Você está na página 1de 3

Carlos Bonfim

CÓRREGO das ANTAS

Fazia quase uma década dos embates diretos entre milicos e grupos guerrilheiros,
sobretudo no Rio de Janeiro e São Paulo. Deste modo, naturalmente tínhamos sempre
a impressão de tudo acontecer muