá rias centenas de milhares de judeus,
somente um punhado saíra
com vida, entre os cordõ es de SS à s gargalhadas. Um punhado de judeus e alguns milhares
de ratos.
- Ao som dos Prelú dios de Lizst.
- E se fechasses isso? - sugeriu Ú rsula. - Esse trecho faz-me mal aos nervos.
Desliguei o rá dio e despi-me.
- Que dia maravilhoso. E em breve estará outra vez claro. É quase uma vergonha dormir...
- Eu creio que será maravilhoso dormir um pouco.
Apenas algumas horas. Estamos fatigados, nã o é verdade?
- Se a vida pudesse ser sempre assim deliciosa! Comer quando se tem fome. Beber quando
se tem sede. O
suficiente
92 SVEN HASSEL
para nos sentirmos leves e espirituosos. Abrir os olhos e acharmo-nos bem despertos,
porque chegou um novo dia que só pede para ser vivido. Ficar-se fatigado com uma fadiga
agradá vel. Como estou neste momento. Nada mais desejo no mundo...
Isto nã o era rigorosamente exacto. Eu desejava tirar-lhe o colar. E os sapatos. E o vestido.
Aquele fecho eclair, oh!,
aquele fecho eclair... Pronto!
- Como as tuas mã os estã o calmas, amor! Tã o senhoras de si! E o outro sapato? É para hoje
ou para amanhã ?
Nã o, nã o! O sapato primeiro!
- Nã o, primeiro as meias!
Tirei-lhe depois o outro sapato.
- Vê se nã o estragas nenhuma malha com as unhas; é este o meu ú ltimo par... Oh, nã o
acabaste de dizer que estavas fatigado?
Nã o respondi. Tinha a minha boneca para brincar e ela a sua. Está vamos os dois prontos.
Eu, pronto para ela, ela, pronta para mim. Sem complicaçõ es, sem impaciências,
sem reticências. Todo o tempo do mundo diante de nó s...
Contemplar olhos no fundo dos quais vai e vem uma onda. Sermos tã o amigos que os
deuses nos emprestem a
acuidade dos seus pró prios sentidos e nos permitam notar uma pressã o de um miligrama,
um frémito ténue de uma fracçã o de milímetro. Uniã o total dos corpos e das almas.
- Um pouco mais acima, sim ?
Num murmú rio:
- Sim. E que mais?
Nã o era preciso responder. A vaga desabava sobre nó s e arrastava-nos no seu maelstrom.
Agora ela repousava encostada a mim. Percorria-a um frémito de vez em quando e eu
estremecia ao mesmo tempo.
Está vamos abalados até ao â mago da nossa substâ ncia, vencidos um e outro. Para quê
falar? Nada havia a dizer.
Puxei para cima a roupa antes que o frio nos atingisse.
«...as armas soviéticas utilizadas para este ataque. A ofensiva está desencadeada, do oceano
Á rctico até ao mar
»do Norte, e já recebemos comunicados sobre as conquistas

O REGIMENTO DA MORTE 93
de territó rios e sobre à s vitó rias alcançadas pelas forças reunidas alemã s, italianas e
romenas...»
Eu ligara o rá dio em surdina. Chamei Ú rsula em voz baixa. Ela dormia, graças a Deus. E dou
graças, também, por me ter sido possível conhecer, antes de ouvir estas notícias, aquilo a
que se convencionou chamar a felicidade total. Aqueles que possuem ideias bem definidas
acerca da alma e do corpo, do espírito e da matéria, da superioridade deste ou daquela
sobre os outros, sorrirã o, sem dú vida.
Deixá -los falar. Deixá -los rir. Todo o mal que lhes desejo é que conheçam um dia esta
espécie de felicidade, e talvez entã o compreendam! Talvez!
O nosso casamento teve lugar no dia seguinte, no pequeno convento... Paul Stege serviu de
padrinho a Ú rsula.
Levou-lhe um enorme ramo de rosas brancas, que lhe fez vir as lá grimas aos olhos. O padre
dos cabelos brancos nã o estava lá muito resolvido a casar-nos, por causa da minha
qualidade de «disciplinar». Mas, assim que soube que eu era um Auslandsdcutscher (1) de
ascendência austro-dinamarquesa e praticamente naturalizado escandinavo, consentiu
logo:
- Passei alguns anos da minha juventude nesse pequeno país nó rdico. É um oá sis no
coraçã o da Europa. Esperemos que a guerra o poupe e, se assim acontecer, volte para lá ,
caso lhe seja possível...
As prendas de Ú rsula compunham-se de alguns tesouros de origem romena: uma camisa de
noite toda de seda com rendas verdadeiras, dois adereços diá fanos, cinco pares de meias de
seda e um anel que Porta me tinha arranjado.
Um anel de ouro com uma grande safira rodeada de diamantes minú sculos. Tudo isto
representava uma fortuna no mercado negro.
Do ú ltimo dia só me restam recordaçõ es fragmentadas: - Que temos nó s a ver com esta
guerra idiota? Agora que pertencemos um ao outro...
- Nã o, nã o, nã o. Tens de me prometer. Se acontecer qualquer coisa, deves livrar-te de tudo
isso o mais depressa (1) Alemã o do exterior. (N. do A.)
94 SVEN HASSEL
possível. Temos de esperar pelo fim da guerra para ver em que estado fica o país...
- Querido! Recordas-te de que, em Viena, nã o sabias dizer outra coisa senã o «querida»,
Agora sou eu que só sei dizer «querido» e só «querido»... Promete-me que terá s
muito cuidado contigo. Que nunca te oferecerá s como voluntá rio
seja para o que for. Promete escrever-me muitas vezes, muitas vezes... Oh! Sven, Sven!
- Entã o, entã o! Nã o deves chorar. Vamos, vamos...
- Adeus, Sven. Lembrar-te-á s...
Ú rsula, Ú rsula. Um rosto pá lido que se esfuma. Ú rsula.
Ú rsula. Tactactac... tactactac... O comboio a deslizar. Os postes telegrá ficos a fugirem noutro
sentido. Em sentido contrá rio. O compartimento ia à cunha. -As pessoas discutiam,
discutiam até mais nã o. Acreditavam piamente na veracidade dos comunicados e a sua
estupidez crassa duplicava
a profundeza da minha desolaçã o.
A qual destas criaturas insensatas, bem vestidas, poderia eu fazer compreender que a
grande má quina militar montada
pelos generais alemã es rolava a uma velocidade enorme para um fim miserá vel? A quem
poderia eu explicar que a sua perfeiçã o era apenas aparente? Que consistia sobretudo
numa série de reflexos condicionados, aperfeiçoadíssimos,
dos quais, em primeiro lugar, se destacava a capacidade de um povo se manter em posiçã o
de sentido?
Capacidade talvez espectacular, mas que nã o produzia mais
do que robots, má quinas. E nã o ensinava de maneira alguma
a reconhecer e a avaliar a solidez do caminho sobre o qual avançavam os robots, passo a
passo, passo a passo...
Diziam-lhes
para seguirem por ali e os autó matos obedeciam cegamente...
A má quina atacava com fú ria insana um inimigo que possuía o ú nico factor autêntico da
vitó ria: a superioridade moral.

- Pela parte que me toca - respondeu o Velho -, passei uma bela licença com a minha mulher
e os garotos.
Muito
boa, mas que diabo se pode fazer em menos de uma semana?
A minha mulher é condutora de eléctricos, trabalha agora num 61. Sempre é melhor do que
ser revisora. Desta maneira
quase chega a manter a casa. Só foi pena ter de voltar a toda esta merda. Se ao menos um
gajo tivesse a sorte de
lhe terem de cortar uma gâ mbia, entã o, sim. Ficava livre desta porca de guerra nazi!
- Eu, por mim, antes queria um braço - declarou Joseph Porta.
Eu interrompi:
- Ainda nã o nos vimos no meio da refrega. Mas, santo Deus, talvez consigamos escapar...
O Velho escondeu o rosto nas mã os.
- Eu cá já vi que baste - murmurou. - Nã o peço mais. Nã o tenho necessidade de vitó rias
gloriosas. Tudo o
que desejo é a paz! Escapar desta? Quem nos ficará reconhecido
se escaparmos desta? Ninguém, nem. mesmo nó s.
Maldita porcaria...
Porta guardou a flauta no estojo. Pela primeira vez nã o tivera a coragem de tocar.
A LICENÇA DE PORTA
- Podem metê-lo no c..., o tal relató rio! Antes de ele chegar já estarei no deserto, e sempre
quero vê-los irem lá buscar-me, só porque o palerma de um empregado do caminho de
ferro apanhou uma castanha muito bem dada nas jó ias da família!
Porta assoou-se aos dedos e escarrou na parede, mesmo no meio de um aviso que dizia ser
proibido cuspir.
96 SVEN HASSEL
- Em resumo - prosseguiu amargamente -, nã o tive sorte nenhuma com a minha licença. Mal
lá cheguei, apareceu
uma espécie de tarada que vinha de Spandau com um pimpolho que queria fazer passar por
meu filho. Eu disse-lhe muito delicadamente que devia tratar-se de um mal-entendido
lamentá vel e que podia ir lamber sabã o; mas que eu seja general de brigada se aquela
maldita nã o me levou perante um tribunal, onde uma espécie de palhaço,
sempre a gritar por detrá s de uma secretá ria, me acusou de ser o pai do resíduo de aborto
da dama em questã o!
Eu disse-lhe muito calmamente que até o mais cegueta podia
ver a olho nu que se tratava de uma impossibilidade física flagrante: um belo rapaz como
eu nã o podia engendrar um ranhoso daqueles! E trata logo de me fazerem um teste de
sangue, com um palerma que se diz médico e promete esclarecer toda esta embrulhada!
Imaginem com que alegria
, me prestei logo à quilo, visto eles afirmarem que depois tudo se esclareceria. Pois fiquem
sabendo mais uma vez que ninguém se pode fiar nos médicos: este em questã o ! foi depor
no fim, afirmando que eu podia muito bem ser ; o pai da criança!
- Mas entã o, Porta, se a tua caderneta indica que nã o estiveste em Berlim no momento
crítico, eles nã o podem...
- Pois nisso é que vocês se enganam! Eles sã o capazes ; de tudo! E no ú ltimo dia, quando
estava a despedir-me dos
meus velhotes, no meio do ranger de dentes e da comoçã o
geral, surge outra burra a declarar-me que ia parir! «Para-bens», disse eu. «Felicidades. O
nosso Filho vai ficar bem contente! Os meus cumprimentos ao seu marido e que
ele nã o se esqueça de lhe despejar o caixote do lixo todas as manhã s...» Está visto que nada
daquilo me dizia respeito, mas ou se é bem educado ou se nã o é. Conversei um
um pouco com a tal burra, falei-lhe da grande felicidade que
ia entrar em sua casa e, palavra puxa palavra, passá mos para
o quarto contíguo com ideias de experimentar o colchã o.
Eu, como um idiota, estava para ali sem pensar em nada quando aquela burra me segreda
ao ouvido: «O pai és tu, meu querido. Ficaste contente?» «Contente!», digo-lhe eu.
«Está s a delirar?» Mandei-a vestir sem lhe dar mais cavaco.
Parecia-me estar a ser perseguido pela fatalidade. Nã o sei o

O REGIMENTO DA MORTE 97
que se passa com os outros, mas, comigo, basta que uma mulher se sente nos meus joelhos,
pumba!, é uma desgraça!
- Experimenta apertar a berguilha - aconselhou o velho. Sinceramente, Porta, tu nã o foste,
de verdade, a Berlim aqui há uns meses?
- Basta veres a minha caderneta...
- Lá o que figura na caderneta é uma coisa e o que nã o figura é outra...
- E tu, Bruto? -exclamou Porta ofendido. Fui a Berlim, na época em questã o, mas, santo
Deus, só lá estive
meio dia.
- Era mais do que suficiente se estavas interessado em assunto de coxas - retorquiu o Velho,
no meio das gargalhadas
gerais.
R. M. - 7

Deixem-me apenas cinco minutos a só s com o poeta que


descreveu um dia o Mediterrâ neo como um mar azul, adorá vel,
sorridente...
DESTINO: Á FRICA DO NORTE
Com as pernas penduradas no vá cuo, fora das portas dos vagõ es de gado, o 18.º batalhã o
atravessou a Roménia,
a Hungria e a Á ustria e dali desceu a bota italiana, berrando e gritando durante todo o
caminho. Cinco vezes chamá mos Joseph Porta para lhe mostrar um campo de macar—
roni. Ele nunca ficou totalmente convencido de que o macaroni nã o fosse um legume.
Em Ná poles «distribuíram-nos» tanques novos em folha e fardas tropicais. Porta recusou-
se a trocar a sua velha boina de feltro preta por um capacete colonial e, por causa disso,
houve entre ele e o Feldwebel encarregado dos fardamentos uma discussã o que por certo
se ouviu no Vesú vio.
Resolveram assim o assunto: Porta aceitou o capacete, mas
o Feldwebel nã o lhe tirou a boina.
Nas vésperas do embarque uma epidemia causou tantas baixas nas nossas fileiras que
tivemos de ficar ali à espera
de mais efectivos enviados da Alemanha.
Quando, finalmente, embarcá mos, éramos cinco batalhõ es, cinco mil homens distribuídos
por dois velhos vapores de carreira. Gritaram-se os vivas habituais, enquanto o nosso navio
deixava o porto. Encostados à amurada, empoleirados na mastreaçã o, atroá vamos os ares
com os nossos
clamores descomedidos...
Cada qual recebera o seu cinto de salvaçã o, com a ordem formal de nunca o tirar fosse sob
que pretexto fosse. Mas esses objectos constituíam uns travesseiros bons de mais

O REGIMENTO DA MORTE 99
para que alguém respeitasse a ordem. Os salva-vidas pendiam,
a postos, na ponta do cordame. Viam-se canhõ es aos pares na ponte, e íamos escoltados por
três torpedeiros italianos, cujas chaminés atarracadas vomitavam torrentes de fumo negro.
O balanço era tremendo e o cheiro a vomitado
tã o intenso, a impregnar o navio da popa à proa, que Porta, o Velho e eu nos deitá mos ao ar
livre, enrolados nos
capotes e protegidos do vento pela ponte. Nã o me recordo
acerca de que falá vamos, mas sei que íamos muito satisfeitos
com a nossa sorte. Julgo que conversá mos apenas, emitindo opiniõ es de interesse geral e
fazendo pequenas observaçõ es maduramente reflectidas. Falá vamos como simples
camponeses que se tivessem sentado no chã o, para merendar, à borda da sua jeira.
Havíamos deixado provisoriamente
de ser cadastrados e o pró prio Porta se conduzia normalmente, abstendo-se de temperar as
suas frases com expressõ es obscenas. Eu pensava em Ú rsula, cuja presença,
só por si, teria podido dar realidade à s tréguas que está vamos saboreando, três
companheiros isolados num transporte
de tropas pesadamente carregado de homens e material.
Porta sentiu necessidade de tocar qualquer coisa e descobriu
que a sua mala ficara em terra, no armazém de fardamentos, e teve entã o uma nova crise de
raiva.
- Socorro! Socorro! Assassinos! Estou morto! Malandros!
Pulhas! Porcos nazis! Estou roubado! Roubaram-me a flauta!
Nada conseguiu consolá -lo, nem mesmo a promessa de lhe comprarmos outra nova em
Tripoli. Nenhuma seria tã o boa como a que perdera!
Pouco a pouco todos adormeceram.
Fomos acordados em sobressalto por um grande ruído de motores, mesmo por cima das
nossas cabeças.
Desciam
do céu sobre nó s muitas línguas de fogo. Rangidos e assobios
rasgavam-nos os tímpanos e uma saraivada de aço martelava os flancos blindados do navio.
Os nossos canhõ es
de pequeno calibre deitavam, por sua vez, a língua de fora aos bombardeiros assaltantes:
bum! bum! bum!, e as metralhadoras
matraqueavam o mais que podiam.
100 SVEN HASSEL
Apertados de encontro à ponte, ao mesmo tempo assustados e agradavelmente cheios de
excitaçã o -ou nã o fosse
o nosso baptismo de fogo -, tentá vamos em vã o compreender
o que se estava passando. Os aviõ es voltavam agora à carga, picando sobre nó s e rugindo,
raivosos; -depois um chiar característico dominou a voz dos motores e o Velho gritou:
- Deitem-se! Aquela é para nó s!
Seguiu-se a explosã o e o navio estremeceu. Ouviam-se assobiar outras bombas, mas essas
destinavam-se ao outro
transporte. Rodearam-no jactos de á gua e de fogo, iluminando
os nossos rostos petrificados. Passados segundos, o outro navio era pasto das chamas
atroadoras, que ardiam
em turbilhã o. A sua D. C. A. continuava a atirar, despedindo
os seus raios vermelhos e amarelos através do fumo espesso. Um aviã o veio cair sobre o
castelo da proa, sendo
logo devorado pelas chamas. Tive de sú bito a impressã o de que os meus tímpanos
acabavam de rebentar. Nã o ouvi mais nada. A banda sonora do meu filme ” avariara-se.
Ergui-me para contemplar o mar ardente, caí de pernas para
o ar e descobri que voltara a ouvir. Repuxos de fogo e á gua
subiam para o céu. Soaram vá rias explosõ es nas entranhas
do navio. Uma das nossas três chaminés elevou-se lentamente
no escuro. Visã o estranha, irreal, inverosímil.
- Merda, vamos ao fundo!
Saíam continuamente estilhaços do interior do barco, donde se exalava o terror de
centenas de homens aprisionados
nos porõ es. A inclinaçã o agravava-se de segundo para segundo. Trocá mos um olhar
indeciso e depois saltá mos.
A distâ ncia que nos separava da á gua era tã o fantá stica que me parecia impossível
percorrê-la. E depois, de repente,
esta fechou-se sobre mim e eu continuei a descer, a descer,
com a impressã o de que o meu corpo acabara de se partir
pelo meio. Os ouvidos zumbiam-me e roncavam, qualquer coisa pulsava na minha cabeça,
cada vez com mais força, cada vez mais depressa. Por fim, nã o aguentei mais.
Desisti.
Está s liquidado. Vais rebentar. E precisamente nesse instante
a minha cabeça surgiu à superfície das á guas e os meus pulmõ es sorveram gulosamente
aquele ar raríssimo que lhes
fora recusado. Mas logo uma vaga me submergiu e eu lutei

O REGIMENTO DA MORTE 101


freneticamente, com os pés e as mã os, para me afastar do
navio, que ia afundar-se de um momento para o outro e arrastar-me para o fundo consigo.
Todas as cores do arco-íris
dançavam e cintilavam diante dos meus olhos. Nã o conseguia
saber em que direcçã o estava nadando. Nadava, simplesmente.
Lutava pela vida, apesar dos protestos dos meus mú sculos, que imploravam que os
deixassem gozar a tranquilidade
da morte. O meu instinto de conservaçã o, graças a Deus, foi mais forte do que os mú sculos,
mais forte do que os meus pulmõ es ofegantes, mais forte do que a minha
vontade. Foi mais forte e fez-me agarrar, rindo e soluçando
ao mesmo tempo, numa semi-inconsciência, a uma bó ia flutuante
que surgira bruscamente do nada.
Deixei-me ir, com os dois braços por cima da bó ia.
As vagas negras, coroadas de espuma, elevavam-se em jacto,
até que me senti empoleirada no cimo de uma enorme montanha de á gua, prestes a
mergulhar num abismo fervilhante,
que via subir até mim com um horror que tocava as raias da demência. Sentia que soltava
gritos histéricos, mas nã o os ouvia no meio do rumor das vagas. Algures, ao longe, o céu
estava vermelho, mas no meu raio visual só havia á gua, á gua negra, selvagem, poderosa,
terrificante.
E os tubarõ es! Haveria tubarõ es no Mediterrâ neo?
Certamente
que há tubarõ es no Mediterrâ neo! Comecei a dar pontapés a torto e a direito, mas logo me
cansei e tive de parar. Depois lembrei-me do Velho, de Porta, e comecei a chamar à s
escuras:
- VEEEEEELHO! POOOOOORTA! POOOORTA!
Só me respondeu o rugido das vagas e recomecei a soluçar desesperadamente, chamando,
no meio do meu terror,
pela minha mã e e por Ú rsula.
Bruscamente achei-me ridículo e preguei uma descompostura
a mim pró prio:
- Conserva o sangue-frio, santo Deus!
Desatei a rir, chiando como uma hiena, emitindo sons desafinados que nada tinham de
humano. Consegui, por fim, dominar-me e continuei a soluçar. Toda a noite as vagas me
baloiçaram, um miserá vel destroço a vomitar e a
chorar, mas sempre agarrado teimosamente à vida.
102 SVEN HASSEL
Seria aquilo uma voz que chamava no escuro? Prestei atençã o. Sim, era realmente uma voz.
Ali! Nã o, que dis-parate! Tinham morrido todos, nã o restava ninguém. Ninguém senã o eu.
Eu que nã o tardaria em rebentar também.
Sozinho, naquele buraco negro. Morreram todos. Agora têm mais que fazer do que
ocuparem-se de ti. Sã o uns patifes, uns malandros. Seria preciso estar louco para esperar
deles o mínimo socorro...
No entanto devia haver por ali alguém. Escapar primeiro, para vir a morrer em seguida,
depois de tantas horas
de sofrimento e desespero, seria completamente ridículo!
. Quando eles tiverem elaborado as suas listas e descoberto
o nú mero e a identidade dos que faltam, organizarã o buscas...
Buscas para encontrar quem? A ti! Um cadastrado!
Só para rir!
O dia clareava. Aquele objecto, lá adiante... Um homem agarrado a uma bó ia de salvamento,
tal como tu?
Ora, está s a ver coisas que nã o existem, tomas os teus desejos pela realidade...
Mas na verdade era Porta. Com um sorriso aberto, tirou a sua velha boina preta de um
bolso interior e pô -la na cabeça para me cumprimentar.
- Que prazer em ver-te de novo, meu velho! Também tu desceste à praia? Está hoje um
pouco hú mido, nã o é verdade? Mas um banho nunca fez mal a ninguém.
- Porta! Meu velho porcalhã o!
Eu sentia-me meio louco e os meus olhos diziam-me que ele se encontrava no mesmo
estado.
-Porta, sabes onde está o Velho?
- Sei!
Fez um gesto largo.
- Está armado em bacalhau de molho, como todos nó s...
Anda com a cara ora ao de cima ora debaixo de á gua Como?... Mistério!
Assim que atá mos as bó ias uma à outra para nã o corrermos o risco de sermos separados
por qualquer corrente, Porta continuou: - Parece que estamos ambos à espera do mesmo
combó io, nã o é verdade, meu caro senhor?

O REGIMENTO DA MORTE 103


Logo a seguir:
.- Se tu ao menos nã o fosses tã o magro... Mas a tua carcassa nem sequer serve para tapar a
cova de um dente!
no entanto, teria graça eu, daqui a cem anos, a contar aos meus netinhos a maneira como
um dia o seu avô zinho Joseph
salvou a sua preciosa existência graças a um saco de ossos
chamado Sven. Nã o te encheria de orgulho acabar a tua carreira heró ica no estô mago do
melhor soldado do nosso Fü hrer? Quando voltar para casa, mando-te erguer um
monumento. Preferes de bronze ou de granito?
De sú bito deu um urro e, designando no horizonte a silhueta de um navio, apontou: - Lá
vem o nosso comboio!
Rivalizá mos em ardor vocal, mas o navio desapareceu.
- Sai da minha vista, monte de esterco! -concluiu Porta, com a voz rouca de tanto ter
berrado. Ainda que ele tivesse vindo até aqui, ter-nos-íamos recusado a subir para um
chaveco daqueles, nã o é verdade, Sven?
A manhã foi passando. O sol, quando conseguia romper as nuvens, escaldava, embrutecia-
nos. Sentia-me meio morto
de fadiga, mas Porta discursava sempre: - Olha, por exemplo, as gaivotas: esta vida, para
elas, é uma festa. Se tivéssemos asas, seria um gozo; mas estamos
aqui com o cu de molho e nã o há nada a fazer! Passa a gente a vida a fugir do mar e a
primeira coisa que esta porcaria do exército nos faz é atirar-nos lá para dentro sem nos
pedir licença. Eu sempre disse que a vida de soldado
nã o tem futuro. Promete-me que nunca será s general, meu filho! Se ao menos o tempo nã o
estivesse tã o hú mido...
- Porta... achas que escapamos desta?
- Se escapamos desta? Tenho a certeza absoluta disso, mas por ora só tens de te aguentar.
Se começas a chiar, prego-te um soco que nem sabes de onde ele veio! Vais fazer-me o favor
de manter a cara fora deste mijo de baleia,
combinado? Quando for a altura de te afogares, eu digo.
Entretanto, dá graças a Deus por nã o estarmos num daqueles
buracos infectos, com os canhõ es por cima a cantarem uma
serenata. Oh!, bem sei que essas covinhas da terra de ninguém sã o um remédio santo para
as pessoas com tendência
para a prisã o de ventre; mas aqui está s mais em
104 SVEN HASSEL
segurança do que mereces. Nã o só podes fazer chichi nas calças, como ficas logo bem
lavado. É uma habilidade que nã o se consegue realizar nas covas dos obuses...
A sede torturava-nos e acabou mesmo por vencer a inesgotá vel facú ndia de Porta.
Quando raiou o segundo dia, fomos sobrevoados por um aviã o italiano que nos lançou um
barco pneumá tico, o qual veio cair a 20 metros de nó s. Rindo e chorando ao mesmo tempo,
Porta gritou:
- Obrigado, meu velho comedor de spaghetti!
Foi mais difícil do que pensá vamos percorrer a distâ ncia de 20 metros e saltar para dentro
do barco. Pusemo-nos um
de cada lado. Eu devia ser o primeiro a tentar, mas nã o sei como fiz que me enfiei por baixo
dele e ia-me afogando
com tanto riso. Um riso convulsivo, motivado pelo esgotamento
físico e nervoso. Mas, por fim, achá mo-nos ambos dentro do barco pneumá tico e o nosso
primeiro gesto foi trocar um solene aperto de mã o.
- Agora só nos falta um baralho de cartas!
Isso nã o havia a bordo, mas o compartimento estanque continha latas de leite, carne seca,
biscoitos e quatro garrafas
de aguardente. Depois de termos comido e bebido bem, estendemo-nos debaixo da
cobertura, e «até amanhã »!
O frio acordou-nos a meio da noite. Aquecemo-nos mutuamente
à força de palmadas e de um reforço de aguardente, e outra vez «até amanhã », depois de
havermos reencontrado
o calor. Este novo sono durou até perto do meio-dia. Um segundo exame ao compartimento
estanque revelou-nos a existência de uma caixa de foguetõ es e de um barril de ó leo
amarelo, que basta despejar sobre a á gua para que ele logo se estenda e produza uma
enorme mancha dourada,
bem visível dos ares. Seguimos à letra as instruçõ es e deitá mos
dois ou três foguetõ es, berrando como se estivéssemos a assistir a um fogo de artifício;
cantá mos depois uma cançã o alemã , uma inglesa e outra francesa e devorá mos o
resto das provisõ es -- com excepçã o de alguns biscoitos -, fazendo batota por brincadeira,
mas dividindo tudo como irmã os. E começá mos finalmente a falar dos outros, muitos
dos quais deviam estar mortos.

O REGIMENTO DA MORTE 105


- Temos também de escrever cartas - suspirou Porta a todas as mulheres, a todas as mã es, a
todas as noivas...
Ú rsula!
No dia seguinte de manhã bebemos o que restava de aguardente e trincá mos os
derradeiros biscoitos.
- A pró xima ementa é couro de bota. Como preferes o teu? Com trufas ou com molho de
baunilha?
Nesse mesmo dia deparou-se-nos um cadá ver a boiar sustentado pelo cinto de salvaçã o.
Nã o foi fá cil içá -lo para bordo. Tratava-se de um sargento com as pernas e a barriga
horrivelmente queimadas. Os seus papéis revelaram-nos que se chamava Alfred Konig,
Unteroffizier do 161.º
regimento
de artilharia, soldado havia três anos, contando 22 de idade e casado com Irma Bartels, de
20 anos, natural
de Berlim. A sua carteira continha alguns instantâ neos onde se via ele com uma mulher
loira e razoavelmente bonita.
Esvaziá mos-lhe as algibeiras antes de o restituir ao mar.
- Apresenta os nossos cumprimentos a todos os que nadam entre duas á guas nesta porcaria
de aquá rio disse Porta. - Hei-de escrever uma bela carta a Irma, a contar-lhe que morreste
como um heró i, de repente, com uma bala no
coraçã o, depois de haveres resistido, durante quatro dias, a um inimigo muito superior em
nú mero. Sim, eu sei fó rmulas
apropriadas que a tua querida Irma poderá repetir com orgulho à s amigas, para as
convencer de que o seu Alfred se deixou matar com todas as regras, combatendo pela sua
pá tria gloriosa e podre. Deus nos livre de que ela venha a saber que foste assado como um
pato e depois
posto de molho. A tua Irma, a estas horas, encontra-se talvez estendida na cama, a ler a tua
ú ltima carta, em que lhe dizias estar de saú de, sempre a pensar nela e que lhe eras fiel e
incapaz de meter o nariz ou qualquer outra coisa nas mú ltiplas tentaçõ es de Ná poles!
Depois disso ela limpará
uma lá grima furtiva e deixará ir-se embora o recebedor do gá s sem lhe haver mostrado
outra coisa além do lugar do contador... E aqui está a vida dessa pobre Irma!
Todos os dias jejua porque o Fü hrer lhe arrebatou aquilo que era dela, para o mandar para
o fundo do mar... E nã o
106 SVEN HASSEL
tarda que receba uma carta do exército, breve e simples.
cem por cento militar:
O sargento Alfred Kö nig, do 161.º regimento de artilharia, caiu a 30 de Setembro de 1941,
combatendo heroicamente pelo Fü hrer e pela pá tria.
- Depois, a assinatura ilegível de um patife de um oficial qualquer e, mais abaixo, em belas
letras gó ticas.
como uma citaçã o da Bíblia: O Fü hrer agradece. Heil Hitler!
Porta exprimiu a sua indignaçã o com um traque vigoroso e, passeando o olhar por sobre a
imensidã o cinzenta, disse:
- Durante alguns dias a pequena Irma vai andar com os olhos inchados e o postal dentro da
carteira. Talvez encontre algumas pessoas que terã o pena dela, mas nã o muita, porque isso
nã o aconteceu só a Irma e, se fô ssemos a
sentir todas as dores das outras, nunca mais acabá vamos...
e a senhora nã o poderia dizer-me onde poderei arranjar meio quilo de manteiga? E para a
pró xima vez em que vier o homem do gá s ela mostrar-lhe-á mais alguma coisa do que o
lugar do contador e, desta maneira, o desaparecimento
de Alfred terá , afinal, o seu lado bom, porque ele só vinha de licença uma vez por ano e o
homem do gá s vem de dois em dois meses e nã o corre o risco de morrer pelo Fü hrer,
porque já tem uma perna de pau!... Quem sabe? Talvez a gente vá aportar à Espanha. Uma
boa lasca
de cabelos pretos e um cravo atrá s da orelha vinha mesmo
”a calhar, deixa-me que te diga...
A sede atormentava-me de tal maneira que a volubilidade incessante de Porta se tornava
para mim progressivamente
insuportá vel.
- Nã o podes calar-te por um bocado? Pensar em espanholas quando estamos para aqui a
morrer aos poucos
de fome e sede!
- A morrer? Está s parvo, ou quê? Se julgas que as Forças Reais Italianas do Ar nos fizeram
presente deste

O REGIMENTO DA MORTE 107


encantador brinquedo para nos deixarmos morrer cá dentro.
Seria um insulto ao rei da Itá lia. A propó sito do rei da Itá lia, sempre gostava de saber se as
cabeças coroadas
terã o penicos de ouro com um assento de peluche!
Sempre a rir, tirou as calças e sentou-se, com o posterior na borda da embarcaçã o. De
tempos a tempos uma vaga vinha fustigar-lhe o traseiro.
- Ui! Isto faz có cegas, caramba! Mas é higiénico!
Devias experimentar. Ainda é melhor do que os penicos do rei da Itá lia!
- Porta, nã o tens graça nenhuma!...
A sua vitalidade espantava-me e deixava-me fatigado; era para mim como uma parede
branca exposta ao sol do meio-dia. Mas de cada vez que ia para me atirar a ele, os seus
olhos detinham-me. Diziam-me que, apesar de toda aquela paró dia, ambos está vamos no
mesmo estado.
E, depois, também isso acabou por me enervar e se, mesmo ao anoitecer, nã o tivéssemos
descoberto um navio
no horizonte, creio sinceramente que teria perdido todo o domínio e tentaria estrangulá -lo.
Mas, graças aos foguetõ es,
pudemos assinalar a nossa presença e, menos de uma hora
decorrida, está vamos debaixo de um chuveiro quente, a bordo de um destroyer italiano, a
lavar o mazute que nos empastava os cabelos. Depois enfiaram-nos em dois beliches
bem limpos, bem quentes, serviram-nos uma montanha de spaghetti regado com vinho
tinto e deixaram-nos dormir como cepos.
No dia seguinte os marinheiros disseram-nos que fora salva uma notá vel percentagem dos
efectivos naufragados, os
quais se achavam reagrupados em Ná poles, onde seríamos
também desembarcados. O médico de bordo veio vernos, perguntou como nos sentíamos,
observou-nos atentamente e foi-se embora sem mais nada. A conversa recaiu sobre os
nossos companheiros, e Porta suspirou melancolicamente:
- Nã o vai ser divertido escrever à mulher do Velho.
Fui visitá -los durante a minha licença, e o Velho, a mulher, o pai e eu combiná mos
encontrar-nos daqui a seis meses, pois entretanto a guerra deve ter acabado e a revoluçã o
será vitoriosa. Caramba! Espero que o Clube Real dos Piratas Comedores de Spaghetti o
tenha pescado também
108 SVEN HASSEL
e que ele esteja agora numa pensã o napolitana a sujar a reputaçã o em companhia de
raparigas da má vida!... Mas que estou eu para aqui a dizer? Pois claro que deviam ter
pescado o Velho! Que seria do Rommel em Á frica sem ele?
Nada conseguiria sem o Velho, e até sem nó s, para o aconselharmos...
Chegados a Ná poles, fizemos um pé de vento infernal.
- Nã o queremos saber do major para nada! Para nó s é como se o exército nã o existisse
enquanto nã o descobrirmos
onde está o Velho. Nã o foi para nos divertirmos que nos deixá mos torpedear e andá mos a
fazer namoro aos tubarõ es do Mediterrâ neo durante dias e dias! O Velho é um amigo nosso
e, enquanto nã o soubermos se ele está morto ou vivo, nã o ligamos nenhuma a majores nem
a coronéis! Ficamos aqui e daqui nã o saímos. Mandem-nos fuzilar, metam-nos na cadeia,
estamo-nos marimbando para
isso tudo!
Resumindo, tínhamos ambos uma falha. Era a reacçã o.
Nã o podíamos aguentar mais. Felizmente que eles perceberam
o nosso estado e que o major era um tipo decente. De resto, as nossas relaçõ es melhoraram
depois de ele nos ter
explicado que vinha também no outro transporte de tropas e que passara mais ou menos o
mesmo que nó s.
Logo que o Feldwebel do armazém de fardamentos reconheceu
Porta, dirigiu-lhe um sorriso rasgado e apertou-lhe a mã o. Expusemos-lhe a nossa odisseia
e, quando lhe perguntei
se nã o ouvira falar de Wil ie Beier, chamado o Velho, deixou-nos a escolher as nossas
farpelas no interior
do armazém e desapareceu dentro do minú sculo escritó rio. Ao
cabo de um instante mandou-nos entrar. Esperava receber notícias dentro de minutos.
Ofereceu-nos aguardente
e cigarros e quis saber pormenores acerca do naufrá gio dos
dois navios. Porta respondeu-lhe a primeira coisa que lhe veio à cabeça. Sentíamo-nos
muito impacientes por adquirir
uma certeza e aqueles minutos pareceram-nos horas.
Tínhamos
a impressã o de que o Velho devia estar por ali perto e que, de propó sito, nã o nos deixavam
ir ao seu encontro.
O
telefone tocou:
- Está ! Sim?... Sim?... Onde?... Obrigado!

O REGIMENTO DA MORTE 109


O Feldwebel voltou-se para nó s. Estou ainda a ver o seu sorriso.
- Está nos aquartelamentos da marinha, junto do porto...
Aquele Feldwebel compreendeu, espero, que nã o havia ingratidã o nem indelicadeza no
impulso que nos atirou, a mim e a Porta, para a saída, sem lhe agradecermos sequer.
Mas, em tempo de guerra, um amigo é qualquer coisa de muito precioso, e , muito especial.
Uma coisa que se descobre na solidã o do apocalipse da grande confusã o, uma coisa que
estamos arriscados a perder de um momento para o outro e da qual medimos plenamente
o verdadeiro valor...
Os quatro ou cinco dias que se seguiram decorreram pacificamente, sem se fazer nada.
Visitá mos Pompeia, bem como o Vesú vio, cuja cratera era uma vítima mesmo a propó sito
para a retó rica de Porta.
E depois, uma bela manhã , meteram-nos em aviõ es de transporte e... adeus Itá lia! Doze
aparelhos do mesmo tipo, voando em V, escoltados por caças. O Mediterrâ neo desapareceu
atrá s de nó s, enquanto sobrevoá vamos, de muito alto, umas montanhas negras. De longe
em longe, avistá vamos um lago, uma cidade. Fizemos duas’escalas antes de alcançarmos o
nosso destino, Wuppertal, na Vestefá lia.
Atravessá mos a cidade a pé, até à caserna de Elberfeld.
Ali, fomos reagrupados em três companhias; era tudo o que se podia fazer com os
sobreviventes e dirigimo-nos em seguida para a frente russa, com o fim de sermos
incorporados no 27.º regimento (disciplinar) blindado.
O Velho sacudiu a cabeça e disse com desprezo: - Nã o sejas ingénuo, Hans. Enquanto
houver oficiais cegos pela disciplina, toda a gente calará a boca e marchará para a frente.
Olha o que se passou em 1918. Só -. :! quando toda a má quina se esbarrondou é que os tipos
de
uniforme se revoltaram. Mas Deus nos livre de uma revoluçã o. Sobretudo prematura. O
velho alemã o comedor de salsichas importa-se tanto com a revoluçã o que nem sequer
pensa nela, e nã o é com tipos medrosos que se fazem revoluçõ es. Isto acaba como deve ser:
os mais espertos fogem
com a sua posta. Os patifes saem indemnes e hoje encontramo-los firmes nos seus postos,
com a Schlague na mã o!
Toda esta cangalhada vai cair por terra, nã o há dú vida, mas que me chamem Adolfo se isso
conduzir a uma revoluçã o. Será sempre a mesma histó ria: os mais espertalhõ es
entender-se-ã o entre si e salvar-se-ã o mutuamente a pele.
Ajudarã o os patifes a levantar-se e fornecer-lhes-ã o belos
chicotes novos para poderem outra vez fazê-los estalar sobre
as nossas costas! Enquanto os meus estimados compatriotas
nã o descobrirem o segredo da manigâ ncia, nã o tenho com—
fiança nenhuma neles. Hitler e os seus acó litos serã o exterminados, como é justo, e quanto
mais cedo melhor. Mas o que sã o eles mais do que vulgares fantoches? E nã o se
pode chamar fazer uma revoluçã o só ao simples facto de destruir os fantoches e deixar
fugir, com a receita do espectá culo no bolso, quem lhes puxa os cordéis.
Assim falava o Velho em 1941.
TRÊ S MULHERES
Entre os numerosos homens que vieram completar a nossa companhia encontrei um novo
amigo, Hans Beier.
Fora
tenente da polícia em Dusseldó rfia e devia a honra

O REGIMENTO DA MORTE 111


de pertencer à nossa querida unidade ao facto de se ter recusado a alistar-se como
voluntá rio nas SS, conforme Hitler ordenara a muitos polícias. Estava convencido de que
a Alemanha perderia a guerra dentro em breve, pois sabia de fonte limpa (o irmã o
trabalhava no Ministério da Propaganda,
do Dr. Gö ebbels) que o nazismo estava à beira da bancarrota.
Os nazis só podiam confiar numa pequena fracçã o das forças armadas e, mais tarde ou mais
cedo, os generais arrumariam as contas com Hitler e com o seu bando de paranó icos. Hans
e eu falá vamos em desertar de novo, mas
o Velho aconselhou-nos a nã o tentar isso.
- Nã o há um em mil que consiga escapar, e se eles vos caçam, espera-vos a parede, com
doze balas na pele.
Nã o. o ú nico truque é um bom ferimento, mas, por amor de Deus, nã o tentem fazê-lo a vó s
pró prios. Eles observam
ao microscó pio todos os que podem ser autores do seu pró prio ferimento e, se descobrem o
menor sinal suspeito, pronto! O melhor é ainda o tifo ou a có lera; nesses casos nã o se pode
provar absolutamente nada. Quanto à sífilis, nada feito. Saem do hospício ao cabo de quinze
dias, depois
de um tratamento que nunca mais esquecerã o! Nada de doenças venéreas. Se nã o é caso
grave, curam-nos enquanto
o Diabo esfrega um olho. Se é grave, esfolam-nos vivos para nos ensinarem moral...
Também há os tipos que bebem
carburante dos tanques, e isso também nã o é mau: apanha-se
uma peste bubò nica que se pode manter durante quatro ou cinco meses, com a condiçã o de
se conhecer o truque. Ou entã o pode-se fazer passar um cigarro por um tubo de escape e
fumá -lo em seguida; é bom, mas a febre que produz nã o dura muito tempo, o que obriga a
levar Para o hospital uma garrafa de gasolina e um saco de açú car: come-se açú car
impregnado de carburante todos os
dias e a febre mantém-se a cerca de trinta e nove graus.
Mas o material requerido torna a coisa perigosa. Uma vez Preso, o tipo está frito por «falta
de vontade de combater»...
no caso de conhecerem um enfermeiro militar digno de confiança, uma perna gangrenada
custar-vos-á entre duzentos
e quatrocentos cigarros. Cortam-vos a pata e, para vocês, a guerra acabou. Ele também
poderá arranjar-vos á gua
112 SVEN HASSEL
infectada com o tifo, Mas este género de truque tem sempre
contras. Ou resulta (Porta experimentou-os todos, comeu até um cã o podre, cheio de
bichos, mas nele tudo. deu o mesmo resultado que uma cura nas termas), ou entã o fica-se
paralítico e acaba-se no cemitério. Isso já aconteceu a muitos
tipos que se tinham na conta de espertalhõ es...
No domingo 12 de Outubro o nosso comboio transpô s a fronteira polaca em Breslau.
Enquanto estacioná vamos na
gare das mercadorias de Czestochowa, distribuíram-nos «raçõ es
de emergência», compostas de uma caixa de goulasch, alguns biscoitos e meia garrafa de
rum. Era-nos formalmente
proibido tocar naquelas raçõ es sem nos ter sido dada ordem.
Particularmente o rum, nã o devia ser consumido fosse sob que pretexto fosse. Com a sua
grandiloquência habitual, o exército chamava à quilo uma «raçã o de ferro».
A primeira coisa que fez Porta, bem entendido, foi beber o rum. Quando tirou a garrafa da
boca, estava vazia.
Atirou-a
para trá s das costas, com um gesto elegante, deu um estalo com a língua e deixou-se cair
sobre a palha que atapetava
o vagã o. Antes de adormecer soltou um vento sonoro e chasqueou:
- Cheirem, meus filhos. Este ar tem vitaminas.
Duas horas depois acordou, espreguiçou-se, arrotou; depois, com grande espanto nosso,
tirou outra garrafa da mochila e esvaziou-a sem hesitaçõ es, com uma expressã o de
perfeita beatitude. Em seguida reuniu-nos à sua volta para a clá ssica partida de cartas e
tudo correu na melhor ordem,
até que uma voz chamou lá de fora: - Obergefreiter Porta, saia cá para fora!
Porta nã o se mexeu, com os olhos fixos nas cartas.
- Cala a boca, meu porco! -replicou Porta, sem mesmo voltar a cabeça. - Se queres alguma
coisa, vem-me cá buscar, monte de esterco, mas limpa as patas antes de entrar e para a
outra vez trata de me chamar «Herr Obergefreiter
Porta». Aqui nã o é a -tua casa, nã o está s na caserna, meu piolhoso congénito!
Um silêncio de morte seguiu-se a esta apó strofe. Depois, todo o vagã o desatou a rir e,
quando o silêncio se restabeleceu,
a voz rugiu com mais força ainda:

O REGIMENTO DA MORTE 113


- Porta, se nã o sais imediatamente, levo-te a conselho de guerra!
Porta mirou-nos com os olhos arregalados: - Eu seja cã o se nã o é o capitã o Meier -
murmurou. -
O desgraçado do Porta vai apanhar palmadas no rabo!
Saltou para fora do vagã o e bateu os calcanhares diante de Meier, que o esperava de mã os
na cintura e pernas afastadas, roxo de furor.
- Com que entã o dignaste-te aparecer, Herr Obergefreiter! Vou ensinar-te a cumprir as
ordens, meu tratante!
Como é que tu me chamaste? Porco e piolhoso congénito?
O quê? Sentido, caramba, antes que eu perca a cabeça!
Insultos a um oficial! E o que é isto? Cheiras a rum a sete léguas! Está s bêbado como um
carro! Bebeste a tua raçã o
de ferro! Sabes que nome tem isso? Insubordinaçã o! E
nã o
julgues que ficas assim!
Rígido e mudo, com um ar incrivelmente estú pido. Porta conservava-se em sentido diante
do capitã o Meier, que acabou em breve por perder completamente o domínio sobre si:
- Responde, monte de esterco! Bebeste ou nã o o teu rum!?
-Sim, Herr Hauptman, mas apenas uma golada de mistura com o nosso chá nacional-
socialista, já de si tã o saboroso. E era o rum que o sargento me devia desde a campanha da
França. Posso recomendar-lhe que experimente a receita, Herr Hauptman. Um pouco de
rum no Ersatz de chá que o nosso bem-amado Fü hrer nos manda distribuir...
- Está s a brincar comigo? Vai já buscar o rum da tua raçã o de ferro!
Tirando uma terceira garrafa dos seus inú meros bolsos, Porta apresentou-a, sorrindo, ao
capitã o estupefacto, a fim de que ele pudesse verificar por si que estava cheia.
Um canalha qualquer devia ter dito a Meier que Porta lhe roubara o rum. Descobrimos,
efectivamente, mais tarde
que Meier prometera quinze dias de licença a um cabo se este lhe fornecesse um motivo de
peso para mandar Porta para a cadeia.
- Herr Hauptman nã o vai julgar, com certeza -pró sseguiu Porta todo salamaleques, que eu
sabia estar fa-R. M. - 8
114 SVEN HASSEL
lando com o Herr Hauptman quando proferi todas aquelas coisas horríveis! Nunca me
passaria pela cabeça gritar semelhantes
coisas ao meu comandante de companhia, por quem sinto a mais viva admiraçã o. Julgava
ter reconhecido a voz do Unteroffizier Fleschmann. Quanto a esse, é certo que o pai dele
tinha piolhos, que transmitiu ao filho...
Como sempre, Meier acabou por se ridicularizar, mandando
trazer Fleschmann à sua presença. O dito Fleschmann explicou com a maior seriedade que
existia entre ele e Porta uma aposta permanente acerca de qual dos dois seria capaz de
vociferar e praguejar com maior competência.
A presença dos piolhos na sua família era um facto autêntico e indiscutível. Já vinha da
guerra de 1914-18.
O seu pai apanhara-os em Verdun e desde entã o toda a família continuava infestada...
- Meus filhos - começou Joseph Porta, uma tarde em que nos encontrá vamos numa via -de
resguardo, entre Kilsu e
Czestochowa -, já nã o sei há quantas semanas vivemos neste palá cio rolante e continuamos
a ignorar o que está por detrá s daquela porta! Designava uma porta à esquerda
do nosso vagã o. Até entã o só tínhamos aberto a porta da direita.
- Nó s sabemos o que está para além daquela porta - prosseguiu ele, designando desta vez a
da direita. - Para ali estende-se a Poló nia imensa. Mas os mistérios que se ocultam atrá s
daquela outra que se encontra fechada, esses
nã o os conhecemos nó s. Talvez lá encontremos...
Nesta altura começou a desaferrolhar a porta.
- Talvez lá encontremos a pró pria Fitaria, visto o Fü hrer dizer que ela nos pertence! Ou
talvez descubramos mesmo atrá s desta porta nunca antes aberta uma porçã o de
belas raparigas...
Baixara a voz, mas, pela primeira vez na sua vida, esta faltou-lhe em absoluto quando, com
um gesto complicado, acabou de afastar as portas corrediças. Porque havia ali
efectivamente, nã o uma porçã o, mas três raparigas nada feias, que nos olhavam agora com
um sorriso um pouco

O REGIMENTO DA MORTE 115


duvidoso. Quanto a nó s, está vamos positivamente de boca
escancarada até à s orelhas.
A mulher, para um soldado em campanha, é um ser especial e especialmente complicado.
Representa o objectivo
etéreo, longínquo e româ ntico de muitos desejos torturantes,
materializada nos sonhos solitá rios de uma vida civil desaparecida, esmagada, desfeita até
à irrealidade pelo
barulho, a confusã o, o constrangimento da vida militar; representa também a lubricidade
acumulada, recalcada neles
mesmos, por aqueles homens privados de mulheres. Um soldado
nã o é exactamente um homem, mas sim uma farda entre tantas outras, e é por isso que ele
se permite exprimir
grosseiramente verdades de natureza sexual que, na vida ordiná ria, entre pessoas normais,
nã o se atreveria sequer a enunciar. A sua farda é um escudo contra a identificaçã o,
uma garantia de anonimato. Alija de si todos os complexos
desse modo mesquinho e miserá vel. Ele é a companhia inteira,
sente-se em segurança no meio dos seus camaradas.
Saltá mos todos em terra, largando frases maliciosas, capazes de porem os cabelos em pé.
Nã o tínhamos má intençã o, nã o era nosso desejo ofender as três jovens, e, de
resto, eu notara que as mulheres pouco se atrapalham com
os ditos, mais ou menos fortes, de um grupo de soldados.
Quando até mesmo Porta havia esgotado o seu repertó rio, voltá mos quase todos a subir
para o vagã o, porque fazia lá fora um frio de rachar. Porém, Porta, Plutã o, Hans e eu
ficá mos para trá s. Olhá vamos para as raparigas e estas
olhavam para nó s, e só entã o medimos em toda a sua amplitude
o cará cter insó lito da situaçã o. Certamente que tínhamos consciência dela desde o
princípio, mas a surpresa
de se nos depararem mulheres neste canto perdido, no momento em que menos o
esperá vamos, cavara o vá cuo
nos nossos espíritos.
As três raparigas envergavam o vestuá rio à s riscas das prisõ es e entre elas e nó s erguiam-
se 2 bons metros de arame farpado e rebarbativo.
Vinham todas de França e permaneciam naquele campo havia mais de catorze meses. Uma
delas era judia.
Quando
souberam que está vamos de partida para a Rú ssia, pediram-nos
para as levarmos. De brincadeira, claro.
116 SVEN HASSEL
- Nã o é possível, minhas filhas - respondeu Hans. A Gestapo mandava-nos logo fuzilar.
Uma delas, alta e loira, com uns olhos cintilantes de inteligência, atirou-nos em tom de
desafio: - Vocês estã o com medo? Mostrem que sã o homens!
E bruscamente, sem que nenhum de nó s o tivesse desejado
verdadeiramente, apercebemo-nos de que começá vamos a levar o caso muito a sério.
- Será melhor retirarmo-nos -- declarou Hans nervosamente.
- Se os SS vêem estas pobres pequenas a tagarelar connosco, vã o espancá -las até as
estropiar...
--Havemos de ficar aqui até nos apetecer! --respingou Porta.
Hans lançou uma olhadela à direita e à esquerda, procurando
ansiosamente a silhueta inquietante de qualquer guarda.
- De acordo, mas nã o seremos nó s quem mais apanha se eles nos descobrirem!
Havia muita verdade nestas palavras. Demorando-nos ali, está vamos a expor aquelas
mulheres a represá lias inú teis,
sob a forma de maus tratos que nó s pró prios está vamos fartos de conhecer.
Olhá vamos para elas com ar indeciso e elas para nó s com uma expressã o resignada.
--Raios partam tudo isto! -praguejou Plutã o. Devíamos levá -las connosco. As pobres
pequenas só têm a pele e o osso...
- E apesar disso nã o sã o nada feias - acrescentei.
Elas sorriram tristemente. Atirá mos-lhes cigarros e ficá mos
mais uns instantes a reflectir, estudando as possibilidades, mas incapazes de tomar uma
decisã o ú til.
Nã o se sabe porquê, o Velho, em companhia de Asmus, surgiu nesse momento debaixo do
nosso vagã o.
- De nada serve estar para aqui a empatar! Elas vêm connosco ou nã o? Se vêm, nã o é
preciso esperar quinze dias!
Estava, como sempre, perfeitamente senhor de si e vivo como o relâ mpago. Em menos de
um á pice fez-nos erguer uma pirâ mide humana junto de um dos postes.
Empoleirado
sobre os ombros de Asmus e do gigantesco Plutã o,

O REGIMENTO DA MORTE 117


estendeu à s três mulheres os nossos cintos presos uns aos
outros e içou-as, uma por uma, por cima da barreira de arame farpado. Hans, Porta e eu
está vamos do outro lado, para as receber nos braços. Em seguida, Asmus, Hans e Plutã o
voltaram para a nossa carruagem, com a incumbência
de porem na rua todos aqueles que nã o eram «da casa»
e fecharem a outra porta. Pudemos assim embarcar as nossas passageiras ao abrigo de
qualquer olhar indiscreto.
Mas as complicaçõ es, bem entendido, nã o ficaram por ali. Em que sarilho nos havíamos
metido? Com o coraçã o a bater, começá vamos a pensar que aquela histó ria era talvez
a mais perigosa em que poderíamos envolver-nos.
Qualquer
coisa nos apanhara de surpresa. Seria a vida? (Para empregar
um termo pomposo.) Fosse como fosse, se está vamos assustados com esta aventura, na
qual nos havíamos atirado
de cabeça, sentíamo-nos ao mesmo tempo felizes e orgulhosos
de a havermos começado. Experimentá vamos aquela alegria
que nos invade quando nos reconhecemos capazes de fazer muito mais do que havíamos
imaginado. Gostaria de poder explicar isto sem ter o ar de nos exibir, mas, de cada
vez que oiço falar de actos heró icos, cito este caso como exemplo do que pode ser um acto
verdadeiramente heró ico,
e devo dizer que, ao contacto desta pedra de toque, muitas
façanhas que se exaltam só me inspiram, por maior boa vontade que tenha, uma admiraçã o
extremamente moderada.
Esta histó ria pode apresentar-se como uma vitó ria da solidariedade humana sobre o
egoísmo engendrado pela solidã o.
- Para voltarmos à s coisas prá ticas - concluiu o Velho assim que nos refizemos das nossas
primeiras alegrias de
conspiradores, nã o podemos deixá -las metidas naquelas andainas de prisã o. Temos de as
encadernar de outra maneira.
Mostrem tudo o que para aí têm, rapazes, e nada de batota!
Num abrir e fechar de olhos, surgiram, de dentro de quarenta mochilas, peú gas, roupas
interiores, camisas, calças,
camisolas, linhagens, carapuços, sapatos, tudo para ser proposto à escolha das nossas
protegidas.
E quando elas despiram calmamente os vestidos de prisioneiras, sob os quais se
encontravam nuas, quarenta
138 SVEN HASSEL
soldados sebentos voltaram as costas num movimento ú nico
e olharam para o outro lado. Deus sabe que constituíamos um punhado de malandrins sem
escrú pulos. Fora a civilizaçã o,
calculo eu, que nos conduzira à quele estado, mas vê-se por este exemplo que, afinal de
contas, nã o se deve ser demasiado pessimista quanto à pouca espessura do verniz
da educaçã o, pois é essa mesma falta de espessura que deixa à educaçã o inata, à educaçã o
dos sentimentos, a possibilidade de se revelar. Foi ainda outra coisa que nos fez deixar
aquelas mulheres em paz a mudar de fato.
Protestá vamos
assim, ao mesmo tempo, contra os guardas do campo de concentraçã o, que, durante catorze
meses, haviam
escarnecido e espezinhado toda a decência humana.
Queríamos
mostrar à quelas pobres raparigas que a dignidade, a consideraçã o e a humanidade existiam
ainda para além da condiçã o de simples palavras ocas. Mesmo entre soldados
barbudos e desbocados.
Instalá mo-nos atrá s de uma pilha de bagagens. Depois o Velho, Porta e eu fomos verificar
se já fora dado o alarme no interior do acampamento, enquanto os outros se
sentavam no sobrado, entre as portas corrediças, para impedir
a todos os estranhos acesso ao nosso vagã o.
O comboio partiu antes que se descobrisse a tripla evasã o.
Nos dias seguintes os melhores bocados de tudo o que podíamos desencantar iam
automaticamente para as nossas
três passageiras clandestinas. A mais velha, Rosita, era professora
de mú sica e Porta tornou-se logo seu defensor particular.
Nunca conseguimos fazê-la dizer por que motivo fora mandada para um campo de
concentraçã o.
Jeanne, a mais nova - apenas atingira a maioridade -, frequentava um curso na Sorbonne no
momento em que fora presa. Os seus dois irmã os, tenentes no exército francês,
estavam prisioneiros na Alemanha. O pai era procurado pela Gestapo, que a deportara a ela
como refém.
Maria, uma judia, fora apanhada uma noite em plena rua e enviada para a Poló nia sem
outra forma de processo.
O marido era um negociante lionês e tinha um filho de 2 anos e meio. O segundo filho, outro
rapaz, nascera

O REGIMENTO DA MORTE 119


três meses depois da chegada dela ao campo de concentraçã o,
mas só vivera quinze dias.
Ainda nã o terminara a semana e já está vamos todos perdidamente enamorados das nossas
três mulheres; mas,
como um bando de garotos que acabam de descobrir um ninho de passarinhos, nã o
fazíamos a menor ideia do que havíamos de fazer delas. Passá vamos a maior parte do
tempo a tecer e a rejeitar as sugestõ es mais fantá sticas, mais irrealizá veis. Concordá vamos,
no entanto, num ponto: nã o podíamos, em caso nenhum, levá -las connosco até à primeira
linha, para tentar oferecer-lhes uma oportunidade de fugirem para os Russos. Seria muito
arriscado e se, por falta de sorte, tivessem de atravessar um sector ocupado
por qualquer destacamento asiá tico de costumes primitivos,
seriam imediatamente violadas pela tropa em peso.
Foi o irmã o de Fleschmann quem resolveu o problema.
Fleschmann chegou um dia a correr, dizendo que o irmã o era Oberfeldivebel a bordo de um
comboio blindado que esperava a pouca distâ ncia e que se preparava para entrar
em França. Pusera o irmã o ao corrente e este prontificara-se a fazer o impossível para
repatriar as nossas protegidas.
Elas nã o compreenderam logo o que se passava, julgaram que a Gestapo lhes descobrira o
rasto, e Maria desatou a chorar.
Mas Porta explicou:
- Entã o! Entã o! Vocês transformaram-se apenas em artilharia pesada. Vã o partir para
França num comboio blindado. O maninho do Fleschmann é que arranjou tudo...
Atravessá mos uma grande quantidade de vias férreas, levando de rastos, por vezes mesmo
ao colo, as três mulheres
meio mortas de ansiedade, e finalmente atingimos o gigantesco comboio blindado, com os
seus enormes canhõ es
apontados para o céu. O irmã o de Fleschmann tinha já tudo
preparado e dois dos seus homens estavam de atalaia.
Mostrou um sorriso animador a Rosita, a Maria e a Jeanne,
enquanto lhes ia apertando sucessivamente a mã o.
- Embarquem, raparigas, despachem-se! E, depois, que ninguém mais vos ponha a vista em
cima. Deixem-se ficar escondidas na toca; cá vos virá ter tudo aquilo de que
120 SVEN HASSEL
precisarem. Vã o um bocado apertadas, mas havemos de vos
levar a bom porto, verã o!...
Ajudá mo-las a instalarem-se. Dispunham de um só beliche para as três, no ponto mais alto
e inacessível de um vagã o blindado, cheio de armas e muniçõ es. Beijaram-nos todas três na
boca. Porta, comovido, chamou-lhes suas pombinhas e por isso recebeu um beijo
suplementar.
Um pouco mais tarde, e nã o sem um certo aperto no coraçã o, vimos o enorme comboio pô r-
se em marcha e desaparecer na direcçã o do oeste. Nunca cheguei a saber se as nossas três
mulheres tornaram a ver a França.
Soube
apenas que o comboio chegou ao seu destino sem grandes
danos.
Seis semanas depois desta separaçã o um resistente francês
matou o irmã o de Fleschmann, no Mans, com uma bala na cabeça, e depois tirou-lhe o
revó lver. Se esse patriota francês tivesse sabido da histó ria das três mulheres
deportadas, nunca teria procedido assim. Mas isto é a guerra em todo o seu esplendor.
Monstruosa até ao absurdo.

O nosso comboio deslizava para leste, com destino à s estepes imensas e à s negras florestas
selvagens da Rú ssia,
Mantínhamos o fogã o ao rubro dentro do nosso vagã o, mas sentíamo-nos gelados.
Ficá vamos noite e dia sentados
em cima dos capotes, com os bonés enterrados até à s orelhas.
Mas, por mais que carregá ssemos o fogã o, que enfiá ssemos
camisolas sobre camisolas e nos apertá ssemos uns contra os outros, continuá vamos
sempre irremediavelmente,
miseravelmente gelados
NA IGREJA
Penetrá mos na estaçã o de Pinsk no meio de uma tempestade
de neve. Deram-nos feijã o seco e, caso raro, com tanta fartura que cada um pô de encher
confortavelmente o estô mago.
Uma das irmã s da Cruz Vermelha recomendou ao Velho que fosse ver uma antiga e
belíssima igreja, mesmo por trá s da estaçã o, e, como nã o tínhamos nada que fazer, fomos
todos...
Velhíssima e impregnada do incenso de muitos séculos, a igreja era na verdade magnífica,
cheia de objectos maciços
e esculturas delicadas, repleta de sumptuosos dourados e de conforto cató lico, de
lampadazinhas e luzes, de Pequenos recantos guarnecidos de santos familiares pintados
de cores vivas e simples; ao centro da nave abria-se um imenso espaço com altura bastante
para deixar ascender sem obstá culos as almas dos bons filhos do Senhor até.
ao
Reino Divino, que estava pronto a recebê-las.
Porta achou muito ridículo o facto de ficarmos embasbacados
perante uma igreja e, sem nenhuma cerimó nia, fez troça de nó s.
122 SVEN HASSEL
Depois reparou no ó rgã o e, logo todo sorridente como uma criança entusiasmada,
exclamou: - Agora é que vocês vã o ouvir qualquer coisa!
Descobrimos a escada que conduzia aos teclados dos grandes ó rgã os. Porta pediu-nos para
irmos lá para trá s manejar os foles, mas Plutã o acenou-nos que ficá ssemos quietos. Ele
sozinho valia por três homens vulgares e era suficiente para aquela tarefa. Porta lançou-nos
um novo sorriso e sentou-se no banco do executante.
- Agora, meus amigos, ides ver como Joseph Porta toca ó rgã o.
Empoleirado na grade da galeria, o Velho tirou da boca o cachimbo que ele pró prio fizera.
- Toca lá esse trecho de Bach que te ouvi uma vez na Jugoslá via.
Porta nã o sabia de que trecho se tratava, mas Polegarzinho
assobiou alguns compassos. Era a Tocata e Fuga de Joã o-Sebastiã o Bach. Assim que se
identificou a á ria que lhe
pediam, o rosto de Porta iluminou-se. Depois ordenou a Plutã o:
- Dá aos foles com força, velho degredado! E Joseph Porta, Obergefreiter pela graça de Deus,
vai mostrar-te do que é capaz...
Respirou profundamente e as suas feiçõ es esvaziaram-se de qualquer expressã o, como um
copo sujo de um resíduo de cerveja que se lava antes de se encher até à s bordas de um
vinho generoso.
E Porta começou a tocar. Parecia que brincava, sem ligar importâ ncia ao que fazia, mas as
notas brotavam dentro da igreja como revoadas de pá ssaros, alguns minú sculos
e rá pidos como libélulas, outros majestosos, agitando o ar com as asas. Quando acabou,
exprimimos o nosso entusiasmo
com uma risada. Porta acendeu um cigarro e sentou-se mais confortavelmente. O Velho
deu-me uma cotovelada
e, sem desfitar dele os olhos, murmurou: - Agora é que tu vais ouvir qualquer coisa. Agora é
que ele está verdadeiramente em forma...
O Velho era como um pai orgulhoso, cujo coraçã o transborda de afecto perante o
verdadeiro mérito.

O REGIMENTO DA MORTE 123


Porta nã o o desiludiu. Tocava realmente, por instinto, como um verdadeiro mestre.
Primeiro em surdina, acariciando
levemente as notas, ausente e como que hipnotizado pela sua pró pria mú sica, executou de
Himmel ruhmen Hes Ewigen Ehre, de Beethoven; depois a berceuse anó nima
Schiafe, mein Prinzchen, sehlaf ein, que tocou com uma doçura tã o inefá vel que as lá grimas
nos vieram aos olhos e trocá mos um olhar, eu e o Velho, comungando ambos na mesma
sú bita percepçã o das belezas da vida e no mesmo
pesar de nos acharmos assim acorrentados à s forças das trevas.
E entã o Porta começou a entusiasmar-se. Derrubou todas as barreiras e varreu a igreja com
um furacã o só -
noro, que era ao mesmo tempo uma dança e um hino à alegria, um coro de todas as coisas
vivas e mortas unidas ,
num canto de gratidã o. Uma fanfarra titâ nica de mil arau-tos. A dança dos flocos de neve
numa noite de Natal, em tempo de paz. Os pá ssaros dos bosques e dos campos, erguendo os
bicos para o zénite e chilreando todos ao mesmo tempo num coro celeste.
Nó s está vamos petrificados, transformados em está tuas.
Aquele soldado horrível, repugnante, fazia brotar dos dedos
um colossal hosana de pura alegria, sublime e arrebata-dor...
Por acaso baixei os olhos para a nave e verifiquei, com grande surpresa, que esta se enchera
de gente imó vel
e silenciosa. Junto ao altar-mor encontrava-se um padre de estatura elevada e cabelos
brancos. Um pouco mais longe comprimia-se um grupo de civis, de rostos voltados Para o
coro. O centro da igreja estava cheio de soldados sebentos, sentados, de pé, encostados aos
bancos, de bonés
enterrados sobre as caras cavadas pela subalimentaçã o.
Distingui mesmo, entre eles, uma ou duas enfermeiras da Cruz Vermelha, mas nã o me
assaltou a seu respeito o habitual pensamento maldoso. A mú sica de Porta envolvia e
Purificava tudo. Finalmente terminou e, no silêncio absoluto, ouvimos Plutã o tomar fô lego
ruidosamente por detrá s [
do ó rgã o. Porta olhou para o Velho e depois para mim.
- Nã o foi mau de todo para um concerto improvisado numa igreja...
124 SVEN HASSEL
Mas disse isto sem ênfase. Disse-o simplesmente. Sentia-se feliz. Feliz de uma maneira
solene que lhe nã o era usual.
A voz do Velho tremia de emoçã o.
- Porta! Meu valdevinos! Meu idiota!
Nisto chegou o padre e beijou Porta nas duas faces.
Em seguida Asmus subiu a escada por sua vez e informou-nos
de que o nosso comboio ia partir. O padre alto e robusto ergueu uma cruz por cima das
nossas cabeças.
- Que Deus vos abençoe, meus filhos...
Lá fora reencontrá mos a tempestade de neve e o vagã o de gado, com o chã o coberto de
palha suja. O comboio (frigorífico para nó s) pô s-se de novo em marcha com destino
desconhecido. Deixá mo-lo em Smolensk.

Marcha atrá s, MARCHA ATRÁ S, caramba! Ele tem o pé debaixo da lagarta!


A reacçã o de Porta foi quase instantâ nea. O tanque recuou, Porta veio ter comigo num salto
e, um de cada lado, ampará mos Beier, que se conservava de pé, pá lido como um morto,
agarrado ao flanco do carro de assalto.
Transportá mo-lo para o interior do chalé, onde o Velho acendeu um cigarro, que enfiou na
boca de Beier.
Abanou
a cabeça enquanto cortava o cabedal da bota em torno do pé esmagado do nosso camarada:
- Meus filhos, meus filhos, vocês estarã o completamente doidos?
ANTES DO ATAQUE
Está vamos aboletados em casas requisitadas, perto de Smolensk. Logo que recebemos as
raçõ es, fomos dar uma
volta até à grande praça do mercado, que regurgitava de soldados de todas as armas e de
todos os exércitos possí-
veis: SS com a caveira a rir sobre o boné; tropas pá ra-quedistas; cavalaria de calçõ es de
cabedal e botas altas com esporas; infantaria, envergando casacos de couro «disfarçado»
com manchas castanhas, verdes e azuis; soldados
Hú ngaros e romenos de fardas de caqui; homens de todas as armas e de todos os exércitos
da Europa Central, réunidos na praça do mercado de Smolensk, desde os elegantes
oficiais aviadores de monó culo até aos magalas piolhosos e sebentos.
A maioria dos civis russos envergavam fatos acol-choados, incrivelmente rotos e cobertos
de remendos, com
Sapatos de feltro absolutamente informes. Encontrá mos meia dú zia de velhas levando cada
uma um enorme saco
126 SVEN HASSEL
à s costas e tagarelando como papagaios. Bruscamente, uma
delas parou, afastou as pernas e, no mesmo instante ouviu-se o ruído de um chuveiro,
enquanto uma poça de á gua alastrava no chã o. Assim que acabou, seguiu calmamente
o seu caminho.
- Tal e qual como uma vaca velha! exclamou Porta estarrecido. - Tal e qual como uma vaca
velha!
Os russos davam a impressã o de nã o serem afectados pelo frio espantoso, que produzia
sobre nó s tã o terríveis efeitos.
Passá mos apenas oito dias em Smolensk e fomos depois conduzidos em camiõ es até Bielev,
onde se encontrava aboletado o 27.º regimento. A nossa companhia foi incorporada
no 21.º batalhã o, sob o comando do Obersleutnant von Lingdenau, ajudado pelo major
Hinka. Se o nosso comandante de companhia nã o fosse aquele patife do Meier, tudo teria
corrido bem.
Porta afirmava que o Senhor lhe aparecera em sonhos para lhe dizer que ia abrir em breve
a caça aos malandros e que por isso nã o tardaria que a nossa companhia mudasse
de comandante. Tais eram as revelaçõ es feitas pelo Senhor
ao Obergefreiter Porta, amén.
Falava-se muito de caça aos malandros na nossa companhia.
Meier usava para connosco das liberdades mais inconcebíveis. Privava-nos dos nossos
direitos em todas as
circunstâ ncias e nã o falhava uma ocasiã o de no-lo fazer notar. O seu grande triunfo
consistia em nos impor exercícios
e marchas exactamente como se estivéssemos na frente. Todos os outros oficiais abanavam
a cabeça e o consideravam
um maníaco. E foi a partir desse momento que todos compreendemos que Meier podia
rebentar que ninguém
se importaria de inquirir em que circunstâ ncias exactas ele teria encontrado a morte. Meier
pertencia-nos dali em diante. Ele ainda desconhecia isso, mas nó s sabíamo-lo. Deixá mos de
falar na caça aos malandros e muitos prepa-raram balas dum-dum. Estava encerrada a
discussã o.
Um dos que tomaram mais a peito as patifarias inú teis e as injustiças de Meier foi Hans.
Falou-me uma ou duas vezes de desertarmos juntos, mas eu nã o ousava tentar a aventura.

O REGIMENTO DA MORTE 127


- Meu Deus, Sven, nã o compreendes que é preciso por-
-mo-nos a cavar daqui custe o que custar?
Olhei-o atentamente.
- Hans, peço-te que nã o faças tolices!
Uma noite chegou até nó s a ordem de prepararmos os tanques para entrarem em acçã o.
Enchemos os depó sitos de
gasolina e de ó leo e pusemos as muniçõ es a postos: dez mil
balas para cada uma das duas metralhadoras, cem obuses
de alto poder explosivo e cem obuses blindados, fora as granadas de mã o, foguetõ es
luminosos, muniçõ es para as armas de mã o e carburante para os lança-chamas.
Porta estava de gatas, enterrado até aos joelhos, de cabeça mergulhada no motor,
praguejando alegremente contra o exército, que transforma os homens vulgares em
perfeitos patifes. De tempos a tempos reprimia uma gargalhada seca e berrava, no meio dos
cilindros e das vá lvulas: - Eh, Velho! Parece-me que desta vez vou acertar em cheio no alvo!
Foi o Senhor que mo disse...
- Se nã o acertar outro antes de ti! Somos setecentos na companhia...
Em resposta, Porta limitou-se a assobiar entre dentes um toque de caça. Depois o Velho e
Polegarzinho entraram
no chalé para prepararem a refeiçã o da tarde, enquanto Plutã o ia buscar as nossas raçõ es.
Porta e eu tínhamos ainda de arrumar o tanque junto da casa e de disfarçá -lo com ramos e
neve para o esconder dos olhares dos aviadores
russos, que nos sobrevoavam todas as noites, lançando luminá rias em pá ra-quedas.
Hans Beier veio ter connosco quando está vamos nesta manobra e disse-nos que acabava de
receber uma carta a informá -lo de que a mulher dera entrada no hospital para ser
submetida a uma grave intervençã o cirú rgica ao abdó men.
Ele estava muito deprimido e ainda hoje nã o perdoei a mim pró prio o facto de nã o o ter
vigiado melhor. Já conhecia o seu estado de espírito, e com aquelas notícias ainda por
cima... Teria feito melhor se ficasse de so-breaviso, mas nem sempre se pensa em tudo e
depois é tarde...
Eu estava na frente do tanque, a guiar Porta com vozes e gestos, para que ele pudesse
arrumar a má quina sem atirar
128 SVEN HASSEL
com a casa a baixo. Depois ouvi gritar Hans Beier e compreendi logo que ele fizera aquilo
que a sua atitude deixava
prever. Quando cheguei junto dele, encontrei-o de pé só numa perna e com a outra entalada
entre os rolos e a lagarta do carro.
Depois de a ambulâ ncia partir discutimos os termos do relató rio que o Velho teria -de
redigir. Concordá mos em dizer que Hans tentara trepar para o tanque pelo flanco e que
nesse momento Porta engatara a marcha atrá s, pensando
que eu fizera o sinal combinado. Ele escorregara e entalara o pé. Era uma explicaçã o
plausível, mas nã o inatacá vel,
pela simples razã o de ser estritamente proibido subir para um tanque pelo flanco. Devia-se
embarcar sempre
pela frente, à vista do condutor.
E, bem entendido, pareceria esquisito que ele tivesse esmagado o pé logo na véspera de
uma ofensiva.
- Esquisito ou nã o, estamo-nos marimbando! - declarou o Velho. - Sabemos muito bem com
o que contamos, mas enquanto eles nã o conseguirem provar nada, tudo vai bem. E nã o
poderã o provar nada enquanto nos agarrarmos
a esta explicaçã o.
- Só podemos fazer votos para que esses patifes nã o apertem
muito com o Hans!...
Depois de um sono de brutos, acordá mos à 1 hora. O
momento de partirmos para o ataque.
Polegarzinho acendeu uma lamparina e, embora meio adormecidos, arranjá mo-nos à sua
luz vacilante. Sentado na
palha, Porta esgaravatava furiosamente no peito magro, com a trunfa avermelhada em pé.
O Velho e Plutã o apanhavam
piolhos e deitavam-nos na chama da lamparina, onde os bichinhos se desintegravam com
uma pequena explosã o,
largando um cheiro gorduroso e nauseabundo.
Em menos de um quarto de hora está vamos equipados e, a tremer de frio, subimos todos
para o tanque. Tínhamos posto cuidadosamente os cachecó is ensebados, os bonés e
os ó culos da neve. Que diferença entre o jovem heró i rubicundo,
direito como uma estaca, a perscrutar com o olhar altivo a vastidã o das terras
conquistadas, que se vê em todos os cartazes de propaganda do mundo inteiro, que di-

O REGIMENTO DA MORTE 129


ferença entre esse guerreiro, que as mulheres adoram, e o pobre diabo medroso,
constipado, a fungar, de rosto cadavérico
e há lito espesso, que constitui a realidade da guerra!
Se os artistas que desenham esses cartazes adivinhassem o
que pode haver de trá gico na tarefa que levam a cabo com a sua arte ridícula, procurariam
outra espécie de ganha-pã o.
Mas por certo nã o a encontrariam, pois, vendo bem as coisas, descobrimos rapidamente
que só os artistas de sexta
ou sétima categoria prostituem a sua «arte» com estes rabiscos
subvencionados. Os cartazes de recrutamento militar sã o invariavelmente o apaná gio dos
talentos mais medíocres
do mundo inteiro.
Todos os motores do batalhã o zumbiam e roncavam de um extremo ao outro da aldeia. De
tempos a tempos faiscava
o breve relâ mpago de uma lanterna eléctrica, mas, fora essas luzes efémeras, reinava por
toda a parte uma escuridã o total. Os «moinhos de café» (era esse o nome que
dá vamos aos aparelhos russos por causa do seu rugido asmá tico)
giravam, invisíveis, por cima das nossas cabeças, sobrevoando-nos
tã o de perto que à s vezes distinguíamos por um momento o barulho dos seus motores
perdido no meio do estardalhaço infernal dos nossos.

Saímos da aldeia por companhias. A noite era de um negro-opaco e a tarefa mais difícil
consistia em nã o ir de encontro ao tanque precedente. Para facilitar a tarefa de Porta, que
manejava os comandos do nosso carro, Plutã o
e eu, está vamos instalados na torre e comunicá vamos-lhe as instruçõ es pelo telefone.
Progredíamos com grande estré-
pito a 50, 55 à hora. Bruscamente ouviu-se um ruído de fó sforos quebrados, mas muito
mais violento. Passado meio
minuto o barulho repetiu-se e roçaram-nos pelas orelhas grandes pedaços de madeira.
Depois de este estranho incidente se haver repetido cinco vezes consecutivas, descobrimos
que está vamos a derrubar os postes telegrá ficos e
fizemos que Porta voltasse à estrada. Um pouco mais longe,
por um triz que nã o colidimos com o tanque da frente, que parara junto de uma ponte onde
os carros de assalto só podiam passar um de cada vez. Era necessá rio pô r um
homem de cada lado da ponte, a fim de guiar os nossos monstros com o auxílio de cigarros
acesos. Alguns centí-
metros mais à direita ou mais à esquerda, e as á guas do Upa receberiam a presa que
espreitavam.
Pelas 4 da manhã fizemos alto à entrada de um bosque.
Desligá mos os motores e um silêncio pesado caiu-nos em
cima. Do coraçã o da noite brotava apenas o gaguejar ridí-
culo, intermitente, dos «moinhos de café». De quando em
quando uma luminá ria, descendo em pá ra-quedas, iluminava
o sector tã o claramente como um sol em miniatura.
Enquanto os nossos oficiais recebiam instruçõ es para a batalha, todos tentá mos dormir,
dobrados em quatro, no
fundo metá lico dos tanques. Mal havíamos cerrado os olhos,
fomos logo obrigados a retomar as posiçõ es. Os nossos chefés de secçã o distribuíram-nos
as ordens.

O REGIMENTO DA MORTE 131


GRANDE ESPECTÁ CULO DE OPERETA O 27.º regimento blindado, juntamente com a 4.a, a
18.a e a 21.a divisõ es, vã o atacar as posiçõ es russas de Serpu—
chow, ao norte de Tuia. Essas posiçõ es deviam ser desfeitas,
de modo a permitir um salto em profundidade até Moscovo.
O regimento de carros pesados de 12.a divisã o Panzer vai
tomar a dianteira da ofensiva, com a infantaria SS em ré-
serva no flanco direito. A nossa companhia será colocada na ponta extrema da ala esquerda
e deverá infiltrar-se na retaguarda das posiçõ es inimigas, a fim de abrir caminho à s
formaçõ es de reserva. A 3.a companhia será a da frente.
- -Honra à memó ria da 3.a companhia! - troçou Porta.
O nosso objectivo é uma aldeia em ruínas situada precisamente logo a seguir à principal
linha de combate.
Irã o reunir-se a nó s os granadeiros Panzer do 104.º
regimento
De fuzileiros para se lançarem ao assalto sob a pró -
tecçã o dos nossos tanques. Resumindo: seis e quarenta: os
Stukas atacam; seis e quarenta e oito: a 3.a companhia ataca; seis e cinquenta e um: a nossa
companhia segue a 3.a À s seis e cinquenta será desencadeado um violento fogo
de barragem a três quiló metros da retaguarda do inimigo.
Era um espectá culo magnífico. Projécteis de todas as cores
riscavam o céu, assobiando. Bosques e aldeias ardiam no horizonte, projectando para as
nuvens os seus reflexos avermelhados. Rebentavam obuses aqui e ali, salpicando a
noite de luzeiros brancos, mas essas explosõ es dispersas nã o
nos impediam de sentir dentro de nó s a profundura do si-lêncio absoluto que precede o
furacã o. Por vezes também crepitava raivosamente uma metralhadora, cujas balas se
perdiam nas ruínas à nossa volta.
Sim, era um espectá culo magnífico... Na verdade, uma batalha é o espectá culo por
excelência (perguntai aos reali—
zadores de cinema), a girâ ndola final do fogo de artifício, a principal vedeta, o grande final,
a apoteose do drama. A guerra, com o seu medo prolongado, a porcaria, a fome, a miséria
nada heró ica, atinge finalmente o seu paroxismo numa exibiçã o sobre-humana de
esplendor e selvajaria.
132 SVEN HASSEL
O Velho falara-me muitas vezes de ataques de blindados no decurso dos quais dezenas de
tanques ficavam incendiados
pelos canhõ es anticarros do inimigo, assando no forno as suas equipagens, prisioneiras lá
dentro. E, naturalmente, nó s, os batalhõ es disciplinares, seríamos sempre escolhidos
em primeiro lugar.
-Eh! Sven, escreveste algumas palavras de despedida à tua mã e e à tua mais-que-tudo?
Cortando-me o fio dos pensamentos macabros, a voz grave do Velho sobressaltou-me.
Rabisquei algumas palavras num pedaço de papel, sobre o parapeito. Depois disto
Porta estendeu-me uma garrafa e disse com o seu habitual
sorriso de carranca:
- Bebe um trago da minha coragem, filho, e nunca mais te lembrará s que sã o obuses
incandescentes que nos
estã o a atirar para cima das ventas. Julgará s que andas em
exercício. A coragem de Porta era á lcool a 96° que ele surripiara
na enfermaria. Depois disso bebi muito á lcool, mas puro, nunca mais. Porta desatou a rir
com a minha cara.
-Desculpa! Esquecime de te avisar que encolhesses a língua e engolisses sem saborear!
Com grande espanto meu, Polegarzinho apoderou-se da garrafa e pô -la à boca sem fazer
mais caretas do que um menino de mama a chupar no biberã o. Porta teve de lha tirar das
unhas.
- Basta, meu poço sem fundo! Deixa alguma coisa para os amigos!
Polegarzinho arrotou ruidosamente.
- Obrigado, Porta. Se eu chegar ao Céu antes de ti, hei-de mobilizar um coro de anjos para te
desejar as boas-
-vindas.
-Estã o a ouvi-los? - interrompeu o Velho. – Imagi-nam que vã o para o Céu. Nã o, meus filhos;
se vocês por acaso têm penas nalgum sítio, devem ficar a cheirar bastante a chamusco
Soaram lá fora ordens abafadas e em breve alguns granadeiros treparam para o nosso
tanque. Fumá mos um ú ltimo cigarro

O REGIMENTO DA MORTE 133


- Prontos para o ataque! 5.a companhia... em frente, marche!
No meio do rugido dos motores, a companhia atravessou ”a aldeia em ruínas. A tampa das
nossas torres continuava aberta e, empoleirados atrá s de nó s, os granadeiros esperavam o
princípio da festa para saltar em terra. De olhos pregados nas fendas estreitas do posto de
pilotagem,
o Velho perscrutava as trevas através do ó culo. Plutã o ia no seu posto, junto ao canhã o
pesado, e Polegarzinho abrira
todos os paió is de muniçõ es, pronto a voltar a carregar o canhã o à medida que fossem
saltando as balas vazias, levadas
ao rubro pela deflagraçã o. Sentado em frente do aparelho de rá dio, certifiquei-me pela
vigésima vez de que a minha metralhadora estava em ordem e afastei ligeiramente
a longa fita de cartuchos enrolada em torno de mim como uma grande serpente de corpo
chato.
Uma voz que parecia reprimir uma gargalhada ressoou subitamente:
- 5.a companhia... 5.a companhia... Aqui, o posto de comando da companhia... Ordem a todos
os carros para abrirem fogo!
E o inferno começou, enchendo-nos as cabeças com os rugidos, o ribombar, o estrépito, o
imenso ruído da energia desenfreada.
Chamas compridas, amarelas e vermelhas, brotavam como lanças de fogo das goelas dos
canhõ es. O interior do
tanque era um caldeirã o de bruxa, um caldeirã o dos Infernos.
O fumo das deflagraçõ es fazia-nos arder os olhos e queimava-nos a garganta. A cada novo
tiro, uma chama pontiaguda, saída da culatra da nossa peça, apunhalava o ar espesso. Os
cartuchos vazios acumulavam-se e rebolavam
com um espantoso ruído metá lico no fundo do carro.
Eu contemplava de boca aberta a paisagem que vinha ao nosso encontro. Descobri de
sú bito, em frente, soldados
”a infantaria russa. Automaticamente, espreitei pela mira;
o meu indicador no gatilho, conforme as instruçõ es e da
maneira regulamentar... Agora! Com o olhar frio, as pá lpebras
contraídas, observei a trajectó ria das minhas balas, corrigi a pontaria, executei o meu
trabalho de assassino...
depois fui projectado para diante por uma sacudidela vio-
134 SVEN HASSEL
lenta e, se nã o tivesse o capacete de protecçã o forrado de coiro em toda a volta, a minha
cara teria ficado desfeita pela culatra da metralhadora. O Velho pô s-se a insultar Porta, que
acabava de nos enfiar num buraco de obus de alguns metros de profundidade.
- Espera que eu ganhe balanço para poder endireitar este machimbombo! - vociferou Porta.
A artilharia anticarros dos Russos reagia a pouco e pouco e os primeiros tanques
imobilizados ardiam aqui e acolá , enormes montõ es de aço rodeados de chamas vermelhas,
a vomitarem para o céu cascatas de fumo negro e grosso, semelhante a veludo.
Continuá vamos a avançar lentamente, com os nossos granadeiros emboscados atrá s de
nó s, prontos a exterminar
a infantaria russa assim que tivéssemos forçado as suas posiçõ es. Pelo meio-dia o exército
russo retirava. Logo que
fomos reabastecidos de muniçõ es e carburante, partimos no seu encalço. De tempos a
tempos o inimigo entrincheirava-se
numa aldeia. Entã o pará vamos também e, passado um quarto de hora, já nã o existia aldeia;
restava apenas o fogo, para o qual corríamos de novo, destruindo tudo à nossa passagem:
soldados, homens, mulheres, crianças,
animais domésticos. Se encontrá vamos na nossa frente uma
casa incendiada, atravessá vamo-la de um lado ao outro, num grande turbilhã o de faú lhas,
levando por vezes agarradas
a nó s traves inflamadas, que largá vamos um pouco mais além, com a impressã o passageira
de que também está vamos a arder.
Os soldados russos sabiam morrer. Por mais de uma vez vimos uma meia dú zia deles
defender um ponto estratégico,
retardando assim o nosso avanço, até gastarem o ú ltimo cartucho ou até os termos
esmagado debaixo das nossas lagartas. A princípio sentíamos uma impressã o esqui
sita ao vermos uma pessoa sentada, de borco ou a arrastar-se
-pelo caminho fora, e nó s, sem procurarmos evitá -la, prosse—
guirmos em frente, deixando atrá s uma massa sangrenta e informe. Era de facto uma
impressã o deveras estranha Estranha porque nã o sentíamos nada, mesmo nada.
Verificá vamos apenas que está vamos provisoriamente incapazes

O REGIMENTO DA MORTE 135


de nos impressionar fosse com o que fosse. Amanhã , talvez,
ou daqui a uma semana, um mês, um ano, cinquenta anos.
Mas nessa altura, nada. Nã o temos tempo. Sabemos só que
se está a passar qualquer coisa, que registamos mecanicamente
sons e imagens que sã o logo postos de parte para uma futura aná lise.
Travá mos conhecimento com os carros russos mais pesados, enormes mastodontes de 80
ou 100 toneladas, equipados com um pesado canhã o de 22 centímetros.
Eram
demasiado lentos, contudo, para nos inquietarem seriamente.
Destruímo-los, um a seguir a outro, sem grande dificuldade.
Apó s oito semanas de ininterrupto avanço, esgotá mos o nosso poder de acçã o e instalá mo-
nos em Podolsk, a sudoeste
de Moscovo. Achá vamo-nos, infelizmente, no coraçã o do Inverno russo, cujo rigor nã o tem
limites. Milhares de soldados
alemã es pereceram gelados. Teve de se organizar um interminá vel comboio para fazer
regressar todos aqueles
a quem a gangrena roubara um braço ou uma perna.
Os nossos abastecimentos chegavam ao fim. Já nã o tínhamos
muniçõ es nem carburante. Encontrá vamo-nos exilados no coraçã o da Rú ssia, com
temperaturas inferiores a 58° negativos e quase ninguém tinha peles nem outros
equipamentos
de Inverno para poder resistir à s tempestades ululantes. Os pés e as mã os faziam-nos
sofrer a tal ponto que nã o era raro ouvir-se alguém gritar ou gemer como uma
criança Estar de sentinela durante mais de dez minutos de cada vez significava morte certa.
Qualquer homem que fosse
atingido por uma bala ficava inteiriçado pelo gelo, na mesma posiçã o em que o projéctil o
surpreendera.
Tornara-se
um mero incidente quotidiano descobrir um cadá ver teso como um pau encostado ao
tronco de uma á rvore ou ao parapeito de uma trincheira Foi a vez de os Russos tomarem a
iniciativa, e as suas tropas siberianas, treinadas na guerra de Inverno, nã o tardaram a
inspirar-nos um respeito ilimitado.
Massacravam-nos
noite e dia, sem dó nem piedade. A falta de combustível paralisava os nossos tanques; mas,
ainda que tivéssemos à nossa disposiçã o toda a gasolina do mundo, nada adiantaríamos
com isso, pois os nossos motores encontravam-se
gelados, gripados, incapazes de servir. Quando
136 SVEN HASSEL
se lhes tocava, os comandos vibravam como varetas de vidro.
A 22 de Dezembro de 1941, apó s três semanas de ataques
ininterruptos de dia e de noite, retirá mos no meio de uma tempestade de neve. Tínhamos
feito explodir todos os carros
para evitar que caíssem nas mã os do inimigo. Esgotados, cegos pela neve, arrastá vamo-nos
penosamente em direcçã o
a oeste.
Eu caminhava no meio de Porta e do Velho e sentia-me tã o enfraquecido pela fome, pelo
frio e pelo cansaço que eles, de vez em quando, quase tinham de me aguentar para que eu
pudesse prosseguir. Quando caía sobre a neve,
injuriavam-me, batiam-me, até que me pusesse de novo a caminho. Foi graças à teimosia
deles que Polegarzinho e eu nã o tivemos a mesma sorte de milhares de homens que
ficaram estendidos na imensidã o branca, simplesmente porque
se nos afigurava tã o fá cil nã o dar mais um passo e ficar ali à espera da morte pelo
congelamento. Os Russos continuavam sempre no nosso encalço. O frio nada significava
para eles. Estavam sempre prontos a combater.
Como pertencíamos a um regimento disciplinar, vínhamos na retaguarda, tal como
havíamos formado a vanguarda no momento de tomarmos a ofensiva.
Um pouco ao sul de Kalinine recebemos ordem de cavar buracos na neve e de manter a
posiçã o a todo o custo (tratava-se da pequena aldeia de Goradnja)... Seguiram-se dias
intolerá veis, durante os quais a infantaria russa veio literalmente chocar contra as nossas
posiçõ es. Em frente das
trincheiras amontoavam-se milhares de mortos. Mas os Russos, teimosamente,
obstinadamente, lançavam cada dia
novos efectivos na batalha. Este episó dio constituiu um dos
grandes massacres da guerra.
O Velho fora nomeado chefe da nossa secçã o, que compreendia
doze homens. Certa noite os Russos conseguiram, finalmente, romper as linhas alemã s
numa profundidade de
perto de 25 quiló metros. Eu guarnecia um ninho de metralhadoras
juntamente com Asmus e Fleschmann. Metralhá vamos sem descanso as sucessivas vagas de
assaltantes, prestando toda a atençã o para nã o exterminarmos os nossos
pró prios soldados, pois trazíamos também, tal como os

O REGIMENTO DA MORTE 137


russos, capotes de neve brancos, cujos capuzes nos cobriam
Os capacetes. Era mais o instinto do que a vista que nos guiava.
Subitamente ”soaram atrá s de nó s algumas ordens em língua russa. Só tivemos tempo de
agarrar na metralhadora,
nas pistolas automá ticas, nas granadas, e desatar a fugir direito, correndo a bom correr...
Aquele cretino do Asmus arranjou maneira de se enganar na direcçã o e foi cair mesmo nos
braços dos Russos.
Fleschmann e eu tínhamos escolhido a boa direcçã o para alcançarmos a nossa retaguarda,
mas acabá mos também
por ir ter com os Russos, pois encontrá vamo-nos totalmente
cercados.
É com a maior repugnâ ncia que escrevo este capítulo, dedicado ao período do meu
cativeiro. Sei que servirá provavelmente
para apoiar pontos de vista pelos quais nã o sinto a mínima simpatia, ao passo que o lado
oposto me alcunhará de mentiroso, de traidor à causa do povo...
Depois de lerem este capítulo, os faná ticos de um destes pontos de vista apressar-se-ã o a
sublinhar a lá pis vermelho
certas passagens, exclamando, triunfantes: -- Vejam! Vejam como as coisas se passam lá !
Avaliem bem, segundo o que diz uma testemunha ocular. Leiam o relato de uma
testemunha ocular! Oiçam estas verdades acerca da Rú ssia Soviética!
Se alguém me perguntar se «as coisas se passam ou nã o
assim», na Rú ssia Soviética, eu só poderei responder com
toda a honestidade que nã o sei. A U. R. S. S. é imensa.
Estive lá pouco tempo. Vi uma reduzida parte. E as circunstâ ncias
da minha estada foram tais que se me tornava impossível travar as relaçõ es necessá rias ou
operar as sondagens
indispensá veis à elaboraçã o objectiva de uma coisa tã o complexa como seja a maneira de
«as coisas se passarem»
num país estrangeiro.
Eu era inimigo daquela gente. Os Russos tinham motivos
de sobra para me odiarem, para me maltratarem, para sentirem
uma completa indiferença acerca da minha sorte. Em suma, nã o era eu um daqueles que
haviam contribuído para incendiar milhares de aldeias, para arruinar a existência
de milhõ es de homens e mulheres?
Nã o sou partidá rio da opiniã o simplista que enfia o nazismo e a democracia popular no
mesmo saco, que considera
Hitler e Estaline homens da mesma têmpera. Basta observar os seus retratos postos lado a
lado para nos convencermos
da estupidez de tal afirmaçã o. Hitler era um histérico, Estaline um tipo obstinado que
possuía o bom senso necessá rio para nã o brincar à s revoluçõ es.
Preferia
seguir o caminho que de antemã o traçara e fazia-o com uma

O REGIMENTO DA MORTE 139


aptidã o quase científica, uma paciência infinita, uma infinita desconfiança. Estaline nã o era
imbecil nem prová velmente santo. Como o nã o conheci pessoalmente, prefiro nã o
emitir a seu respeito nenhum juízo. Mas, apó s haverdes comparado as caras desses dois
homens, se quiserdes ainda
cotejar os seus escritos, rapidamente vos dareis conta de que
Hitler e Estaline eram tã o diferentes um do outro quanto possível...
Esta narrativa da minha estada entre os Russos como prisioneiro de guerra nã o pode nem
deve portanto ser , utilizada como argumento pró ou contra o socialismo, pró ou contra
Estaline, pró ou contra o «bloco de Leste».
Enquanto o Fü hrer e os seus associados, os que já morreram
e os que estã o vivos e andam espalhados pelos quatro cantos do mundo, continuarem a
exercer a menor influência, desperdiçaremos o nosso tempo e a nossa energia indo pró -
curar em Moscovo a causa dos diversos flagelos que ator—
mentam este miserá vel planeta. Enquanto a liberdade democrá tica nã o ultrapassar a fase
de um postulado teó rico, nã o temos o mínimo direito de arremessar pedras aos telhados
alheios.
Por outro lado, pelo que me diz respeito, podem todos arrecadar a sua liberdade e fazer
dela o que muito bem quiserem, desde que me deixem em paz. O meu desejo de
liberdade nã o segue a trajectó ria das balas de espingarda.
Depois de haver experimentado a guerra sob todas as suas
formas, submeter-me-ei de bom grado à s maiores privaçõ es, ]
se tanto for necessá rio, para que possamos viver em paz no mundo. Nã o basta uma pessoa
levantar-se e dizer: «Nã o
queremos mais guerra», voltando a sentar-se, convencida
de que cumpriu o seu dever.
É preciso que as vontades se afirmem; é preciso que todos os homens tenham o suficiente
para comer e que os
grandes programas e planos humanitá rios sejam transpor—
tados do papel para a realidade. Isso exigirá esforços considerá veis, que se prolongarã o
provavelmente durante vá rias
geraçõ es. A edificaçã o da poderosa má quina capaz de assegurar a produçã o e a justa
repartiçã o dos bens de consumo
exigirá ainda muitas energias, muita autodisciplina.
Exigirá
o acatamento da mais dura de todas as imposiçõ es: a
140 SVEN HASSEL
necessidade de subordinar os interesses individuais ao interesse
colectivo. Ao interesse colectivo, e nã o, como no caso do nazismo, ao de um grupo de
privilegiados. Exigirá a renú ncia a alguns confortos, a certas comodidades pessoais.
Exigirá o esquecimento de nó s pró prios e a liquidaçã o daquela forma de individualismo
que nã o reconhece senã o
os direitos do indivíduo e nunca os seus deveres.
Mas já se torna tã o enfadonho, tã o banal, tã o repisado, isto de falar dos deveres do
indivíduo! Todos nó s pronunciamos
vezes de mais a palavra liberdade, subentendendo apenas o nosso desejo de exterminar os
outros. Ou, o que
representa o cú mulo da infâ mia, de levar os outros a exterminarem-se
entre si para gozarmos com o espectá culo e depois tirarmos proveito dos despojos.
No entanto, há duas razõ es que me levam, a despeito da repugnâ ncia e do receio de ser
voluntá ria ou involuntariamente
mal interpretado, a falar do tempo em que estive prisioneiro na Rú ssia. A primeira é que
este quadro de guerra, tal como eu o vi, ficaria incompleto sem o presente
capítulo. O segundo é que um capítulo como este se me afigura indispensá vel num livro
cujo objectivo consiste em
combater a guerra, quer dizer, uma finalidade precisamente
oposta à de um panfleto tendente a demonstrar que «as coisas se passam assim ou assado»
na Uniã o Soviética,
um vasto país que desconheço completamente, repito, mas
que imagino, em tempos de paz, tã o humano e irregular como qualquer outra naçã o do
mundo. Por outras palavras,
um país perfeitamente vulgar e mergulhado, como todos os outros, nas preocupaçõ es
banais da vida quotidiana...
CATIVEIRO
Nada desespera mais um homem do que ser feito prisioneiro.
Fui encerrado juntamente com Fleschmann numa casa da aldeia de Klin e colocado sob a
vigilâ ncia de um soldado
russo. Pontapés, murros, injú rias e pragas tinham

O REGIMENTO DA MORTE 141


chovido como granizo sobre as nossas costas durante todo
o caminho desde a frente até ao centro de reagrupamento estabelecido em Klin. Fomos
interrogados por um oficial, que quis conhecer a composiçã o exacta do nosso regimento
e muitos outros pormenores do mesmo género. De regresso
à nossa prisã o improvisada, vimos os Russos executarem uma dú zia de SS, enterrando-lhes
à martelada balas vazias
na nuca. Noutro lado haviam crucificado um major sobre uma porta. Outros SS tinham sido
reduzidos a uma pasta à força de coronhadas e do chicote cossaco.
Soara para eles a hora da vingança.
Mais tarde, nessa mesma noite, reuniram-nos numa longa coluna de cerca de dois mil
homens, que se pô s em marcha para leste, escoltada por cavaleiros. A proibiçã o de sair das
fileiras era rigorosa, de forma que, pelo caminho,
tínhamos de satisfazer as necessidades nas calças. O
chicote
obrigava a levantarem-se aqueles que caíam na neve.
Quando
nã o o podiam fazer, eram passados a fio de sabre. Três dias de marcha conduziram-nos à
aldeia de Kimry, onde nos empilharam num velho armazém. Nã o havíamos comido
desde a nossa partida de Klin, mas o alimento que nos deram cheirava tã o mal que nenhum
de nó s o pô de tragar.
Fleschmann e eu decidimos fugir. Está vamos autorizados a ir atrá s do armazém satisfazer
as nossas necessidades e por ocasiã o de uma dessas saídas utilitá rias, aproveitá mos
um instante em que nã o está vamos a ser vigiados para nos lançarmos correndo a bom
correr através da campina
gelada. A 300 metros atravessá mos um lago coberto Por uma espessa camada de gelo e
continuá mos à desfilada,
sem sentirmos a menor fadiga. De momento só éramos sensíveis ao medo. Essa fuga
desesperada durou a noite inteira. A astronomia fora outrora um dos meus passatempos
favoritos e por isso sabia orientar-me muito bem Pelos astros. Atravessá mos uma vasta
floresta e dirigimo-nos a um lago coberto de gelo. íamos a chegar à margem oposta
quando um soldado, cujo volume era duplicado pelas peles
que envergava, nos mandou fazer alto, sem outro resultado que nã o fosse o de nos levar a
acelerar a corrida.
Zumbiram-nos
aos ouvidos uma dú zia de balas, mas todas se per-
142 SVEN HASSEL
deram, felizmente. Passados instantes atirá vamo-nos para o
chã o, a coberto de um matagal espesso.
Alcançá mos nessa mesma noite um grupo de chalés e encontrá mos abrigo dentro de uma
estrebaria, onde repousá mos
durante cerca de vinte e quatro horas. Serviu-nos de refeiçã o uma galinha imprudente.
Crua, está claro, pois nã o tínhamos à nossa disposiçã o os meios de a cozer. Na noite
seguinte recolhemo-nos noutro curral. Achá vamo-nos divinamente bem instalados,
metidos em palha, sem vontade
nenhuma de sair dali.
Na tarde do dia imediato fomos alarmados por alguns gritos. Arriscá mos uma espreitadela
através das fendas do
telhado. Eram cinco soldados russos, acompanhados de dois canzarrõ es. Apó s longa
conversa com os habitantes da quinta os soldados retiraram-se. Esperá mos pelo crepú sculo
para tentarmos escapar, mas o velho avistou-nos e nã o pareceu surpreendido de nos ver
surgir do seu curral.
- Prisioneiros de guerra? interrogou num mau alemã o.
Fizemos que sim com a cabeça.
Mandou-nos entrar em casa e deu-nos de comer. Na sala comum estavam a jantar outro
homem e quatro mulheres.
Acolheram-nos com toda a calma e apertaram-se para nos
deixar sentar à mesa. Nã o se cansavam de nos observar à socapa, enquanto devorá vamos o
cabrito com batatas cozidas.
Mas ninguém nos dirigiu a palavra.
O velho lavrador deixou-nos dormir na sala para que pudéssemos repousar
convenientemente e, no dia seguinte
pela manhã , entregou a cada um de nó s umas calças acolchoadas
e um blusã o. Este belo vestuá rio, quente e limpo, possuía, além de tudo, a vantagem
inestimá vel de ser anó nimo.
Poderíamos, dali em diante, viajar em pleno dia sem corrermos o risco de ser
imediatamente traídos pela nossa farda negra. Separá mo-nos cordialmente, com pesar,
daquelas pessoas amá veis e taciturnas.
Durante quatro dias caminhá mos para oeste. Depois a sorte abandonou-nos: à saída de um
pequeno bosque encontrá mo-nos cara a cara com um grupo de soldados russos. Parecia
que tinham nascido do chã o no momento em que nos aproximá vamos. Pediram-nos os
documentos

O REGIMENTO DA MORTE 143


Tentei falar-lhes em dinamarquês. Sem resultado. Um deles
percebia alguma coisa de inglês e consegui explicar-lhe que éramos dinamarqueses, que os
Alemã es nos haviam metido num campo de concentraçã o e depois incorporado num
regimento disciplinar, mas tínhamos desertado. O
comandante da unidade russa à qual nos havíamos apresentado
resolvera mandar-nos para Moscovo, mas, a caminho da estaçã o, tínhamo-nos perdido...
Consultaram-se entre si em voz baixa. Eu nã o percebia o russo, mas de qualquer maneira
via-se bem que nã o acreditavam
em nó s. Finalmente levaram-nos à presença do comandante. Pelo caminho um deles viu o
meu reló gio de pulso e, passados momentos, eu já o nã o tinha. Outro confiscou-me o fio
com a medalha que Ú rsula me havia dado. O comandante da unidade tratou-nos com
correcçã o
e submeteu-nos a um longo interrogató rio. Perguntou-nos se éramos comunistas e nó s
respondemos que sim.
Membros
do partido? Nã o. (A coisa poderia vir a ser tirada a limpo.) O comandante censurou-nos por
nunca nos termos dado ao trabalho de aderir ao partido, mas o essencial era que fô ssemos
bons comunistas.
No dia seguinte tomá mos o comboio para Moscovo em companhia de dois soldados
encarregados de nos entregar
nas mã os da G. P. U. para um inquérito suplementar.
Chegados
ali, encerraram-nos numa grande sala, cujas janelas gradeadas davam para um imenso á trio
a fervilhar de soldados
e civis russos. Alguns trepavam para cima de bancos ou de bagagens para nos observar.
Esperá mos umas horas.
Depois, cinco homens da G. P. U., armados até aos dentes,
vieram buscar-nos e levaram-nos a toda a velocidade numa
viatura da polícia.
- Estamos fritos - murmurou-nos Fleschmann. - Só nos resta a corda ou a Sibéria.
Este segredar rendeu-nos uma saraivada de coronhadas que nos deixou semimortos, mas
alguns pontapés na barriga
reanimaram-nos imediatamente. O carro enfiou pelo pó rtico
de uma vasta prisã o. Atravessá mos um labirinto de pá tios corredores fechados por portas
levadiças; depois introduziram-nos,
aos pontapés, no gabinete de um oficial da G. P. U., cujo punho estava já fechado para nos
receber.
144 SVEN HASSEL
Precisamente o regime que os SS me tinham infligido Na minha chegada a Lengries.
Apó s haver registado as nossas declaraçõ es (afirmá mos, tanto um como o outro, ser
cidadã os dinamarqueses), o oficial mandou-nos encerrar numa célula que continha já duas
dú zias de prisioneiros. Os nossos companheiros de cá rcere eram culpados de todos os
delitos civis e políticos que se possam imaginar. Um sargento do exército russo, que cortara
o pescoço à esposa com uma faca de cozinha,
disse-nos, falando com conhecimento de causa: -Vã o mandar-vos para um campo de
trabalho daqui a dois ou três meses. Se vocês tiverem juízo, poderã o viver
ali sossegados. O essencial é fazerem o menos possível, Tratem também de conquistar as
boas graças de um tipo da
G. P. U., «organizando» as coisas em seu lugar na oficina onde vos meterem; mas, está claro,
é necessá rio proceder com habilidade e nã o fazer asneiras...
Havia também um professor que ganhara um prémio Estaline e que agora era acusado de
actividades hostis ao estado. A tabela para este género de crime eram vinte cinco
anos de trabalhos forçados. Disse-nos que nunca sairíamos
legalmente da Rú ssia e aconselhou-nos a fugir na primeira ocasiã o favorá vel.
Deitá vamo-nos no chã o à vez, pois o espaço era de tal modo exíguo que só cabia no soalho
uma dú zia de homens.
Num canto erguia-se o balde «higiénico», sem tampa, cujo cheiro intolerá vel impregnava os
nossos fatos. Está vamos a rebentar de fome e cheios de piolhos, mas nã o tínhamos frio,
antes pelo contrá rio: a temperatura, no interior da ; prisã o, era tã o elevada que
transpirá vamos noite e dia como
num banho turco. Quando trepá vamos para cima dos ombros
dos «colegas», podíamos ver um grande pá tio no qual se procedia à execuçã o, todas as
noites, de dú zias de homens
e mulheres. Os sons que na minha memó ria ficaram associados
à s imagens lú gubres da prisã o sã o os das salvas noc-turnas e dos motores dos enormes
camiõ es. Como todos os
transportes de utilidade pú blica, o dos prisioneiros, mortos ou vivos, em Moscovo, só tinha
lugar à noite.
Fomos interrogados de novo por um jovem comissá rio Durante cinco horas tivemos de
falar de nó s e das nossas O REGIMENTO DA MORTE 145
famílias. Dois dias depois fizeram-nos exactamente as mesmas
perguntas, mas por ordem diferente. Apó s quarenta e oito horas destes interrogató rios
praticamente ininterruptos,
começá mos a ficar desorientados e a contradizer-nos.
Tentaram
entã o, aos berros, fazer-nos afirmar que as nossas declaraçõ es precedentes nã o passavam
de uma teia de mentiras
e que éramos SS disfarçados.
Em seguida deixaram-nos em paz durante dois dias.
Depois comparecemos a julgamento. Um julgamento que durou dois dias e que se resumiu,
para Fleschmann, em quinze anos de trabalhos forçados. Para mim, em dez anos
da mesma pena. Qual a razã o desta diferença? Mistério.
Nem sequer sabíamos do que éramos acusados.
Um belo dia conduziram-nos à estaçã o na companhia de duzentos outros prisioneiros dos
dois sexos, que se empilharam ao acaso em dois comboios de mercadorias.
Escolheram um homem, em cada vagã o, para o lugar de «prisioneiro-chefe». Estes homens
eram, bem entendido, os
bodes expiató rios dos guardas da G. P. U. e pagavam muito
caro, quando surgia a ocasiã o, pelo desaparecimento de um
dos seus companheiros de infortú nio.
Os do nosso vagã o haviam pertencido a todas as classes da sociedade. Um camponês,
grosseiramente calçado de feltro e envergando roupas acolchoadas, jazia perto de um
homem de certa idade, vestido com um fato cinzento completo,
sujo e todo engelhado, mas de bom corte, calçando, além disso, um par de belos sapatos,
apaná gio exclusivo das
classes superiores. Na minha frente estava sentada uma mulher de casaco de peles e
calçada de meias de seda.
Junto
desta, uma rapariga com traje de trabalho. Havia mesmo, apesar do frio penetrante, mais
uma ou duas mulheres de vestidos de Verã o.
Deslizá vamos para oeste, mas quanto ao nosso destino exacto, todos o ignoravam
completamente. Faziam a cha mada três vezes ao dia. O método habitual consistia em nos
agruparmos todos em fileira. Depois um soldado passava Por detrá s de nó s, mimoseando
cada um com uma boa chicotada enquanto ia contando em voz alta. Certa manhã deu uma
chicotada a menos. Depois de um inquérito apurou-se
que, durante a noite, se evadira um antigo oficial.
R. M. - 10
146 SVEN HASSEL
O «prisioneiro-chefe» da nossa carruagem pagou com a vida
esta evasã o.
Em Kuyschev, no Volga, vá rias outras carradas de prisioneiros foram atreladas ao nosso
comboio. Todos os dias alguns de nó s morriam de frio, de inaniçã o e de esgotamento,
mas tínhamos de guardar os cadá veres e de mostrá -los em cada chamada, para que o
nú mero estivesse completo e eles pudessem receber a chicotada regulamentar.
Por alturas de uma paragem em Bogolowsk, no interior do Ural, os nossos guardas
perderam com certeza a cabeça
por qualquer motivo, pois abriram bruscamente a porta e despejaram uma porçã o de tiros
para o interior da carruagem
onde nos encontrá vamos empilhados como sardinha em canastra.
Depois a porta fechou-se sobre um coro de gargalhadas sonoras.
Duas mulheres começaram a berrar como cadelas, de olhos fixos e boca a espumar. Ocupei-
me da mais pró xima,
com o auxílio de Fleschmann, enquanto os dois outros soldados
agarravam a segunda. Uma bofetada bem dada curou-lhes o histerismo. É o que se faz na
guerra quando um tipo tem uma daquelas crises. Basta bater em cheio e subitamente.
Mas é preciso que a bofetada chegue de improviso. As duas
mulheres deixaram de gritar, estremeceram violentamente e desataram a chorar. Mas em
silêncio.
Desembarcaram-nos em Tobolsk, cujo campo nã o deixava
nada a desejar aos campos de extermínio nazis. Nos primeiros dias trabalhá mos na floresta.
O estado de fraqueza
em que nos encontrá vamos tornava este serviço de lenhadores incrivelmente penoso e, se
ele se tivesse prolongado
por muito tempo, nunca teríamos escapado. Passados alguns dias, graças a Deus,
transferiram-nos, a mim e a Fleschmann, para uma fá brica subterrâ nea de lâ mpadas de
rá dio, o que foi para nó s uma dupla sorte. Dizia-se que os prisioneiros enviados para as
fá bricas de muniçõ es caíam
como tordos.
É ramos autorizados a dormir cinco horas por dia, numa cabana onde três homens
partilhavam uma só tarimba estreita, sem colchã o e guarnecida apenas com um cobertor
As nossas três refeiçõ es quotidianas consistiam numa escudela

O REGIMENTO DA MORTE 147


de sopa de peixe, sem pã o. Provavelmente em virtude da perda das ricas terras de trigo da
regiã o do mar Negro, o pã o tornara-se um luxo que poucas pessoas, dali em diante, podiam
gozar.
Ao cabo de um certo tempo fomos transferidos para um campo de «prisioneiros livres».
Tratava-se de uma espécie de centro administrativo encarregado de fornecer mã o-de-obra
à s oficinas e fá bricas só muito indirectamente sujeitas ao controle da G. P. U. e nas quais as
condiçõ es eram muito mais humanas, a começar por uma confusã o completa. Ali éramos
tratados correctamente e recebíamos até uma ínfima remuneraçã o. Quem soubesse
«manobrar» bem podia mesmo ser inscrito na lista dos «especializados», o que equivalia a
ser classificado na categoria dos «indispensá veis».
Um comboio ronceiro gastou cinco dias para nos levar até Yenisseisk, nas margens do rio
Yenissei. Ao passar perto do lago Kalunda apoderá mo-nos de uma tal quantidade de peixe
seco que íamos morrendo. Era a primeira vez, desde há muito, que comíamos até querer, e
o resultado foi um desastre: os nossos estô magos enfraquecidos recusaram-se a digerir
uma refeiçã o de tal modo pantagruélica.
Duvido muito, de resto, de que qualquer estô mago, mesmo normal, tivesse comportado
mais de uns trinta peixes daquele tamanho. Agora, felizmente, íamos escoltados apenas por
uns guardas já maduros da G. P. U. e a patuscada só teve como consequências uma
monumental indigestã o colectiva.
O novo campo de Yenisseisk trouxe-nos uma melhoria considerá vel. Só dormíamos dois
numa tarimba, gozá vamos de uma liberdade relativa e nã o está vamos sujeitos a maus
tratos. As relaçõ es entre prisioneiros e guardas eram, pelo contrá rio, o mais agradá veis
possível. De manhã e à noite tínhamos de comparecer à chamada perante um guarda da G.
P. U., que escrevia os nossos nomes sobre uma tá bua, a qual se raspava em seguida com
uma faca. Nã o se estragava papel por tã o pouco. Quem faltasse à chamada podia receber,
quando muito, um par de bofetadas, mas nã o havia espancamentos no interior do campo.
Muitas vezes o G. P. U.
de serviço limitava-se a perguntar aos outros se eles podiam garantir que o prisioneiro
ausente se encontrava dentro
148 - SVEN HASSEL
do campo e, perante uma resposta afirmativa, acrescen-tava em tom peremptó rio: - Digam-
lhe que o seu nome continua inscrito no quadro e que, se nã o comparecer amanhã de
manhã , eu me zango
a valer! É preciso, afinal, que haja alguma disciplina neste bordel!
A minha estada em Yeniseisk constitui uma das épocas mais alucinantes de toda a minha
vida. Era esta a maneira de seleccionar os «especializados»: ;; -Que sabes tu fazer?
Ciente da importâ ncia de se ser escolhido para um trabalho de especialista, Fleschmann e
eu respondemos friamente que éramos «mecâ nicos especializados».
O homem da G. P. U. escreveu na lista a nota «especializado». Quando lhe fizemos notar a
omissã o, sorriu malicio—
samente, olhando-nos de viés, e explicou, rindo: -Suponhamos que é preciso um cozinheiro
e que vocês estã o classificados como mecâ nicos. Que se poderia fazer?
Aquele tipo era um bom homem e possuía um espírito prá tico.
Começá mos por fabricar alavancas de madeira. Ninguém sabia o seu futuro destino, mas a
nossa oficina empre—
gava vinte e cinco homens neste trabalho relativamente pouco
fatigante. Passados dez dias transferiram-nos para outra secçã o, onde se fabricavam
bú ssolas e outros objectos semelhantes.
Nunca sonhara que fosse possível levar a sabotagem e a incompetência a um tal grau de
perfeiçã o. Cinquenta por cento da mercadoria tinha de ser regularmente inutilizada.
Houve ainda a histó ria da oficina que tentaram construir.
Tomaram-se todas as precauçõ es para que ficasse, na verdade,
uma bela oficina. Arquitectos e chefes da G. P. U.
verificavam vá rias vezes por dia os progressos da construçã o
; , e passavam o tempo mergulhados em plantas e projectos.
Toda a cidade seguia a empresa com o maior interesse.
Quando a oficina ficou pronta, lembrava exactamente a Torre
de Pisa e todos, excepto os responsá veis directos por essa
obra-prima, se riram a bandeiras despregadas, inclusivamente os nossos guardas da G. P. U.

O REGIMENTO DA MORTE 149


No capítulo das má quinas era a mesma histó ria. Ficavam constantemente encravadas, com
grande alegria dos operá rios,
que se apressavam a berrar: - Má quina parada! Má quina parada!
Por muito simples que fosse a avaria, tornava-se sempre necessá rio um dia inteiro para a
consertar, ao passo que um punhado de areia num dínamo nos assegurava umas tréguas
francamente mais prolongadas.
Certo dia avariou-se um motor dos grandes, paralisando uma oficina inteira. Depois de nos
consultarem, nó s, os especialistas, decretá mos que a avaria provinha certamente
das velas. Como nã o possuíamos de reserva nenhumas daquele tipo, encomendou-se uma
caixa delas para Moscovo. A caixa chegou passadas três semanas, mas descobriu-se, ao
abri-la, que vinha cheia de cavilhas. Dirigimos novo pedido a Moscovo. Veio nova caixa, ao
cabo de três semanas mais. Desta vez tratava-se realmente de velas.
Porém, »”;
no intervalo, desaparecera o motor. Daquela enorme má -
quina restava apenas o volante. O chefe da oficina contemplou aquele despojo durante um
bom bocado, depois abanou
a cabeça, foi ter com o capitã o Turgofski, chefe da G. P.
U.,
e esvaziou uma garrafa de vodka.
Seria excessivo concluir que em toda a Rú ssia reinava a mesma confusã o e se praticava a
mesma sabotagem, semi—
voluntá ria semi-involuntá ria, que em Yenisseisk. O exército que se nos opunha funcionava
perfeitamente. Se o seu equipamento nã o era superior ao do exército alemã o (o que, de
resto, acontecia à s vezes), no conjunto era mais ou menos igual. E, geralmente, menos
complicado. O
material -
humano, esse, era melhor. Mais primitivo, em média, mas também mais digno de confiança,
o que nunca seria possível
num país apodrecido de uma ponta à outra. Quem se quiser
convencer de que toda a Rú ssia Soviética se encontrava tã o apodrecida como o centro de
Yenisseisk fará bem em reflectir antes de tirar tal conclusã o. Concentrá vamo-nos ali trinta
mil trabalhadores forçados, dos quais seis mil estrangeiros, que nã o pensá vamos senã o em
sabotar o que
fazíamos ou, pelo menos, está vamo-nos marimbando para a qualidade do trabalho
produzido. Sendo relativamente bem tratados, só queríamos que nos deixassem ali ficar o
mais
150 SVEN HASSEL
tempo possível, fazendo-nos pequenos para que ninguém desse por nó s.
Os grandes canais, as estaçõ es geradoras, os trabalhos de irrigaçã o, o desenvolvimento da
indú stria pesada, a expansã o da cultura geral, sã o outros tantos testemunhos da existência,
nesse vasto país, de qualquer coisa mais do que vulgares sabotadores. As distâ ncias ali sã o
de tal modo
desmedidas que as asneiras e os erros, aos quais nenhuma
comunidade se furta por completo, ressaltam necessariamente
mais aos olhos dos europeus do Oeste, sempre prontos a notá -los. Junte-se a isto o facto de
a Rú ssia se encontrar em guerra, e compreender-se-á facilmente que as condiçõ es de
trabalho e de vida nã o podiam de modo algum
ser normais.
Conheci um comunista alemã o, Bernhard Kruse, de Berlim-Lichterfelde. Tomara parte nos
combates das barricadas,
apó s a primeira guerra mundial. Em 1924 fugira para a Rú ssia Soviética, onde os
comunistas o haviam acolhido de braços abertos. Era mecâ nico montador de profissã o e
tinha um belo emprego numa fá brica de Leninegrado,
como instrutor de vá rias centenas de operá rios.
Ganhava bem a vida e gozava dos privilégios do cidadã o soviético de classe superior,
incluindo o direito de comprar víveres e produtos manufacturados nos grandes armazéns
do partido. Acabara mesmo por casar com uma moscovita.
E depois, em 1936, prenderam-no subitamente, mandando-o
para Lubjanka, onde o deixaram dois anos a apodrecer, sem lhe concederem a mínima
explicaçã o. Durante uma inspecçã o conseguira aproximar-se de um oficial, que, a seu
pedido, mandou buscar o livro de registo da prisã o e leu em voz alta:
- Você chama-se Bernhard Kruse, nascido em Berlim, no ano de 1902, casado com Katia
Wolin, de Moscovo.
É mecâ nico e trabalhou como engenheiro-instrutor em vá rias
fá bricas do sector de Leninegrado. Obteve um diploma de honra por serviços prestados aos
trabalhadores russos nas
suas funçõ es de instrutor e é membro do partido...
Quanto mais lia, mais o oficial abanava a cabeça.
- Nã o há dú vida de que a sua presença aqui é estranha...

O REGIMENTO DA MORTE 151


Mas de sú bito exclamou:
- Ah! Cá temos! Em 1924 atravessou a fronteira polaca para penetrar na Uniã o Soviética. O
seu acto é altamente ilegal!
- Mas eu tinha o passaporte em ordem. Todos sabem como e por que motivos entrei na
Rú ssia, onde vivo há catorze anos, dois deles na prisã o!
Encolhendo os ombros, o oficial respondeu: - Com certeza ocultou à G. P. U. qualquer coisa
que eles acabaram por descobrir...
Passado um ano Kruse soube que acabava de ser condenado
a quinze anos de trabalhos forçados por se haver introduzido «sub-repticiamente» na
Rú ssia Soviética, infringindo
assim as leis em vigor, talvez por conta dos serviços de espionagem alemã es. A sentença
foi-lhe comunicada na sua célula, sem que ele jamais tivesse enfrentado um juiz.
Contaram-me muitas histó rias como esta. Estariam os seus autores tã o inocentes,
ignorariam tã o completamente os motivos da sua condenaçã o como diziam? Aí está mais
uma pergunta a que nã o posso responder. Um velho russo afirmou-me, no entanto:
- Se eles tivessem feito alguma coisa, teriam sido imediatamente
fuzilados.
Entre mim e o comissá rio da Repartiçã o do Trabalho dos Prisioneiros estabeleceram-se
pouco a pouco laços de
boa amizade. Veio procurar-me muitas vezes à oficina com
o fim de me confiar alguns pequenos trabalhos pessoais.
Um dia pedi-lhe para ver se me poderia arranjar um lugar melhor e ele prometeu tentar.
Logo no dia seguinte apareceu-me
com uma proposta ainda mais louca do que tudo o resto:
- Tu sabes falar inglês e alemã o. Que tal te parece a ideia de vires a ser professor de línguas?
Deves ser capaz de ensinar qualquer coisa à s crianças. Quando houver
inspecçã o, ofereces um copo ao comissá rio e ele esquece-se
logo de inspeccionar seja o que for. É assim que todos fazem...
- Isso nã o pode ser. Eu sei dizer umas lerias na vossa língua, mas nã o sou capaz de escrever
nada. Preferia que me arranjassem outra coisa...
152 - SVEN HASSEL
abanou a cabeça:
- Os garotos ensinam-te o russo em troca do inglês e Tenho a certeza de que tudo correrá à s
mil maravilhas...
No entanto, nã o passei a ser professor, mas sim especialista de moagem. Se alguém um dia
me fizesse perguntas,
eu devia responder que fora comissá rio de moagem na Escandiná via.
Um jovem russo fez-me visitar o moinho n.º 73. Mostrou-
-me peneiras contendo a farinha mais branca que jamais vi. Uma farinha absolutamente
impossível de arranjar por meios legais. Depois encheu um saco de 7 quilos, atou-o e
achatou-o, dizendo-me para o esconder debaixo do blusã o,
dando-lhe a forma do meu corpo, de modo que a sua presença se nã o tornasse muito
evidente.
- E podes fazer isto todas as manhã s. É o que todos fazem.
Foi graças a esta preciosa farinha «organizada» pelos meus cuidados que estabeleci
excelentes relaçõ es com os
homens da G. P. U., a quem eu a revendia por um preço razoá vel, conseguindo assim
arranjar para Fleschmann um lugar fora do campo de trabalho. Obtive depois para nó s
ambos licença de passearmos livremente pela cidade, com a
condiçã o de estarmos sempre presentes à chamada da manhã .
Durante dois memorá veis meses a nossa vida foi a de qualquer outro cidadã o soviético,
íamos ao cinema uma vez por semana e vimos desse modo bastantes filmes russos, alguns
dos quais muito bons. As actualidades semanais, em contrapartida, eram sempre de uma
inverosimilhança e de uma ingenuidade desarmantes, por vezes mesmo grotescas.
Recordo-me de um documentá rio que particularmente me espantou. Tratava-se de um
heró i da guerra da Crimeia cujo nome esqueci. A explosã o de um obus queimara-lhe os
olhos e decepara-lhe as pernas por cima do joelho. Mal os médicos haviam acabado de lhe
fazer os pensos, logo ele saltava da cama, se apoderava de um braçado de minas
” e voltava ao combate em cima dos cotos acabados de ligar.
Passavam na estrada tanques alemã es. A rastejar como um
tigre, o aleijadinho localizava logo um carro inimigo, guiado
apenas pelo ouvido, aproximava-se dele subitamente e fazia-o

O REGIMENTO DA MORTE 153


explodir. Destruiu desta maneira uma dú zia deles; depois, sobre um fundo titâ nico de
carros de combate incendiados,
o valente soldado russo deixava-se finalmente levar para a enfermaria de campanha, onde
os cirurgiõ es o anestesiavam
e faziam o impossível para o salvar, mas acabavam por o ver morrer, a sorrir muito feliz, no
meio dos seus competentes
desvelos. No fim deste género de filmes subia ao estrado um oficial e declarava com
entusiasmo: - E aqui está , camaradas, como o exército vermelho combate os sustentá culos
da burguesia e do capitalismo internacional.
Como tudo o que é bom tem um fim, logo que soube por um dos meus amigos da G. P. U.
que íamos sem dú vida
ser transferidos talvez para o inferno de Tobolsk, resolvi, juntamente com Fleschmann,
pô r-me ao fresco. A nossa intençã o era ir até Moscovo e, se fosse possível, refugiarmo-nos
na Embaixada da Suécia. Certa manhã prometi ao G. P. U. um saco de farinha gratuito se ele
nã o apontasse a nossa falta à chamada da manhã seguinte. Ele riu-se e resmungou qualquer
coisa a respeito de mulheres. Nã o tentei desenganá -lo e pedi, na moagem, se me davam
dois
dias de licença para prestar um fictício serviço ao comissá rio.
Juntei num saco vazio todo o dinheiro ganho no mercado negro, depois saí calmamente da
cidade e dirigi-me ao local combinado para o nosso encontro.
Caminhei sem parar durante cerca de vinte e quatro horas. Quando, finalmente, me deixei
cair num fosso, sentia-me
tã o estoirado que adormeci logo. Nã o há no mundo paisagens mais monó tonas do que as da
Rú ssia. Os caminhos
rurais sã o compridos e sinuosos, feitos apenas de terra batida e de calhaus. De ambos os
lados, a estepe, sempre a
estepe, até perder de vista. Como ú nicos seres vivos, só um
pá ssaro de quando em quando. 80 ou 100 quiló metros entre
duas aldeias... Finalmente, uma linha de caminho de ferro, talvez a de Gorki a Saratov.
Estafado, deitei-me no talude e lutei contra o sono. O sol ardia e, quanto a sombra, nem
vestígios. Nã o tardou que a sede me viesse atormentar.
154 SVEN HASSEL
Via borboletas negras à frente dos olhos. Nem sequer já sentia sono. Ultrapassara essa fase.
Estava morto, indiferente
ao tempo que passava, sensível apenas aos protestos do meu
corpo exausto, desidratado. Uma ú nica emoçã o humana, inverosímil, surgida do fundo da
minha letargia: sentia desejo de uma mulher. Nunca mais veria Ú rsula. Creio que acabei por
soluçar, bater com os pés no chã o, por maldizer
a sorte, a providência, Deus; numa palavra, foram umas horas tremendas, interminá veis,
dolorosas, essas que
passei no sopé daquela rampa, à espera de um comboio, algures entre Gorki e Saratov.
O primeiro que passou era de mercadorias e levava uma certa velocidade. Vais subir já para
este comboio, ainda que partas a espinha; o pró ximo talvez demore ainda muitas
horas! Assim que a locomotiva desfilou na minha frente, desatei a correr por cima da brita,
aterrado com a ideia de tropeçar numa pedra e cair debaixo daquelas rodas atroadoras.
Agarrei-me ao corrimã o de uma carruagem aberta.
Tentei vá rias vezes içar-me, descolar do chã o, e falhei sempre. Tinha a cabeça cheia de
ideias loucas. Largar tudo. Deixar ir as pernas de rastos. E depois, bruscamente,
invadiu-me uma fú ria, cerrei os dentes, saltei. Passado um momento encontrava-me a salvo
sobre a plataforma do vagã o
e enfiava para dentro do carro coberto com um oleado que aquele transportava. Um rosto
lívido apareceu, de sú bito, acima do bordo do carro. Semimorto de terror, fitei-o nos olhos
pelo espaço de um instante, sem que me lembrasse da pistola que também conseguira
arranjar.
Tirei-a do bolso e enfiei-a debaixo do nariz da apariçã o, que cerrou os olhos e gemeu: - Jetzt
ist alies aus!
- Que vem a ser isto ? É s alemã o ?
Baixei a arma, estupefacto, e entã o, lentamente, surge novo tipo de debaixo da cobertura.
Tinham-se evadido de um campo de prisioneiros de guerra situado a mais de 150
quiló metros ao norte de Alatyr.
À partida eram quatro, mas um tombara para debaixo das rodas do comboio e o outro fora
mesmo cair nos braços de
três soldados russos.

O REGIMENTO DA MORTE 155


Com o mapa na mã o (tinha roubado um antes de abandonar
o campo), concordá mos em que nã o devíamos ir além de Saratov, na direcçã o do mar
Cá spio. O melhor seria tentar alcançar a bacia do Volga, a noroeste de Estalinegrado,
onde as nossas tropas se encontravam presentemente.
Os meus dois «compatriotas» haviam sido apanhados quatro
meses antes, em Maikop, e desde entã o os exércitos alemã es tinham progredido na
direcçã o do Volga.
Em Saratov deixá mos o comboio para tentar arranjar outro mais favorá vel aos nossos
desejos, no caso de este continuar numa direcçã o que nos nã o conviesse.
Encontrá mos
uns caixotes de peixe cru e comemos até nos fartar.
O peixe cru nada tem de repugnante. Basta ter-se atingido o grau de fome necessá rio para o
apreciar. Alguns gatos esqueléticos disputaram entre si os restos do banquete e os três
ú ltimos peixes, que nã o havíamos conseguido devorar.
Entretanto o nosso comboio partira, sem termos sequer visto
em que direcçã o. Arranjá mos outro, no entanto, carregado de
carros e muniçõ es. Havia nove probabilidades contra uma de que seguisse na direcçã o da
frente.
Foi entã o, e só entã o, que me apercebi de que regressava
à frente de batalha. Até ali nunca tivera tempo de pensar nisso, mas estas caixas de
muniçõ es nã o me saíam agora do sentido. Voltava para a frente! Até ali só tivera uma ideia:
fugir da Rú ssia, visto que a Uniã o Soviética, para mim, era uma terra de armadilhas. Mas se
queria realmente
salvar a pele, seria para a frente que devia dirigir-me?
Para a vanguarda de todos os ataques, a retaguarda de todas as retiradas? O paradoxo era
alucinante. Porque seria a vida tã o estú pida? Mais valia meter já uma bala na cabeça! Coisa
estranha, inexplicá vel: sentia-me muito mais deprimido do que naquele dia em que um
outro comboio
me arrancara aos braços de Ú rsula, no fim da minha licença. Talvez que essa licença
representasse um período da minha vida perfeitamente feliz e satisfató rio, a ponto de
impregnar da sensaçã o reconfortante de que, se a existência
nã o me voltasse a proporcionar a menor felicidade, eu teria conhecido ao menos aquela. Ao
passo que aqui, na U. R. S. S., eu nã o conhecera nada que pudesse verdadeiramente
constituir uma experiência completa e satisfa-
156 SVEN HASSEL
tó ria. Tinha errado, como fugitivo, através deste imenso país, solitá rio e perseguido, mas
fora também muitas vezes
auxiliado. E, no fundo do meu sofrimento pessoal, sentia que a U. R. S. S. me revelara até
que ponto o mundo era vasto, colorido, rico de aventura. Pressentira, no tempo e no espaço,
a existência de uma coisa infinitamente mais vasta do que a pequena Alemanha, agora
cercada e em vias de estrangulamento. Travara superficialmente relaçõ es
com uma entidade mais complexa do que uma mulher, transportada num tapete voador de
inú meras cores, digno das Mil e Uma Noites. Dera-me o que possuía sem hesitar
e eu sabia-a sempre capaz de me dar mais ainda. Mas nunca este encontro miraculoso se
repetiria nas mesmas circunstâ ncias. Uma naçã o gigantesca ia fechar sobre mim
as suas portas ao cabo de uma visita breve. Sentia uma vontade louca de voltar atrá s, de
correr ao encontro daqueles
perigos, daquelas surpresas, daquela dança sobre um vulcã o.
De procurar a minha princesa, para terminar de verdade a aventura.
Teria eu procedido estupidamente nã o o fazendo? Só poderia agir assim se fosse louco; mas
é preciso que eu o seja realmente para haver regressado à estranha «segurança»
de um tanque na primeira linha. Tendo cortado as pontes com todo o mundo precá rio que
edificara em meu redor, só me era dado escolher entre um regresso prová vel à s masmorras
russas e o meu lugar reservado num carro de assalto alemã o. Curiosa alternativa, na
verdade. Com muita
sorte, talvez pudesse livrar-me das prisõ es da Rú ssia. Mas nã o conseguiria safar-me do
tanque alemã o. Na realidade, havia já muito tempo que eu perdera a oportunidade de
escolher. Entrara numa engrenagem sem fim que me esmagaria
até à morte. Encontraria ao menos, de novo, Porta, o Velho e os outros? Tornaria a ver
Ú rsula?
Embarcá mos no comboio de muniçõ es, levando connosco um caixote de peixe cru. A
composiçã o pô s-se em marcha e adquiriu velocidade, embalando-nos com o seu tac-tac
monocó rdico. Choveu a potes durante todo o dia seguinte, mas nó s está vamos bem
abrigados debaixo dos oleados que
protegiam os carros. Os meus companheiros eram uns chatos da quinta marca. Nazis
convictos, acreditavam ainda

O REGIMENTO DA MORTE 157


na vitó ria da Alemanha. Criam ainda na possibilidade de vencer um gigante tal como a U. R.
S. S.! Um chamava-se Jiirgens, o outro Bartram. As horas escorriam lentamente enquanto
dormíamos, trincá vamos o peixe cru e eu lhes escutava as baboseiras.
Na estaçã o de Ouvarov, a leste do Dom, o comboio deteve-se. Pudemos abandoná -lo sem
percalço e o mapa mostrou-nos que devíamos encontrar-nos a 300 quiló metros a leste de
Voronesh. Ser-nos-ia necessá rio avançar até mais ou menos 100 quiló metros ao sul desta
cidade antes de termos probabilidades de encontrar tropas alemã s deste lado do Dom, pois
sabíamos que, ao norte de Voronesh, os Russos estavam a oeste deste rio e vigiavam todas
as pontes, vaus e outros pontos estratégicos.
A grande estrada regurgitava de soldados, canhõ es, viaturas.
A polícia militar soviética encontrava-se por toda a parte e, dali em diante, só podíamos
viajar de noite.
Perto de Sakmanka fomos interpelados por um sargento russo. O enorme camiã o em que
seguia sozinho atolara-se.
Ajudá mo-lo a safar-se. Em seguida matei-o e enverguei a sua farda. Maquinalmente. Quase
sem saber o que fazia.
Era uma coisa, como tantas outras, que devia ser feita. Os meus dois companheiros
esconderam o cadá ver debaixo de um matagal, depois subiram para a parte de trá s,
enquanto eu tomava o lugar do motorista. Na cabina encontrei algumas granadas e uma
metralhadora. Partimos a toda a velocidade, percorrendo perto de 200 quiló metros antes
de nos faltar a gasolina. Abandoná mos o camiã o e continuá mos a pé. Levei comigo a
metralhadora. Aproximá vamo-nos do epicentro do cataclismo.
No dia seguinte ouvia-se já o canhoneio. Estranha impressã o, esta de escutar de novo a voz
da artilharia. Quando desceu a noite, o horizonte estava vermelho. Escondemo-nos no meio
das ruínas de Yelansk. Impossível dormir, no entanto. A frente ficava demasiado perto. A
menos de 5
Quiló metros. E já nã o está vamos habituados a estes concertos de artilharia. Quando nos
pusemos a caminho, mal Caiu a noite, para vencermos esta ú ltima tirada que nos levaria à s
linhas alemã s, tínhamos os nervos absolutamente à flor da pele.
158 SVEN HASSEL
Por cima de nó s passavam obuses a gemer e iam rebentar
como trovõ es que nos aspergiam, a distâ ncia, de terra, de pedras, de pedaços de ferro.
Foram-nos precisas muitas horas para alcançar as trincheiras russas, onde aguardá mos
no fundo de um buraco o momento propício para atacar de surpresa os dois operadores de
uma metralhadora pesada.
Obedecendo a um sinal previamente combinado, saltá mos-lhes
em cima e despedaçá mos-lhes o crâ nio com toda a limpeza. Em seguida escalá mos o
parapeito do abrigo e corremos, de cabeça baixa, para as trincheiras em frente.
A nossa sú bita apariçã o na terra de ninguém desencadeou de parte a parte um cerrado fogo
de armas de todos os calibres, acompanhado de foguetõ es luminosos, tanto alemã es como
soviéticos. Passá mos um tempo indeterminá vel
no fundo de um buraco de obus, no meio de toda aquela tempestade. Depois, ao apaziguar-
se a fuzilaria, esgueirá mo-nos para fora do nosso abrigo e retomá mos a louca correria em
direcçã o à s posiçõ es alemã s.
íamos mesmo a chegar quando uma metralhadora germâ nica
se fez ouvir. Jiirgens soltou um grito e caiu morto instantaneamente. Foi mau para ele, mas
bom para nó s.
Se acaso houvesse ficado apenas ferido, teria sido preciso
transportá -lo. Bartram e eu fizemos gestos desesperados, gritando:
- Nicht schiessen! Wir sind deutsche Soldaten!
Sem fô lego e a tremer de pavor, caímos para dentro da trincheira. Conduziram-nos
imediatamente ao comandante da companhia, que nos interrogou rapidamente e depois
nos
mandou para o Q. G. do regimento, onde nos deram de comer e palha para dormirmos.

LIVRO II
m

... e depois ele teve a estupidez de confiar numa enfermeira


que nã o era capaz de guardar um segredo e vocês podem imaginar o resto, Certa manhã , na
chamada, o comandante
leu-nos este encantador comunicado: «O Gefreiter Hans Beier, do 27.º regimento blindado,
51.a companhia, foi condenado à morte, no dia .12 de Abril,
por haver infringido gravemente os princípios da moral militar, deixando esmagar
voluntariamente um pé por um carro de assalto. A execuçã o teve lugar em Breslau, a 24
de Abril passado.»
Tais eram, mais ou menos, os termos deste edificante comunicado. O Velho chupou no
cachimbo e Porta emitiu
um riso breve, sem alegria.
- Nã o, nunca dá resultado fazer isso a si pró prio...
Escrevi à minha mã e e a Ú rsula para lhes dizer que ia ter brevemente uma licença para
descanso. Nessa mesma
noite fui convocado à presença do comandante da companhia.
Recostado no espaldar da cadeira, Meier fulminou-me com o olhar, em silêncio. Depois
dignou-se abrir a boca: - Como te atreveste a solicitar uma licença passando por cima do
comandante da tua companhia?
- Eu nã o a solicitei. O pró prio coronel disse que eu tinha direito...
- A tua licença está anulada. Nesta companhia sou eu quem concede ou recusa as licenças.
Podes-te ir embora.
Estava de novo metido naquele inferno. Até ao pescoço.
MEIER, O BANDIDO
- De borco! Com a cara na lama. seus danados!
De sú bito ouviram-se gritos, que logo se apagaram no, meio do estrépito da morte.
R. M. - 11
162 SVEN HASSEL
O tanque n.º 534 atolara-se na terra movediça, esma-gando os cinco homens que o capitã o
Meier acabara de mandar estenderem-se na lama, debaixo do monstro de aço
Seguiu-se um longo silêncio de morte. Depois um rugido surdo subiu de toda a companhia...
Quando os cinco cadá veres
irreconhecíveis foram arrancados à terra russa, aonde nã o tardariam a regressar, Meier
contemplou-os um instante
com um ar indiferente, como se aquele mú ltiplo assassinato
lhe nã o dissesse o mínimo respeito.
Tinham-nos dado uma curta pá de infantaria para desenterrar
as minas e nó s está vamos prontos a partir para a terra de ninguém. Eram exactamente 21
horas. Todos os objectos que, ao entrechocarem-se, poderiam trair a nossa
presença - binó culos, má scara de gá s, capacete, lanterna eléctrica - haviam ficado no abrigo.
O nosso armamento consistia numa pistola, uma faca-punhal e algumas pequenas
granadas ovó ides. Porta levava, além disto, a sua carabina
de franco-atirador soviético, da qual nunca se separava sem
desgosto, íamos abandonar a trincheira quando Meier se aproximou de nó s. Vinha com ele
o tenente von Barring.
Como de costume, Meier invectivou-nos: - Tratem de fazer o trabalho com limpeza.,
cambada de porcos!
Sem lhe prestar a mínima atençã o, von Barring apertou-nos a mã o a todos e desejou-nos
boa sorte. A um sinal do Velho, saltá mos o parapeito, atravessando rapidamente os
nossos arames farpados antes de alcançarmos o largo espaço
descoberto, sobre o qual seria preciso correr a toda a brida. íamos
mais ou menos a meio quando um foguetã o luminoso transformou as trevas em luz branca
e ofuscante.
Estendidos
no chã o, nenhum de nó s bulia. À luz daqueles infernais fogos de artifício tudo podia ser
notado na terra de ninguém,
onde o menor movimento é considerado como uma manifestaçã o de hostilidade. O
foguetã o levou um tempo infinito a consumir-se.
Nova corrida. Novo foguetã o. O Velho praguejava entre dentes:

O REGIMENTO DA MORTE 163


- Se esta merda continua por muito tempo, nã o saímos daqui com vida! Para o que havia de
dar aos malditos Russos!
Mais dois foguetõ es subiram e desceram. Houve depois uma acalmia, durante a qual
atingimos finalmente os arames
farpados soviéticos. Deitados de costas, começá mos a utilizar
os alicates. Os fios enrolavam-se e estendiam-se por cima de nó s como molas, produzindo
uns fracos zumbidos, contudo
demasiado fortes para nó s. Porém, faltava ainda o mais difícil: rastejando como cobras sob
um emaranhado de arame, tínhamos de desencantar as minas, sondando o terreno
por meio de compridas bastes metá licas. As minas utilizadas naquele sector eram de
madeira, o que tornava os detectores perfeitamente inú teis.
Este género de tarefa nã o competia de modo algum ao pessoal dos tanques, e tínhamos
unicamente de a agradecer
ao patife do Meier e à sua â nsia de ganhar a Cruz de Ferro.
Pedira ao comandante do regimento para confiar à sua companhia
esta maldita missã o. Nã o só devíamos fazer um mapa dos campos de minas, como tínhamos
ainda de desenterrar
uma parte destas para as ir enterrar noutros sítios, sobre as pistas deixadas pelos Russos
para os seus futuros ataques.
Prepararíamos assim novas vias que poderiam servir-nos, enquanto os Russos iriam pelos
ares sobre as suas pró prias
linhas.
Como eu nã o tinha a menor prá tica de desenterrar tais engenhos, entregaram-me a sonda,
dizendo-me que a enfiasse,
inclinada, pela terra mole dentro. Deparou-se-me quase a seguir um corpo duro.
- Eh, Velho!
. Ele veio de rastos reunir-se a mim.
-Achaste alguma?
-Creio que sim.
agarrou na sonda e manejou-a delicadamente.
- É mesmo. Nã o vale a pena bulir mais com ela. Estas bichinhas sã o muito sensíveis!
Localizou a mina no mapa. Depois disto as descobertas sucederam-se sem interrupçã o.
Apó s termos o mapa do campo completo, eles desenterraram algumas minas, que
transportaram para uma certa distâ ncia. O nosso sistema
164 SVEN HASSEL
nervoso sofreu de novo uma dura prova, pois o menor barulho podia provocar uma
catá strofe. Havíamos quase terminado quando um novo foguetã o luminoso explodiu por
cima das nossas cabeças. Eu levava uma mina nos braços, mas deitei-me rapidamente,
mordendo a terra, e durante sessenta longos segundos fiquei assim, imó vel, com
o aparelho explosivo apertado ao coraçã o.
Regressá mos de madrugada, sã os e salvos. A comédia repetiu-se quatro noites a fio, mas
está vamos em maré de sorte, pois nenhum de nó s lá ficou.
Quando apresentá mos o nosso relató rio, no qual se afirmava que a topografia subterrâ nea
da nossa nesga de terra de ninguém estava inteiramente levantada, Meier desatou num riso
sarcá stico.
- Inteiramente levantada, hem? O que vocês fizeram foi dormir como porcos no fundo de
uma cova! Mandei deitar vá rios foguetõ es e nem sequer consegui ver o rabo a
nenhum de vó s! Mas nã o julguem que me levam com essa facilidade. Devem apresentar-se
aqui esta noite com os vossos mapas e iremos juntos verificar o trabalho.
Perceberam?
- À s suas ordens, Herr Hauptmann - respondeu o Velho, executando uma meia volta que
salpicou de lama as botas do nosso glorioso comandante de companhia.
A Lua já nascera quando voltá mos a partir com o patife do Meier para o campo de minas
inimigo. Descemos para uma cova onde os Russos nã o podiam avistar-nos, mas onde
as minas eram tã o numerosas como os arenques num barril.
Meier caminhava à frente, seguindo pelo mapa o traçado das pistas que havíamos
delimitado. Atrá s dele seguia o Velho, igualmente curvado sobre o mapa, embora já conhe

cesse o sector como as suas pró prias mã os.
Meier cortou para a esquerda. Pará mos, em silêncio e deitá mo-nos de barriga para baixo.
Ele percorreu uma dezena, talvez uma quinzena de metros antes de se aperceber
de que já o nã o seguíamos. Voltou-se, nã o se atrevendo a gritar, com receio de atrair a
atençã o dos Russos.
--Que significa isto, cambada de malandros? Regou-Gou- ele em surdina. - Todos atrá s de
mim, como vos orde—
nei, ou levo-os a conselho de guerra!

O REGIMENTO DA MORTE 165


Erguido sobre um joelho, o Velho desatou à s gargalhadas;
- Acabaram os conselhos de guerra para o, grande Herr Hauptmann Meier! Daqui a cinco
minutos só restará dele um punhado de carne migada!
Meier baixou os olhos para o mapa e Porta chasqueou: - Anda, consulta o mapa, monte de
esterco! É pequena a diferença entre o teu e os nossos. Como oficial superior, competia-te
um mapa especial, nã o é verdade? Por isso deslocá mos alguns pontinhos vermelhos, para
ficar mais bonito! E agora nã o digas que nã o somos amá veis contigo!
Todos gozaram durante um ou dois minutos. Em seguida Porta meteu a carabina à cara e
trovejou: - Dança agora, grande patife, senã o meto-te uma bala nas tripas!
Mortalmente pá lido, Meier deu um passo na nossa direcçã o,
mas, ao encetar o segundo, a carabina de Porta fez-se ouvir. Meier tinha uma bala dum-dum
no ombro. Parou logo, a cambalear e a gemer em voz baixa, enquanto o sangue corria à s
lufadas do ombro partido.
- Dança, porcalhã o, dança! -tornou Porta, de dentes cerrados. Dança para aí uma valsa! Nó s
marcamos o compasso com estes brinquedos que tu nos ensinaste a manejar.
Tu e os outros como tu!
O Velho tirou do estojo o pesado revó lver regulamentar e fez cair uma bala entre os pés de
Meier, que esboçou o primeiro passo de dança. Stege, Plutã o e eu, juntamente com os
outros tipos da secçã o, todos tomá mos parte na paró dia, esvaziando os carregadores, um
apó s outro, em redor das botas do oficial, que dançava e dava pulos.
A primeira queda provocou a explosã o de uma mina, que o fez ir aos ares. E por quatro,
cinco vezes consecutivas
a sua aterragem provocou nova explosã o.
Os obuses Shrapnel começaram a rebentar, a pouca altura, por cima das nossas cabeças,
pois as deflagraçõ es
haviam alarmado todo o sector. À s metralhadoras principiaram
a crepitar nos intervalos dos estrondos provocados pelos morteiros. De um e outro lado
subiam foguetõ es a regular tiros de barragem. Tanto Russos como Alemã es julgavam
tratar-se de um ataque lançado pelo adversá rio.
166 SVEN HASSEL
A tempestade desabou sobre nó s como um furacã o e a terra tremeu debaixo do nosso peito.
Permanecemos durante
duas horas no fundo de uma cova antes que o dueto amainasse.
Assim que este terminou, regressá mos à trincheira e o Velho apresentou o seu relató rio ao
Obersleutnant von Barring.
- Herr Obersleutnant! Unteroffizier Beier de regresso, com a sua secçã o, de um
reconhecimento operado nos campos de minas do inimigo. O reconhecimento decorreu
conforme o plano, sob o comando do capitã o Meier. O
capitã o
morreu porque, desprezando os repetidos avisos da secçã o, teimou em penetrar no campo
de minas, apesar do
seu insuficiente conhecimento do terreno.
Barring fitou-nos, pensativo. Os seus olhos encontraram os de cada um de nó s, demorando-
se um instante em cada
rosto. Nunca vi uns o’lhos tã o profundamente humanos e graves como aqueles.
-O capitã o Meier morreu? Sã o coisas que acontecem na guerra. Unteroffizier Beier, traga o
seu grupo para o abrigo. A 2.a secçã o fez um bom trabalho nos campos de minas. Vou
enviar o meu relató rio ao comandante...
Fez-nos a continência, levando dois -dedos à pala do boné, e entrou no seu abrigo.
O Velho sorriu.
- Enquanto este viver nã o haverá mais caça aos malandros
nesta companhia.
- Viste os saltos mortais que ele dava, aquele monte de esterco, todas as vezes que as
marotas das minas lhe chegavam ao cu? -recordou Porta. Se o seu professor de giná stica o
pudesse ver da campa, até se ria!
E foi esta a oraçã o fú nebre do capitã o Meier, burguês alemã o embriagado de poder, mas
demasiado mesquinho
para ser alguém na guerra.
- O quê? Elas nã o sã o duas?
Com um rugido, Plutã o correu no encalço de Porta e das duas raparigas gordas.
Desapareceram da nossa vista,
mas continuá vamos a ouvir os cacarejos de prazer das duas
avantajadas fêmeas.
- Nã o os apanhamos cá antes de duas horas, pelo menos! - exclamou o Velho a rir.
Todos os rapazes se deitaram em círculo sobre a erva alta. Sonhavam, a contemplar o fumo
das piriscas, a evocar,
numa semi-sonolência, os companheiros desaparecidos.
DURMAM, RAPAZES!
De madrugada, quando se passava do ar fresco do exterior
para a atmosfera viciada do chalé superlotado, o cheiro pestilento quase nos fazia cair de
costas, mas por fim acostumá vamo-nos,
como a tudo o mais, e nã o tardá vamos a adormecer, embalados pelo ressonar e pelas
conversas em
surdina dos camponeses russos. Sabíamos muito bem que a
mulher estava tuberculosa em ú ltimo grau, mas que importava
isso? Aceitá vamos os bacilos, tal como os piolhos, os fatos e a porcaria.
Mal acabá vamos de adormecer, e já os russos nos acordavam
com o ruído que faziam a levantar-se. Porta injuriava-os, mas o velho russo respondia-lhe
com calma firmeza; - Cala a boca, Herr Soldat, e dorme!
Porta arvorara-se em professor de calã o de toda aquela gente.
Passada uma hora entrava pela casa dentro uma galinha com a ninhada toda atrá s. Quando
começavam a debicar a cara de Porta, este ficava louco furioso: saltava da
168 SVEN HASSEL
palha como um projéctil a reacçã o, agarrava a galinha pelo
pescoço, dava-lhe bofetadas com o dedo indicador e vociferava :
- Sai da minha vista, galinha velha e maldita, mais a tua ninhada ilegítima!
Depois atirava a ave pela janela fora e perseguia por toda a casa a ninhada dos pintainhos
apavorados. A nora do velho aparecia a barafustar num tom agudo e Porta berrava :
- Quando é que me deixarã o dormir em paz?
E insultava-a até ela perder a paciência e lhe bater com a colher de pau sobre o crâ nio. Toda
a gente gozava, o que
tinha o condã o de aumentar a raiva de Porta. Desatava a correr atrá s da camponesa, em
camisa, com a fralda a voar
ao vento, mostrando as pernas de galiná ceo. Perseguia-a até ao campo, enquanto os russos
apertavam a barriga de tanto rir. Poucos momentos depois voltava esfalfado, batia a porta
com toda a violência, a ponto de abanar a casa toda, mostrava a cabeça à janela e rugia: -
Quero dormir e o primeiro que me incomodar deito-o abaixo, pan-pan! Pronto! Morreu!
Levantá vamo-nos um pouco antes do meio-dia e eu ia buscar o nosso rancho à cantina
rolante. A essa hora davam-nos
um alimento quase satisfató rio: sopa de feijõ es. As nossas tigelas vinham, a bem dizer,
cheias e nó s devorá vamos
a raçã o em menos de um fó sforo, como animais. Depois de
havermos lambido tudo até nã o deixar vestígios, atacá vamos
uma encomenda que Stege ou qualquer outro tivesse recebido
da família: enormes pastéis folhados, bolinhos, um naco de presunto. Pú nhamos tudo sobre
uma mesa feita por
nó s junto das latrinas. Porta apresentava sempre uma garrafa
de vodka.
As nossas latrinas estavam dispostas de forma a podermo-nos sentar uns na frente dos
outros com a mesa no meio. Uma vez instalados, pegá vamos num baralho de cartas
sebento e começá vamos a jogar partidas interminá veis, enquanto
íamos roendo os biscoitos, os pastéis folhados ou o presunto. A garrafa passava de boca em
boca. Copos, taças
canecas, tudo isso constituía um luxo que há muito considerá vamos
dispensá vel ou efeminado. Sentados todos os O REGIMENTO DA MORTE 169
Cinco muito tranquilos, com as calças puxadas para baixo, em paz connosco e com todo o
mundo, comíamos, bebíamos,
fumá vamos, conversá vamos, jogá vamos as cartas e fazíamos
as nossas necessidades. As nossas ná degas descobertas ofereciam-se
descaradamente aos olhares de toda a aldeia, pois as latrinas estavam edificadas numa
eminência, do alto da qual podíamos admirar todo o campo em redor, ao mesmo
tempo que lá de baixo todos nos podiam admirar a nó s.
Um pá ssaro cantava sobre as á rvores e junto de nó s dormitava
um cã o, preguiçosamente estirado ao calor do Sol de Outono. As mulheres que trabalhavam
nos campos em redor cantavam uma cançã o russa... E unicamente ao cair da noite, quando
os camponeses começavam a regressar da
sua faina, é que abandoná vamos o nosso idílico pedestal, para nos arrastarmos
preguiçosamente até ao chalé.
Uma tarde o Velho e todos os outros chefes de tanque foram chamados à presença do
comandante da companhia.
Quando voltou, passada uma hora, anunciou-nos triunfalmente:
- Eh, rapazes. Vamos partir em expediçã o. Parece que temos de nos estabelecer na planície,
a vinte e cinco quiló metros
ao sul de Nowji, para ali cavarmos um fosso que deixe apenas de fora a torre desta
caranguejola.
Ficaremos
aí descansadinhos, a viver como reis, a cinquenta quiló metros
na retaguarda da frente. Nã o se pensa em obuses; nada a nã o ser tratar da saudinha até os
Russos romperem .
as nossas primeiras linhas... Quando isso acontecer, temos
de destruir os seus tanques e manter as nossas posiçõ es a
todo o custo. Assim que esgotarmos as muniçõ es, temos ordem de atirar fora a chave de
contacto: Porta desatou à s gargalhadas: - Disseste a chave do contacto ?
O Velho sorriu.
- Sim. Só podemos deitar fora isso.
- Está bem, pá ! Podes crer que obedeceremos à s ordens.
Ninguém se preocupava, pois tínhamos mais quatro chaves.
Antes da aurora já nó s ocupá vamos as nossas novas posiçõ es.
Situavam-se no meio da planície, onde a erva era
170 SVEN HASSEL
tã o alta que por vezes tínhamos de nos pô r em bicos de pés para descortinar o horizonte.
Fazia frio e pú nhamos os capotes, os bonés de pele, luvas e calçõ es também de pele
por cima das calças da farda. Como só dispú nhamos de duas enxadas e uma pá ,
trabalhá vamos três apenas de cada
vez, e era espantoso ver com que abnegaçã o cada qual suplicava
aos companheiros que o deixasse escavar uma verdadeira
cena para um filme de propaganda a gabar o espírito de camaradagem dos nossos queridos
combatentes -, mas isso devia-se unicamente ao facto de o movimento ser
o ú nico meio de nos aquecermos, pois o vento cortava como
lâ minas.
Erguendo a mã o, o Velho declamou num tom lírico: - Meus filhos, meus queridos filhos, nã o
é uma maravilha estar aqui a escavar este buraquinho? Vede, o Sol vai nascer e já nã o
temos medo do papã o! Vai ser uma festa, meus meninos! Os passarinhos do céu vã o cantar-
nos as suas cançõ es cristalinas e, se tivermos juizinho, talvez o Velho das Estepes venha
contar-nos uma histó ria, muito comprida e maliciosa. Nã o sentem o beijo do vento das
estepes sobre as vossas faces penugentas e nos vossos cabelos
encaracolados?
À medida que o Sol subia, descia na mesma proporçã o o nível, nã o da cova, mas do nosso
entusiasmo. Agora tudo
era transpiraçã o e pragas. Atirá vamos com as peças de roupa fora, uma apó s outra. Nã o
tardou que ficá ssemos todos em cuecas e sempre a escorrer em suor, ao passo que
as empolas iam nascendo nas nossas pobres mã os brancas.
Já nã o está vamos habituados à queles trabalhos á rduos e a
terra da estepe era dura, dura...
- Digam-me lá - inquiriu Porta. - Nó s somos soldados ou. sapadores? Se pergunto isto, é por
causa da tabela sindical...
Passá vamos o tempo a medir o tanque para ver se esta?
ria perto o fim da nossa tarefa, mas ao meio-dia, depois de havermos cavado perto de sete
horas, íamos apenas a meio caminho do sopé da torre. O Velho desatou a insultar
o exército e Porta perguntou-lhe inocentemente se ele nã o sentia o beijo do vento fresco da
estepe e se o seu coraçã o
nã o se alegrava com os quentes raios do Sol e com o valor

O REGIMENTO DA MORTE 171


didá ctico do trabalho da terra. O Velho atirou-lhe com a enxada à cabeça e deitou-se
pesadamente à sombra do tanque.
- Nã o tiro nem mais uma colherada de terra! Já fiz buracos de mais desde que começou esta
maldita guerra!
Boa noite!
Porta, Stege e eu cavá mos ainda durante uma hora, finda a qual o Velho e Plutã o nos vieram
render. Foi preciso
quase trazê-los à força para dentro da vala. Revezá mo-nos assim durante duas horas,
depois o trabalho efectivo foi reduzido para um quarto de hora e, finalmente, todos
acabaram por se deitar de barriga para o ar, com os olhos perdidos nas nuvens, incapazes
de cavar mais.
O trabalho, no entanto, tinha de ser feito, quer quiséssemos
quer nã o. Apó s uma hora de repouso, o Velho e Plutã o entregaram-se de novo à tarefa e nó s
seguimos-lhes o exemplo. Finalmente, à s 5 horas, a cova tinha a profundidade
desejada e fizemos descer o tanque lá para dentro.
Todos se prontificaram, em seguida, a montar a tenda; a vontade de dormir uma soneca era
geral. Mas, como aquele
sector passava por estar infestado de resistentes, tornava-se indispensá vel que alguém
ficasse de guarda enquanto os outros dormiam. E, como era de esperar, nã o houve
voluntá rios
para o primeiro turno. No meio de uma discussã o animada, o Velho declarou subitamente: -
Um Unteroffizier nã o deve fazer sentinela. Nã o sois decerto tã o ignorantes que
desconheçais isso!
E deitou-se, enrolado na manta, adormecendo imediatamente.
- Agora me lembro de que também sou Stabsgefreitcr - exclamou Plutã o. Boa noite,
meninos!
- E todo o exército haveria de censurar se eu, Joseph Porta, Obergefreiter, me rebaixasse a
um trabalho de subalterno!
Divirtam-se, meus filhos!
Só restá vamos Stege e eu.
- Isto é balela - disse eu com firmeza. - Nunca houve resistentes nestas paragens!
- Pois nã o! - confirmou Stege, virtuosamente indignado.
Passados momentos dormíamos todos cinco.
172 SVEN HASSEL
Foi Stege quem primeiro acordou, no dia seguinte pela manhã . Queríamos tomar o nosso
café na cama e foi a ele que coube a sorte de o ir fazer e no-lo servir. Minutos depois de
haver deixado a tenda gritava do alto da torre do tanque:
- Saiam daí, santo Deus! Vem lá o comandante!
Nã o podíamos estar com demoras, pois eram 11 da manhã
e, se o comandante nos surpreendesse em flagrante delito de preguiça, arriscá vamo-nos a
ficar com a caderneta
manchada. Mas aquilo nã o passava de uma manifestaçã o de bom humor do patife do Hugo
Stege. E por isso, num abrir e fechar de olhos, regressá mos, todos à tenda, reclamando
o nosso café em altos gritos.
Acabava Stege de sair com as nossas canecas e pratos, quando ouvimos de novo a sua
assarapantada voz: -Eh! Despachem-se! Vêm aí o capitã o e o coronel!
Levantem-se, santo Deus! Afirmo-vos que agora é certo!
Risos, injú rias e gestos có micos foram o resultado da sua nova partida, e ninguém se
mexeu. Quando a barulheira
se acalmou, Porta disse com voz sonora: - Baptista, se o comandante perguntar por mim,
diz-lhe que hoje nã o é o meu dia de receber!...
E acentuou a sua observaçã o com um sonoro traque, no que o Velho o imitou.
-Vocês saem ou nã o daí para fora? Passam-se lindas coisas nesta companhia!
Ou era na verdade o coronel, ou entã o Stege acabava de descobrir em si uma extraordiná ria
capacidade de imitador.
Desisto de descrever a nossa corrida para fora da tenda.
Depois de agrupados em sentido na frente da torre do nosso tanque, nem o sargento mais
benévolo poderia qualificar
de regulamentar a nossa indumentá ria. O comandante parecia prestes a explodir. Quanto
ao Obersleutnant von Barring, a sua expressã o era perfeitamente impenetrá vel.
Parecíamos todos saídos de um desenho humorístico: o Velho estava em cuecas, peú gas e
camisa sebenta; Porta enfiara as pernas das calças dentro das meias e trazia um lenço de
seda vermelha atado ao pescoço; a fralda de Plutã o
merecia duplamente o nome de bandeira, desfraldada ao

O REGIMENTO DA MORTE 173


vento, e a sua charpa, de um verde mais discreto do que o tom vermelho do lenço de Porta,
agravava ainda mais a situaçã o por estar enrolada como um turbante em volta da sua
cabeça. ,;
-É você o chefe? - rugiu o comandante, fulminando o Velho com o monó culo.
- Sim, Herr Oberst!
- Entã o porque espera para me apresentar o seu relató rio?
O Velho correu até junto do carro do comandante e, batendo os calcanhares das pantufas,
segundo o regulamento,
grasnou no silêncio da estepe: - Herr Oberst! O Unteroffizier Beier, da 2.a secçã o, tanque n.º
1 declara que nada há de especial a assinalar.
O rosto do coronel fazia concorrência à charpa de Porta.
- Ah! Nada há de especial a assinalar! Pois eu tenho alguma coisa de especial a dizer...
Seguiu-se uma tremenda descompostura. Nessa mesma tarde von Barring voltou a visitar-
nos. Desta vez vinha só .
- Vocês sã o, na verdade, a maior tropa-fandanga de todo o exército alemã o! - disse-nos,
abanando a cabeça. -
Podiam ao menos ter tido a lembrança de pô r alguém de sentinela no primeiro dia! Era
bem de ver que o coman--
dante havia de vir fiscalizar o trabalho! Agora vã o apanhar todos, logo que saírem daqui,
três dias de prisã o. E o buraco que vocês abriram nã o serve. Têm de fazer outro dez ,
metros mais recuado. E posso garantir-vos que o comandante volta à noite, pelo que o
melhor será começarem já .
Um silêncio consternado seguiu-se à partida do capitã o.
Abrir outro buraco? Isso nunca! Mas entã o que fazer?
Foi Stege quem, desta vez, nos livrou de embaraços. ; - Cambada de bêbados embrutecidos
pelo á lcool! -
começou ele amavelmente. - Vocês têm a sorte formidá vel de estar entre vó s um tipo
inteligente que sabe servir-se -
das meninges nas horas graves! Espero que terã o ao menos
a decência de agradecer isso a Deus... O melhor que temos
a fazer é dar um salto até Oskol com a caranguejola, ”
apresentar cumprimentos aos russos e convidá -los a virem dar um passeio em troca das
suas enxadas e do seu suor!
174 SVEN HASSEL
O estardalhaço das nossas lagartas despertou a aldeia amodorrada no seu torpor dominical
e nã o tivemos dificuldade
em contratar mais voluntá rios do que era preciso.
Trazendo uma carga de quarenta homens e mulheres, regressá mos
ao acampamento. Os russos mostravam-se encantados com aquele passeio, através dos
campos, num carro de assalto e, muito embora interrompessem constantemente o
trabalho para dançar, cantar e fazer paró dia até mais nã o, o nosso novo fosso foi cavado em
duas horas, no meio de uma atmosfera incrivelmente alegre (e também poeirenta) de coros
melodiosos, de manifestaçõ es bucó licas e de risos.
Está vamos de tal modo mergulhados nestas festividades fraternas
que nã o vimos chegar o Obersleutnant von Barring.
Observou durante um instante o espectá culo. Depois, abanando
a cabeça, murmurou:
- Bem, o menos que se pode dizer é que vocês têm espírito de organizaçã o!
Sempre a abanar a cabeça, voltou para o seu automó vel e partiu.
À noite conduzimos aquela gente simples e feliz de regresso à sua aldeia, provisoriamente
respeitada pela guerra.
Porta levava duas raparigas penduradas ao pescoço e nã o
foi fá cil juntar toda a malta para nos pormos em marcha.
Ao ajudarem-nos daquela maneira, em prejuízo dos seus pró prios compatriotas, nã o teriam
os russos cometido,
pelo menos no plano teó rico, uma espécie de traiçã o?
Acho que assim se lhe pode chamar. Mas nã o tenho a certeza.
É que, no meu entender, estes actos de confraternizaçã o contribuíram muito mais do que a
acçã o da resistência para
fazer arrefecer o entusiasmo do simples soldado germâ nico
pela porcaria da guerra. Conheço muitos que foram definitivamente
curados da sua estú pida fé naquele ridículo mito da «raça superior» pela descoberta
fortuita de que o inimigo nã o era inimigo deles, nem lhes era, de modo nenhum, inferior. O
simples soldado alemã o alargou o seu conhecimento dos homens e dos povos e estes
contactos implantaram nele a semente da solidariedade com as pessoas
simples, semelhantes a ele. Lentamente, mas com segurança,
desagregaram-se as ideias vã s, as personagens incon-O REGIMENTO DA MORTE 175
sistentes do Fü hrer histérico, dos generais desumanos, cheios
de arrogâ ncia. Aprendeu a detestar activamente as SS, que
lhe haviam inspirado até entã o um surdo e humilhante receio. Nã o se tem vontade de atirar
sobre pessoas com quem dançá mos na véspera, quer se esteja ou nã o em guerra. É esta
uma das razõ es pelas quais muitas balas se
perdem, muitos obuses falham o seu objectivo em certas batalhas. Atirar para o ar é uma
coisa ao mesmo tempo agradá vel e fá cil, um meio de roubar à guerra o seu pasto.
A nã o ser que haja atrá s das nossas costas um oficial a fiscalizar-nos sem descanso.

Sorridente, von Barring estendeu-nos as nossas licenças.


- Se se despacharem, levo-os à estaçã o. Têm cinco dias de licença e mais cinco para a
viagem.
Reboaram câ nticos e houve saltos de alegria, que tocaram
as raias da loucura. Invadimos o chalé a dançar: depois houve luta pela posse da velha
lâ mina de barba que
nos servira já a todos mais de cinquenta vezes. Porta beijou
a velhota na boca engelhada e fê-la valsar com um tal ardor
que ela deixou cair as pantufas. A velha cacarejava como
uma galinha e apertava a barriga à força de rir.
- Sois piores do que os cossacos! - afirmava ela.
988.º BATALHÃ O DE RESERVA
Chegá mos a Gomel com vinte e quatro horas de atraso.
O comboio dos licenciados partira já . Era preciso esperar pelo do dia seguinte.
Um sargento informou-nos de que recomeçara o barulho na frente. Parece que os Russos se
lançavam ao ataque das
nossas posiçõ es desde Kalinine até à bacia do Dom, e dizia-se mesmo que, em certos
pontos, haviam forçado as nossas linhas.
- Escapá mo-nos a tempo - observou Porta. - Temos uma sorte que nem porcos...
Com ar preocupado, o Velho abanou a cabeça: - Mas daqui a quinze dias voltamos à mesma.
E nã o quero crer que as coisas se resolvam entretanto!
- Cala a boca, meu desmancha-prazeres! - interrompeu Hugo Stege. - Está s a chatear-nos
com os teus pessimismos!
Quinze dias em nossa casa é tudo quanto se pode desejar! Daqui até lá talvez acabe a
guerra...
Toda a noite demos voltas e passá mos revista aos nossos projectos mirabolantes. Eu
pensava nas, curvas firmes de

O REGIMENTO DA MORTE 177


Ú rsula, imaginava o seu abraço em volta dos meus ombros,
a marcha dos seus dedos ao longo da minha coluna verte-bral. Desejava-a com todas as
minhas forças e permanecia
calado.
”O nosso comboio só devia partir à s 6.40 da tarde, mas .
à s 5 já está vamos na estaçã o. Sentíamo-nos poderosos como
reis enquanto estendíamos as nossas licenças aos polícias
militares. Encontrá mos um compartimento vazio. Porta e Plutã o instalaram-se nas redes
para dormirem à sua vontade. Descalçá mos as botas e tomá mos todas as providências
necessá rias para a noite que se aproximava. Pouco a pouco,
todo o comboio se encheu de licenciados barulhentos, que se estiravam mesmo no chã o dos
corredores e dos compartimentos. Garrafas de Schnaps circulavam por toda a parte, as
á rias e as cançõ es brotavam de todas as carruagens.
Porta tirou a flauta e tocou o coro de uma cantiga proibida, que todos nos apressá mos a
acompanhar. Correu-se todo o repertó rio das cançõ es obscenas. Mesmo as
mais porcas. Ninguém via nisso o menor inconveniente.
Nó s, os da velha guarda, cantá vamos o que queríamos. Se um palerma qualquer tentasse
fazer-nos calar, atirá -lo-
íamos
logo pela janela fora, sem a menor explicaçã o. Quando o comboio se pô s em marcha, uma
enorme ovaçã o fez tremer
o que restava dos vidros da gare.
A uma hora qualquer da noite o comboio parou na estaçã o de Mogilev. A agitaçã o acalmara.
A maior parte dos pâ ndegos dormia, a sonhar com a licença. Para muitos
deles tratava-se da primeira ao fim de alguns anos.
O comboio partiu de novo com uma sacudidela. Percorreu algumas dezenas de metros e
tornou a parar.
Passado
pouco tempo, gritos quebraram o silêncio da noite e, quase
simultaneamente, as portas da nossa carruagem abriram-se.
Polícias militares de capacete subiram, berrando: - Todos lá para fora com armas e
bagagens. As licenças estã o suprimidas. A ofensiva russa furou as nossas linhas.
Vamos agrupar toda a gente num batalhã o provisó rio de reserva e toca a voltar para a
refrega.
Ergueu-se um clamor terrível e os insultos começaram a chover sobre os polícias. Que
fossem pregar a outra fre-guesia, que se deixassem de gracinhas, berravam todos.
»
R. M - 12
178 SVEN HASSEL
Mas aquilo nã o era uma gracinha. Sonolentos, furi-bundos, tivemos mesmo assim de
evacuar o comboio e de
ir formar em dois grupos na plataforma da estaçã o de Mogilev. A esquerda, a artilharia e os
tanques. À direita, todos os outros: infantaria, aviaçã o, marinha, tudo.
Tiraram-nos
as nossas guias de licença; depois soou a ordem fatal:
- Coluna... à direita... DIREITA! Em frente... MARCHE!
Marchá mos durante toda a noite, cheios de fadiga e de raiva, fustigados pelo vento e pela
neve, que nos cortava a cara. Nã o podíamos acreditar em tamanha patifaria. Nã o se fazem
partidas daquelas a soldados. Nã o há o direito de os tirar para fora de um comboio que os
conduzia para uma licença bem merecida. De lhes roubar o seu paraíso, para os enviar de
novo para a frente, para os lança-chamas, para os seus canhõ es e para os canhõ es do
inimigo. Era um golpe capaz de destruir os restos de força moral e de espírito combativo
que alguns de nó s podiam ainda possuir.
Seis dias de marcha através da neve, sempre e sempre a neve. Depois, um primeiro
encontro com o inimigo, um pouco ao norte da aldeia de Lischwine. Coisa curiosa, essa
de ouvir os obuses a enterrarem-se na neve, com um ruído mole. Lentamente, a frente
encurvava-se sob a pressã o constante
da infantaria russa, que progredia, inexorá vel, sem se importar com as perdas sofridas.
Lentamente, as nossas formaçõ es provisó rias dissolviam-se e iam ficando aniquiladas.
Nada mais tínhamos a fazer no país dos Sovietes; nã o podíamos conter o impulso daquela
gente resolvida a limpar
o seu territó rio da nossa presença. Eles tinham por si o direito moral, isto é, defendiam-se
na verdade contra um agressor. Hitler pretendia também que nó s nos defendíamos
de um agressor. Ataque preventivo! Mas isto nã o passava de um artifício de propaganda. Os
Russos, esses, sabiam que estavam repelindo uma ofensiva real.
A nossa unidade chamava-se o 988.º batalhã o territorial de reserva e a maior piada é que
contava representantes de
toda a espécie de armas, desde a marinha até à aviaçã o, passando mesmo pela guarda civil;
mas apenas um, um só , das tropas terrestres. Nas suas fileiras acotovelavam-se

O REGIMENTO DÁ MORTE 179


todas as fardas, figuravam todas as insígnias, todos os escudos, todos os emblemas.
Tínhamos, contudo, uma coisa
em comum: o nosso ó dio pelo 988.º batalhã o de reserva.
Está vamos mortos por voltar à s nossas pró prias unidades.
Deu-se um novo e duro recontro a leste de Volkov, recontro no qual os Russos lançaram
numerosos tanques e
caças-bombardeiros. Numa casa em ruínas encontrá mos um
gato amarelo empoleirado numa carroça. Miava de frio e de fome. Fizemo-lo beber à força
uma golada de Schnaps ,
antes de lhe darmos de comer. Quando abandoná mos a casa,
levá mo-lo connosco. Como era de um amarelo-avermelhado, chamá mos-lhe Estaline.
Estaline fez toda a campanha de Volkov sentado na -
mochila de Porta. Plutã o e Stege arranjaram-lhe uma farda ]
completa: calças, blusã o e boné, este preso com uma guita
para que se nã o perdesse no meio da refrega. Fazendo parte
de um batalhã o disciplinar, Estaline nã o tinha direito, evidentemente, a usar a á guia nazi
sobre o peito. A princípio tentou livrar-se da farda. Depois deve ter-se convencido de
que lhe conservava o calor, ou acabou simplesmente por se
habituar a ela, tal como se habituara à sua raçã o diá ria de Schnaps. Apanhou assim algumas
bebedeiras memorá veis.
Pode haver quem chame a isto crueldade para com um pobre animal sem defesa, mas
Estaline nunca se afastou de
nó s nem um passo, o seu pêlo tornou-se dentro em pouco brilhante, engordou e readquiriu
o atrevimento e a sem-
-cerimó nia pró prios dos gatos cujo mundo é está vel e perfeitamente ordenado.
Perto do Natal nã o restavam ao 988.º batalhã o de ré-
serva mais homens do que os necessá rios para formar uma
companhia, a qual, de resto, foi logo desmembrada. Recebemos todos cinco as nossas guias
de marcha para Godnjo,
nas margens do Worskla, onde estacionava o 27.º
blindado.
Passados três dias apresentá vamo-nos ao Q. G. da nossa velha unidade e no dia seguinte
voltá vamos ao matadouro.
Antes, contudo, haviam-nos feito entrega do nosso correio.
Para mim havia um pacote de cartas de Ú rsula e da minha mã e. Cada qual devorou as suas,
leu-as e releu-as, por fim, em voz alta, para os outros ouvirem, para melhor sonharem, se
impregnarem delas e as beberem com todo o
180 SVEN HASSEL
ardor de uma alma sequiosa de presença e que tem de se contentar com palavras escritas
num papel. Numa delas Ú rsula dizia-me:
Munique, 9 de Dezembro de 1942
Meu amor:
Sofro contigo esta horrível injustiça que vos fizeram, a ti e aos teus camaradas. Mas nã o te
deixes abater pelo facto de te roubarem uma licença. Mantém a confiança no futuro, apesar
de todas as malandrices inventadas por estes cã es. Em breve o pesadelo terminará e a
á guia nazi terá perdido todas as suas penas.
Peço a Deus que estenda a sua mã o sobre ti e te proteja dos horrores quotidianos da frente.
Ainda que te alcunhes de «pagã o» e finjas nã o acreditar Nele, eu sei que Ele te ama tanto ou
mais do que ao melhor dos Seus padres e, quando a guerra acabar, eu saberei convencer-te
a quebrar essa dura carapaça de cinismo na qual te envolves, tu e todos esses pobres
diabos das unidades que nã o usam o pá ssaro sobre o peito. Nã o esqueças, meu querido,
que, mais tarde ou mais cedo, voltará a paz e que todos os nossos lindos sonhos passarã o
a ser realidade.
Penso, até lá , poder abrir consultó rio em Munique ou em Coló nia, e a minha grande
esperança seria ver-te fazer estudos especiais de dentista ou qualquer coisa no género.
Promete-me só que nã o ficará s no exército, mesmo que se te ofereça a ocasiã o de seguir
uma carreira
brilhante!
Terminarei dentro de seis meses a especializaçã o em cirurgia e depois poderei começar a
pô r dinheiro de parte para construir o nosso lar. A prepará -lo, talvez, para quando
regressares.
Mas nã o, que estou eu a dizer? Quero que voltes muito antes disso. Quereria que voltasses
já hoje.
Imediatamente!
Os meus pais já se habituaram à ideia de ter um genro. A princípio, realmente, nem podiam
acreditar, e

O REGIMENTO DA MORTE 181


só queria que visses a carranca do meu pai quando lhe disse que eras um antigo cadastrado
(é assim que se diz?) e que servias presentemente num regimento sem á guia. Na altura
julgou que eu endoidecera, mas logo compreendeu; e, quando lhe disse que o teu «crime»
era unicamente de natureza política, aceitou-te sem reservas, dizendo que, desde que
gostá vamos um do outro, nada mais tinha importâ ncia.
Nã o posso falar-te da evoluçã o política, que deves conhecer, tenho a certeza, porque vocês,
aí nas primeiras filas, devem estar bem informados! Consolo-me dizendo comigo que uma
licença a menos nã o tem assim
uma importâ ncia por aí além, visto irmo-nos reunir em breve para a vida inteira.
De resto, uma licença nestas condiçõ es seria uma forma de tortura, pois eu pensaria sem
cessar no teu regresso à frente, nessa nova separaçã o inevitá vel, e tu pensarias também
nela, tenho a certeza.
Neste mesmo Sobrescrito envio-te uma cruzinha de ouro. Trago-a ao pescoço desde
pequena, sobre a pele.
Ela te protegerá aí contra todos os males que te possam ameaçar. Beija-a todas as noites,
como eu beijo o anel que tu me deste. Meu querido, meu Sven adorado, amo-te tanto que
me sinto mal e choro de alegria ao pensar que vamos encontrar-nos em breve e que nunca
mais te deixarei partir. É s meu, só meu e de mais ninguém. Mesmo que te apaixones ao de
leve, de tempos
a tempos, por uma rapariga russa ou por uma dessas mulheres alemã s que acompanham os
regimentos.
Eu sei que nunca poderá s amar outra como me amas a mim. E perdoo-te já o facto de
beijares outras mulheres e de encontrares um momento de distracçã o nos braços delas.
Nã o te peço que vivas como um monge. Desejo apenas que nunca te metas em nada que me
nã o possas contar.
Nã o imaginas como chorei quando esse teu extraordiná rio
amigo, o Velho, me escreveu a dizer que havias morrido. Foi a carta mais bela, embora a
mais triste, que recebi até hoje. E no entanto nã o foi nada compa-
182 SVEN HASSEL
rada com a que me escreveste passados seis meses, em que me contavas o teu cativeiro.
Desmaiei pela primeira vez na vida. A minha temperatura subiu vertiginosamente e tive de
ficar de cama uma semana. Fui-me completamente abaixo! Mas, no meio da febre, sentia-
me feliz, muito feliz!
Tu dizes que nã o acreditas em Deus, mas eu sei que foi Ele que nã o cessou de velar por ti,
porque tu és bom, assim como todos os teus companheiros. Tens defeitos e fraquezas, mas
és mais humano, mais puro de alma e coraçã o, mais honesto nos teus pensamentos que a
maior parte de muitos pilares de Igreja, do que muitas rã s de á gua benta, do que muitos
sapos de confessioná rio. Fica sabendo que eu partilho contigo o ó dio contra a hipocrisia,
sob todas as suas formas, e contra todos esses padres que nã o passam de lacaios à s ordens
de senhores que nem Deus nem os verdadeiros
cristã os reconhecem. Aliá s Aquele que prega a misericó rdia
nã o pode impedir esses hipó critas de existirem, e tu nunca deves pensar que, escutando a
Sua voz, fazes causa comum com esses padres indignos. É isto que eu quero a todo o preço
fazer-te compreender e estou certa de que um dia conseguirei convencer-te.
Tenho de ficar por aqui, meu amor, meu marido adorado, pedindo que tenhas muito
cuidado contigo.
Sei que é difícil, mas suplico-te que nã o te deixes contaminar
por essa cínica indiferença que caracteriza os soldados da primeira linha, de que fazes
parte.
Continua
a acreditar que a bondade ainda existe algures neste mundo. Faz tudo por te conservares
todo inteiro para mim. É vivo que eu quero reaver-te. Inteiro. De corpo e alma. E possa este
novo ano que se aproxima trazer-nos a felicidade e a sorte, a nó s e ao resto do mundo!
Tua mulher, só tua,
Ú rsula

O REGIMENTO DA MORTE 183


Contá vamos ser rendidos na véspera de Natal, mas as nossas esperanças foram iludidas.
Mais ainda: passaram-nos à infantaria para satisfazer as necessidades dos combates.
Na noite da Natividade achava-me eu algures, na terra de ninguém, no fundo de um desses
buracos cavados regularmente
de 50 em 50 metros. A finalidade destes postos avançados é dar o alarme no caso de as
patrulhas inimigas
se aventurarem nas nossas linhas. Mas, por mais conscienciosamente
que estivéssemos de atalaia, o inimigo infiltrava-se entre nó s e voltava muitas vezes a
partir sem ser assinalado.
Só quando rompia a manhã é que nos apercebíamos disso... ao descobrir algumas das
nossas sentinelas com o pescoço cortado, ou entã o ao vermos o buraco vazio, porque os
Russos haviam surpreendido e levado o seu ocupante.
Nessa noite tínhamos tirado à sorte os diversos turnos de guarda. Von Barring nã o quisera,
nessa noite de Natal, distribuir tarefas a quem quer que fosse. Os horá rios e os locais
haviam sido escritos em bocados de papel, que misturá mos
num capacete. Toda a companhia, desde as praças aos oficiais, incluindo o pró prio von
Barring, tirara um nú mero à sorte. A um dos nossos tenentes calhou fazer a guarda desde
as 22 horas até à 1 da manhã .
Passei, portanto, a minha noite de festa numa trincheira individual, no seio da terra de
ninguém. Na minha frente, na beira da cova, jaziam as granadas e a minha metralhadora.
O pior inimigo, nestes casos, é o sono. Nã o só o permanente
esforço de escutar e interpretar os leves e diversos sons, as imagens reais ou fictícias
vislumbradas no escuro,
nos esgota muitíssimo, mas a pró pria obscuridade age ainda como um soporífero. Estamos
só s. Sentimo-nos só s.
Mas o que precede e domina tudo o resto é uma espécie de nostalgia, de persistente desejo
da morte. A ideia de adormecer e de acabar com tudo de uma vez para sempre,
a ideia de aceitar o sono e nunca mais acordar, surge-nos revestida de cores perigosamente
sedutoras. Tudo parece fá cil, indolor. As coisas que poderiam reanimar a nossa
184 SVEN HASSEL
vontade de viver, a imagem dos seres que nos prendem à vida, tudo parece dissolver-se
numa irrealidade fantasmagó rica.
Sã o objectivos longínquos, possibilidades vagas.
cuja reconquista exigiria muito esforço...
Brutalmente, um choque insignificante, metá lico, de aço contra aço, veio abalar-me dos pés
à cabeça. O ruído fora quase imperceptível, mas, a partir desse segundo, todos os
meus sentidos ficaram alerta. Crispei a mã o em volta de uma granada e apurei o ouvido.
Nada.
Depois o sangue gelou-se-me nas veias. Qualquer coisa passara a deslizar na borda do meu
abrigo. Pus-me a tremer convulsivamente, imaginando já a sensaçã o fria da lâ mina na
garganta. Mordi os lá bios até fazer sangue, perscrutei
as trevas até transformar os olhos em dois focos de incêndio, ardentes e ineficazes...
Julguei distinguir o deslizar de skis sobre a neve. Deveria lançar um foguetã o? Isso é que eu
nã o queria fazer; podia nã o estar ali ninguém e tornar-me-ia ridículo. Têm tanta força as
convençõ es que, em face de certos dilemas, mesmo que sejam mortais, preferimos arriscar
a pele a sofrer uma beliscadura no nosso amor-pró prio. O homem é mesmo assim; quem
quiser que o compreenda... E se atirasse um foguetã o, revelaria a minha posiçã o a qualquer
soldado russo que se encontrasse por aquelas paragens, com a sua comprida faca pronta a
servir.
Soou depois um grito penetrante, seguido de um restolhar macabro. Ao mesmo tempo uma
voz gritava: - Socorro! Os Russos agarraram-me! Soe...
A maneira como este apelo foi interrompido sugeria uns dedos bruscamente colados sobre
a boca do homem surpreendido.
Senti os cabelos porem-se-me em pé e, quando julguei divisar algumas silhuetas negras,
nã o hesitei mais.
Atirei as granadas e disparei uma rajada de metralhadora.
Em seguida lancei os foguetõ es luminosos e momentos depois todo o sector se achava
banhado de luz.
Tínhamos nove sentinelas na terra de ninguém. Seis nã o voltaram mais. Cinco estavam com
o pescoço cortado. A sexta desaparecera pura e simplesmente.

O REGIMENTO DA MORTE 185


O nosso correio do Natal nã o viera e, quando chegou a hora do nascimento de Cristo, ao dar
da meia-noite, os altifalantes russos forneceram-nos, em alemã o, o porquê desta anomalia:
- Alô , alô , 27.º regimento blindado! Feliz Natal para todos! Se desejarem as vossas
encomendas e mensagens do
Natal, nã o façam cerimó nia, venham buscá -las. Temo-las aqui, juntamente com o oficial que
as transportava... Os destinatá rios sã o...
Seguiam-se os nomes daqueles a quem eram destinadas as cartas e os embrulhos. Logo que
o locutor terminou a : lista, prosseguiu:
- Camaradas do 27.º, vamos ler agora algumas passagens dessas cartas para ficarem
sabendo o que se passa no país! Aqui está , por exemplo, uma mensagem dirigida a Kurt
Hessner... Querido Kurt, etc. Houve um raid na noite passada... Uma bomba destruiu... O
nosso pai ficou... ;; [
Um desgosto terrível, etc. Se Kurt Hessner quiser tomar conhecimento do resto da carta,
que venha, acolhê-lo-emos com piedade...
Continuaram assim a ler trechos das cartas confiscadas, : fazendo-nos acreditar que os
nossos familiares estavam mortos, feridos, mutilados, sem abrigo e também a morrer de
fome. A ansiedade e a incerteza fizeram vacilar o bom senso de muitos e, nessa mesma
noite, cinco homens atra—
vessaram a terra de ninguém para irem ler o seu correio em companhia dos Russos.
Quando nasceu o dia, vimos três soldados de infantaria soviéticos estendidos na neve, perto
do buraco que eu ocupara. Rastos de skis estendiam-se, paralelos, a menos
de 2 metros do parapeito.
Um belo dia Porta volatilizou-se.
Quinze veteranos dos mais calejados da companhia solicitaram
e obtiveram licença para efectuar uma sortida de reconhecimento com o fim de obterem
algum esclarecimento
acerca daquele trá gico desaparecimento. O pró prio tenente
186 SVEN HASSEL
Hol er fez questã o de nos acompanhar. Antes de partirmos tirou todos os seus galõ es,
insígnias e penduricalhos.
Começá mos por localizar as sentinelas russas. Depois caímos-lhes em cima, deitá mos uma
ou duas minas no seu
terreno, passá mos-lhes o lança-chamas por cima da trincheira
e varremo-los com a metralhadora. Em poucos minutos liquidá mos o assunto. Depois
voltá mos à base, trazendo dois prisioneiros, dos quais um era mú sico, cornetim.
Assim que lhes descrevemos Porta, desataram a rir.
- Esse tipo é completamente liru - explicou o cornetim.
- Neste momento está ele ao desafio com o nosso comissá rio, a ver quem cai primeiro para
debaixo da mesa.
Quer comprar um casaco de pele de urso e um caixote de vodka. Tem cinco mil cigarros
para troca...
À s nossas perguntas alarmadas, o cornetim respondeu que Porta fora capturado por uma
patrulha.
Passados dois dias, quando fomos rendidos, ainda nã o havia sinais de Joseph Porta e
começá vamos já a lamentar
sinceramente a sua perda.
Até que, no fim de uma semana, foi ele quem veio ter connosco, quando descansá vamos na
retaguarda das linhas;
envergava um casaco de peles como os dos oficiais russos
e trazia uma pasta de coiro que parecia pesada.
- Lindo dia, hoje! - comentou.
Nã o disse mais nada, mas sorriu-nos com ar indulgente, enquanto o rodeá vamos todos de
boca aberta.
- Espero nã o ter vindo tarde para o jantar. Era pena, porque trago aqui Schnaps.
Tinha na pasta seis garrafas de vodka, assim como os cinco mil cigarros que levara ao
partir.
- Os comissá rios russos nã o percebem nada de jogos de cartas! - declarou em tom
dogmá tico.
E nunca consentiu em dizer-nos mais fosse o que fosse acerca da sua excursã o pelo
territó rio russo. É esse o motivo por que nã o posso dar aqui nenhum esclarecimento
racional.
Seis garrafas de vodka, um casaco de oficial novinho em folha e uma magnífica pasta de
coiro.
Que estranha coisa é a guerra!

Em vista das grandes perdas sofridas pelo 27.º blindado, ia haver promoçõ es para nó s,
veteranos.
Tendo sido morto o comandante, o Obersleutnant von Lindenau foi nomeado Oberst, com
as funçõ es de comandante
de batalhã o, e von Barring passou a Hauptmann da nossa companhia. O Velho foi nomeado
Feldwebel e chefe
de pelotã o. Tínhamos um novo tanque do tipo Pantera, que seria dali em diante cabeça de
fila do 3.º pelotã o.
Porta devia ser promovido a sargento, mas recusou terminantemente.
Isso deu lugar a uma trapalhada memorá vel, que terminou, por fim, a contento de todos.
- Pronto, meu macaco ruivo! - resmungou o Obersleutnant
Hinka. Nã o te fazemos Unteroffizier, mas sim Stabsgefreiter.
Isto cheira-te?
Porta concordou. Um Stabsgefreiter é um soldado fora da classe, e nã o um sargento.
Estaline, o nosso gato, que possuía agora a sua caderneta
em miniatura, foi nomeado Obergefreiter e cosemos-lhe dois galõ es na manga do casaco
novo. Também ele apanhou
uma grossura monstro para celebrar dignamente a promoçã o.
A MORTE CEIFA
- Bebe, Sven. Uma boa golada... Malditos! Grandes cã es! Esperemos que nã o venha longe o
dia em que lhes havemos de dar cabo da pele!
Porta quis saber o que tinha acontecido.
- Vou ler-te a carta - respondeu o Velho. - Deixa ver o Schnaps, para que o Sven possa
embebedar-se à vontade
e esquecer isto. E nó s embebedamo-nos com ele!
188 SVEN HASSEL
Entã o desdobrou a carta do pai de Ú rsula: Munique, Abril de 1943
Meu querido filho:
Tenho a dar-te uma terrível notícia. Peço-te que a recebas tã o calmamente quanto possível
e promete-me nã o fazer depois nenhuma tolice.
A nossa querida Ú rsula está morta. Assassinaram-na os nazis. Quando vieres a Munique,
dar-te-ei todos os pormenores. Por ora só te posso contar o essencial.
Um Gauleiter veio fazer uma parlenga aos estudantes da Universidade, mas o seu discurso
foi interrompido por uma manifestaçã o de hostilidade declarada.
Foram presos muitos estudantes, entre eles a nossa querida filha. Passados alguns dias
compareceram diante
do «Tribunal do Povo» e foram condenados à morte.
Ao ser pronunciada a sentença, Ú rsula respondeu: «Vem perto o dia em que vó s, nossos
juízes e acusadores, tereis
de vos sentar no banco dos réus, enquanto os nossos camaradas serã o os vossos juízes. E
ficai certos de que, nesse dia, também as vossas cabeças rolarã o sob o machado».
Foi isto o que ela respondeu aos juízes nazis e o futuro há -de dar-lhe razã o, se é que ainda
existe justiça sobre a Terra.
Consegui vê-la na véspera do seu assassinato e ela pediu-me para te dizer que morria com
o teu nome nos lá bios e com a certeza de te encontrar um dia no Céu, onde pedirá a Deus
que te conceda a fé.
A sua coragem impressionou os pró prios guardas da prisã o, que lhe levaram nos ú ltimos
dias uma quantidade de coisas proibidas, muito embora ela recusasse aceitar o menor
favor de homens vestidos com a farda odiada.
Um amigo meu foi testemunha da execuçã o daqueles jovens e disseme que eles haviam
cantado muitas cançõ es
proibidas, que os outros prisioneiros entoavam também, à janela das suas celas. Nem as
pancadas nem as

O REGIMENTO DA MORTE 189


ameaças conseguiram reduzi-los ao silêncio e, quando o ú ltimo turno foi executado, toda a
prisã o gritou: «Vingança!
Vingança!», e pô s-se a cantar o Wedding Rouge (1).
Queima esta carta depois de a haveres lido. Mando-ta por intermédio de um velho amigo
que tem de voltar à frente, para o sector onde se encontra o vosso regimento. Junto uma
medalha com o retrato de Ú rsula e uma madeixa dos seus cabelos.
Meu caro genro, a mã e de Ú rsula, que ficou com o coraçã o despedaçado para todo o
sempre, e eu pró prio também, pedimos-te que nos dês a consolaçã o de te conhecermos o
mais cedo possível. Consideramos-te como nosso pró prio filho e a nossa casa é tua.
Beijamos-te afectuosamente e desejamos-te todo o bem até ao fim. Oxalá te víssemos aqui
em breve!
Teu sinceramente...
Depois de o Velho terminar a leitura reinou um prolongado
silêncio, enquanto a escuridã o aumentava na sala baixa do chalé desmantelado. Eu
estremecia continuamente,
pois nã o deixava de ver a cabeça de Ú rsula a cair no cesto
de serradura, o sangue a esguichar do pescoço seccionado,
encharcando-lhe os maravilhosos cabelos negros, e os seus
olhos muito abertos, fixos, inexpressivos, a olharem aquele Céu em que acreditara. Via o
ú ltimo sobressalto do seu corpo quente e macio, a sua queda anó nima numa vala comum
qualquer.
Oh! Eu bem sabia como aquilo se passara. Tinha assistido
tantas vezes à queles espectá culos que lhes conhecia todos os pormenores.
Antes que os meus companheiros pudessem impedir-me, empunhei o revó lver e pulverizei
o crucifixo de madeira e a imagem da Madona que estavam pendurados na parede.
Depois levei aos lá bios a garrafa encetada e esvaziei-a sem
(1) Canto revolucioná rio. Wedding é um bairro de Berlim.
190 SVEN HASSEL
tomar fô lego. O Velho tentou acalmar-me, mas eu estava louco. Louco furioso. Foi obrigado
a pô r-me a dormir com um valente soco nos queixos.
Quando voltei a mim, recomecei a beber. Bebi como nunca em toda a minha vida. Durante
dias e dias nã o deixei de estar bêbado. Ao acordar pegava de novo na garrafa e bebia até
cair. O Velho achou, finalmente, que aquela histó ria já estava a prolongar-se de mais. Ele e
Porta agarraram em mim, arrastaram-me para o ar livre e meteram-me dentro do
bebedouro do gado até eu dar mostras de um vislumbre de lucidez. Durante os dias que se
seguiram nã o me deixaram ocioso nem por um só instante.
Quando à noite me ia deitar, estava estoirado e cheio de nó doas negras. E logo que
acordava, pela manhã , tornavam
a enfiar-me no bebedouro. Conseguiram livrar-me do transe. As minhas ideias foram-se
aclarando progressivamente.
Estava de novo verdadeiramente lú cido. Mas frio como um cadá ver. De facto, tornara-me
um cadá ver.
Fiz-me caçador de homens. Estava louco, apesar de toda a minha lucidez. Passava horas à
espreita, na trincheira,
com uma carabina de precisã o com luneta telescó pica, sentindo prazer em derrubar os
Russos nas suas pró prias trincheiras. Sempre que via algum saltar com uma bala na pele,
sentia uma espécie de satisfaçã o interior.
Um
dia von Barring surpreendeu-me neste passatempo.
Reparei
nele a certa altura. Ignoro há quanto tempo me estaria observando. Desatei a rir e disse-lhe
que acertara em sete naquela meia hora. Sem uma palavra, confiscou-me a carabina
e foi-se embora. Eu chorei como um garoto a quem tiraram o brinquedo favorito e ’durante
tempo infinito fiquei para ali, imó vel, com os olhos perdidos no vá cuo. Von Barring tinha
razã o, claro.
Recordo-me do dia seguinte à quele com perfeita clareza.
O cozinheiro estava a encher a minha marmita de caldo - caldo de vaca velha -, quando soou
muito perto uma explosã o e qualquer coisa de ardente me chicoteou uma perna. Pronto,
ficaste sem uma pata, pensei com total indiferença.
Mas nã o sentia a menor dor e mantinha-me de pé.
Fora uma boa metade dos quartos traseiros da vaca que a explosã o me projectara nas
pernas. A cantina rolante jazia

O REGIMENTO DA MORTE 191


feita em pedaços e cinco ou seis cadá veres nadavam no seu
pró prio sangue e na sopa entornada.
Carreguei com o resto da carne à s costas e fui ter com os meus companheiros, que
organizaram logo o banquete.
- A tristeza de uns faz a alegria de outros - observou Porta com filosofia.
Todos, no meu lugar, teriam reagido da mesma maneira que eu: recuperando o que restava
da carne e indo fazer paró dia com os camaradas. Nã o foi o cinismo que me impediu de
socorrer os feridos, mas sim a guerra. A guerra
é assim. Havia pessoal especializado para tratar ou mesmo
para acabar com os tipos estropiados. Além dos seus companheiros
mais pró ximos, o soldado em campanha nã o conhece ninguém.
A Primavera reanimou a luta. Campos e estradas estavam agora suficientemente secos e
firmes para esse género de actividade.
A garrafa de vodka saltava de boca em boca pela ú ltima vez. O Velho enfiou-me um cigarro
aceso entre os lá bios e eu aspirei gulosamente o fumo, com a testa encostada
ao aro de borracha que rodeia o meu periscó pio.
- Ordem a todos os carros! Abrir fogo!
O inferno trovejante renasce das cinzas. O calor torna-se intolerá vel no interior do tanque.
Caímos sobre as trincheiras russas como uma avalancha. A estepe regurgita
de carros incendiados, vulcõ es em miniatura cuspindo fumo
negro para o céu risonho. Os blindados nã o fazem prisioneiros.
Esmagam e matam. Já nã o somos seres humanos, mas robots executando automaticamente
os poucos gestos
condicionados pelas diversas combinaçõ es das suas lâ mpadas
e das suas engrenagens.
Contra-ofensiva dos T-34. Já nã o se trata de exterminar a infantaria em debandada. Agora é
preciso combater, para
salvar a pró pria vida. A torre gira, aponta o seu comprido canhã o. Os obuses chovem sobre
o ameaçador T-34.
192 SVEN HASSEL
Estou a ponto de sufocar. Um torno invisível aperta-me a cabeça e o peito. Dentro em pouco
nã o aguentarei mais.
Irei abrir a tampa e saltar como um palhaço para fora daquela estufa ambulante. Um
estampido de trovã o. O
tanque
estremece e detém-se com uma derradeira sacudidela.
Uma chama azul e vermelha brota do flanco do monstro de aço. Como num sonho, vejo
Plutã o e Porta saltarem em terra pelo parapeito da frente e Stege pelo lateral.
Tudo
isto durou apenas um segundo. Depois volto a mim -eu, o robot bem regulado - e salto do
tanque, por minha vez, com um pulo inverosímil.
Chamas colossais envolvem o carro. E, bruscamente, este incha como um balã o e voa em
estilhas de ferragens ao rubro.
Regressamos à nossa unidade «na garupa» de outro carro. Estaline está a salvo sob o braço
de Joseph Porta.
Tem o pelo um pouco chamuscado, mas isso nã o chega para o contrariar. À nossa chegada
lambe a sua vodka com
evidente satisfaçã o.
Vamos a Dnepropetrovsk tomar conta de novos tanques.
Passados dois dias encontramo-nos de novo no centro do barulho, que prossegue sem
interrupçã o, sem uma acalmia,
embora dure já há dez dias. Todas as forças disponíveis foram lançadas na refrega e
rapidamente consumidas.
Chegam-nos reservas da retaguarda, em colunas interminá veis,
que desaparecem ao atingir a frente. Tal como o carvã o na fornalha de uma caldeira.
Vindo de Senkow, outrora uma aldeia, hoje transformada em braseiro, chega um T-34 a
toda a velocidade. Rá pido como um raio, o robot que eu sou aponta, e dispara.
O vencedor é sempre aquele que atira primeiro. Acerto no colar de rolamento, na base da
torre. !É esse o ponto fraco dos T-34. Os nú meros do periscó pio dançam-me na frente dos
olhos. Depois os pontos opostos do mecanismo de mira
encontram-se e saltam dois obuses quase ao mesmo tempo
das goelas do canhã o. A torre do T-34 voa pelos ares. A

O REGIMENTO DA MORTE 193


tripulaçã o nã o teve tempo de abandonar o veículo. Tudo explode. Mais um que
penduramos no cinto.
Combates furiosos, encarniçados, entre casas em chamas.
Entrincheirada atrá s delas, uma metralhadora russa atira contra a nossa infantaria. Porta
faz o nosso tanque dar meia volta. Uma nuvem de tijolos e cal voa em todas as direcçõ es
enquanto esmigalhamos a fachada. Os russos encostam-se
à parede oposta, loucos de terror. A nossa metralhadora deita-os por terra, as lagartas
reduzem-nos a uma papa. Saímos pelo outro lado, no meio de uma nuvem de poeira e
caliça. Alguns cadá veres a mais no nosso cinto.
Um pouco adiante, uma dú zia de pobres diabos tentam pô r-se a salvo. Estatelam-se sobre a
terra viscosa, avisam-nos,
correm para a casa mais pró xima. Um deles enfia o pé num buraco. Antes que possa
libertar-se, fica transformado
numa pasta sangrenta debaixo das nossas lagartas. É
apenas mais um homem que penduramos no cinto. Pouca coisa, no nosso entender de
robots.
Derrubamos á rvores, deitamos muros abaixo, esmagamos
homens fardados de caqui. É preciso ter estado ”dentro de um tanque atingido por um
projéctil para se saber o que é um choque. O canhã o, demasiado pequeno para a nossa
blindagem, que pretende prejudicar-nos está escondido
com os seus operadores por detrá s de uma parede de grandes pedras.
- Um pequeno jacto de lança-chamas e um obus especial como sobremesa! - comanda o
Velho.
Apresto rapidamente o lança-chamas e o obus especial de calibre 10,5 atinge o canhã o ao
mesmo tempo que a língua de fogo. Três minutos volvidos, quando por lá passamos,
nada mais resta do que um montã o dramá tico, negro, irreconhecível, sobre o qual dançam
ainda algumas labaredas.
Em frente, em frente, sempre em frente! A relva nã o volta a crescer no sítio por onde
passou um tanque.
Quando
se assistiu aos massacres de 1943 é que se pode bem avaliar
até que ponto a caveira constitui o emblema pró prio das divisõ es blindadas. De longe em
longe temos de fazer uma
pausa para observar os nossos depó sitos e os paió is de muniçõ es.
E também para fazer uma revisã o nos motores. Qual-
194 SVEN HASSEL
quer carro que tenha uma avaria em plena batalha ficará , em menos de três minutos,
crivado de buracos como um passador.
Os Russos opunham-nos importantes formaçõ es de T-34, poderosos, rá pidos e de uma
maleabilidade espantosa.

com os nossos ú ltimos modelos de carros, Panteras e Tigres,
podíamos responder ao seu desafio. As infantarias russa e
alemã ficam de braços cruzados durante esta gigantesca batalha
de couraçados terrestres, a maior batalha de blindados deste ú ltimo conflito mundial. A
noite cai, mas, a despeito das perdas espantosas de homens e material, o combate
prossegue na estepe ucraniana. Algumas horas de
sono, enquanto os grupos de reabastecimento enchem os depó sitos e os paió is. Depois os
reabastecedores sacodem-nos,
empurram-nos, semiacordados, para o tanque, colocam-nos o equipamento sobre o lombo
e ajudam-nos a subir para a má quina. Vejo vagamente um Feldwebel passar Estaline
a Porta. O motor, em seguida, começa a trabalhar com o seu rugido habitual.
Quando, apó s mais quatro dias de batalha, surgiu, enfim, a acalmia, o 27.º blindado tinha
deixado praticamente de existir. Os destroços torcidos dos nossos carros juncam
a estepe. Restam-nos dois, de quarenta que eram. E
dezoito
sobreviventes de quatrocentos. A maior parte das tripulaçõ es
morreram assadas dentro das má quinas. Por toda a parte, numa profundidade de 4 a 5
quiló metros, ardem também os T-34.
Os que escaparam à morte, mais ou menos queimados, mais ou menos mutilados, têm para
meses, anos talvez, a uivar com dores.
Novos tanques e novas tripulaçõ es chegam todas as noites. Os carros ainda utilizá veis
devem estar prontos a servir, juntamente com os dos outros regimentos. Dos outros
destroços de regimentos. Todas as vezes que se oferece ocasiã o, tentamos dormir com a
cabeça encostada à culatra
de um canhã o ou à cinta de um periscó pio. No dia seguinte
a batalha de tanques recomeça, e assim sucessivamente, durante
dias e dias.
Os batalhõ es de reserva estacionados na Alemanha e os depó sitos estabelecidos nos países
ocupados continuam a

O REGIMENTO DA MORTE 195


despejar, dia apó s dia, uma constante avalancha de carne fresca, de bela carne de canhã o,
na sua maioria garotos de
17 ou 18 anos, com seis semanas de treino atrá s de si.
Sabem fazer exercício e continência com arrogâ ncia e caem como moscas por nã o poderem
fazer outra coisa.
Também
há homens de 50 anos e mais, saídos dos campos de concentraçã o. Hitler está a rapar o
fundo das suas gavetas e os hospitais têm também de fornecer a sua parte: feridos cheios
de febre, descarnados, anémicos e lívidos, dados , como curados de um dia para o outro.
Tudo passa naquela
grande má quina de picar carne. Com ligaduras e tudo.
Em Kubiansk, nas margens do Oskol, encontro entre .
um T-34 e o nosso carro. Dois tiros ao todo. Mas o tanque russo incendeia-se, com a torre
cortada, enquanto nó s nos limitamos a ficar com cinco elementos de lagarta e dois rolos
espatifados. Mesmo assim é uma tragédia, pois a companhia efectuou um recuo, o que
significa estarmos entregues aos nossos pró prios recursos na retaguarda das linhas russas.
Escondemo-nos nas moitas até ao cair da noite e depois tentamos consertar os elementos
arrancados das lagartas e os dois rolos avariados. Empresa fantá stica, capaz
de endoidecer outros menos aguerridos do que nó s, pois tivemos, durante todo esse tempo,
de prestar atençã o à cadeia ininterrupta de tanques russos que desfilavam na estrada, a
menos de 100 metros.
Pelo meio da noite o tanque está pronto a partir, mas temos de esperar uma oportunidade.
Porta e eu conser-vamo-nos a descoberto, na torre, com capacetes russos na
cabeça, prontos a responder na língua do país a qualquer ]
pergunta indiscreta. Tapamos com lama os nossos sinais distintivos.
No momento propício partimos na cola de três T-34.
Quiló metro apó s quiló metro, aproximamo-nos da linha de batalha. Chegados ali, os nossos
três colegas bifurcam para
uma aldeia e nó s continuamos em linha recta, a toda a brida. Levamos um obus na culatra
da nossa peça, pronto a fulminar o primeiro que tente interceptar-nos. E Stege , tratará de
fazer que outros sigam este de perto. Metralhadoras e lança-chamas encontram-se prontos
a responder ao
196 SVEN HASSEL
primeiro alerta. Mas conseguimos alcançar o nosso regimento
sem obstá culo.
Ao romper do dia mandam-nos no encalço de alguns T-34 e KW-2 que romperam as nossas
linhas e semeiam a
confusã o na nossa retaguarda. Foram despertar um batalhã o
que descansava em Isium e portam-se como ursos selvagens
que tivessem fugido de um jardim zooló gico.
Seguimos como cã es os rastos característicos deixados pelos tanques russos. Do alto de
uma colina descobrimo-los à entrada de uma aldeia, que, segundo o mapa, deve ser Svatov.
Três T-34. Os KW-2 estã o decerto a divertir-se por outros lados. Assim que eles
desaparecem entre as casas,
largamos pela encosta abaixo e contornamos um charco e depois um bosque, que nos
permitirá , talvez, aproximar deles
sem sermos pressentidos. O nosso segundo carro toma posiçã o
atrá s de um comprido edifício, uma escola ou coisa no género, e nã o se mexe mais, ficando
de emboscada.
Avançamos
entã o. Temos dois T-34 precisamente na nossa frente.
O Velho vem ter comigo de rastos e verifica se o cano do canhã o está correctamente
apontado, pois errar a pontaria,
nestas condiçõ es, é o mesmo que uma condenaçã o à morte. Fogo! A culatra recua na
direcçã o de Stege, que mete o segundo projéctil. A torre gira. Tenho o segundo T-34 diante
do meu periscó pio. Fogo! A uma distâ ncia tã o curta como esta o obus arranca literalmente a
torre do carro russo. Os dois T-34 encontram-se em chamas quando
mergulhamos nas moitas para correr em auxílio do nosso companheiro, que, a avaliar pela
violência desta troca de balá zios, nã o deve estar positivamente em posiçã o vantajosa.
Nã o havíamos percorrido, contudo, mais de 200 metros quando encontrá mos pela frente
um dos KW-2, que sã o uns
enormes monstros de 90 toneladas, armados com cinco metralhadoras,
um lança-chamas e um canhã o de 15 centímetros implantado numa torre gigantesca. O
carro parara atravessado na rua principal da aldeia e passeava as metralhadoras
ao acaso, pulverizando os prédios em redor, como se se tratasse de uma brincadeira. O seu
grande canhã o de grosso calibre larga igualmente um projéctil de tempos

I O REGIMENTO DA MORTE 197 K j a tempos, e a deslocaçã o de ar assobia-nos aos ouvidos


como
um vento de tempestade.
Stege enfia um obus «S» na culatra do canhã o, o ú nico tipo de obus capaz de furar a espessa
carapaça do KW-2.
No meio de um grande penacho de chamas, o obus parte.
Que horror! Apontei baixo de mais. O obus vai explodir nas lagartas do monstro. Porta e o
Velho cobrem-me de injú rias grosseiras e a torre do mastodonte volta-se lentamente para
nó s. Graças a Deus que ela se nã o move com a ”” .,
ligeireza de um piã o!
-Dispara, santo Deus! -berra o Velho. Porque esperas?
O segundo obus explode um pouco mais acima, a meia altura do carro. A torre pá ra e depois
move-se de novo.
--Porta, dá -lhe a velocidade má xima, caramba!
O Velho arranca-me das mã os o periscó pio e instala-se no meu lugar. Num abrir e fechar de
olhos faz girar a torre e aponta o canhã o. Cinco obuses de enfiada. Uma enorme
explosã o sacode o monstro, mas, coisa estranha, este nã o se incendeia, embora tenha ficado
com a torre arrancada.
Saltam três homens das entranhas do titã vencido. Sã o imediatamente abatidos pelas
nossas metralhadoras. O
Velho
mimoseia o KW-2 com mais um par de obuses «S» e segue-
-se finalmente a apoteose de chamas e fumo...
O dia escoa-se. Quando chega a noite, já nã o temos tanque e é preciso regressar à s nossas
linhas no carro de von Barring. Setenta horas depois, apó s oito dias de combate
ininterrupto, os restos do nosso regimento, inú meras vezes reconstituído, sã o retirados da
batalha e generosamente enviados para a pequena aldeia de Achtyrca, a fim de repou-
sarem...
Talvez haja quem considere empolgante e româ ntica esta narrativa de combate. De facto,
todo o duelo com a morte é dramá tico e nos transporta para além de nó s, para além da vida
de todos os dias. Mas podemos medir-nos com
a morte de mil outras maneiras sem ser na guerra.
Tentando
salvar outras vidas, por exemplo. O efeito «libertador»
será
menos discutível e o fim mais racional.
Só alguns viciosos considerarã o a guerra excitante e ro-mâ ntica. Aos olhos da maioria, ela
nã o passa do que real-
198 SVEN HASSEL
mente é: porcaria, lama, sofrimento, medo, monotonia. A guerra é um detestá vel meio de
aceder aos cumes da existência
humana. Deixa-nos desiludidos, vazios, e, quando dela saímos, nã o tardamos a descobrir
que nã o temos nenhuma
finalidade, que fizemos tudo aquilo para nada e que perdemos
todo o contacto com o que era antes a nossa vida.
Tornamo-nos instá veis, segundo a expressã o consagrada.

nã o temos entusiasmo, falta-nos o equilíbrio interior.
Talvez,
de resto, a tragédia seja maior ainda para o vencedor!
Alcançou a vitó ria, sim, mas sobre quem e com que intençõ es?
O que vê diante de si nã o tem pés nem cabeça. No princípio, ao menos, possuíra a fé em
alguma verdade elementar.
Porém, tirada da embalagem de grandes palavras dentro da qual esta lhe havia sido
primeiramente apresentada,
tornou-se tã o complexa, tã o rica em tentaculares prolongamentos
dirigidos em todas as direcçõ es, que ele é inteiramente capaz de a reconhecer.
Apó s os Russos haverem sido repelidos até Bielgprod, nas margens do Donetz, a ofensiva
da Primavera alemã deteve-se,
atolada em sangue, e, do oceano Á rctico até ao mar Negro, toda a frente ficou está tica. A
pró pria aviaçã o permanecia
inactiva. ·..
Foi um Verã o magnífico.

- Para começar - afirmou Porta -, hei-de mandar construir


uma casa de banho concebida de tal maneira que a á gua do chuveiro caia como uma doce
chuva estival sobre
o meu corpo de alabastro; e, quando me fartar de chuva, uma equipe de raparigas bonitas e
rechonchudas virá buscar-me
para me transportar a um dos meus trinta e sete quartos de cama. Elas serã o todas loucas
por mim e revezar-se-ã o
amavelmente a fazer-me companhia e a brincar com o meu serviço de três peças. Depois
virá a equipe seguinte, tã o variada e deliciosa como esta, que me trará um cento de
cachimbos carregados com os mais finos tabacos
do mundo. As virgens, pelo menos as que o forem ainda nessa altura, acenderã o os meus
cachimbos e levarmos-ã o
aos lá bios, de modo que eu possa fumar deitado, sem ter de bulir um membro. Todas as
minhas gatinhas hã o-de cheirar a violetas. Quando eu exprimir o desejo de
comer, cortarã o a comida em bocados pequeninos, fá ceis
de engolir, e soprarã o à vez o que estiver quente de mais.
Aquilo que precisar de ser mastigado, elas o mastigarã o previamente, para que eu nã o
tenha de gastar energias em
grosseiras actividades físicas...
- E calculo que a equipe seguinte estará encarregada de te limpar o cu quando fores à
retrete? - inquiriu o Velho com um tom igualmente empolado.
- Vocês leram a ú ltima carta do Asmus? -interrompeu Plutã o. - Se metade do que ele diz é
verdade, nã o me importava que me cortassem já um braço ou uma perna.
Diz ele que aquilo deixou de lhe doer há muito. Mas vocês
estã o a ver? Levam-lhe a retrete à cama, com uma enfermeira
à s ordens para o pô r de lavado em. caso de acidente!
Come puré, fiambre e dois ovos aos domingos. Nã o há dú vida,
a vida está para os feridos!
- Sim! Teve uma grande sorte, esse Asmus!
200 SVEN HASSEL
PAZ SEPARADA
Os Russos agora inundavam-nos de mensagens e panfletos
de propaganda. Um deles afirmava que o Fü hrer morrera e que Estaline se encontrava
gravemente doente.
Hitler fora morto na semana anterior por um general anti-nazi, mas os seus acó litos
guardavam ciosamente o segredo da sua morte. Ao passo que o Politburo escondia com
igual
cuidado a doença de Estaline. O panfleto era coroado pelo
seguinte apelo:
Homens dos exércitos e das armadas russos e alemã es, uni-vos para edificar lado a lado
uma Rú ssia e uma Alemanha livres! Voltai as vossas armas contra os verdadeiros inimigos,
as SS e os ratos da Gestapo, os assassinos que guardam as prisõ es, na Alemanha, e só
procuram prolongar a guerra, os monstros que amam a guerra! Soldados alemã es, repudiai
o jugo da escravatura!
Nã o espereis que seja tarde de mais. E vó s, soldados da santa Rú ssia ancestral, abatei sem
piedade os comissá rios e os homens da G. P. U.! Por quanto tempo ainda vos deixareis
conduzir por esses brutos que abusam
das vossas mulheres, das vossas irmã s, das vossas noivas,
enquanto derramais o vosso sangue na frente de batalha?
Acabai com esses combates fratricidas e voltai as vossas armas contra os assassinos das SS
e da G. P. U.!
O EXÉ RCITO DA LIBERDADE ;
Este panfleto deu causa a discussõ es apaixonadas.
Está vamos
prontos a engolir toda e qualquer afirmaçã o, por mais duvidosa que fosse a sua origem,
desde que anunciasse
a morte de Adolfo e a aproximaçã o do grande apuramento de contas. Para nó s a revoluçã o
estava iminente e a ideia de um fracasso nem sequer nos passava pela cabeça.
- Primeiro -dizia Porta com ares sonhadores, vai ser preciso varrer toda esta confusã o, para
deixarmos aos

O REGIMENTO DA MORTE 201


Russos qualquer coisa de limpo. Desatravancar as ruas, empilhar
bem os tijolos, para que eles nã o tenham mais nada a fazer do que atirar fora a espingarda e
empunhar a colher
de pedreiro. Reconstruir algumas pontes, também, para melhorar
o aspecto disto quando nos formos embora...
- E na nossa terra? - perguntou o Velho, sarcá stico.
Julgas
que hã o-de ser os bifes ou os americanos que se vã o encarregar de nos arrumar os tijolos?
- Nunca se sabe! -replicou Porta com um ar compenetrado.
- Já nã o falta muito tempo para que a gente consiga pô r-se de acordo com os Russos para os
ensinar a
viver. Mas também há -de ser preciso que os nossos aviadores
vã o consertar o que estragaram. É justo...
Plutã o falou da França e de todos os outros países nos quais havíamos causado enormes
estragos que seria preciso
reparar. Porta reflectiu um instante.
- Sim, nã o vai faltar que fazer. Mas de uma coisa podes tu estar certo: os oficiais, os
generais, toda essa malta
vai andar de picareta na mã o, a desentulhar! Gö ebbels, Goering, Adolfo, Himmler,
Rosenberg e o resto da cá fila, tudo ocupado na limpeza do ghetto de Varsó via! Hã o-de
chorar lá grimas de sangue...
Estas belas ilusõ es nã o duraram mais do que alguns dias. A guerra continuava e nã o se lhe
via ainda o fim.
Transformada em batalhã o de infantaria, a nossa unidade ia render o 14.º de caçadores, na
margem do Donetz. Esta «rendiçã o» teve lugar numa calma absoluta. Nem um tiro vinha
perturbar a tépida quietude da noite de Verã o.
Empoleirado na mochila de Porta, Estaline ostentava a expressã o satisfeita do viajante que
goza intensamente com
as mú ltiplas descobertas da existência quotidiana.
Estaline
era o ú nico Obergefreiter de todo o exército alemã o que usava, na Rú ssia, a farda tropical,
mas o Kommandofeldwebel
tinha-lhe dado a devida autorizaçã o por escrito na caderneta
em miniatura que ele trazia consigo, segundo o regulamento, na algibeira do lado direito do
casaco. Os esbirros
podem vir. A situaçã o militar do Obergefreiter Estaline, do 27.º blindado, 51.a companhia,
está perfeitamente em ordem.
202 SVEN HASSEL
A nossa chegada os homens do 14.º de caçadores fizeram-nos
a seguinte recomendaçã o:
--Nã o caiam em atirar sobre os Russos! Estes sã o tipos fixes! Entendemo-nos à s mil
maravilhas com eles...
Seria o sol da Rú ssia que lhes tirara o juízo?
Mas apenas aquele despontava, logo a festa começava lá do outro lado. Gritos, risota,
cançõ es alegres. Só de os ouvir se ficava a saber que nã o sofriam de melancolia.
Depois alguns apareceram no parapeito das trincheiras e atiraram-nos um «Bom dia!» e um
«Vivam, rapazes!».
Perguntaram-nos delicadamente se éramos novos ali, se tínhamos
dormido bem e se o cã o deles nos nã o havia incomodado muito a ladrar à Lua. Passados
momentos saltavam todos para fora da trincheira, completamente nus, corriam até à
margem oposta do Donetz e mergulhavam de cabeça
na á gua espelhenta do rio, enquanto os observá vamos com
olhos esgazeados.
Chamavam-nos do rio, em altos berros, enquanto atiravam á gua uns aos outros:
---Despachem-se! Ela hoje está formidá vel!
Foi só o tempo de deitar fora as farpelas, e toda a gente se precipitou para a á gua tentadora.
Estaline tomava paris
na brincadeira e os russos quase se iam afogando de tanto
rir ao saberem que o nosso gato se chamava Joseph Vissi
rionovitch Staline.
-· Assim é que eu compreendo a guerra! - gritou-nos um sargento soviético.
Nesse ponto está vamos todos de acordo e demos três viva
à Rú ssia. Os russos, bem entendido, deram logo três viva: à Alemanha.
O Velho delirava, com os olhos brilhantes de prazer - Isto sim! Quando contarmos isto aos
outros, hã o-de dizer que somos mentirosos!
O dia reservava-nos ainda muitas surpresas. Havia, por exemplo, uma combinaçã o com os
russos: eles atiravam alguns obuses todos os dias, entre as 4 e as 5 e meia, ao passo que nó s
atirá vamos os nossos entre as 3 e as 4 e meia
fazendo todos os projécteis cair muito calmamente na terra de
ninguém. Isto érà inofensivo e os generais ficavam satisfeitos. Quando atirá vamos com a
metralhadora ou com arma:

O REGIMENTO DA MORTE 203


de mã o, era sempre para o ar, como convinha. Um foguetã o
vermelho com quatro estrelas significava que os russos tinham
a visita de um graduado e, por isso, eram obrigados a me-tralhar-nos um pouco. Um
foguetã o verde queria dizer, por outro lado, o fim da inspecçã o. Dispú nhamos portanto de
toda a espécie de sinais que contribuíam para tornar agradá vel a existência de cada um e,
naturalmente, visitá vamo-
-nos e convidá vamo-nos mutuamente para jantar ou beber vodka. A troca e o negó cio
prosperavam em grande escala:
Schnaps, tabaco, conservas, armas, cobertores, reló gios, jornais e revistas. Os ilustrados
tinham uma grande procura e, quando se nos deparavam fotografias particularmente in- -
teressantes, íamos perguntar aos russos a traduçã o dos textos
e das legendas. E vice-versa, claro. E
Enquanto está vamos no aquartelamento de Achtyrka, ti-nhamos infelizmente de fazer o
frete de dar instruçã o aos recrutas que continuavam a chegar da Alemanha. Esta tarefa [
torna-se particularmente embirrenta, sobretudo quando nã o
se sabe muito bem qual a sua utilidade.
O nosso melhor golpe foi o daquele camiã o que alivia-mos, à socapa, do peso de dezoito
garrafas e de um barril de 50 litros de excelente conhaque francês. Assim apetre-chados,
organizá mos um festim. Trinta ovos, três frangos, 5 quilos de batatas, ameixas e tomates de
conserva custa—
ram-nos apenas cinco garrafas de conhaque. Recheá mos os
frangos com as ameixas, os tomates e muitas outras coisas
mais, despejá mos-lhes em cima uma garrafa de conhaque,
pusemos tudo a cozer e comemos. Comentá rio pessoal de
Estaline: Miau, miau!
Outro dia Porta pediu emprestado o cavalo de um dos cossacos do regimento de
voluntá rios que combatia ao nosso
lado. Como Porta nunca montara, o pobre bucéfalo ficou com a espinha partida. O cossaco
quis fazer barulho, mas amarrá mo-lo, a ele e ao cavalo morto, sobre uma jangada, que a
corrente do rio que atravessava a aldeia levou suavemente para longe.
Houve também a caça ao gato. Um gato embirrento que roubava as galinhas de um dos
nossos amigos russos.
Porta
organizou a expediçã o com toda a competência. O gato saiu
ileso, mas, quando a caçada terminou, por falta de muniçõ es,
204 SVEN HASSEL
Porta havia abatido um cã o e quatro galinhas, ferido uma vaca e uma cabra e furado com
uma bala o chapéu do dono
do gato. O nosso companheiro russo consolou-o dizendo que se tratava de um gato na
verdade muitíssimo difícil de atingir.
Certa noite rapiná mos uma porca de 200 quilos Ao 89.º regimento de artilharia,
acantonado na aldeia vizinha.
Depois disso comemos toucinho cozido durante dias a fio, sentados nas latrinas, enquanto
jogá vamos as cartas e bebíamos
vodka.
E a histó ria dos dentes de Porta... Um deles há muito que o fazia ver as estrelas, mas ele nã o
se atrevia a ir ao dentista. Tínhamos tentado o velho truque que consiste em atar o dente ao
puxador de uma porta e depois fechá -la com força, mas o fio partira-se. Um dia o Velho
apanhou um boticã o usado. Amarrá mos Porta e o Velho arrancou-lhe o dente podre. Pouca
sorte, nã o era aquele! Arrancou-lhe também o outro queixal, o que nã o deixava ao seu dono
mais do que um incisivo negro. Mas o Velho declarou que era uma pena interromper um
trabalho tã o bem feito e fê-lo saltar igualmente, antes que tivéssemos solto o «paciente»
recalcitrante.
Tivemos de nos manter de largo durante bastantes dias, até que, finalmente, Porta se
vingou. Depois de ter conseguido
amarrar o Velho, apanhado desprevenido, descalçou-o, atou-lhe os pés a duas estacas,
esfregou-lhos com sal e depois
convidou duas cabras a provarem aquele pitéu especial.
Enquanto o Velho berrava, soluçava e ria ao mesmo tempo, convulsivamente, Porta bebia
cerveja com toda a calma, conservando-nos à distâ ncia com o auxílio de um chicote cossaco.
Sim, aquele Verã o foi magnífico!
Lá muito longe, na Prú ssia Oriental, reuniam-se em grande conciliá bulo todos os.
comandantes dos corpos do
exército alemã o. Encontravam-se ali vá rios Generaloberst
e Generalfeldmarschal , com belas calças bem vincadas,, guarnecidas de lindas bandas
vermelho-sangue. O brilho da
cercadura doirada das suas golas vermelhas rivalizava com
o dos brilhantes das cruzes de cavaleiro que geralmente pendiam do pescoço daquelas
importantes personagens...
De monó culo no olho, estudavam as enormes cartas da imensa frente de batalha,
consumindo horas e horas a deslocar
as minú sculas bandeiras coloridas, espetadas em alfinetes.
Cada bandeira correspondia a uma divisã o de dezoito a vinte mil homens e eles moviam-na
segurando-a entre o
polegar e o indicador. Dar nas vistas ao Fü hrer histérico, ser objecto da sua satisfaçã o,
significava sempre mais poder,
mais honras, mais gló ria.
«... e peço que transmitam as minhas saudaçõ es aos milhares de homens a quem vai caber a
gloriosa sorte de morrer em combate pela pá tria e pela honra do nosso exército.»
Assim falou o nosso comandante-geral aos comandantes
de divisã o colocados sob as suas ordens, entre os quais se
contava o daquela de que fazia parte o 27.º regimento blindado.
Depois o gordo assassino-em-massa, condecorado, de monó culo, cheio de galõ es, fez a
continência com ar marcial
e regressou ao seu Q. G., que ficava longe, muito longe das primeiras linhas, ao mesmo
tempo que os comandantes
de divisã o voltavam aos seus quartéis divisioná rios para prepararem a ofensiva, de modo
que os porcos condecorados,
de monó culo e de galõ es dourados pudessem continuar a brincar com as suas belas cartas
do Estado-Maior, as bandeirinhas, os seus lá pis e os seus alfinetes.
206 SVEN HASSEL
A SORTE GLORIOSA
- Saiam! Saiam! -berrou o Velho. Despachem-se, caramba! Isto é o fim do 27.º blindado!
Passados vinte minutos os nossos seiscentos tanques eram
apenas seiscentos montõ es de ferros torcidos, queimados pelo fogo. Depois chegou o
coronel Lindenau no seu automó vel,
lançou um olhar aos carros destruídos e disse num tom fatigado:
- Todos os homens vá lidos vã o retirar para as nossas antigas posiçõ es. O 27.º regimento já
nã o existe, desde que
a Luftwaffe fez dele esta ruína.
Na verdade os aviõ es eram nossos. Em consequência de nã o sei que lamentá vel engano,
havíamos sido bombardeados
em voo picado pelos nossos pró prios Stukas.
Dias depois está vamos de novo metidos no barulho, com novos tanques e novo
equipamento, trazido à pressa de Cracó vis.
Foi nesse momento que descobri até que ponto a guerra nos pode envenenar o espírito.
Sempre odiei a guerra e ainda hoje a odeio; e, no entanto, fiz o que nunca deveria ter feito,
precisamente aquilo que odiava e condenava, e lamentarei sempre isso, sem nunca
compreender como pude fazê-lo...
Via, no meu periscó pio, um soldado de infantaria russo a saltar como um macaco para fora
de um buraco, procurando,
numa correria louca, esconder-se no buraco seguinte.
Automaticamente, faço pontaria e disparo uma curta rajada de metralhadora. As balas
fustigam a terra em volta dele, mas nenhuma o atinge. Ao ver aproximar-se o nosso tanque,
ele salta do buraco onde está e corre para outro, veloz como uma lebre. De novo as balas
fazem espirrar a terra em seu redor. Plutã o entra também na brincadeira, mas falha por sua
vez. Porta, rindo até chorar, levanta Estaline até uma das fendas, para que ele possa
também gozar o espectá culo.
- Aprecia bem o trabalho dos nossos atiradores especializados!

O REGIMENTO DA MORTE 207


O soldado russo deve estar a estas horas meio louco de terror, pois corre em círculo. As
nossas metralhadoras crepitam.
Ele continua a correr! Impossível? Mas é verdade!
O Velho e Stege riem quase tanto como Porta e Stege exclama:
- Caramba! Vocês nã o sã o capazes de estoirar com esse diabo ?
O tipo acaba de enfiar noutro buraco. Agarro no meu lança-chamas e atiro um jacto rente à
terra. Depois volto-me para o Velho e gracejo:
- Se no fim disto ele ainda se levanta...
- Parece-te? - diz o Velho. - Olha só para o periscó pio!
Nunca vi coisa assim. Negro de fuligem, mas ileso, o mariola corre cada vez mais e enfia-se
dentro de uma casa.
Porta, Stege, Plutã o e o Velho riem a mais nã o poder.
Representa agora para mim uma questã o de honra suprimir
aquele pobre diabo. Rego a casa com o lança-chamas até que ela arde toda...
Uma questã o de honra! Como pude eu fazer uma coisa daquelas? Como pude eu encarniçar-
me contra um homem
para satisfazer a minha vaidade?
Mas fi-lo, e esse remorso nunca me abandonará . A guerra, com o seu estrondo, as suas
chamas, os seus assassinatos
de rotina, havia-me apodrecido e envenenado insidiosamente
como aos outros.
Até o nazi mais faná tico tinha de concordar que a ofensiva alemã era um fiasco, pois
prepará vamo-nos de novo para um recuo de grande envergadura. Fizera-se um ú ltimo
esforço sobre-humano em toda a frente para conseguir, in extremis, alterar a sorte das
armas. A nossa companhia
avançou até Biriutsk, surpreendeu uma unidade de cavalaria
e aniquilou-a, à queima-roupa, em poucos minutos.
Transformá mos homens e cavalos numa massa uivante, sanguinolenta, num inferno de
seres enlouquecidos e animais
desenfreados, que escoicinhavam ao acaso. Depois retirá mos,
pois acabavam de enviar ao nosso encontro uma considerá vel
força de T-34.
A mesma cena repetia-se por toda a parte. Duros combates,
perdas incríveis.

206-SVEN HASSEL
Massacrá mos um regimento cercado que, precisamente como o nosso 104.º de granadeiros,
nã o pudera ou nã o quisera render-se. Três horas de lança-chamas deram como
resultado um espectá culo apocalíptico: armas e camiõ es reduzidos
a cinzas, soldados horrivelmente mutilados, e nem um só homem se encontrava entre esses
soldados, apenas
mulheres, muitas das quais tinham sido jovens e bonitas, com admirá veis dentes brancos e
mã os bem tratadas.
Este
magnífico feito de armas teve lugar a menos de 2
quiló metros
a leste da aldeia de Livny.
O rosto do Velho estava esverdeado.
- Temos de jurar que, se algum de nó s sobreviver a esta carnificina, escreverá um livro
acerca da patifaria em que todos participá mos. Um livro que faça compreender
aos povos alemã o, russo, americano, a todos os povos, a imunda canalhice que é a guerra!
Um livro que torne impossível
a existência de todos esses montes de esterco portadores de medalhas e tilintadores de
sabres...
Tínhamos ordem de destruir tudo na retirada. O resultado dessa famosa tá ctica da «terra
queimada» é quase impossível de descrever. Pontes, aldeias, estradas, caminhos
de ferro, tudo ficou dinamitado. As reservas de víveres que tínhamos, de abandonar eram
regadas com gasolina, com alcatrã o ou com o conteú do das latrinas. Os vastos campos, os
maravilhosos campos de girassó is ardiam ou ficavam arrasados debaixo dos tanques e dos
tractores.
Os
porcos e outros animais domésticos eram abatidos e deixados
ao sol, onde apodreciam em poucas horas. Por toda a parte
ficavam armadilhas. Uma casa parcialmente intacta, por exemplo, ia pelos ares ao tentar-se
abrir-lhe a porta. Era qualquer sítio onde os olhos poisassem só se via a desolaçã o
e a morte.
Como de costume, o nosso 27.º blindado atingiu em poucas semanas o ponto de
volatilizaçã o total; é que, está claro, constituíamos a retaguarda e lutá vamos
permanentemente
contra as forças russas, muito superiores a nó s em nú mero e material. Só uma diferença
havia entre esta e as precedentes retiradas: nã o éramos rendidos. Teria secado
finalmente a fonte? Dentro de poucas semanas, dias talvez,
a unidade acabaria de se dissolver. - -

O REGIMENTO DA MORTE 209


A circulaçã o nas estradas tornava-se por vezes impossível,
tã o densas eram as colunas de cavalaria, de infantaria, de artilharia, de blindados em
retirada. Bichas interminá veis
de camiõ es, de carros de assalto, de canhõ es, de cavalos e
homens lutavam desesperadamente nas estradas arenosas,
onde a poeira e o calor faziam da vida, daquilo que restava
de vida, um pesadelo delirante. Nos campos, de um e outro
lado da estrada, caminhavam colunas nã o menos interminá veis,
nã o menos heteró clitas, de homens e animais, mas esses eram civis. Assim, desfilavam os
veículos mais estranhos,
puxados por um cavalo velho, uma vaca, ou pelos dois ao mesmo tempo, por um burro
lazarento, um cã o ou uma pessoa. Isto quando os refugiados nã o transportavam muito
simplesmente todos os seus haveres à s costas. Mas tinham todos uma ideia em comum:
fugir dali para fora.
Coisa curiosa: a aviaçã o russa permanecia inactiva. Se assim nã o fosse, a guerra teria
terminado um ano antes.
Quando um veículo se avariava, quer se tratasse de um tanque, de um camiã o ou de um
automó vel, nem se pensava
em o reparar. Era empurrado por um carro de assalto para a berma da estrada, a fim de nã o
impedir a circulaçã o.
Inú meros soldados, esgotados de fadiga, jaziam também nas
valetas, implorando-nos que os levá ssemos. Mas nã o tínhamos
o direito de o fazer, e cortava o coraçã o ouvir as suas sú plicas sem poder recolher ao menos
um, para abafar a voz da consciência. Mas ninguém parava, ninguém podia deter-se para os
socorrer. Os carros passavam por eles um
apó s outro, num estardalhaço de trovoada, acabando por os afogar numa nuvem opaca de
poeira e desespero. Os refugiados também caíam à s centenas, e ali ficavam desmaiados,
mortos ou moribundos, em qualquer dos casos incapacitados de ir mais além, no meio do
calor ardente da estepe. E também a esses ninguém se lembrava de ajudar.
Do posto de conduçã o, na base do tanque, Porta berrou: - Eh, rapazes, isto como retirada
tem que se lhe diga!
Lembra-me a campanha da França, quando toda a gente se
punha a cavar na nossa frente; mas nesse tempo estas caranguejolas nã o eram tã o rá pidas!
Agora podemos bater
recordes de velocidade e aposto a minha perna direita em R. M. - 14

! 210 SVEN HASSEL


como Gö ebbels nunca abrirá a boca acerca desta nossa magnífica manobra! Se isto assim
continua, ainda vou fazer
anos a Berlim. E tu, Estaline, meu velho, ainda há s-de ter um belo fato a Paisana em vez
desta porcaria de farda que
te obrigam a usar. E ainda te hei-de levar a fazer um bom Par de arranhõ es no cu desse
malandro do Adolfo! E
vocês
ficam todos convidados, rapazes. Havemos de fazer puré de
batata a valer, leitã o assado e um pudim também de batata,
com açú car, compota e tudo o que vocês quiserem meter ao bucho. E havemos de ir buscar
aquele burro chapado com as suas pernas de pau e a sua latrina pri-vada!
Depois passou-nos uma garrafa e todos bebemos à pró -
xima derrota das forças prusso-nazis.
Antes de abandonarem definitivamente Cracó via, os tipos da engenharia destruíram tudo.
Cracó via era uma grande cidade, tã o vasta como Copenhaga, possuindo, nas vésperas do
conflito, os seus oitocentos e cinquenta a novecentos
habitantes. Era uma das mais belas cidades da Uniã o Soviética e possuía um prestígio igual
ao de Moscovo ou de Odessa. Três mil desses habitantes foram mortos. Tal como
orgulhosamente o anunciou o general Zeitzler numa ordem do dia, Cracó via ficou réstias
vernichtet.
Implacavelmente destruída.

- Bem sei, meu caro Beier. Sei-o muitíssimo bem...


Von Barring abanava a cabeça com desespero e pousava
a mã o no ombro do Velho.
--É impossível e todos nó s o sabemos. Isto já nã o é guerra, mas sim um suicídio colectivo.
Estamos a combater
com o auxílio de crianças e velhos. Mas vocês têm de compreender
que nã o é nada divertido para eles, pobres diabos, serem despachados daquela forma para
o mais aceso da
refrega sem treino prévio. É por isso que vos peço que sejais pacientes com eles. Se se
tratasse dos vossos pais ou
irmã os mais novos, vocês decerto teriam por eles um pouco
de consideraçã o. Também vocês, aos quinze anos, deveriam
cometer asneiras. Portanto, se me quiserem fazer a vontade,
tratem-nos bem. Ajudem-nos a encontrar o equilíbrio, na medida do possível. As coisas já
nã o se apresentam muito
boas para eles. Tratemos de nã o agravar a situaçã o com a
nossa excessiva severidade. Estamos todos fartos disto, bem
sei, mas eles nã o têm culpa nenhuma e nã o é justo que paguem... A ú nica coisa que me
consola é que estã o esgotadas
todas as reservas e, portanto, a guerra já nã o poderá durar muito por falta de gente...
Porta desatou a rir.
- Julga isso, capitã o? Nã o tarda que nã o comecem a mandar para cá raparigas. Nã o seria
possível pedir que nos
enviassem uma pequena colecçã o de starlettes? Eu ofereço-me
como voluntá rio para lhes dar instruçã o. Conheço alguns exercícios muito estimulantes que
se fazem na posiçã o horizontal.
- Se as coisas chegarem a esse ponto, desde já te nomeio
instrutor da secçã o feminina cinematográ fica -respondeu von Barring sorrindo. -
Entretanto, pensem no que acabo de vos dizer. É uma simples sugestã o da minha parte,
mas sei que vocês nã o estã o tã o endurecidos que nã o sejam
capazes de a pô r em prá tica.
212 SVEN HASSEL
O COMBOIO BLINDADO
Depois da evacuaçã o de Cracó via os restos do 27.º
regimento
foram enviados para Dniepropetrovsk, sendo-lhes destinada
a conduçã o do comboio blindado Leipzig. Assim que nos instalá mos, fomos, na companhia
de outro comboio, até
Kharol, 100 quiló metros a oeste de Poltava, onde demos alguns tiros de exercício para nos
habituarmos aos novos canhõ es. Encontrá vamo-nos, evidentemente, todos os cinco
no mesmo vagã o, comandado pelo Velho. Porta tinha a seu
cargo as oito metralhadoras e os três canhõ es automá ticos.
Stege ocupava a torre n.º 1 e eu a n.º 2, equipada cada uma com um comprido canhã o de
120 milímetros. Plutã o ficara com o rá dio e as comunicaçõ es. Dispú nhamos de uma
equipagem de vinte recrutas, com direito a quatro semanas
de instruçã o acelerada. O mais jovem tinha 16 anos e o mais velho 62. Todos juntos
formavam um quadro lamentá vel.
Regressá mos à frente de batalha sem chegarmos a conhecer
bem o nosso destino. Perto de Lwow os nossos canhõ es pulverizaram uma aldeia e
travaram duelo com a artilharia russa. Depois escapá mo-nos para sudoeste, percorrendo
noite
e dia centenas de quiló metros de linhas férreas e parando apenas para meter á gua e
mazute ou deixar passar outro comboio na direcçã o oposta. Podíamo-nos deitar e dormir
no nosso vagã o e sentíamo-nos felizes quanto possível.
Desde que se pudesse dormir de vez em quando, a guerra nã o era afinal uma coisa assim
tã o horrível. É a constante falta de sono que a torna intolerá vel e acaba por nos dar cabo
dos nervos.
Em Krementschoug, enquanto passeá vamos na gare de resguardo, uma voz de mulher pô s-
se a gritar: -Sven! Sven!
Ficaram todos espantados. Encontrava-se ali estacionado um comboio-hospital e,
debruçada a uma das portinholas, uma enfermeira dirigia-me grandes gestos...
- Sven, vem cá dizer-me como tens passado!
Era Asta. Apertou-me de encontro ao peito e beijou-me.
Eu mal a conhecia, nã o só por causa do uniforme, mas

O REGIMENTO DA MORTE 213


também porque no tempo em que convivêramos, em Gotemburgo,
ela era reservada e um bocado maçadora, embora bonita. A guerra, pelos vistos,
transformara-a. Já nã o havia sombra de hesitaçã o nos seus gestos ou olhares.
Atraiu-me para o interior do comboio, enquanto duas companheiras
tomavam conta do Velho e de Porta.
Asta casara com um homem mais velho do que ela vinte e dois anos. Divorciara-se e depois
alistara-se na Cruz
Vermelha, juntamente com uma amiga. E depois... e depois...
Meu Deus, como eu estava magro! Meu Deus, como ela emagrecera também! Olhá vamo-nos
sem nos atrevermos
a dizer o que ambos desejá vamos. Depois uma enfermeira
aproximou-se de Asta e disse-lhe qualquer coisa ao ouvido.
- Vem cá - disseme ela.
Passá mos para outra carruagem. Ela fechou um trinco, correu uma cortina e despiu-se em
menos de um á pice.
Antes
que eu pudesse avaliar a sorte que me bafejava, já ela estava nua na minha frente e me fazia
sinal para que fosse deitar-me com ela no beliche inferior do compartimento.
Era inú til pronunciar uma palavra. Desejá vamos ambos a mesma coisa e com igual
intensidade. Que presente da Providência, que maravilha caída do Céu... Uma rapariga em
carne e osso, de formas ainda cheias, apesar da magreza,
muito limpa, muito lavada, com um cheiro bom a sabã o e a mulher. Uma rapariga capaz de
perceber que um
quarto de hora pode ser o fim do mundo quando se nã o perde tempo em preâ mbulos nem
com coisas supérfluas.
Está vamos ambos de tal forma esfomeados, de tal forma á vidos e num estado de
comunicaçã o tã o harmó nico que eu
possuí-a duas vezes consecutivas, graças apenas ao facto de termos agido sem hesitar,
obedecido sem discutir à fome acumulada durante meses nas nossas entranhas...
É curioso que a vida, a vida nua e sem preconceitos idiotas, se tivesse dado ao trabalho de
recordar a sua existência,
a sua existência tã o pró xima, a três soldados sebentos, numa estaçã o de caminho de ferro
anó nima nã o se sabia bem onde. Talvez para nos mostrar que se pode sempre
encontrar, quando menos se espera, qualquer coisa de belo, de nobre e de bom.
214 SVEN HASSEL
Revejo ainda, e nã o posso deixar de sorrir, o quadro um pouco có mico destes três pobres
diabos, orgulhosos como pavõ es, regressando ao seu comboio blindado e voltando
obstinadamente as costas ao comboio sanitá rio que partia. Nã o procurei olhar para trá s,
mas continuo a imaginar,
por dentro de um vidro quadrado, três rostos de raparigas comovidos, cheios de ternura.
Nã o de três enfermeiras,
mas de três mulheres que haviam feito a três homens o dom de si mesmas e recebido tanto
como tinham concedido. E tudo isto acontecera tã o depressa, mas com uma tal plenitude...
De olhos risonhos, entrá mos de novo no nosso vagã o.
Até Porta permanecia calado, o que demonstra que a luxú ria pode apagar-se, por vezes,
diante de outros valores.
O Velho começou a cantarolar uma á ria e Porta puxou da flauta. Depois desatá mos a rir,
enquanto os outros arregalavam
os olhos.
- Pobres raparigas! -lamentou o Velho. Os piolhos que elas devem ter apanhado!
E Porta tocou aquela cançã o do príncipe que apanhara uma pulga...
Fora um abraço furtivo, de fugida, mas também um milagre poético, tã o natural, tã o
surpreendente como se tivéssemos acordado de uma breve sesta num bosque e encontrado
uma lebre ao alcance da mã o.
O comboio blindado penetrou, no dia seguinte, na zona de combate. Em Bachworat, junto a
um afluente do Donetz, recebemos instruçõ es, íamos deter uma ofensiva, depois progredir
o mais possível na linha Lugansk-Cracó via e tentar estabelecer a confusã o na retaguarda do
inimigo.
Devíamos recuar em seguida, destruindo nas nossas costas
todas as pontes e vias férreas. Se o comboio nã o ficasse em estado de regressar à base, fá -
lo-íamos ir pelos ares e os sobreviventes tentariam alcançar as nossas linhas.
A voz do Obersleutnant Hinka ressoou em todos os vagõ es, de uma ponta à outra do
comboio: - Preparem-se para entrar em acçã o!
Tiraram-se as coberturas aos canhõ es, alinharam-se os obuses e cada homem ocupou o seu
posto. Pouco a pouco

O REGIMENTO DA MORTE 215


o comboio adquiriu velocidade, zumbindo e gemendo, por vezes, nas curvas. Depois os
altifalantes recomeçaram: - Prontos para entrar em acçã o? Preparem-se para abrir fogo!
As culatras deslizam e abrem-se, recebem cargas e obuses. O aço choca contra o aço. Os
canhõ es giram em silêncio. As armas automá ticas estã o carregadas. Ao mesmo
tempo, enfiamos os capacetes guarnecidos de amianto. O
meu periscó pio explora a paisagem. Diante de nó s estende-se obliquamente o rio, amarelo
e largo, sinuoso como uma serpente, no flanco das encostas acinzentadas. Atra-vessamos a
todo o vapor uma aldeia abandonada e passamos como um bó lide sobre uma ponte
metá lica. Lá longe, por baixo das rodas, o rio é como um imenso telhado amarelo de zinco
ondulado.
Havíamos percorrido 5 ou 6 quiló metros para além da ponte quando estabelecemos
contacto com o inimigo. Os Russos atiram os primeiros obuses, que nã o acertam no
comboio, lançado a toda a velocidade. Em seguida as campainhas de alarme ressoam em
todas as torres, seguidas da
ordem de abrir fogo.
Indicam um alvo a cada comandante de vagã o, que, por sua vez, transmite as indicaçõ es
necessá rias aos seus chefes de torre. Os compridos canhõ es apontam as goelas
redondas aos bosques e aos campos inundados de sol.
- Fogo!
Os trinta canhõ es pesados do comboio vomitam a morte para cima daquela paisagem
sorridente, estival, no meio de um inconcebível estrondo de tempestade. Em breve ficamos
rodeados de poeira e fumo. Todas as vezes que os canhõ es, postos de través, disparam uma
salva, todo o combó io balança com tanta violência que temos a impressã o de
que vai tombar de lado. Os Russos respondem, mas os seus obuses, de pequeno calibre,
amolgam-se, inofensivos,
contra a nossa blindagem. Nã o tardam, porém, a chegar canhõ es de 28 centímetros, cujos
projécteis nos sobrevoam
e, por vezes, nos atingem como ciclones. Mudamos de alvo
e bombardeamos a artilharia russa. Brutalmente, o combó io pá ra e ouvimos dizer que um
dos vagõ es da frente foi atingido e ficou inutilizado. Os mecâ nicos têm de sair
216 SVEN HASSEL
e, protegidos pelo comboio, desengatar o vagã o e tirá -lo da via, Tarefa urgente, esta, pois
um comboio blindado imó vel é uma presa fá cil para a artilharia inimiga. Antes, porém, de
haverem terminado já outro vagã o ia pelos ares com todo o seu Pessoal
A violência desta barragem de artilharia obriga-nos a recuar para a ponte. Fazemos saltar a
via atrá s de nó s.
Depois o nosso Q. G. manda-nos, pelo rio, ordem para nos
determos a 1 quiló metro da ponte, com o fim de proteger a infantaria que vai atravessá -la.
Em seguida passaremos nó s, e depois a engenharia deverá encarregar-se de destruir
a ponte. Vem em nosso auxílio um outro comboio blindado,
este toma posiçã o junto à ponte, recebemos ordem de efectuar uma incursã o na linha Ros
tov-Voronesh. Hinka é de parecer que poderemos alcançar
uma pequena aldeia situada a 20 quiló metros dali, na qual «funciona» um Q. G. divisioná rio
soviético. Servindo de cobertura, perto da ponte, o Breslau bombardeia o inimigo com
todas as suas peças, esperando impedi-lo de descobrir que o Leipzig se movimenta por
detrá s dele...
E corremos a todo o vapor durante alguns quiló metros, sem apanharmos um só obus, mas
em seguida eles voltam
contra nó s a sua artilharia mais pesada e, no espaço de um
quarto de hora, muitos dos nossos vagõ es ficam danificados,
embora continuem ainda em estado de combater. Depois a
nossa pró pria má quina apanha alguns balá zios de respeito
e temos de bater em retirada, a recuar com uma lentidã o desmoralizante.
Lançam contra nó s tanques pesados e nó s baixamos os canhõ es para lhes fazer face.
Constitui um espectá culo fantá stico ver os nossos obuses de 12 centímetros a reduzirem
aqueles monstros a migalhas, projectando no espaço bocados de blindagem que parecem
saltar com a leveza de penas saídas de um colchã o rasgado.
Os obuses chovem em torno da locomotiva. Esta perde o vapor pelos buracos, cada vez
mais numerosos, e, se avançamos ainda, fazemo-lo aos solavancos, com sacudi; delas
convulsivas, irregulares. Todos começam a compreender que o comboio blindado Leipzig
tem poucas probabilidades de regressar à base.

O REGIMENTO DA MORTE 217


Quando me lembro das quantidades fantá sticas de material
alemã o e russo que ajudei a destruir, quase fico doido só de pensar no dinheiro perdido.
Nã o creio, de resto, que se possa pensar longamente nestas coisas sem desatar a rir - um
riso estridente e sem vestígios de alegria -, para nã o rebentar em soluços ou meter uma
bala na cabeça. Será que os povos nunca serã o capazes de compreender? Vó s, que me ledes,
já vos apercebestes de que, .,
se as alucinantes riquezas consumidas ou desperdiçadas em empresas militares fossem
empregadas em nosso pró -
veito, poderíamos beneficiar de uma posiçã o material e cultural vinte vezes superior?
Poderíamos comer e viver bem, ter carro, viajar pelo mundo inteiro, gozar a existência sem
ansiedade nem constrangimento. Neste mundo há
de tudo e com tanta abundâ ncia que chegaria para toda a gente.
Mas ninguém acredita nisto. Ou, antes, ninguém se atreve a acreditar nisto. Que maldiçã o
será esta que nos torna a todos inertes, apá ticos, a ponto de nunca arranjarmos a coragem
necessá ria para despojar os generais dos seus privilégios? Somos todos uns burros, uns
burros preguiçosos e ignorantes que fazem beatificamente que sim com a cabeça quando
ouvem uma afirmaçã o qualquer solene acerca do «equilíbrio de forças», da «inter-
penetraçã o de poderes» e outras asneiras sensacionais.
Equilíbrio de forças! Que estupidez! Se todos os indivíduos exigissem, unanimemente, que o
dinheiro consagrado ao armamento e à guerra fosse despendido em seu proveito nunca
mais haveria guerra. Mas eles nã o pensam senã o em bater com o punho na mesa e em
proclamar aos ouvidos do mundo o nome de quem detém o poder e a forma como esse
poder deve ser utilizado. E isto é assim porque nã o estamos todos suficientemente
evoluídos, suficientemente educados, e nos apoiamos apenas nas nossas pró -
prias emoçõ es, que sã o instá veis e nã o merecem a confiança de ninguém. Isto há -de acabar
um dia, pois nó s, afinal de contas, nã o somos assim tã o mal dotados como isso e aqueles
que governam nã o pensam senã o em encher
o saco enquanto têm as mã os na massa. Se dissermos a esses indivíduos que podiam ter
todos um carro barato
218 SVEN HASSEL
e sem pagar impostos, que a gasolina podia custar apenas
alguns tostõ es o litro, eles farã o chacota porque nã o sabem
nada de nada. E se alguém o tentar demonstrar com nú meros,
enfurecem-se, uma maneira como qualquer outra de provarem que sã o os reis dos imbecis
em esbanjar assim, sem necessidade nenhuma, o dinheiro ganho com o suor do seu rosto.
Bastaram algumas horas para transformar em sucata um comboio blindado cujos canhõ es,
só por si, com as suas estrias de alta precisã o, representavam uma fortuna.
Está vamos prisioneiros de um inferno tonitroante de artilharia
pesada e, embora fô ssemos destruindo tanque apó s tanque, eles caíam incessantemente
sobre nó s como alucinantes
insectos de carapaça luzidia.
Depois o comando central calou-se. Febrilmente, Plutã o tentou restabelecer o contacto com
os outros vagõ es, mas está vamos definitivamente isolados. Dali em diante só o Velho tinha
a responsabilidade da nossa actuaçã o no
combate. Encontrá vamo-nos a mais de 800 metros da ponte
e do Breslau, mas este transformara-se numa fogueira, desde a má quina ao vagã o da cauda,
e todas as suas peças
haviam emudecido.
Uma enorme explosã o sacudiu a nossa carruagem e alguns dos ocupantes desataram a
gritar, coisa que em nada contribuía para nos acalmar os nervos. Entretanto o fumo e as
chamas jorravam da torre n.º 1 para o interior do vagã o. Fora um tiro. em cheio.
Dominá mos o incêndio com o auxílio dos extintores e demos balanço aos estragos: quatro
mortos e sete feridos. Hugo Stege escapara,
felizmente, com algumas queimaduras superficiais nas duas mã os.
O meu canhã o era o ú nico que ainda conseguia disparar.
Escorríamos em suor na torre sufocante, que, a cada projéctil que atirá vamos, era invadida
pela chama.
Um apó s outro, todos os vagõ es se foram calando e o comboio imobilizou-se totalmente, à
mercê dos tiros certeiros
do inimigo.
Depois deu-se outra explosã o formidá vel. Uma chama branca encheu a torre. Senti uma
pancada violenta no peito
e quase perdi os sentidos. Ouvi o meu pró prio gemido.
Era

O REGIMENTO DA MORTE 219


como se me tivessem esmagado o corpo. Mesmo quando respirava lentamente, parecia-me
sentir facas a enterrarem-se-me
no peito. Nã o podia mexer-me. Encontrava-me entalado entre uma parte do canhã o,
arreada da sua base»
e a parede metá lica da torre. Estava coberto de sangue dos
pés à cabeça. Se era meu ou de outro, nã o o sabia bem.
Perto de mim jazia um dos ajudantes do canhã o, com a parte de cima do crâ nio
escalpelizada como a casca de um
ovo quente. Os miolos tinham respingado para cima da minha
cara e dos meus ombros e um cheiro pestilento enchia-me as narinas: cheiro a sangue e a
tripas furadas, que dominava o das muniçõ es.
Vomitei.
Outra explosã o titâ nica, e o vagã o ficou literalmente atravessado por línguas de chamas e
começou a inclinar-se, mas qualquer coisa deteve o seu vagaroso movimento e o manteve
inclinado num â ngulo de 45°. Este novo choque deslocara ligeiramente o canhã o, de forma
que eu podia mover agora o braço esquerdo e as pernas. Limpei os bocados de cérebro
viscoso que me tapavam os olhos.
Atrá s de mim vi Schultz, um garoto de 15 anos, com as duas pernas reduzidas a uma polpa
vermelha. Por cima da minha cabeça pendia um braço arrancado; no dedo anelar
tinha um anel de ouro com uma pedra azul. Senti que ia perder a consciência e pus-me a
gritar. Acalmei-me, no entanto, rapidamente e chamei pelos companheiros: Porta,
Stege, o Velho. Pouco tempo depois ouvi uma voz abafada,
vinda do exterior, que me dizia para bater na blindagem, a fim de indicar a minha posiçã o.
Reconheci depois a voz reconfortante do Velho:
- Aguenta, Sven! Já aí vamos...
Fizeram um buraco a maçarico na parede de aço, por onde apareceu o focinho, o focinho
três vezes bendito de Porta.
- Entã o? Entã o? -grasnou. Parece que nã o queres sair daí para fora?
Libertaram-me com cuidado. Estavam ainda vivos nove membros do pessoal e, enquanto
nos ocupá vamos de um dos feridos, outro obus de grosso calibre fechou-nos a todos lá
dentro.
220 SVEN HASSEL
Porta e Plutã o atiraram-se à pesada porta blindada com as ferramentas do vagã o e
conseguimos abri-la o suficiente
para nos escaparmos. Armados com as nossas granadas e
metralhadoras, corremos para a ponte, protegidos pelo desaterro da linha. Alguns tanques
russos descobriram-nos e tentaram cortar-nos a retirada. Todos quantos tomaram parte
naquela desesperada corrida contra a morte jamais a esquecerã o. Pelo menos os que nã o
perderam a vida, Fomos nó s os primeiros a chegar. Prepará mos as cargas de explosivos
num abrir e fechar de olhos e acendemos os rastilhos. Tínhamos em seguida de atravessar a
ponte sob uma chuva de granadas e obuses dos Russos. Os homens
atingidos continuavam com a velocidade adquirida e iam -cair depois na á gua, a fervilhar
de projécteis perdidos.
Tínhamos
quase chegado à outra margem quando a ponte foi pelos ares. A violência da explosã o
tirou-nos o fô lego, «enquanto a secçã o sobre a qual nos encontrá vamos começava
a desabar lentamente.
- Agarra-te ao parapeito! berrou Porta.
A maior parte da ponte caiu no rio. Vigas e travessas choviam como folhas mortas numa
borrasca de Outono.
À medida que se partiam as espias metá licas que ligavam a ponte à margem, saltavam por
todos os lados os rebites e as cavilhas, animados de um poder de choque tremendo.
Se aconteceu alguém ser atingido por algum deles, decerto
julgou tratar-se de uma bala.
O tumulto apaziguou-se pouco a pouco. Com o auxílio dos cabos metá licos pendentes, Porta
e eu chegá mos ao ú ltimo pilar da ponte e depois, sobre as vigas vacilantes, alcançá mos por
fim a margem.
Von Barring ficara com o rosto horrivelmente queimado e sofria horrores. Um estilhaço
arrancara o nariz e a face do coronel Hinka.
Assim que regressá mos ao nosso aquartelamento, deixá mo-nos
cair, adormecendo logo com um sono profundo.

Fizemos descer sobre os olhos os ó culos pesados e atá mos


os lenços de seda ao pescoço. Von Barring entregou Estaline a Porta. Depois a voz do Velho
elevou-se, transmitindo
ordens pelo rá dio a todas as outras viaturas blindadas.
- Acelerem os motores! Preparem-se para entrar em acçã o!
As armas automá ticas estavam já carregadas, com as longas tiras de cartuxos prontas a
desenrolar-se. Os chefes
dos carros declararam estar aptos a partir. A voz do Velho
fez-se ouvir de novo:
- Primeiro pelotã o blindado de reconhecimento... em frente, marche!
Os motores crepitaram. O saibro rangeu sob os grossos pneus reforçados das viaturas
blindadas.
NO ESTALEIRO
Consegui murmurar:
- Isto está mau, Velho?
- Só alguns estilhaços na pança e nas gâ mbias. Nã o vai doer muito. Nã o faças tragédia, santo
Deus! Vã o levar-te, juntamente com o Stege, ao centro de urgência.
Stege só apanhou numa pata. (
O carro, ao cair numa cova, obrigou-me a fazer uma careta.
- Isto dó i como burro, Velho. Dá -me um gole de á gua...
- Nã o deves beber nada até que o médico te veja - respondeu o Velho, acariciando-me os
cabelos. - Bem sabes que isso é expressamente proibido quando se é ferido na
barriga.
222 SVEN HASSEL
- Nã o queres ver como isto está ? Parece-me que vou enlouquecer...
- Já te fizeram um penso. Nã o se pode fazer mais nada até que o médico tome conta de ti.
O carro parou. O Velho saltou para o chã o e Porta aproximou-se de mim.
- Agora, meu filho, vais rilhar os dentes, hem? Eu e o Plutã o vamos levantar-te para te
entregar ao Polegarzinho
e ao Velho. Depois disso o pior está passado. Pensa em todas as enfermeirinhas que te vã o
ataviar as partes nobres quatro vezes ao dia com roupa lavada, como fazem
à quele palerma do Asmus!
Os meus lá bios sangravam quando me encontrei finalmente
de novo no chã o, com uma má scara antigá s a servir de almofada. Passara de repente a
parecer-me muito importante
o facto de ter coragem e nã o berrar. Quando desceram Hugo Stege, este gemeu um pouco
porque a sua
perna ferida bateu na roda do carro. Os nossos companheiros
curvaram-se para nos dizerem adeus. O Velho chegou à minha face o seu queixo barbudo e
murmurou: - Vê se consegues ficar estendido até a guerra acabar!
Porta apertou-nos a mã o e estendeu-nos Estaline para lhe dizermos também adeus. No
momento de saltar para o carro blindado ainda nos gritou: - Seus felizardos! Beijem por
mim todas as pequenas e digam-lhes que eu cá vou tratando da minha pele de leite e rosas
para estar bonito quando voltar a encontrá -
las!
Desapareceu em seguida e o carro blindado afastou-se, com o Velho, Polegarzinho e Plutã o
a agitarem os braços
no cimo da torre aberta. A nuvem de poeira levantada pela sua passagem em breve os
escondeu da minha vista.
Nã o falando já dos meus sofrimentos, sentia-me só e cheio de apreensã o. Consolava-me ter
Stege junto de mim,
para partilhar aquela solidã o.
Dois maqueiros transportaram-me para um vasto á trio com o chã o coberto de palha e cheio
de soldados feridos, de uniformes sujos e rotos. Colocaram-nos lado a lado e Stege pegou-
me na mã o, murmurando:

O REGIMENTO DA MORTE 223


- Isso dó i, pá ? Vais ver que daqui a pouco passa, quando o médico te examinar e te der uma
injecçã o no braço. Temos de arranjar maneira de ficarmos juntos.
- Pois claro! Nã o podem separar-nos, aconteça o que !
acontecer! Caramba, estou à rasca! Parece que me arran-cam as tripas. E a tua pata? Foi
coisa importante?
Ele tentou um sorriso amarelo.
- Dó i como burro, sobretudo no pé! Mas tu está s de pior partido...
Chegou um médico na companhia de dois enfermeiros, que preenchiam uma ficha por cada
doente, ditada pelo clí-
nico. Lançou um olhar indiferente à perna de Stege e disse:
- Estilhaços de obus na perna direita. Transporte 6.
Ligaduras limpas imediatamente e três centímetros cú bicos
de soro antitetâ nico.
Ele pró prio fez o penso da minha barriga e ditou: - Estilhaços de obus na perna esquerda,
pé direito e abdó men. Transporte 1. Três centímetros cú bicos de soro antitetâ nico e dois
centímetros cú bicos de morfina imediatamente e outro tanto à partida.
Rilhei os dentes e perguntei-lhe se eu e Stege poderia-mos ficar juntos.
- Tanto faz que rebentem aqui como no comboio-hospital; isso nã o tem importâ ncia. Mas os
feridos no ventre seguem no comboio 1 e aquele tem de ir no 6. Nã o posso fazer nada - foi a
resposta seca.
Depois foi-se embora, com a bata branca a flutuar ao vento. Nã o quero crer que aquele
médico fosse especialmente
arrogante ou bruto. Estava apenas farto de trabalho até aos olhos. Em troca de um bom
cachimbo inglês, dos nossos
cigarros e do nosso tabaco, o Feldwebel do centro de transportes
prometeu ver o que podia fazer por nó s. As duas injecçõ es entorpeceram-me e dormi com
um sono espasmó dico
até que os maqueiros me vieram buscar para me meterem numa ambulâ ncia. Esta continha
quatro macas sobrepostas.
Stege ficou por cima de mim. O Feldwebel cumprira a sua promessa.
Quando a ambulâ ncia caía numa cova ou descrevia uma curva sú bita, nó s batíamos no
fundo da maca e o tipo que ia no cimo batia no tecto. Além disso, o espaço exíguo
224 SVEN HASSEL
que separava as macas causava-nos uma impressã o de aba—
famento. O ferido do andar de cima tinha uma fractura mú ltipla dos ossos da bacia. Gritava
sem cessar e pedia-nos que tocá ssemos a campainha. Receava estar a esvair-se em
sangue. Stege premia o botã o que fazia soar a campainha na cabina do condutor, mas nem
este nem o ajudante ligavam a menor importâ ncia a estes apelos. Quando chegou a altura
de nos mudarem para o comboio-hospital, o rapaz de que falo - um canhoneiro-estava
morto. Os maqueiros atiraram com ele para o chã o, deitaram-lhe por cima um pedaço de
oleado e depois voltaram-se para os vivos.
Este «comboio-hospital» era um dos célebres «auxiliarés», ou seja uma interminá vel fileira
de vagõ es de mercadorias com o fundo coberto de palha e quarenta homens em cada vagã o,
classificados grosseiramente por categorias
de ferimentos. Parava a todo o momento e tornava a partir com uma série de arrancos,
como se estivessem a tentar reduzir todo o comboio a peças soltas. Onze dos quarenta
ocupantes do nosso vagã o morreram durante o percurso.
Stege conservou sempre a lata da á gua fora do meu alcance.
Se eu tivesse bebido, haveria mais um cadá ver à chegada.
Essa viagem durou três dias e três noites de pesadelo; depois alinharam-nos na gare da
estaçã o de Kiev, em cima
de oleados, cobertos com os capotes e com a eterna má scara
antigá s a servir de almofada. Passá mos a tarde nessa posi-
çã o, enquanto aqui e ali, de uma ponta à outra da gare, iam
morrendo mais alguns pobres diabos. Eu só muito vagamente me apercebia do que se
passava à minha volta.
Stege
continuava a meu lado e dá vamos a mã o um ao outro como
dois garotos, e nã o como dois empedernidos soldados da velha guarda, habituados a ver
morrer gente a gritar como animais.
À noite os maqueiros e prisioneiros russos vieram-nos buscar para nos conduzir ao 13.º
hospital de campanha, instalado nos arrabaldes de Pavilo. Quando chegá mos, me
teram-nos numa cave e fomos submetidos a uma despiolha—
gem rigorosa. Eram ainda os prisioneiros russos que se encarregavam desse trabalho e eu
nunca tive enfermeira mais delicada nem mais jeitosa do que esses rapagõ es sempre
de bom humor. Mexiam-nos com tanto cuidado e destreza

O REGIMENTO DA MORTE 225


e horrorizavam-se tanto com os nossos mais ínfimos queixumes
que acabá vamos por cerrar os dentes e fazer todo o possível por nã o exteriorizar os nossos
sofrimentos. Todos os feridos estavam de acordo a esse respeito e testemunhavam
o seu reconhecimento aos russos passando-lhes para as mã os os cigarros que possuíam.
Estes tipos haviam conhecido
a lama das trincheiras, tal como nó s, e, se bem que pertencessem a outra nacionalidade e os
governos houvessem
decretado a nossa inimizade, existia entre eles e nó s uma simpatia mais poderosa do que
todos os decretos do mundo. Decretos que nunca tiveram nada a ver com os simples
paisanos...
Está vamos cinco na sala de espera das operaçõ es, aguardando
a nossa vez, enquanto observá vamos o companheiro amarrado à marquesa, sob a luz
ofuscante do foco. Os cirurgiõ es
amputavam-lhe agora um pé e trabalhavam com uma rapidez de relâ mpago. Num abrir e
fechar de olhos, o pé veio cair no balde branco, que continha já uma perna, serrada pelo
joelho, e um braço, cuja secçã o sangrenta ultrapassava a borda do recipiente. Este
espectá culo enjoou-me
profundamente e vomitei, ou tentei vomitar, pois tudo ! quanto me subiu à garganta foi um
pouco de sangue e bílis.
O doente seguinte era um sujeito com a espinha quebrada e que parecia estar sem sentidos.
O mais velho dos cirurgiõ es, um homem já de idade, de monó culo, dava raspanetes
sem dó nem piedade aos colegas, enfermeiros e doentes, mas parecia trabalhar com uma
extraordiná ria perícia,
rá pido e firme, sem um gesto inú til. Bruscamente, exclamou
com voz furiosa:
- Mas este morreu, caramba! Estou para aqui a perder o meu tempo! Tirem-me isto daqui
para fora e tragam-me o que se segue, com mil raios! Despachem-se...
Antes que eu compreendesse o que me estava a acontecer,
já me tinham amarrado à marquesa. Uma injecçã o no braço, outra na barriga, e depois um
dos médicos deu-me uma palmadinha no ombro.
- Rilha os dentes, pá . Isto é rá pido, mas provavelmente vai doer um bocado, porque só te
podemos fazer uma anes-
226 SVEN HASSEL
tesia local... Mas coragem, pois vamos consertar isso num instante...
Passado pouco tempo apercebi-me vagamente de que me abriam o ventre e ouvi um leve
tilintar de instrumentos i metá licos. Logo a seguir tive a impressã o exacta de que me
tiravam todas as tripas do bandulho com pinças aquecidas
ao rubro. Nunca julguei que pudesse existir sofrimento semelhante. Gritei como um louco,
com os olhos fora das ó rbitas.
--Calas-te ou nã o? -resmungou o velho médico.
Isto ainda vai só no princípio! Guarda o fô lego para quando
tiveres realmente razõ es para berrar!
Nã o sei em que altura da operaçã o começavam realmente as razõ es para berrar; sei apenas
que, quando me deram por pronto, eu tinha acedido a um inferno de torturas que nã o
desejo ao meu pior inimigo. Transportaram-me para uma sala, meteram-me numa cama,
deram-me nova injecçã o
e eu caí instantaneamente num sono cataléptico.
Da primeira quinzena conservo apenas recordaçõ es extremamente
vagas e fragmentadas. As forças voltavam-me muito lentamente. A cama vizinha era
ocupada por um aviador gravemente queimado que se chamava Zepp.
Havia
a seguir seis feridos em estado melindroso, dos quais dois
morreram em poucos dias. Ignorava para onde fora Stege e ninguém parecia ser capaz de
mo dizer.
Três semanas depois da operaçã o o médico declarou que me podiam transportar sem
perigo. Evacuaram-me para um
comboio-hospital com beliches a valer e grandes janelas.
que permitiam aos ocupantes dos beliches gozarem a paisagem.
Como os meus pensos precisavam de ser constantemente renovados, destinaram-me um
desses preciosos beliches.
Por cima de mim repousava o meu novo amigo, Zepp cujo inquebrantá vel â nimo por vá rias
vezes me serviu de muito.
Desembarcaram-nos em Lwow, onde Zepp e eu tomá mos o caminho do hospital de reserva
n.º 7. O médico afirmou que o meu ferimento nã o tinha ainda assim muito mau aspecto e
sublinhou com um sorriso a sua declaraçã o.
O ritmo de trabalho aqui era muito menos frenético. Os médicos tinham tempo de rir
connosco e de nos tratar como

O REGIMENTO DA MORTE 227


seres humanos, e nã o como quartos de carne mais ou menos
deteriorada. Tiraram-me ainda mais dois ou três estilhaços
da perna e depois a enfermeira voltou a fazer-me o penso.
A minha dieta compunha-se exclusivamente de caldos diversos,
que acabei por detestar a tal ponto que me parecia vir a dar em doido. Consultado a este
respeito, o médico bateu-me
amigavelmente no ombro:
- Mais tarde, rapaz, mais tarde, quando estiveres suficientemente
crescidinho para digerir qualquer coisa de só lido...
Zepp e eu encontrá vamo-nos de novo numa sala de feridos
em estado grave. Noite e dia nã o paravam os gritos, os protestos, os gemidos, e o cheiro a
pus e a podridã o tornava-se por vezes insuportá vel. Um dia um rapaz muito novo, que se
sabia condenado e sofria horrores havia mais
de três semanas, abandonou a cama, arrastou-se até ao corredor
e atirou-se pelas escadas abaixo. Foi mais terrível ainda porque nenhum de nó s se podia
levantar para o impedir.
Zepp teve a coragem de tentar a aventura, mas caiu logo a poucos passos da cama,
enquanto nó s todos nos agarrá vamos
freneticamente aos cordõ es das campainhas... Esta cena foi, na verdade, um episó dio de
pesadelo.
Eu sofria horrivelmente do estô mago e também nã o foi brincadeira nenhuma quando os
médicos tiveram de me desfiar
os mú sculos da perna para encontrar os ú ltimos estilhaços de ferro. A minha temperatura
subia em lugar de descer, mas mesmo assim eles achavam que eu «ia melhorando»,
e a mim só me apetecia trincá -los.
Uma noite acordei sobressaltado. Tinha as ligaduras hú midas e pegajosas. Pedi a Zepp que
tocasse a campainha,
e logo chegou uma enfermeira a correr.
--Que tem você? -murmurou ela. Nã o terá enlouquecido para tocar assim a uma hora
destas?
- A minha ferida reabriu. Sinto por baixo das ligaduras...
Assaltou-me um medo louco e estava já a ver a minha mã e a cair no chã o quando recebesse
o postal do exército:
«Morreu como um heró i pelo Fü hrer e pela pá tria...»
A enfermeira deitou a roupa para trá s. Em atençã o aos outros doentes, nã o acendeu a
electricidade, mas serviu-se
228 SVEN HASSEL
de uma pilha. Com destreza e rapidez, desapertou-me as ligaduras. O silêncio da sala era
apenas perturbado pelos murmú rios de um jovem ferido que sonhava alto. Zepp sentara-se
na cama, mas a enfermeira empurrou-o firmemente
para trá s.
- Fique quieto e durma sossegado. Isto é um assunto entre o Sven e eu... Nã o se mexa
enquanto vou buscar uma
taça.
Lancei a Zepp um olhar aterrorizado, a que este correspondeu.
Ela sorriu levemente e depois, perante a minha expressã o desvairada, murmurou: - Nã o há
razã o para fazer uma cara dessas...
- Você fala bem! Nã o é você que tem a hemorragia...
Ela nã o respondeu, mas o seu sorriso acentuou-se.
Ganhei
finalmente coragem para perguntar: - Nã o é... nã o é tã o grave como eu julgo?
- Hum... hum... nã o é mesmo nada grave!
Depois de haver renovado o penso, puxou a roupa para cima e olhou-me.
- Nã o era sangue, Sven...
- Nã o era sangue? Mas eu senti...
Nunca esquecerei o seu sorriso maroto. Em seguida corei até à raiz dos cabelos, muito
envergonhado.
- Foi um sonho, meu rapaz. Isso é bom sinal!
Deu-me uma palmadinha no queixo e dirigiu-se para a porta com a taça na mã o.
- Eh! Com certeza foi consigo que ele sonhou! - atirou de lá Zepp.
--Cale a boca, ouviu? E durmam ambos!
Depois eclipsou-se, sempre a sorrir.

Passei parte da minha convalescença junto de Stege.


Ele
estava prestes a regressar à frente de batalha. Passava as
noites agitado e eu tinha muitas vezes de o mandar calar.
Mas, decorridos poucos minutos, lá voltava ele: - Está s a dormir, Sven?
Eu tentava tapar a cabeça com a roupa.
- Sven!
-Sim. Que queres mais?
- A Margaret disse que no fim da guerra haverá cursos especializados de doze meses para
os desmobilizados.
Nunca
ouviste falar nisso? Escuta, Sven, fuma mais um cigarro comigo, anda!.., Nã o achas que a
Margaret é uma rapariga
como...
- Oh, pelo amor de Deus!...
Eu devia estar saturado de nicotina até aos ossos. A todo o momento ele deixava a cama
para se vir sentar na beira
da minha e explicar-me o que fariam, ele e Margaret, logo
que a guerra acabasse.
DESEJO QUE NÃ O MELHORE
TÃ O CEDO!
Numa certa quinta-feira de Dezembro de 1943 o médico deu-me alta e anunciou que eu iria
no sá bado seguinte reunir-me à minha unidade.
-Desculpa pregar-te esta partida, rapaz. Em boa verdade, deverias ficar ainda aqui umas
cinco ou seis semanas.
Assim, tens de te arranjar como puderes. Nã o sei se lá terá s muito que comer, mas trata de
te alimentares o melhor
possível. Só assim conseguirá s arribar, como espero...
Foi nestes termos que me falou o director do hospital militar de Truskawice. Era um
médico fora do vulgar, que
230 SVEN HASSEL
procurava sempre conservar os seus doentes o mais tempo
possível. Porém, as ordens dos altos comandos estipulavam
agora que 50 por cento dos feridos e doentes em tratamento
deviam ser declarados aptos para o serviço e imediatamente
enviados à s suas unidades. No entanto, segundo o regulamento, qualquer médico suspeito
de haver dado alta a um doente insuficientemente restabelecido podia ser
levado a conselho de guerra. Tais sã o os milagres que podem operar-se nas altas esferas!
(Tã o altas que nã o se respira lá o mesmo ar que o resto do rebanho...) Um certificado
de cura, um tampã o de borracha, um conselho de guerra, e aqui estã o os ingredientes com
que se faz um soldado cheio de saú de. Que a maior parte destes soldados
«saudá veis» fossem um fardo catastró fico para as suas unidades,
obrigando os companheiros a tratá -los e a ampará -los, além de tudo o mais, era uma coisa
inconcebível para aqueles que se sentavam nos mais altos degraus da escada.
O médico-director abanou a cabeça com um ar doloroso quando se despediu de mim e
Bá rbara pô s-se a chorar ao saber a notícia. Eu pró prio me sentia tã o deprimido e tã o cheio
de amargura que nã o tinha a menor vontade de a consolar. Nã o teria sido hipocrisia fingir
que consolava a mulher que amava e que me amava também? Era o que eu pensava, pelo
menos nesse momento, e limitei-me a afogar tudo numa sensualidade desenfreada. A porta
nã o estava fechada à chave, mas creio que nem ela nem eu nos
teríamos importado que a Alemanha inteira houvesse invadido
o quarto! Está vamos no nosso direito. O povo pedira tanto de nó s -ou permitira que outros
o fizessem, o que vem a dar na mesma -, que bem podíamos exigir isto, pelo menos, em
troca. Fiquei deitado na cama de Bá rbara enquanto ela se vestia para ir ocupar o seu lugar.
Depois acendi um cigarro e esforcei-me por esclarecer a situaçã o...
Mas nada havia a esclarecer. A nã o ser, naturalmente, que eu resolvesse desertar pela
segunda vez. Nã o receava
fazê-lo. Mas também nã o temia o regresso à frente de batalha.
Já nã o tinha medo de nada e só conseguia sentir um ó dio feroz, frio, contra aquilo que todos
detestá vamos sob a
denominaçã o comum de «esta porcaria da guerra». Uma

O REGIMENTO DA MORTE 231


vez que há muito pusera o medo de parte, nada me preocupava regressar à batalha para
estudar o fenó meno do ponto de vista de uma amargura objectiva... Estava eu entregue a
estes pensamentos profundos quando Margaret penetrou no quarto e, soluçando
convulsivamente, se atirou atravessada sobre a cama, sem dar pela minha presença.
Trazia uma carta na mã o e eu compreendi logo que Stege fora morto.
Repeti-o mentalmente e sem surpresa. Hugo morrera.
Em silêncio, passei-lhe os meus cigarros. Ela teve um violento sobressalto e olhou-me.
-Oh!... Estava aí, nã o o tinha visto...
-Bem sei... Feche a porta à chave enquanto eu me visto, sim? Sã o só dois minutos.
Vesti-me enquanto ela soluçava cada vez mais intensamente.
Depois abri a porta e li a carta: Frente de Leste, Novembro de 1943
Feldpostnummer 23 645
Feldwebel Willie Beier
Minha cara Mademoiselle Margaret Schneider: Escrevo-lhe, na qualidade de amigo de Hugo
Stege, para lhe comunicar a triste notícia da sua morte. Ele tinha-nos dito tantas coisas
bonitas a seu respeito que avalio bem a pena imensa que esta carta lhe irá causar, Talvez
alguns pormenores sobre as circunstâ ncias em que teve lugar o horrível acontecimento lhe
possam dar um leve conforto.
Andá vamos em patrulha no nosso carro blindado quando uma salva atingiu bruscamente o
nosso veículo.
O seu noivo morreu instantaneamente com uma bala na têmpora. Mesmo morto, conservou
aquele sorriso afá vel de que todos nó s gostá vamos, e essa é a melhor prova ] de que nã o
teve tempo de sofrer.
Peço-lhe que nã o se entregue ao desespero. É muito nova e tem de me prometer que vai
esforçar-se por esquecer
toda esta tragédia o mais depressa possível.
232 SVEN HASSEL
Estou certo de que a vida lhe reserva ainda outros momentos
de alegria e, presentemente, creio que o melhor para si seria encontrar depressa um jovem
e belo rapaz a quem possa vir a amar tanto quanto amava Hugo. Por amor desse querido
companheiro desaparecido,
nã o chore. Se ele pudesse vê-la, decerto ficaria mais triste. Sorria antes, pensando em tudo
aquilo a que ele escapou. Nã o sabemos o que acontece aos mortos;
sabemos, sim, que, nas circunstâ ncias actuais, estã o em melhor lugar do que os vivos.
Tem-me junto de si de todo o coraçã o.
Willie Beier
Esta carta dá uma imagem flagrante do Velho e da sua paternal gentileza. No mesmo
correio vinha uma carta para mim:
Caro amigo:
Obrigado pelas tuas epístolas. Recebemos cinco de uma vez. Nã o há tempo para te escrever
com vagar porque estamos metidos nesta merda até à s orelhas.
Quando nã o sã o os Russos a atacar, somos nó s. Um inferno! Faz o que puderes para
prolongar a tua estada aí o mais tempo possível.
Hugo morreu e Polegarzinho desapareceu, sem deixar rasto, no decurso de um ataque.
Escrevi à Margaret a dizer que ele morrera de repente, com uma bala na cabeça, mas tu já
sabes como é que os soldados dos tanques deixam este vale de lá grimas!
O pobre Stege ficou com as duas pernas queimadas até aos ossos. Nã o foi brincadeira
nenhuma ouvi-lo agonizar durante dez ou doze horas. Onde vai um homem buscar forças
para grilar durante tanto tempo?
Antes que esta pouca-vergonha termine teremos todos, provavelmente, esticado o pernil e
só restarã o os cabecilhas do partido, os generais e toda aquela camO REGIMENTO DA
MORTE 233
bada para recolher os louros... ou os espinhos (segundo espero)!
Estamos para partir, meu velho Sven, por isso arranja maneira de continuares no hospital,
para que escape ao menos um tipo decente que se nã o esqueça da nossa promessa de
escrever um livro acerca de toda esta porcaria.
Com a amizade do malandro do Porta, do Plutã o e, naturalmente, do teu
Velho
Na ú ltima noite jantá mos marmelada e bolos de fabrico caseiro, tudo isto ao som de um
concerto de mú sica melodiosa
transmitido pela rá dio. Bá rbara conseguira escapar-se ao serviço da noite, mas a festa nã o
havia forma de aquecer.
A tempestade rugia lá fora e a chuva vergastava as janelas em vagas sucessivas.
- Há momentos como este agora - disse Zepp, olhando tristemente o seu copo - em que me
sinto quase feliz por estar paralítico. O que nã o será a vida nas trincheiras com este tempo!
Margaret foi dormir com Elizabeth, para nos deixarem, a Bá rbara e a mim, o quarto livre
nesta derradeira noite.
Quando ia a sair, levando os seus trajes de noite, Margaret voltou atrá s, lançou-me os
braços em volta do pescoço e, com os olhos rasos de lá grimas, disse gravemente: - Toma
cuidado contigo, Sven. É preciso que o Velho nã o seja obrigado a escrever também a
Bá rbara daqui a algumas semanas...
Depois beijou-me e saiu com ligeireza.
No dia seguinte, pela manhã , voltei a vestir o odiado uniforme e o comprido capote
cinzento. O saco que pus à s costas fora cheio de petiscos pelas mulheres: dois enormes
bolos feitos por Bá rbara, dois boiõ es de compota da parte de Elizabeth, presunto fumado,
oferta de Margaret, e uma caixa de pêras cristalizadas, retiradas por Zepp da sua ú ltima
encomenda. Sentia a garganta entupida com lá grimas e, apesar da maior boa vontade do
mundo, nã o fazia ideia de como iria comer tanta guloseima. Depois
234 SVEN HASSEL
afivelei a pesada pistola militar em volta do peito, atirei a má scara antigá s para cima do
ombro e, por fim, pus o boné preto na cabeça.
Elas acompanharam-me as três até à estaçã o. Enxuguei com os lá bios as lá grimas que
corriam dos olhos de Bá rbara.
-Nã o chores, Babs! É apenas um até à vista, e nã o um adeus...
-Sven, promete-me que vais ser prudente...
Quando soou o apito, beijaram-me as três em sinal de amizade, de amor...
Adeus, Truskawice! Adeus, meu oá sis. Adeus, pacíficos quartos de cama, limpos e frescos.
Adeus, mulheres de longos cabelos perfumados.
Encostei com força a testa ao vidro embaciado do compartimento e deixei correr
livremente as lá grimas pela cara abaixo.

Uns dedos gelados esmagaram-me o coraçã o quando vi A que ponto ele estava mudado.
Tinha os cabelos grisalhos,
a pele amarela e sob os olhos cansados afundavam-se umas
olheiras negras. Estava magro, curvado, e o uniforme caía-lhe
em pregas flá cidas ao longo do corpo emagrecido.
Pobre, pobre Velho!
Plutã o tinha exactamente a mesma aparência do Velho.
Von Barring confundia-se com eles.
O aspecto de todos era igual.
Todos?
Os que restavam, claro.
; Havíamos sido seis mil a principio.
É ramos sete agora. Sete homens. Sete sobreviventes.
A GUERRA PROSSEGUE SEGUNDO O PLANO
ESTABELECIDO
Sentaram-se em volta do bolo e contemplaram-no longamente,
como se se tratasse de uma coisa sublime, sagrada.
Por fim Porta estendeu a mã o, mas o Velho bateu-lhe nos dedos com a colher.
- Um bolo que foi feito por verdadeiras mulheres tem de ser saboreado com todas as regras.
Nunca com as unhas
pretas e as mã os porcas!
Toda a gente aprovou esta profissã o de fé e a mesa foi devidamente posta, colocando-se
dois guardanapos limpos
a servir de toalha e as tampas das marmitas em vez de pratos. Lavagem, limpeza de unhas,
cabelos e uniformes
escovados, um pouco de lustro nas botas, tudo isto nos levou aí uns vinte minutos.
Sentá mo-nos em seguida
à «mesa» e comemos devotamente o bolo de Bá rbara, acompanhado pela geleia de
Margaret.
236 SVEN HASSEL
- Estava-se lá bem?
- Era formidá vel!
Esperavam que eu lhes fornecesse uma narrativa completa,
rica de perfumes, de cores, de sons esquecidos. Pensei vagamente: «É chegado o momento
de lhes dar o melhor de mim pró prio»; reflecti uns segundos e principiei: -Nunca vi
vestidos tã o limpos como os delas. Quando se debruçavam para bater o colchã o ou para
puxar o lençol, chegava-nos ao nariz um delicioso cheirinho a roupa passada a ferro,
levemente engomada, que se acabou
de tirar do armá rio. Um odor completamente estranho a qualquer porcaria, um odor
«seco», ligeiramente a queimado.
Fora das horas de serviço usavam os seus pró prios vestidos, que nã o eram menos
imaculados, desprendendo-se
deles qualquer coisa de quente e de fresco ao mesmo tempo.
Elas possuíam diversos vestidos. Recordo-me de um, azul-celeste,
com pá ssaros brancos e cinzentos-claros. Era de manga curta e formava um plissado em
volta do pescoço, um plissado que se prolongava para as costas e para o peito. Quando
puxá vamos por uma fita de seda branca, apareciam
os ombros, mas era preciso também desapertar os pequenos laços das mangas «presunto».
Este pertencia a Bá rbara. À minha Bá rbara. Margaret, a de Hugo, tinha um belo vestido
vermelho-fogo, de uma espécie de lã fina que lhe moldava o corpo como uma camada de
tinta. Quando ela dava uma reviravolta, parecia mesmo uma chama.
Havia
ainda outra, que usava uma saia de pregas que rodava em volta dela, seguindo-lhe os
movimentos com um leve atraso...
Fechei os olhos para melhor recordar Bá rbara e prossegui num tom que era quase um hino:
- A que tinha o vestido azul-celeste... a minha... Bá rbara...
Depois de eu lhe desatar os lacinhos e desapertar as duas molas e o colchete lateral, o
vestido escorregava até ao chã o e ela ficava de pé sobre uma espécie de nuvem
azul que lhe rodeava os tornozelos... Eram tã o limpas, estavam sempre tã o
maravilhosamente perfumadas como o vestuá rio...
- Perfumadas?

O REGIMENTO DA MORTE 237


- Sim, Porta, deixa-me explicar-te... Andavam tã o limpas como uma espingarda antes da
inspecçã o, na caserna.
Os cabelos delas brilhavam como o Danú bio numa noite de Inverno, quando os raios da Lua
fazem cintilar |
sobre o gelo milhõ es de diamantes. E os seus corpos tinham
o perfume das grandes florestas da Beresina depois da chuva, nas manhã s de Primavera.
Será s capaz de imaginar
isto?
Durante horas tive de lhes descrever assim as maravilhas do mundo em que vivera. Eles
nunca se fartavam nem queriam acreditar no que ouviam.
- Há uma coisa que nã o entendo - disse Plutã o. Como é que, depois de teres levado uma vida
de príncipe oriental, a comer bolos, pato assado, etc., com um harém para te encher de
mimos e te embalar à noite, nos apareces
aqui magro como um cã o?
Tive de lhes explicar entã o que eu, Stege, Zepp e mais »»
outro tipo, depois de termos as feridas curadas, havíamos comprado, por trezentos
cigarros, duas garrafas de á gua contaminada, uma de bacilo de tifo, outra de micró bios de
có lera.
- Stege nã o vos contou isso? Estivemos todos à s portas da morte. Zepp ainda continua
paralítico até à cintura e o quarto tipo esticou o pernil. Eu estive sem dar acordo de mim
durante dezanove dias e no fim nã o podia comer.
Foi Bá rbara e uma auxiliar polaca que me alimentaram à força com uma colher, durante
quinze dias. O doutor deu-me cinco vezes como perdido. Injectaram-me toda a espécie de
mixó rdias, glucose, soro fisioló gico e mais coisas
ainda. E agora põ em-me na rua cinco semanas antes do que devia ser. Heil Hitler!
- E elas também tinham meias com o calcanhar reforçado?
- Tinham, pois!
Abanaram a cabeça e trocaram entre si um olhar desesperado.
- Eh, Sven, sabes que as licenças foram todas anuladas? - inquiriu Porta, como se esta
novidade explicasse alguma coisa.
238 SVEN HASSEL
- Oiçam, rapazes - respondi eu. - Há aqui qualquer coisa que eu nã o percebo.
- O que é?
- Se eu soubesse... Aconteceu-vos fosse o que fosse, nã o sei o quê. Vocês passaram das boas
durante a minha ausência,
isso vejo eu, mas deve haver outra razã o. Senti o mesmo junto do von Barring quando me
fui apresentar. Tu já nem sequer dizes palavrõ es, Porta!
Todos me fitaram e depois olharam uns para os outros.
Ou, mais exactamente, evitaram olhar-se, tal como as pessoas
fazem quando diante delas se fala numa coisa proibida.
A atmosfera tornou-se bruscamente irreal no casebre desmantelado,
irreal e, para mim, que os conhecia a todos tã o bem, assustadora. Porta levantou-se e foi
postar-se diante da janela, de costas para nó s. Eu insisti desesperadamente:
- Velho! Tu, ao menos, diz-me o que há . Parece que acabaram todos de enterrar a avó .
Parece que estã o todos
mortos!
Esta ú ltima palavra provocou um estalido no meu crâ nio.
Nã o sou supersticioso e o que se passou de sú bito no interior
do meu cérebro nada tem de extraordiná rio nem de inexplicá vel.
Apercebi-me bruscamente de que eles estavam mortos.
Mortos sem nenhum cerimonial, sem nenhum mistério.
Tinham abandonado por completo a esperança de saírem da
guerra vivos. O mundo que eu lhes descrevera e as suas pró prias
vidas já nã o tinham existência real. A utopia do grande descalabro nã o se realizara. A
revoluçã o que limparia todas
as ardó sias e ajustaria todas as contas, quando regressassem,
nã o passava de uma simples quimera, um navio fantasma sobre o oceano negro da morte.
Até o maior sustentá culo de Joseph Porta nesta vida, o seu refú gio favorito, o ventre quente
das mulheres, deixara de ter qualquer significado.
Nã o que se conduzisse de maneira menos imoral ou deixasse
alguma vez de beliscar toda a ná dega rechonchuda que lhe
passasse ao alcance da mã o, mas, como ele pró prio o declarou
volvidos alguns dias, ao descrever, com a precisã o habitual,
as suas folias com a filha do lavrador, que acabara de conquistar:
- É curioso, mas noutros tempos como que sentia pra-O REGIMENTO DA MORTE 239
zer em ver-me actuar. Agora fico atrá s da parede, enquanto
o senhor Porta, pela graça de Deus, se espoja na palha!
Mas o que se passa do outro lado da parede nã o me interessa
absolutamente nada... Se eu visse ao menos os bombeiros
a fazerem exercícios ou o Adolfo a rapar metade do bigode
antes de zurrar um dos seus discursos... Mas aquilo nã o tem
nada que ver e, mesmo que tivesse, nã o me interessaria...
Vocês nã o percebem isto, claro, porque eu também nã o o percebo lá muito bem!
Tentei, com todas as minhas forças, libertar-me da convicçã o
macabra de que os meus amigos eram mortos ambulantes.
Este era um assunto que eu nã o podia discutir com eles! E depois, um dia, à queima-roupa,
perguntei-lhes se era efeito da minha imaginaçã o, ou se eles se tinham tornado
totalmente passivos, tã o completamente resignados como pareciam. Muito embora,
aparentemente, passá ssemos o tempo da mesma maneira que dantes...
- Na verdade, nã o sei o que diga - respondeu o Velho.
- Estã o suprimidas todas as licenças - declarou Porta.
- Dos seis mil que éramos no princípio, em 1941, restamos
apenas sete - disse o Velho. - Von Lindenau, Hinka, von Barring e mais os ilustres
sobreviventes desta companhia.
Alá é grande, mas a lista dos mutilados, mortos e desaparecidos é maior ainda.
- Oiçam lá ...
A minha voz era aguda, ofegante, e o medo torcia-me o estô mago.
-Vocês nã o podem desistir de escrever o livro que prometemos...
Todos me olharam e sentime invadir pelo pâ nico. Eles pareciam nã o me reconhecer, ou,
antes, conheciam-me melhor
do que eu me conhecia a mim pró prio e sentiam por mim a
mais profunda e calma das simpatias; é que eu teimava em
alimentar esperanças estú pidas e continuava a possuir um coraçã o impaciente, que batia
por tudo e por nada.
- Quando escreveres o teu livro - disse Porta fixando a palheta da sua flauta -, beija por mim
todas as pequenas.
Nã o deve haver um só gato-pingado que o leia, pois nã o vai contar a histó ria da bela
telefonista e do elegante filho 240 SVEN HASSEL
do patrã o encerrados, pelas circunstâ ncias, num quarto com
duas camas! Nem da enfermeira e do médico célebre.
Tudo
o que quiseres, menos uma histó ria de condenados sebentos
e repugnantes. Nunca fará s fortuna com um livro desses!
As pessoas estã o-se nas tintas para isso. Se queres o meu
conselho, apanha uma valente Bebedeira à nossa memó ria
quando o acabares de escrever.

Fizemos um esforço para improvisar o Natal de 1943


com a maior verosimilhança possível. Chegá mos mesmo a
plantar um pinheirinho num caixote de muniçõ es...
PROPAGANDA SOVIÉ TICA NA PRIMEIRA LINHA No campo da propaganda os Russos
davam provas de um fantá stico espírito de invençã o. Contavam-nos por vezes
patranhas de um tal calibre que qualquer ser normal se recusaria a acreditar nelas; mas
nó s nã o éramos seres normais,
e até os artifícios mais fá ceis de reconhecer nã o deixavam de produzir o seu efeito.
Activavam a fermentaçã o das nossas dú vidas e dos nossos rancores e de tal modo
agravavam
o nosso estado depressivo que os seus autores soviéticos podiam gabar-se dos resultados
obtidos.
E nem sequer faço alusã o aos homens que se passavam para o outro lado, ou que se
deixavam voluntariamente capturar, algumas vezes até unidades inteiras, enquadradas
pelos respectivos oficiais. Quanto a estes, podiam ainda contar-se.
Pelo que dizia respeito a quase todos nó s, a disciplina prussiana e a propaganda de
Gö ebbels sobre os horrores do «paraíso dos Sovietes» conservavam-nos a corda à volta do
pescoço; e, mesmo sem isso, as nossas ú ltimas parcelas de senso comum encarregar-se-iam
de nos recordar
- dada a maneira como os exércitos alemã es haviam devastado a Rú ssia - que os Russos
tinham de ser, na verdade,
uns anjos para nos receberem de braços abertos, tal como prometiam os seus oradores.
O que eu quero sobretudo dizer é que a propaganda soviética exercia até um efeito
paralisante sobre os homens
que preferiam abster-se de desertar. Deixava-os com o espírito
esfrangalhado, incapazes de raciocinar sensatamente.
242 SVEN HASSEL
De resto, eles tinham uma habilidade excepcional para descobrir argumentos esmagadores.
Por mais que repetíssemos
a nó s pró prios que tudo aquilo era simples propaganda, esta nã o deixava, em todo o caso,
de ter o seu fundamento:
eles apresentavam as suas «provas».
Aqui está um exemplo, difundido por dezenas de altifalantes:
- Camaradas alemã es, reú nam-se aos vossos amigos russos! Para quê continuar a gelar nas
vossas trincheiras?
Junto de nó s encontrareis bom alojamento e boa alimentaçã o.
Raparigas boas e dedicadas velarã o para que nada vos falte. Recebereis raçõ es triplas das
que os nazis vos concedem! O cabo Freiburg vai agora, junto deste microfone,
confirmar a veracidade das nossas afirmaçõ es. Encontra-se entre nó s há dois anos, visitou
os nossos campos de prisioneiros de guerra e pô de verificar que em nada se parecem
com o que vulgarmente se imagina. Os nossos campos acham-se instalados em grandes
hotéis ou em vastas coló nias
de férias e um quarto nunca está ocupado por mais de dois
casais ao mesmo tempo: dois homens e duas mulheres.
Mas
aqui está o cabo Freiburg, que vos vai falar acerca da sua estada na Rú ssia Soviética...
Intervinha outra voz, dizendo jovialmente: --Vivam, camaradas do 27.º regimento blindado.
Aqui, o cabo Jtirgens Freiburg, do 309.º de granadeiros. Nasci a 20 de Maio de 1916, em
Leipzig, e habitava o n.º 7 da Adlerstrasse, em Dresda. Fui capturado pelos Russos em
Agosto de 1941 e vivo, desde essa data, melhor do que vivia antes na Alemanha. Visitei
quase todos os campos da
Rú ssia e posso afirmar que cada homem neles internado dispõ e de tudo quanto deseja...
Descrevia durante uma hora inteira aquele novo Eldorado e lia, entre outras coisas, as
ementas da semana, onde entravam pratos como caviar, porco assado, pato e pombo,
palavras estas que nos faziam crescer á gua na boca.
Certa «noite armaram um grande écran de cinema no parapeito da trincheira e
projectaram, dedicado a nó s, um filme que nos deixou quase doidos ou doentes. Haviam
sido
capturados dois soldados alemã es. Penetrá mos com eles numa bela sala, onde nos
esperavam vastas mesas repletas

O REGIMENTO DA MORTE 243


de iguarias fotografadas em primeiro plano e de todos os â ngulos possíveis. Muitos -de nó s
ficavam a babar-se e a salivar sem darem por isso, e creio que, se a projecçã o se tivesse
prolongado, todo o regimento se teria precipitado ao
assalto do écran.
A cena seguinte passava-se num luxuoso quarto dominado pela presença de uma grande
cama ao centro. Uma linda rapariga despia-se lentamente diante de um soldado alemã o de
infantaria. Tirava peça por peça, a menear-se e a caminhar graciosamente em frente do
rapaz. Logo que ficava toda nua, começava a despir o soldado, seguindo-se entã o uma cena
das mais pornográ ficas. Pairava um silêncio
abafado nas trincheiras alemã s. Muitos suspiravam ou emitiam
sons estranhos. Era um espectá culo ao mesmo tempo horrível e lamentá vel.
- Bravo, seus russos, bravo! Ponham lá isso outra vez! Bis! Bis!
Toda a trincheira urrava e aplaudia em cadência.
Depois os altifalantes crepitaram de novo e toda a gente se calou:
- Camaradas! Nã o vos deixeis assassinar por uma causa que nã o aprovais. Que as SS e os
heró is feitos à pressa de
Goering, que gozam à farta nos países ocupados, venham combater em vosso lugar por
Hitler e pela sua camarilha!
Vó s, verdadeiros veteranos do exército alemã o, mereceis mais do que esta ignomínia. Vinde
ter connosco! Aqueles que desejem alistar-se no exército vermelho para combaterem
pelos seus verdadeiros direitos serã o incorporados nas nossas fileiras com a patente
actual...,Mas para isso é preciso
virem já ! Nã o esperem que seja demasiado tarde...
À s vezes demonstravam-nos ainda concretamente e sem comentá rios de que modo Hitler
havia quebrado, uma apó s
outra, todas as suas belas promessas. Ou entã o um médico
russo explicava-nos a maneira de contrair ou de, pelo menos, simular certas doenças.
- Camaradas, atirem fora as armas e venham reunir-se a nó s! Continuar a combater seria
um absurdo. Esses infames
nazis estã o a servir-se de vó s. Nã o sabeis que há quatro anos um terço da Wehrmacht passa
uma vida regalada nos
países ocupados, comendo à tripa-forra, enquanto vó s morreis
244 SVEN HASSEL
aqui de fome e de frio? Nã o sabeis que o segundo terço da
Wehrmacht fica tranquilamente na Alemanha, a dormir com as vossas esposas e com as
vossas amantes, enquanto
vó s suportais todas as privaçõ es possíveis na grande pá tria
dos vossos camaradas russos?
- Escutem aquilo! Escutem aquilo!
E todos os capacetes alemã es eram atirados ao ar, mostrando
assim o nosso entusiá stico acordo com tã o verídicas afirmaçõ es.
Uma divisã o saxó nica em peso mudou de campo, sob o comando do seu coronel. No sector
vizinho do nosso um regimento de reserva originá rio da Turíngia atravessou a terra de
ninguém juntamente com os oficiais que o comandavam.
Acontecia também, de resto, desertores russos virem ter connosco, ou prisioneiros alemã es
regressarem à s nossas
linhas depois de se haverem evadido, tal como eu pró prio fizera. Nas suas descriçõ es nã o
entravam hotéis de luxo, bem entendido, nem coló nias de férias. A maior parte deles,
como eu, haviam sofrido horrores, tendo sido umas vezes tratados humanamente, outras
com a maior rudeza. Em certos campos os Russos haviam de facto procurado realizar
o prometido pela sua propaganda e tentado converter os prisioneiros de guerra ao ideal e à
doutrina socialistas.
Nalguns, porém, nã o se fizera o menor esforço nesse sentido,
e noutros, ainda, haviam-se mostrado bá rbaros, movidos por um desejo de vingança, que,
de resto, eu nã o tenho a coragem de condenar. A maneira como os Russos eram
massacrados, por exemplo, quando as SS entravam em acçã o nã o se pode explicar nem
descrever. E quando soou
a hora do ajuste de contas para os nazis vencidos, os vencedores,
fartos de sofrer, tiveram de se vingar neles de uma soma considerá vel de insultos e de
torturas de toda a espécie. Nã o procuro atenuar certas tragédias nem achar desculpas ou
explicaçõ es. Desejo acentuar, simplesmente,
que nã o é difícil acumular provas daquilo a que se chama, por eufemismo, os «costumes
russos», mas com essa espécie
de provas conseguir-se-ia demonstrar que os tais «costumes
russos» eram correntes, em maior ou menor escala, em todos
os países devastados pela guerra.

O REGIMENTO DA MORTE 245


Por vezes presenciá vamos coisas que nos deixavam de boca aberta. Por exemplo, durante
um assalto, alguns dos nossos ú ltimos «soldados» de 16 e 17 anos haviam sido raptados
pelos Russos. No dia seguinte eram-nos devolvidos,
depois de lhes haverem cortado as pernas das calças, a fim de que parecessem vestir
calçõ es.
Nas costas de um deles vinha pregada esta edificante mensagem:
O exército russo nã o combate contra crianças; entregamo-vos
estas para que as possais devolver à s suas mã es, que, melhor do que nó s, poderã o acabar
de as desmamar.
E há ainda a histó ria do sargento velho...
Havia na 3.a companhia um sargento de certa idade.
Um dia o pobre diabo recebeu um telegrama informando-o de que a mulher e os três filhos
tinham morrido durante um raid aéreo a Berlim. Pediu uma licença ao comandante
da companhia, mas, embora este fizesse tudo quanto estava
na sua mã o, a licença foi-lhe recusada.
Cheio de raiva e desespero, o velho sargento desertou, mas voltou no dia seguinte, dizendo
que o comandante da divisã o russa do sector da frente lhe havia pessoalmente concedido a
licença que os seus chefes lhe tinham recusado.
Julgá mos primeiro que ele perdera o juízo, mas o homem mostrou-nos uma carta dirigida
ao nosso coronel e uma colecçã o completa de impressos de licença russos, devidamente
preenchidos e assinados, com validade para quinze dias. nã o incluindo os da viagem de ida
e volta até Berlim.
Os Russos haviam mesmo juntado aos papéis os horá rios exactos dos comboios que ele
deveria tomar. Von Barring, depois, deu-me parte do texto da carta dirigida ao Oberst von
Lindenau.
Era o seguinte:
Caro coronel:
Ficá mos profundamente surpreendidos ao ver que o exército germâ nico se encontra numa
situaçã o de tal modo crítica que lhe é impossível conceder uma licença
246 SVEN HASSEL
a um pobre sargento que, como este, perdeu tudo quanto tinha. O exército vermelho
concede ao seu prisioneiro quinze dias de licença e, ao mesmo tempo, dispensa-o de
regressar.
Nã o ignoro, meu caro coronel Lindenau, que vai provavelmente castigar este sargento por
haver «confraternizado»
com o inimigo. Mas atrevo-me a sugerir-lhe que, por uma vez, feche os olhos ao que se
passou e consiga que este infeliz possa ir a casa de licença. Nã o estará ele já
suficientemente castigado com a perda de toda a sua família nesse raid sobre Berlim?
Stephan Konstantinovitch Radion Tenente geral,
comandante da 61.a divisã o
de infantaria do exército vermelho Esta carta e as ordens de licença russas foram
transmitidas
ao nosso comandante de divisã o, o General leutnant von Rechtnagel, para que ele
resolvesse o seguimento a dar
ao caso do sargento que fora pedir uma licença aos Russos!
Durante alguns dias o 27.º blindado em peso esperou ansiosamente
a sentença. Todas as noites os Russos nos perguntavam, por intermédio dos seus
altifalantes, se o sargento conseguira a licença e nó s tínhamos sempre de lhes responder
com uma negativa. Fizeram-se apostas. A maioria pensava que o homem seria fuzilado.
Eram forçosamente obrigados a castigá -lo. Esta saída só poderia ser evitada se se
reformasse todo o có digo militar!
Finalmente, a nossa ansiedade acalmou; o velho sargento obtinha a sua licença, mas
acompanhada de três dias de prisã o rigorosa por haver abandonado o seu posto sem
autorizaçã o, sançã o esta que só teria efeito depois da licença.
Escusado será dizer que os Russos possuíam outros meios
muito mais enérgicos de fazer a sua propaganda. Havia, por exemplo, aquilo a que eles
chamavam as «transmissõ es

O REGIMENTO DA MORTE 247


radiofó nicas», que começavam por uma paró dia a qualquer
programa de rá dio alemã o, à s vezes bastante grosseira, mas
eficaz e por vezes com graça... Vinha em seguida o «concerto
dos radiouvintes». Uma voz bem treinada de locutor anunciava suavemente:
- E agora, a pedido de vá rios correspondentes, vã o ouvir uma composiçã o especial para
instrumentos ligeiros...
Seguidamente, duas dú zias de pequenos morteiros e algumas salvas de metralhadora
reduziam a pedaços o parapeito
da nossa trincheira, salpicando-nos de pedras e terra.
- E agora, meus caros ouvintes, eis uma fantasia para ó rgã o de Estaline...
E ouvia-se um estrondo que parecia o fim do mundo, enquanto os obuses-foguetõ es dos
famosos «ó rgã os»
choviam
sobre nó s numa trovoada de deflagraçõ es ensurdecedoras.
- E, para terminar este festival em apoteose, oferecemo-vos agora uma rapsó dia de á rias
variadas por toda a nossa orquestra sinfó nica...
Oh!, aquela voz sorridente, insinuante!
Todo o sector tremia de pavor durante aquele ciclone que se despenhava sobre as nossas
cabeças. Agachados no
fundo das trincheiras, vigiá vamos atentamente os nossos vizinhos mais pró ximos, sempre
prontos a cair-lhes em cima
ao mais leve sinal de demência.
Existiam vá rias unidades de voluntá rios russos no exército alemã o. Além da célebre divisã o
de traidores do general Vlassov, possuíamos alguns regimentos de cossacos, que se
entregavam a terríveis atrocidades na pessoa dos russos que o acaso das batalhas lhes fazia
cair nas mã os. A unidade
mais terrível de todas era, no entanto, um batalhã o feminino.
Estas harpias despiam os prisioneiros, amarravam-nos numa cama ou sobre uma mesa e
excitavam-nos até os porem,
com vontade ou sem ela, em estado de satisfazerem os monstruosos apetites sexuais dos
seus algozes. Depois, terminado
o deboche, cortavam geralmente o pénis da vítima e enfiavam-lho pela boca abaixo ou
entã o esmagavam-lhe os testículos à martelada. Porta assistiu a uma destas cenas
248 SVEN HASSEL
e, nessa mesma noite, abateu sete das terríveis bacantes com
a sua carabina de franco-atirador.
Quando os Russos deitavam a mã o a um destes cossacos ou a uma destas Flintenweiber,
faziam-lhes pagar com juros
as atrocidades. Exemplos terríveis de sadismo floresciam e espalhavam-se cada vez mais.
Havia também numerosos
ucranianos alistados em batalhõ es de SS independentes, outros incorporados
individualmente em unidades alemã s e
conhecidos pelo nome de Iliwis, abreviatura de Hilfsivillige:
«voluntá rios». E quanto mais a guerra se aproximava do seu
fim inevitá vel e, para eles, particularmente aflitivo, mais estes tipos se tornavam selvagens
e difíceis de manejar.
Por cá lculo ou por convicçã o, haviam apostado num mau cavalo e a descoberta tardia do
seu erro transformava-os progressivamente em feras raivosas.
Acontecia, naturalmente, que alguns destes desertores russos, cansados da disciplina
alemã , tentavam regressar à s
fileiras do exército soviético. Nunca conseguimos descobrir
o seu destino. Deviam ser logo enforcados por alta traiçã o.
Depois os Russos puseram um fim radical a este trá fego.
Devolveram-nos todos os desertores russos e ucranianos de
uma maneira muito simples: sobrevoavam as nossas linhas
e atiravam os indesejá veis pela borda fora, mas sem pá ra-quedas!
No bolso de cada um encontrava-se um sobrescrito de serviço, amarelo, contendo uma
«guia de remessa»
assim
preenchida:
A secçã o n.º 174 da polícia militar devolve pela presente:
O voluntá rio SS Boris Petrovitch Turgoiski, nascido em Tiflis, a 18 de Março de 1919, e que:
Desertou a 27 de Dezembro de 1943 em Lebed, do 18.º batalhã o SS.
Foi capturado pelo 12.º regimento de fuzileiros do exército vermelho.
Este desertor regressa ao exército alemã o por intermédio do tenente Barovitch, piloto das
forças aéreas do exército vermelho.

O REGIMENTO DA MORTE 249


RECIBO
Este recibo atesta a entrega do desertor: Patente...
Nome...
Unidade...
Pede-se a separaçã o, o preenchimento e a devoluçã o deste recibo à mais pró xima unidade
do exército vermelho.
Tais atrocidades exerciam sobre o nosso moral o efeito de um soporífico. Eu pró prio me
senti rapidamente contagiado
pela surda resignaçã o dos meus companheiros, pela sua convicçã o de que está vamos todos
perdidos e que nada
mais tinha importâ ncia, visto que todos os homens, sem excepçã o, eram animais ferozes.
O capitã o von Barring desatou a beber.

Eles tinham-se limitado a desmontar as metralhadoras...


Procurá mos o ú ltimo -homem e perguntá mos-lhe como diabo aquele tanque havia podido
penetrar na sua granja.
Ele mostrou-nos, encantado. um papel no qual se lia em língua alemã :
«Nó s, a tripulaçã o’deste tanque, vendemos a nossa caranguejola
ao lavrador Peter Alexandrovitch em troca de uma vaca, encontrando-se os dois animalejos
em, perfeito estado
à data da transacçã o.
Heil Hitler!
E vai-te lixar, meu caro membro do partido!»
Em quase todas as quintas da Ucrâ nia, grandes ou pequenas,
era quase certo descobrir-se um carro ou outro veículo alemã o de qualquer tipo.
A RETIRADA DE KIEV
A razã o invocada era que fora morto um SS
Untersturmfü hrer
na orla da floresta. A título de aviso aos outros habitantes da regiã o, o comandante SS
ordenara o enforcamento
de todos os homens e mulheres dos 14 aos 60 anos.
Estes foram carregados em camiõ es que se colocaram, em
marcha atrá s, sob séries de laços corredios. Os SS
enfiavam-lhes
as cordas pelo pescoço. Depois os camiõ es punham-se a andar...
Um protesto agressivo subiu das nossas fileiras quando descobrimos aquele espectá culo,
que, de resto, já terminara. Os
SS observaram-nos nervosamente e apertaram com mais

O REGIMENTO DA MORTE 251


força as suas armas, enquanto os nossos oficiais nos faziam
acelerar a marcha, para evitar uma contenda geral.
O antagonismo que opunha o exército à s SS estava a transformar-se em conflito aberto.
Himmler esmagara toda a tentativa de criar um maquis organizado hostil ao regime do que
ele era o cã o de guarda, mas a sua repressã o, apesar
de tudo, nã o tivera grande efeito pois nã o conseguira iden-
.
tificar o inimigo. De facto, limitara-se a esmagar apenas inocentes. O verdadeiro inimigo -
se bem que, evidentemente, ele o nã o soubesse - era este terror que ele julgava poder
utilizar a seu bel-prazer. Empregado sem método, ao
acaso, acabara por provocar a sua perda. Pois foi ele que despertou a resistência alemã até
ela se tornar num maquis,
cuja cró nica nunca foi nem será jamais escrita, pela simples
razã o de que nã o existe em parte alguma o menor relato das suas actividades. Nã o se
tratava de um movimento organizado, mas sim de um conjunto de iniciativas dispersas, tã o
pouco ostensivas, tã o fortuitas, na aparência, como o fora a nossa ao liquidarmos o patife
do Meier.
Os Russos ocupavam já metade de Kiev quando nó s che-gamos com reforços. No interior da
cidade separá mo-nos em pequenos grupos de combate, que penetraram imediatamente em
Kiev por diversos lados. O meu tanque seguia mesmo atrá s do de Porta e do Velho.
Descemos a Wosdu—
chffotskoje, depois atravessá mos uma linha de caminho de
ferro e percorremos a Rua Djakowa, da qual todas as casas
estavam ocupadas por alemã es; enfim, corremos para Pa-volo, no extremo norte da cidade.
Embrenhando-nos num , dédalo de ruelas e passagens estreitas, alcançá mos, pela
madrugada, uma velha oficina.
; No grande pá tio encontravam-se alinhados dezoito T-34
e cinco KW-2, rodeados pelas suas equipagens em sentido , ].
para a chamada da manhã . A brutal apariçã o dos nossos .
B
três tanques a menos de 20 metros paralisou-os totalmente.
Afastei o sargento novato do nosso aparelho de visar e logo entraram em acçã o a peça, o
lança-chamas e as me- ;
tralhadoras, enquanto, nos outros tanques, o Velho e Porta
agiam com a mesma prontidã o automá tica. Os soldados russos caíam como tordos e, no
espaço de poucos minutos,
incendiá mos e destruímos as duas dú zias de tanques.
Depois
252 SVEN HASSEL
disto regressá mos a toda a velocidade pelas ruas transversais;
encontrá mos uma companhia de infantaria, que regá mos com o lança-chamas e depois
varremos com as metralhadoras,
encarregando-se, a seguir, as nossas lagartas de esmagar os poucos sobreviventes.
E a festa prosseguiu. Incêndios, destruiçõ es, massacres.
Uma bateria antitanques imobilizou o carro do Velho com um obus nas lagartas. Eu
contornei um quarteirã o a toda a brida para apanhar a bateria pelas costas. Nã o foi preciso
estragar muniçõ es: o canhã o e os seus homens quase nã o me fizeram abrandar a marcha.
Mas haviam já incendiado o tanque do Velho e morto dois dos seus ajudantes. O
Velho
saltou para o meu carro e os outros dois subiram para junto de Porta.
Todo o resto do dia se passou em operaçõ es semelhantes.
Esgotante, monó tono, numa permanente tensã o que nos punha quase doidos. Quando
regressá mos à nossa base, a
5.a companhia havia perdido todos os seus tanques e o Oberst von Lindenau estava morto.
Acabara queimado.
Kiev inteira era pasto das chamas.
Nã o existe forma de combate capaz de levar um homem mais rapidamente à loucura do que
o combate de ruas.
Progredindo
ou recuando de porta em porta, nunca se sabe o que vai acontecer de um momento para o
outro, de que janela nos espreita o inimigo, pronto a alvejar-nos, a atirar-nos uma granada
ou até um simples bloco de pedra à cabeça. As balas assobiam e nã o podemos localizar o
sítio
de onde partem. Temos de as deixar estoicamente passar,
protegidos apenas por um candeeiro de iluminaçã o pú blica.
Tivemos, em diversas ocasiõ es, de evacuar uma casa porque ela ruíra sob o nosso peso,
fazendo-nos cair através
dos sobrados, por vezes de três ou quatro andares.
Chegá vamos
mesmo a travar renhidos combates corpo a corpo, breves lutas de uma selvajaria extrema,
em que as armas eram facas ou até pá s de trincheira. E durante todo este tempo a cidade
ardia, explodia, gritava com os seus milhares
de vozes desvairadas, numa temperatura ambiente de 40° a 50°.
A enorme ponte sobre o Dniepre fora pelos ares. Apenas emergiam do rio alguns pilares
eriçados de ferros torcidos.

O REGIMENTO DA MORTE 253


O orgulho da cidade, a poderosa emissora radiofó nica, com as suas antenas de aço, nã o era
mais do que uma amá lgama de vigas e cabos emaranhados. Nos vastos matadouros jaziam
milhares de carcaças de animais regadas com á cido.
profusamente banhadas de gasolina, ardiam como enormes fogareiros centenas de
toneladas de semente de girassol e de ó leo de painço. As oficinas de montagem de
locomotivas lembravam um cemitério de elefantes.
No decurso da retirada o nosso ó dio à s SS explodiu e por vezes manifestou-se de modo
concreto, a ponto de nenhuma unidade dessa espécie se arriscar mais a deslocar-se,
durante uma ofensiva, com tropas regulares na sua retaguarda.
Aconteceu vá rias vezes russos e alemã es, entrincheirados de ambos os lados de uma rua,
fazerem tréguas à chegada de uma unidade SS, para que os alemã es pudessem exterminar
em paz e sossego os portadores daquele detestado uniforme. O combate recomeçava
depois, entre os Soldados «honestos» de dois exércitos, regulares.
! Certa manhã , um pouco antes da aurora, alcançá mos um sector pró ximo de Berditschev,
onde a batalha estava iminente. Encontrava-se já ali um regimento de infantaria . de
reserva. Como nã o tínhamos um ú nico tanque, servíamos também de infantaria.
O nosso lugar, como sempre, era na frente, na terra de ninguém. Aí cavá mos trincheiras
individuais muito estreitas, sobre as quais podiam passar os tanques russos sem grande ,
perigo para nó s. A habilidade estava em que, uma vez livres dos carros de assalto,
ficá vamos nas primeiras filas para dizimar a infantaria com os nossos lança-chamas, as
nossas metralhadoras e até as nossas armas de combate corpo a corpo: baionetas e pá s de
trincheira.
Atrá s de nó s, os granadeiros eram sujeitos a uma verdadeira carnificina. Passava o tempo e
o duelo da artilharia aumentava sempre de intensidade. Depois, pelas 3
horas, deu-se uma breve acalmia, os tiros afastaram-se e a barragem recuou até para lá das
nossas linhas, recomeçando depois tudo com igual violência.
254 SVEN HASSEL
O espectá culo que se nos oferecia à vista quase nos fez desmaiar. No meio da névoa que
pairava rente à terra aproximavam-se hordas e hordas de T-34 e, atrá s deles, massas
compactas de infantaria de baioneta calada.
Bruscamente fez-se noite no meu buraco e caiu-me em cima uma avalancha de terra.
Começou a correr-me pela testa uma transpiraçã o gelada. Tremiam-me os joelhos.
Depois
um novo tanque passou sobre a minha cabeça e outro ainda. Em seguida as metralhadoras
desataram a crepitar,
acompanhadas pelo troar dos canhõ es. Isto significava que
estava a travar-se o duelo entre os carros russos e os nossos
granadeiros e canhõ es antitanques.
Eu hesitava ainda em mostrar a cabeça na beira do buraco, com receio de ser decapitado
por um T-34
retardatá rio,
mas, logo que ouvi o tiroteio da metralhadora mais pró xima, ergui-me lentamente.
A menos de 50 metros, uma metralhadora pesada armara-se em bateria, com uma dú zia de
tipos russos deitados em volta dela. Apontei o meu lança-chamas e premi o gatilho. Um
rugido surdo respondeu ao brotar da chama vermelha. Dois soldados de infantaria russos
tentaram levantar-se, mas caíram logo, a arder como archotes.
Outra
metralhadora abriu fogo na minha direcçã o e eu entrei a toda a pressa na cova, fazendo, ao
mesmo tempo,, parar o
lança-chamas.
Desta vez agira com mais prudência, deixando a boca da má quina na borda da trincheira
para poder apontar pelo periscó pio. Apertei o gatilho. A segunda metralhadora
calou-se.
Veio depois a segunda vaga de tanques, e desta vez nã o era nenhuma brincadeira, pois eles
já sabiam que nos ocultá vamos
nos buracos. O combate corpo a corpo entre um tipo de carne e osso e um tanque de 70
toneladas desenrola-se
assim: o soldado de infantaria, sans pcur et sans reproche,
tal como manda o regulamento, salta da trincheira, enfrenta
o tanque de caras e atira-se a ele, agarrando com uma destreza regulamentar o enorme
gancho de reboque, sem jamais deixar cair, como é ó bvio, a bomba magnética que leva na
outra mã o.

O REGIMENTO DA MORTE 255


O esforço violento para me içar até à enorme bisarma que corria para mim a toda a
velocidade inundou-me de suor desde a cabeça aos pés. Graças a Deus que os tripulantes
de um T-34 nã o podem ver seja o que for num raio de 10 metros em roda do tanque. Estive
por vá rias vezes prestes
a cair dele abaixo. Tinha as mã os em sangue e as unhas todas quebradas. Mas o guerreiro
indomá vel resistiu valentemente
e colocou a bomba no sítio devido, encostada ao colar de aço que corre na parte posterior
da torre. Em seguida
puxou a corda do detonador, saltou rapidamente em terra e mergulhou numa cova de obus,
onde se encontravam
já uma dú zia de granadeiros e uma metralhadora.
Passados
cinco segundos deu-se uma explosã o e o tanque imobilizou-se,
com o focinho num buraco de obus. Toda a tripulaçã o fora instantaneamente morta pela
poderosa deflagraçã o da
bomba magnética.
Quando surgiu o segundo T-34, o soldado «sem medo»
pegou numa das bombas que os granadeiros tinham no buraco
e saltou sobre ele, arrancando o resto das unhas. Este género de feito tornou-se quase uma
rotina, como tudo o resto. Só me apercebi verdadeiramente de a que ponto esta
rotina podia ser «eficaz» quando um estilhaço de torre, depois de haver descrito uma
graciosa trajectó ria no ar, veio
enterrar-se no solo a 30 centímetros do sítio onde eu estava. Nã o pesava menos de meia
tonelada.
A nossa artilharia antitanques repeliu os carros inimigos, à força de minas e de bombas
magnéticas. Depois os canhõ es russos entraram em acçã o e todos os nossos granadeiros
e os novos recrutas do 27.º deram à s de vila-diogo e se precipitaram para a retaguarda. Até
nó s, os veteranos,
contaminados por tamanho ardor em fugir a direito, lhes seguimos o exemplo. A infantaria
russa perseguiu-nos, gritando:
«Viva Estaline! Viva Estaline!»
Um velho major tentou deter-nos e obrigar-nos a fazer frente aos soldados soviéticos, mas
alguém lhe arrancou das
mã os a pistola automá tica e as botas dos soldados espezinharam-no,
acabando por matá -lo. Ignoro o que nos fez parar. Mas a verdade é que acabá mos por fazê-
lo, enfrentá mos
os russos e combatemos corpo a corpo. Agarrei com as duas mã os a espingarda de um
soldado mongol e tentei
256 SVEN HASSEL
arrebatar-lha. Ele resistiu e eu teimei, rosnando ambos como animais ferozes, pois
sabíamos que um de nó s tinha de morrer. Movido por um frenesim homicida, apoderei-me
finalmente da arma e, rá pido como um corisco, enterrei a baioneta nas costas do soldado,
que se desequilibrara.
Este
caiu por terra a gritar, levando consigo, na queda, a espingarda.
Tive de lhe apoiar um pé nas costas para fazer sair a baioneta. Depois corri para diante,
ganindo como um demente,
sempre de baioneta em riste, na posiçã o horizontal, como uma lança. Choquei com um
russo com tal violência que a lâ mina lhe saiu pelas costas. Soltou um berro, com a boca
completamente escancarada. Só se ouviam gritos,
urros de animais ferozes, saídos de lá bios torcidos em rostos
convulsionados.
De sú bito gelou-se-me o sangue nas veias. De boca aberta,
olhei o céu, do qual descia na nossa direcçã o um denso enxame de foguetõ es
incandescentes, a silvar e a rugir com
mais força do que todos os demó nios do Inferno, num clamor inconcebível que parecia
arrancar-me lentamente todos os nervos. Colados ao chã o, berrá vamos e soluçá vamos
de pavor. Eram os ó rgã os de Estaline, o instrumento de desmoralizaçã o mais terrível de
todos os tempos.
Apó s trinta e seis horas de combates encarniçados, a ofensiva russa enfraqueceu e
retrocedeu. No fim da batalha,
tanto eles como nó s havíamos reocupado as primitivas posiçõ es.
Seguiu-se um espantoso duelo de artilharia, um ciclone de seis dias e seis noites que fez
perder o juízo a muita gente. Em duas horas ficou arrasado um bosque, de tal forma que
ninguém diria ter ele existido alguma vez naquele
local. Permanecemos prostrados nos nossos abrigos, de olhar vago e os olhos injectados de
sangue. Ninguém se
lembrava de conversar. Mesmo gritando aos ouvidos do vizinho,
tornava-se impossível uma pessoa fazer-se ouvir.
Foi mais uma vez a presença de Porta e do Velho que me impediu de perder a cabeça.
Bastava-me observá -los, impassíveis no meio daquele inferno ensurdecedor, para logo
recuperar a calma. O Velho chupava no cachimbo e Porta tocava flauta, com o gato Estaline
enroscado nos joelhos.
Ninguém, nem sequer ele pró prio, conseguia ouvir um ú nico

O REGIMENTO DA MORTE 257


som do que tocava, mas prosseguia sempre, num recolhi-mento concentrado, sem prestar a
mínima atençã o ao estrondo.
Talvez tivesse alcançado um tal grau de alheamento que pudesse realmente ouvir o que
tocava!
Na tarde do quarto dia von Barring surgiu à entrada da nossa toca. Apresentava um ar mais
doente do que nunca.
O Velho dissera-me que ele sofria de disenteria perniciosa
e que tinha de passar a maior parte do tempo de calças na mã o. Os rins também
funcionavam cada vez pior. Ao que parecia, nã o devia ter longa vida.
O papel que nos entregou tinha escritas as seguintes palavras :
Temos de conseguir dar de comer a estes homens.
Já mandei quatro equipes, mas nenhuma regressou.
Vocês sã o a minha derradeira esperança.
Entreolhá mo-nos e fitá mos von Barring, que se deixara cair sobre um caixote, com a cabeça
entre as mã os. O
Velho
encolheu os ombros, e fez um sinal afirmativo. Von Barring entregou-lhe também um
despacho em que participava ao Q. G. que o nosso dispositivo telefó nico se encontrava feito
em pedaços.
Com as enormes marmitas penduradas à s costas, partimos
através de uma paisagem lunar, semeada de crateras irregulares. Uma chuva de ferro e de
fogo continuava a cair incessantemente do céu negro. As nuvens estavam baixas, pesadas e
ameaçadoras. O Velho abanou a cabeça
com um ar contrariado. Porta assentiu, com o rosto inexpressivo,
e prosseguimos.
Levá mos seis horas para atravessar a zona massacrada, que se estendia numa
profundidade de 4 quiló metros, e consumimos
sete horas para regressar com os baldes cheios de favas e carne de porco cozida.
Comemos na cantina rolante, deitando o dente a tudo o que pudemos apanhar, a ponto de
os pró prios cozinheiros
; ficarem cheios de escrú pulos. Vendo que era preciso pensar
também na noite, Porta meteu em cada bolso da farda um bocado de toucinho cozido,
gelatinoso. Os baldes cheios
pesavam uma tonelada quando no-los puseram de novo à s
R. M. - 17 .
258 SVEN HASSEL
costas. Porta tornou a colocar Estaline no bolso especial que cosera propositadamente para
ele nas costas do capote.
Sempre contente com a sua sorte, o bichano observava a paisagem com a sua cabecita
coberta por um boné, que mal ultrapassava a borda do bolso.
Combati também debaixo da terra. Os Russos haviam começado a minar as nossas posiçõ es.
Colando o ouvido ao chã o -das nossas tocas, podíamos ouvir o toc-toc-toc das
suas picaretas. Fomos encarregados, naturalmente, de cavar
outros tú neis, de massacrar os escavadores e de minar as posiçõ es russas. Estendidos
numa galeria, ouvíamos o martelar
lancinante das picaretas. Toc-toc-toc.
De sú bito, silêncio. Teriam terminado? Iríamos escutar dentro de minutos um rugido surdo
que nos enterraria vivos?
Esperá mos um quarto de hora, o que é demasiado quando
se aguarda, de ouvido atento e num silêncio de morte, um ruído bem determinado, um
ruído que nunca mais vem.
Esperá mos uma hora.
Depois o toc-toc-toc recomeçou, fazendo-nos assinar um novo contrato com a vida. Atrá s de
mim, ouvi o Velho soltar um suspiro de alívio.
Prepará mo-nos para entrar em acçã o.
Em surdina, o Velho murmurou, em proveito dos mais jovens e inexperientes:
- Nunca procurem apunhalar entre as costelas. É pouco seguro. Visem o pescoço ou a
barriga, na virilha obliquamente
e de cima para baixo, se for possível, e estripando de baixo para cima, ao retirar a lâ mina.
Progredimos com cautela pelos canais, por vezes tã o estreitos que temos de rastejar. No
desvio de uma galeria caímos de surpresa sobre quatro russos que cavavam activamente
a terra a poucos metros de nó s. Aproximamo-nos deles sem barulho e as nossas facas
entram em acçã o.
À nossa volta, nas galerias de comunicaçã o, os nossos homens
esperam os sapadores russos, que parecem farejar qualquer coisa. O Velho, Porta, eu e seis
jovens recrutas surpreendemos uma equipe de oito escavadores a trabalhar

O REGIMENTO DA MORTE 259


no fundo de um tú nel. Enquanto os outros se escondem, Porta grita-lhes num russo
impecá vel: - Podem pô r-se na alheta, camaradas. Vamos ser rendidos.
Os russos voltam-se, mas nã o podem ver-nos nos meandros do tú nel. Um deles interroga: --
Saímos todos?
- Saem, sim, despachem-se. Os outros já ali estã o à espera.
As nossas facas brilham à luz das moribundas pilhas eléctricas. Um deles consegue enterrar
a picareta na barriga
de um dos nossos rapazes, que desata a berrar de tal maneira que temos de lhe cortar o
pescoço. ,.
Os outros tentam soterrar-nos, atirando-nos cargas ex- -
plosivas.
Um dia enterrá mos o nosso bom amigo Plutã o. Nã o foi possível encontrar-lhe a cabeça, mas
era ele, nã o havia dú vida alguma.
Coube uma vez mais ao nosso 27.º ficar para trá s num sector evacuado com 120
quiló metros de largura, a fim de dissimular uma retirada de grande envergadura. Durante,
pelo menos, vinte e quatro horas os fogõ es deviam continuar
a deitar fumo das chaminés e as metralhadoras a disparar uma salva de vez em quando.
E tínhamos igualmente o encargo de preparar armadilhas.
Os duzentos homens da nossa companhia deviam cobrir uma extensã o de 20 quiló metros.
Tínhamos ordem formal de em caso nenhum abandonar as posiçõ es, a menos
que os Russos invadissem totalmente as nossas trincheiras.
É ramos trinta naquele pelotã o, em face de quatro mil e quinhentos fuzileiros siberianos, as
tropas que mais temíamos
entre todas as do exército vermelho.
Graças a Deus, os nossos preparativos ajudavam a passar
o tempo. Ligar todas as portas dos abrigos a minas que
260 SVEN HASSEL
explodiriam logo que se lhes empurrasse o batente.
Dispor
uma cavaca inocente de forma a fazer deflagrar um monte de cartuchos, se alguém a
apanhasse para a meter no fogã o.
Instalar, sob uma tá bua mal unida, à entrada de uma trincheira,
um dispositivo que faria ir pelos ares, em cadeia, cinquenta minas antitanques; enterradas
a 100 metros de distâ ncia. Porquê preparar todas estas armadilhas, em lugar
de desistir pura e simplesmente de tudo? Já o disse.
Porque
isto ajudava a passar o tempo. E seria igualmente absurdo abstermo-nos de armar as ditas
ciladas...
A tarde passou-se rapidamente. Os Russos nã o pareciam duvidar sequer de que na sua
frente nã o havia senã o um punhado de infelizes, esfarrapados e cheios de amargura.
A noite foi muito desagradá vel. Nã o ousá vamos adormecer.
Está vamos separados dos nossos vizinhos mais pró ximos por uma distâ ncia de 50 a 100
metros e nada nos punha a coberto dos ataques das patrulhas. As famosas patrulhas
siberianas! Com a cabeça a fervilhar de pensamentos incó modos,
fiquei sentado toda a noite junto de uma pilha de granadas e de um par de metralhadoras
carregadas, a perscrutar
desesperadamente as trevas.
Ao romper do dia os Russos começaram a farejar a marosca. Dispará mos algumas rajadas,
mas eles começaram
a atrever-se mais, chegando até a observar-nos abertamente
por cima dos parapeitos das trincheiras. Fui ter com o Velho
e disse-lhe:
- Nã o achas que seria melhor pormo-nos a cavar antes que seja tarde? Vinte horas ou vinte
e quatro, a diferença nã o é grande.
O Velho sacudiu a cabeça:
- Sven, ordens sã o ordens. E os outros, sobretudo, contam connosco para lhes garantirmos
essas vinte e quatro
horas de avanço. Mesmo assim, vã o ter muito que sofrer.
Vamos dar-lhes a oportunidade de se porem mais a salvo.
Porta era também da minha opiniã o, mas o Velho mostrou-se
intratá vel, dizendo que nos podíamos pô r a andar se nos desse na bolha, mas que ele
ficaria. Sozinho, se tanto
fosse preciso.

O REGIMENTO DA MORTE 261


- Pronto, meu sacripanta! - vociferou Porta, furioso.
Sabes muito bem que nenhum de nó s te deixaria nessas condiçõ es. Mas depois nã o digas
que nã o te avisá mos!
Sempre a praguejar e a barafustar, regressá mos aos respectivos
postos. Empoleirados sobre os seus parapeitos, os russos dirigiam-nos sinais
interrogativos. Uma série de rajadas obrigou-os a encolherem-se nas trincheiras, mas,
pá ssado um instante, lá estavam eles de novo.
Bruscamente, com profundo horror, vi surgir um rosto barbudo por cima do nosso
parapeito, a menos de 10
metros
de nó s. Atirei-lhe mecanicamente uma granada e o homem
morreu instantaneamente. As coisas animaram-se logo a seguir. Os russos vinham aos
grupos, em reconhecimento, e o
Velho teve de se convencer de que era mais do que tempo
de abandonar a posiçã o.
Deslizá mos em skis através da estepe coberta de neve.
De tempos a tempos qualquer coisa explodia lá atrá s.
Uma
das nossas armadilhas, sem dú vida. Mas, fora isso, era tudo um desolado silêncio. Os
tanques russos, por vezes, passavam na estrada, a 2 quiló metros de nó s. Depois de cinco
dias de buscas encontrá mos os restos do 27.º, que estava, finalmente a ser retirado da
batalha.
Fui nomeado Fahnenjunker, coisa que nada me agradou.
Até entã o tinha-me sentido bem nas fileiras. Agora era obrigado a pô r-me à frente dos
outros e a ouvir o relató rio do Kommandofeldwebel, que ainda na véspera era meu
superior. Dava-me a impressã o de me estar a exibir, nu, aos olhos do mundo inteiro. Os
meus companheiros, esses, far—
taram-se de gozar à minha custa. -

Passados momentos disse com a mesma voz sibilante: - Quando se der a revoluçã o contra
os generais e os nazis, nã o se esqueçam de pregar em meu nome dois valentes
borrachos no focinho do Adolfo...
- Está prometido, Porta - replicou o Velho. - Vamos aplicar-lhe tantas nos bigodes, em teu
nome, que, se fosses
tu a dar-lhas, ficarias estafado! . ; - Bom! Seguiu-se um silêncio. O cachimbo do Velho
crepitava
furiosamente.
- Eh, Velho, tens aí o teu instrumento?
O Velho tirou a harmó nica da algibeira.
- Toca lá aquela cantiga da moça a pentear os cabelos loiros sentada sobre uma rocha...
O Velho fez-lhe a vontade e eu cantei os versos em surdina, enquanto Porta olhava
fixamente o tecto: i
Ich weiss nicht, was soil es bedeuten, Dass ich so traurig bin.
Ein Má rchen aus alter Zeiten, Das kommt mir nicht aus dem Sinn. i Todos nó s chorá vamos e
Porta murmurou: - E agora, Joseph Porta, Stabsgefreiter pela graça de Deus, vai reunir-se
ao seu Criador! Custa um bocado.
Prometam-me
encarregar-se de Estaline. Gostava bem de o ver antes de levantar ferro.
O Velho aproximou o bichano do rosto de Porta.
- Nã o se esqueçam dos meus socos no focinho do Adolfo e de Himmler! Até à vista...
Um líquido negro e amarelo escorria-lhe lentamente da comissura dos lá bios e as suas
mã os apertaram mais fortemente
as nossas. Depois a pressã o afrouxou. Joseph Porta estava morto.

O REGIMENTO DA MORTE 263


UM LEITO DE ARAME FARPADO...
Muito embora na altura me nã o tivesse apercebido disso, a segunda estada que fiz no
hospital marcou uma viragem na minha existência. Eu ficara prostrado, de mistura com os
arames farpados, mas mesmo assim foram buscar-me e
mandaram-me para a oficina de reparaçõ es. Depois de curado enviaram-me para a escola
de tanques de Wiinschdorf,
em Berlim, para me impingirem uma instruçã o abreviada de oficial, antes de atirarem
comigo, mais uma vez, para o 27.º Foi ali, em Berlim, que, por um estranho decreto
da Providência, passei a ser correio da conspiraçã o urdida contra o Fü hrer. Mas isso é outra
histó ria...
Certa manhã , encontrava-me eu ainda no hospital de Franzenbad, entrou pela minha sala
dentro um tipo baixo e entroncado, dos seus 25 anos. Parou em frente da minha
cama e disse com o sotaque vienense mais cerrado que eu
ouvira até entã o:
--Viva, camarada! Chamo-me Ernst Stplpe, do 7.º
alpino. Tenho macaquinhos no só tã o e estilhaços de V-2
na
estratosfera. Posso mesmo prová -lo com uma certidã o!
Olha
só para isto!
E estendeu-me um papel que representa, em resumo, o sonho de todo o soldado
consciente: O Obergefreiter Ernst Stolpe, do 7.º batalhã o de caçadores alpinos, deve ser
considerado como ferido de gravidade, em consequência de três importantes lesõ es que
sofreu na cabeça. Em nenhuma circunstâ ncia deve ser sujeito a trabalhos duros ou
obrigado a transportar equipamento pesado, em especial capacete de aço. Em caso de
ataque, deve ser imediatamente enviado para o hospital militar mais pró ximo.
Standortlazarett 40 Paris
Dr. Waxmund, Oberstabsarzt
264 SVEN HASSEL
- Nã o achas que é caso para dizer Heil Hitler? -prosseguiu ele. Tu nã o és pírulas, pois nã o?
Se és, acho preferível ficares caladinho para nã o me fazeres concorrência.
Eu levo as cartas e recados aos outros malucos dos quartéis-generais e guarniçõ es, mas
esses andam em liberdade.
Quando quero ter férias, dou com o punho nas ventas de um oficial, apresento-lhe o meu
melhor sorriso e mostro-lhe
a minha licença. Eles entã o mandam-me para o hospital.
Quando te levantares, hei-de levar-te a visitar Franzenbad, Eger e Praga. Gostavas de saber
como vim parar a esta fá brica de saltos mortais?
- Pois com certeza!
Havia muitas semanas que eu nã o sorria. Mandara um telegrama a Bá rbara e ela, nã o só
viera, como havia pedido
a transferência para Franzenbad, para poder ficar junto de mim, mas nem por isso o meu
moral se recompusera.
Encontrava-me estoirado, desesperado! Bá rbara preocupava-se
muito comigo.
- Entã o abre bem os ouvidos, meu pombinho, e presta atençã o. A primeira vez que estoirei
o toutiço foi em França,
num vagã o de caminho de ferro. Caiu-me um tronco de á rvore em cheio na tó la. Fractura do
crâ nio, hospital, convalescença,
alta. Quinze dias depois, quando estava a ensinar um gajo a andar de moto, largo o guiador,
e pronto!
Um malandro qualquer tinha posto uma estacaria no sítio por onde eu queria passar! Fui
até à Lua de foguetã o e vim cair na pia de um bebedouro. A pia aguentou com o choque,
mas a minha tó la nã o! Fractura do crâ nio e uma clavícula em ziguezague. Hospital,
convalescença, alta.
Sem
certificado de cura. Passadas seis semanas repeti a graça.
Dessa vez foi contra um poste. Entã o disse de mim para mim: isto nã o pode continuar
assim. Nã o calculas, pá , como é difícil darem um tipo por doido, convencê-los, preto no
branco, que a gente tem uma aduela a menos.
Deve ser porque a maior parte dos bons soldados alemã es
tem vá rias aduelas a menos! Meu velho, disse para comigo,
tens de fazer um esforço! Até veres se a coisa pega! E
comecei por partir os cornos ao médico de serviço. Ele fazia
gosto no focinho, o idiota, e fartou-se de chorar! «Nã o gostaste?», disse-lhe eu. «Chamo-me
Ernst Stolpe.»
Nada!

O REGIMENTO DA MORTE 265


Depois, uma tarde, fui ter com a madre-superiora, uma virgem o mais engelhada possível,
com cinquenta anos pelo
menos, e disse-lhe: «Despe as calcinhas, Cleó patra.
Preciso
de te falar.» Também nã o deu resultado. Ao que parece, convenceu-se de que eu falava a
sério. Devia ter tomado os
seus desejos pela realidade! Bem, disse eu comigo, um verdadeiro soldado alemã o nunca se
dá por vencido! O
que
eu preciso é de um martelo. Arranjo-o e espero a ocasiã o.
E depois, um dia, entro no quarto do major. Cumprimento-o com toda a delicadeza e
admiro a sua instalaçã o particular.
Depois caio em êxtase diante do reló gio. Um reló gio bestial,
de ouro, uma jó ia. Perguntei-lhe se era só lido. Ele nã o respondeu.
Estava todo tolo com os galõ es de major. Deitei-lhe uma olhadela, saquei do martelo e,
pumba!, dei com ele na
cebola! «Já vês que nã o era só lido», disse eu. Limpei o martelo, enquanto ele se pendurava
no cordã o da campainha.
«Era sucata», disse-lhe eu. E atirei-lhe dez Pfennings, aconselhando-o
a comprar um bilhete da lotaria. Ele amotina meio hospital, enquanto eu me ponho ao
fresco sem ninguém
dar por isso, desço à cozinha e sorrio para toda a gente.
«Vocês estã o aqui a morrer de calor, raparigas. Vou abrir-vos uma janela.» Torno a puxar
do martelo e parto oito vidros. «Agora está melhor», digo eu. «Já temos ar fresco.»
E, dito isto, enfio as minhas peú gas, três lenços e um esfregã o
na panela da sopa, dizendo: «Nã o se importam de me lavar esta roupa enquanto fazem a
barrela?» E entã o acabaram
por me dar a tal licença de fazer maluqueiras...
Nunca pude averiguar em que proporçõ es exactas Stolpe era realmente louco; mas a sua
apreciaçã o do ú til e do agradá vel nada tinha de anormal e Bá rbara sentia-se imensamente
feliz por ele me ter tomado à sua conta e reanimado com as suas ideias mirabolantes, que
geralmente terminavam
com o roubo de uma garrafa de á lcool medicinal na enfermaria.
Quando me deixaram levantar, deram-me uma cadeira de rodas, pois encontrava-me ainda
meio paralítico, e Stolpe sentia grande prazer em me conduzir por todo o lado. Isto
tornava-se extremamente prá tico, sobretudo quando íamos ao teatro ou a qualquer lugar
onde havia bicha. Stolpe empurrava-me directamente para dentro da
266 SVEN HASSEL
sala e depois sentava-se tranquilamente ao meu lado, pois a cadeira tinha lugar para dois.
Passá vamos assim horas divertidíssimas a fazer-nos empurrar
por um palerma qualquer nas ruas elegantes de Eger ou de Praga, sentados lado a lado e
recebendo com um sorriso o olhar de compaixã o das belas damas. Uma noite fomos
convidados para uma festa muito chique a que assistiam alguns velhos oficiais da
guarniçã o, alemã es e eslovacos. Tanto eles como as damas de Praga ficaram comovidos até
à s lá grimas com o espectá culo deste caçador
de farda verde-acinzentada, com a sua edelweiss no chapéu,
e daquele homem dos tanques de uniforme preto, com a boina garridamente inclinada
sobre a orelha, ambos fraternalmente
instalados na mesma cadeira de rodas. Nã o havia nada que eles nã o estivessem prontos a
fazer por nó s e nã o tardou que tivéssemos os bolsos a abarrotar de doces de toda a espécie,
que em seguida distribuímos pelos outros
tipos do hospital. Quiseram mesmo fotografar-nos para ficarem com uma recordaçã o
«daquela vez em que tinham visto um soldado dos tanques e um caçador reunidos na
mesma cadeira de rodas».
Infelizmente, duas caridosas matronas surpreenderam-nos um dia em que participá vamos
numa corrida de cadeiras de rodas. Dessa vez Stolpe nã o ia sentado ao meu lado, mas sim a
empurrar a cadeira, numa rua deserta, com a má xima velocidade de que era capaz. Depois
deste
infeliz encontro nunca mais nos convidaram para nenhuma recepçã o.
Quando precisá vamos de dinheiro e distracçõ es, Stolpe telefonava à sua amiguinha, esposa
de um SS-Standartenfiirher de Nuremberga.
A primeira vez que lhe fez um telefonema destes na minha presença atraiu a atençã o de
toda a gente que se encontrava na sala dos correios: - Está s lá , minha velha boneca de luxo ?
Como passa o outro idiota? Está em casa? Nã o? Ficou bloqueado na Rú ssia? Ainda bem!
Escuta, minha velha, aprendi uma posiçã o
nova, por isso, se está s interessada, fazes bem em vir já , antes que eu a experimente com
outra gaja! Mas nã o te entusiasmes antes de tempo! A posiçã o é tudo o que há

O REGIMENTO DA MORTE 267


de mais fatigante; por isso, se nã o tens aí nada de retemperador
para manducarmos, é melhor nã o te incomodares.
E sobretudo guarda para ti essa porcaria do vinho do Porto. Eu sempre te disse que o outro
parvo se deixara levar! Nunca mais me dês vinho do Porto antes de teres acabado com
esse... Bem, ainda tenho mais que dizer, mas
nã o posso ficar para aqui a falaçar toda a tarde. Espero-te à s duas e trinta e dois. Trinta e
dois, o mesmo nú mero das posiçõ es!
E, depois disto, deixou ficar o auscultador pendurado na ponta do fio, de maneira que
continuava a ouvir-se uma voz a rir e a protestar sozinha na cabina aberta, enquanto
nó s nos dirigíamos já para a saída. Todos se ficaram a rir à socapa na sala dos correios.
Stolpe foi para a bicha , em frente de um dos guichets e comprou um selo, que, à ! saída,
colou na testa de um polícia. Este abanou a cabeça
com ar indulgente e levou o caso a rir.
Com grande surpresa minha, a mulher do Standartenfiihrer
chegou efectivamente à s 2.32, ajoujada com um carregamento, de víveres comprados no
mercado negro.
Ernst passou algumas horas com ela num quarto de hotel e em seguida recambiou-a para
Nuremberga, pretextando que nã o podia demorar-se mais. Depois da sua partida toda
a enfermaria apanhou uma bebedeira com os vinhos e outras bebidas que ela trouxera.
Stolpe um dia desapareceu do meu horizonte. Tinham-no enviado para um estabelecimento
psiquiá trico especial.
Uma
semana depois recebi o seguinte postal: Fá brica de Saltos Mortais,
Nuremberga, 18 de Abril de 1944
Meu caro Sven:
Em que merda me vim eu meter! É proibido fumar.
É proibido sair! Vou à retrete à s escondidas, pois tenho medo de que um destes dias me
digam que também é proibido lá ir. Até ontem à noite comi sempre debaixo
268 SVEN HASSEL
da cama, mas uma enfermeira explicou-me que nã o era proibido trincar. Todas as portas
estã o fechadas, excepto a das retretes, que fica toda escancarada. Há varõ es de ferro em
todas as janelas, mas nã o sei se será para nos impedir de fugir ou para nos proteger dos
ataques exteriores.
Saú de e fraternidade
Ernst, o Maluco

- Querida!
--Querido! Oh!, que bom voltarmos a estar juntos., Sven! Fizeste-me tanta falta...
- E tu também, Bá rbara, me fizeste muita falta. Deixa ver a mala. Tenho ali um carro à
espera. Tens fome?
- Se tenho fome? Já vais ver.,.
Depois da refeiçã o acompanhei-a ao hotel, onde tomou banho e repousou meia hora das
fadigas desta nova viagem.
Caso curioso: nã o nos aproveitá mos da solidã o para cair nos braços um do outro. Sentíamo-
nos bem assim, tã o senhores de nó s, e tínhamos tantas coisas a dizer... O resto podia
esperar. Jantá mos em Potsdam antes de irmos passear, de mã os dadas, sobre o relvado do
Parque Sans-Souci.
Novo raid maciço trovejava sobre Berlim. Bá rbara apertou-se nervosamente de encontro a
mim enquanto observa—
vamos as chamas e o fumo a subirem de Neukõ ln. Os bombardeiros sobrevoavam a cidade
em vagas sucessivas,
enquanto despejavam a carga.
De sú bito um silvo prolongado... Num gesto rá pido, atirei Bá rbara por terra e deitei-me
junto dela. Outra bomba aproximava-se, rugindo. Tomada de pâ nico, Barbara ergueu-se
dum salto e correu pela estrada fora a gritar.
Pus-me de pé e precipitei-me atrá s dela: - Bá rbara! Bá rbara! Deita-te de bruços, Bá rbara!...
»!
Outro silvos fizeram-me mergulhar na valeta. Apanhei com uma saraivada de terra e
levantei-me com esforço ao
fim de alguns segundos. Bá rbara havia desaparecido.
Encontrei-a a 200 metros, deitada num mar de sangue.
Eu nã o via nem sentia nada. Nã o ouvi as sirenes a darem o fim do alarme. Parou um carro.
Um homem fardado arrastou-me. Envolveram o corpo de Bá rbara num cobertor...
270 SVEN HASSEL
Despiram-me. Um médico disse «choque». Uma mã o apalpou-me o pulso da mesma
maneira suave e competente
como o fazia Bá rbara... Bá rbara, que eles me haviam morto.
COMANDANTE DE COMPANHIA
Fui reunir-me ao meu regimento com a patente de Oberleutnant e as funçõ es de
comandante da minha velha companhia. Von Barring fora promovido a Oberstleutnant e
comandava o batalhã o. Nã o restava, da antiga ninhada, senã o von Barring, Hinka, o Velho e
eu. O Velho era agora Oberfeldtvebel.
Por uma manhã cinzenta e fria, uma triste manhã de chuva, o Velho e eu regressá vamos da
frente.
Aproximá mo-nos
da nossa aldeia, seguindo a linha do caminho de ferro, íamos a chegar à estaçã o provisó ria,
onde se encontrava
um enorme depó sito de muniçõ es, quando se ouviu nos arredores um assobio bem
conhecido. O Velho deu-me um encontrã o que me atirou para a valeta de cabeça para baixo
e estendeu-se ao pé de mim com um só pulo.
Durante meia hora foi um daqueles fins do mundo a que já está vamos habituados. As
explosõ es sucediam-se em
cadência rá pida, num ribombar de trovã o, num concerto inconcebível de rugidos, silvos e
deflagraçõ es titâ nicas.
Chamas altíssimas de uma brancura ofuscante estalavam nos ares como fitas de chicote. As
caixas dos obuses explodiam
a meio da sua trajectó ria, espalhando o recheio em todas as direcçõ es. Duas carruagens de
caminho de ferro levantaram voo e foram cair a 150 metros do ponto de partida, no meio
das terras lavradas. O esqueleto inteiro de um pesado vagã o de mercadorias furou o tecto
de um armazém e aterrou perto de nó s. Duas altas chaminés de uma oficina desabaram.
Uma delas pareceu quebrar-se ao
mesmo tempo em vá rios sítios. A outra tombou lentamente,
numa só peça, e desapareceu atrá s de uma enorme nuvem
de fumo. De todas as casas situadas num raio vastíssimo em torno da estaçã o nã o ficou
pedra sobre pedra.

O REGIMENTO DA MORTE 271


O silêncio que se seguiu a este apocalipse tinha qualquer coisa de macabro e inverosímil.
Sacudi-me, espreguicei-me, saí do fosso e olhei em volta.
- Vamos embora, Velho? Escapá mos de mais esta, hem?
Nã o obtive resposta.
Ele ficara com as duas pernas quebradas e o quadril esquerdo, assim como o ombro do
mesmo lado, estavam reduzidos a uma pasta.
Sentei-me no chã o, pousei-lhe a cabeça nos meus joelhos e limpei-lhe a testa com o meu
lenço -de pescoço.
Depois murmurei-lhe:
- Velho! Eh, Velho! Achas que, se eu te levar, aguentas até ao centro médico?
Ele abriu os olhos.
- O Velho está liquidado, Sven. Fiquemos aqui e dá -me a mã o. Isto está por pouco. Acende-
me uma pirisca, se tiveres...
Acendi-lhe um cigarro e meti-lho entre os lá bios. Cada palavra que dizia causava-lhe
sofrimento.
- Quando tudo estiver acabado, escreves à mulher e aos garotos, hem, Sven? Tu já sabes o
truque: um balá sio na testa, nã o sofreu nada... Nã o custa muito, de resto. Só sinto as costas
arrepanhadas quando falo... Ficas com a minha faca e o meu velho cachimbo... O resto
manda-o para casa juntamente com as duas cartas que tenho na carteira...
Permaneceu um momento silencioso, de olhos fechados e o corpo sacudido por longos
esticõ es. Levei-lhe o cantil aos lá bios.
- Uma golada de Schnaps, Velho. Tenta beber uma golada...
Ele conseguiu engolir um pouco de á lcool e reabriu os olhos, murmurando num esforço: - O
mais triste é deixar-te assim sozinho... Espero que possas voltar um dia à quele pequeno
país onde te sentes tã o bem... contaste-me tantas coisas bonitas...
Quando tudo acabou, levei-o aos ombros, tropeçando e escorregando na lama, rilhando os
dentes e chorando como
uma criança, enquanto o suor me escorria pelas costas
272 SVEN HASSEL
abaixo e a minha respiraçã o sibilava e soluçava no fundo dos brô nquios.
Os russos olhavam-me estupefactos, enquanto eu pousava o meu camarada sobre a cama.
Voltei-me e aproximei-me de von Barring.
- Também este agora! -vociferou ele. Já nã o aguento mais...
Agarrou-me pelos ombros e berrou: - Eu dou em doido, Sven! Tenho a impressã o de que
sou um carniceiro todas as vezes que transmito uma ordem
de atacar!
Soluçando convulsivamente, atirou-se para uma cadeira meio partida e deixou cair a cabeça
em cima dos braços, estendidos pela mesa fora.
- Oh, Deus do Céu! Que isto acabe, que isto acabe de uma vez para sempre...
Em seguida encheu dois copos de vodka. Dois copos dos de á gua, até à s bordas. Pegou num
e estendeu-me o outro. Bebemos ambos de um trago. Encheu-os segunda vez, mas eu
travei-lhe o braço a meio caminho: - Erik - disse eu -, deixemos isto para depois de
havermos enterrado o Velho. Somos nó s que temos de fazer
isso, porque éramos seus amigos. No fim havemos de beber até cair, mas só no fim...
Arrancá mos a cruz gamada da bandeira e embrulhá mos nesta o corpo.
Enquanto aperto a jugular com a correia do capacete, passeio os olhos pela companhia, da
qual sou agora comandante.
Neste espaço, mesmo na minha frente, encontrava-se outrora o sargento-chefe Edel, vítima
de uma febre tifó ide apanhada na frente de batalha em 1943.
Atrá s dele via-se entã o o sargento Bielendorf, um tipo enorme, sempre de bom humor,
soterrado vivo com o resto
do 4.º pelotã o, na altura dos combates pela conquista da testa de ponte de Kouban.

O REGIMENTO DA MORTE 273


À direita do 2.º pelotã o achava-se o Velho, esmagado na antevéspera, no decurso do
bombardeamento de um comboio de muniçõ es.
Atrá s dele, o Stabsgefreiter Joseph Porta, que partira para o eterno repouso com o ventre
aberto por uma faca russa.
Junto dele, Polegarzinho, também desaparecido.
E Plutã o, decapitado por uma bomba na floresta de Rogilev.
Hugo Stege, sargento, queimado vivo e estripado no seu tanque.
Asmus Braun, sempre alegre; duas pernas e um braço levados pela explosã o de um obus,
em Fevereiro de 1942.
Bernhard Fleschmann, desaparecido na regiã o de Moscovo
depois de se haver evadido de um campo de prisioneiros de guerra...
Hans Beier, tenente da polícia, condenado por nã o ter querido servir nas SS; fora executado
por ter metido voluntariamente um pé debaixo de um tanque.
Junto ao 5.º pelotã o, o tenente Huber, de 19 anos, um verdadeiro camarada para os seus
homens. As duas pernas arrancadas em Abril de 1943, morto nos arames farpados depois
de uma longa agonia, durante a qual nã o parava de chamar pela irmã Hilda.
O canhoneiro Kurt Breiting, de 16 anos, morto nos horrores do Inferno depois de um obus
de fó sforo lhe ter rebentado na mã o, dentro do comboio blindado, em Junho de 1943.
O pequeno Wil y Pal as, sempre sorridente, morto na mesma altura.
Ernst Valkas, canhoneiro, cujos miolos espalhados me salpicaram a cara.
Oberleutnant von Sandra, estripado por um obus.
O tenente Bruno Hal er, de 35 anos, que saltou para fora de um tanque incendiado trazendo
nos braços o irmã o, o sargento Paul Hal er. Mortos ambos num sofrimento
atroz, com queimaduras de fó sforo. Enterrados de mã os dadas. Haviam passado juntos
pelos campos de concentraçã o
e pelos batalhõ es disciplinares de Adolfo Hitler; R. M. - 18
274 SVEN HASSEL
juntos repousavam também na terra gelada da estepe russa.
Ó Deus, se acaso existes, faz que este indescritível exército
de mortos desfile eternamente diante dos olhos dos marechais responsá veis! Faz que o
lú gubre arrastar dos pés destes soldados mortos nã o lhes deixe um momento de
paz! Obriga-os a olharem de frente estas centenas de olhos
acusadores! Que as mã es, as mulheres, as irmã s desfilem diante deles atirando-lhes
eternamente à cara a lista dos crimes que cometeram, eles e os seus oficiais do Estado-
Maior, que organizaram estes horríveis massacres para agradar a um pequeno burguês
sem talento, um pintor de portas semi-histérico...
Agora reparo, com um sobressalto, que o sargento-chefe me está a apresentar o relató rio.
Faço a continência e assumo o comando:
- 5.a companhia... Companhia... Om...bro arma!
Os movimentos destes homens mal treinados sã o de uma falta de jeito incrível. A maior
parte deles tiveram apenas seis semanas de «instruçã o acelerada».
--Companhia... Meia volta... à direita! Em frente...
marche!
Enterrando-se na lama até aos artelhos, duzentas peças de carne para canhã o partem
estrada fora, em direcçã o à s
posiçõ es que lhes indicaram.

O Obersleutnant von Barring e eu estamos tratando de nos embriagar à luz bruxuleante de


uma lamparina, no
abrigo da minha companhia.
Na nossa frente alinha-se uma bateria de garrafas de conhaque e de vodka, umas cheias,
outras vazias, outras ainda por encetar.
Os nervos de von Barring encontram-se de tal maneira -
à flor da pele que ele já nã o aguenta estar lú cido.
Quando
nã o se acha bêbado, dã o-lhe tamanhas fú rias que temos de
o amarrar para o impedir de se ferir ou de magoar alguém.
O ú nico meio de o manter mais ou menos tranquilo é beber
com ele. Hinka e eu revezamo-nos nessa tarefa, pois um só
nã o poderia aguentar-lhe o ritmo. Embora permanentemente
em estado de embriaguez quase comatosa, parece normal
e raciocina com coerência:
- Sven, a canalhice disto ultrapassa todos os limites...
Enche uma caneca de vodka e esvazia-a como se se tratasse de uma caneca de cerveja.
- Quando uma pessoa pensa em tudo o que estes malandrins do Adolfo e do Gö ebbels nos
meteram na cabeça,
parece incrível! Estaremos a sonhar ou é possível que uma
naçã o inteira engula e digira tantas mentiras e contradi-
çõ es? Que se passa connosco, alemã es? Sabemos que vamos
todos direitos para o Inferno e sempre o soubemos! Teremos nó s vontade de nos suicidar?
Poderemos acaso ser tã o
estú pidos como parecemos? Tã o cegos e sequiosos de poder? Tã o pulhas? Creio que
estamos todos doidos... i Cá por mim, sei que o estou, e já nã o é de hoje...
VON BARRING
- Recordas-te de quando Adolfo Hitler berrava na rá dio: «Se eu quero conquistar
Estalinegrado, nã o é porque
o nome me agrade, mas por ser necessá rio que este impor-
276 SVEN HASSEL
tante centro do trá fico fluvial soviético seja arrebatado ao inimigo, e tomarei Estalinegrado
quando achar o momento oportuno!» E, volvidas semanas, apó s a captura do sexto exército,
novos urros daquele montinho de esterco, acompanhados
pelas aclamaçõ es histéricas daqueles cretinos dos membros do partido: «Quando verifiquei
a inutilidade de tomar Estalinegrado, que nenhum interesse tem para a vitó ria final das
nossas tropas, dei ordem para uma retirada
temporá ria!» As pessoas responderam com uma ovaçã o a este discurso. Mas cento e oitenta
mil homens nã o
puderam ser retirados de Estalinegrado! Mesmo temporariamente!
Cento e oitenta mil homens aniquilados na batalha para a conquista de Estalinegrado, a
cidade «sem interesse»...
- Sim - repliquei. - Nó s vemos claramente o logro.
Mas que pode fazer um regimento disciplinar contra sessenta
ou setenta milhõ es de papagaios palradores que nada vêem
porque nada querem ver? Antes morrer que perder a guerra, é o que eles dizem hoje,
depois da guerra já perdida...
O que pensam é: «Antes deixar morrer os outros todos que perder as nossas preciosas
existências.» Ouvi uma mulher afirmar em Berlim que, mesmo que nã o restasse senã o um
regimento na frente de batalha, a Alemanha
ganharia sempre, no caso de esse regimento ser o das SS-Leibstandarte!
- As mulheres sã o piores ainda - resmungou von Barring. Deus nos livre de mulheres
faná ticas! Mas que vã o todos para o Diabo! Hitler perdeu a guerra, é um facto. Mas acaso
veremos nó s, tu ou eu, o dia glorioso do aniquilamento? Isso é outro assunto! Vai ser a
nossa vez de dar cartas. Tem piada viver na esperança de ver tudo desmoronar-se o mais
depressa possível! Bebamos, Sven, só isso nos resta...
- Bebamos ao nosso pró ximo encontro com uma pequena gira. Mesmo faná tica! Desde que
ela saiba fazer uso do seu fanatismo...
- Sim, quando estã o estendidas de costas, sã o todas o mesmo. Se ao menos fossem capazes
de falar de qualquer
coisa... Mas nunca aprenderam nada a nã o ser deitar-se e

O REGIMENTO DA MORTE 277


dizer amém a tudo quanto lhes sugerimos. Já encontraste alguma vez uma mulher com
opiniõ es pessoais?
A campainha do telefone de campanha interrompeu-nos.
Era a anunciarem-me que ia ser mandado a Lwow para receber quarenta preciosos carros
de assalto; talvez os ú ltimos que o exército conseguiria reunir!
Essa viagem a Lwow, porém, teve de ser adiada, porque os Russos escolheram essa altura
para passarem à contra-ofensiva
e massacraram-nos sem descanso durante toda a semana seguinte.
Um dia von Barring penetrou no meu abrigo em visita de inspecçã o. Quedou-se um
momento imó vel, a olhar em volta com um ar sucumbido.
Depois disse:
- Estou farto e mais do que farto!
E saiu dali como um possesso.
Tratei de correr na sua peugada. Ele tinha agarrado em foguetõ es de todas as cores e
deitava-os à toa, de forma
que os nossos artilheiros deviam estar em palpos de aranha.
Foi preciso dominá -lo, amarrá -lo e trazê-lo para dentro do abrigo. Gritava continuamente,
com uma voz rouca, trémula, de olhos fitos sempre em frente, arregalados de terror. Um
terror que só ele sentia, mas cuja intensidade todos nó s podíamos imaginar: - À s suas
ordens, majestade! Sua Alteza Hitler, ah, ah, ah, ah! O Obersleutnant von Barring, do
regimento da morte, apresenta-se ao serviço nos Infernos! O assassino von Barring
apresenta-se a sua majestade! Sua Alteza Hitler! Ah, ah, ah...!
Enterrei os dedos nos ouvidos para nã o escutar aquele riso. Mas, ao ver que ele estava a
ponto de provocar o pâ nico colectivo entre os ocupantes do abrigo, que o observavam
fascinados, fiz apelo a toda a minha coragem e atirei-me a ele.
Só ficá mos dois dali em diante. Hinka e eu. Von Barring, tã o jovem, tã o funcionalmente bom
que nos havia apoiado outrora contra o malandro do Meier, acabava de ceder à tensã o, à
pressã o permanente.
Passado algum tempo, no decurso de uma rá pida viagem exigida pelo serviço, Hinka e eu
pará mos em Giessen,
278 SVEN HASSEL
com o objectivo de darmos uma saltada até ao hospital para onde von Barring fora
transferido.
Amarrado à cama, sorria estupidamente e nã o nos reconheceu.
Escorria-lhe saliva do queixo, e mesmo para nó s, seus amigos, o espectá culo se tornava
repugnante.
Esta visita abalara-nos por tal forma que, de regresso ao comboio, ficá mos um tempo
infinito sem abrir a boca.
Hinka, finalmente, soltou uma risada nervosa... nã o, antes desesperada... e declarou:
- Nã o estamos ainda tã o endurecidos como julgá vamos, hem, Sven?
Suspirei.
- Nã o... aquilo era horrível!
- Se isto acontecer a um de nó s dois, nã o achas que nos devíamos prometer mutuamente
tomar em relaçã o ao outro a decisã o conveniente?
Selá mos este pacto com um enérgico aperto de mã o.

Ediçã o n.º 3/53/1143


Este livro foi composto e impresso na Sociedade Astó ria, Lda., para Publicaçõ es Europa-
América, Lda., e concluiu-se em Maio de 1963
Esta colecçã o tem leitores ”habituais, digamos mesmo: leitores fiéis. Entende o editor que
deve corresponder a esse interesse. Em homenagem aos leitores que acompanham
esta colecçã o com singular preferência, estabelecem-se modalidades especiais de
assinatura.
Se estiver interessado nesta modalidade, peça o folheto elucidativo, num simples postal,
dirigido ao editor, Publicaçõ es Europa-América, Lda., Rua das Flores, 45, 2.º. Lisboa - 2.

Badana da contra-capa
A GUERRA !E A LITERATURA
A guerra tem sido um fecundo tema de inspiraçã o romanesca, sobretudo depois da
conflagraçã o mundial de 1914-18. Na convicçã o de cumprir um dever ao divulgar o que de
melhor se tem escrito nos ú ltimos tempos sobre o fla·
. gelo da guerra e certas das suas · consequências pró ximas, Publica-
çõ es Europa-América conta nas suas colecçõ es com algumas das mais notá veis obras em:
que o tema foi abordado com coragem e independência.
Erich Maria Remarque
A CENTELHA DA VIDA 40$00
DESENRAIZADOS 40$00
TEMPO PARA AMAR TEMPO PARA MORRER 40$00
A OESTE NADA DE Novo 30$00
Hans Hellmut Kirst
FÁ BRICA DE OFICIAIS 68$00
Robert Merle
A MORTE É o MEU OFÍCIO 35$00.
André Schwarz-Bart
O Ú LTIMO JUSTO 40$00
Leon Uris
EXODUS 78$00
MILA 18 68$00
Manfred Gregor
A PONTE 30$00
R K. H. Poppe
A GUERRA DAS BANANAS 35$00
Elio Vittoríni
Os HOMENS E OS OUTROS 15$00
Lord Russel of Liverpool
O FLAGELO DA SUÁ STICA 35$00

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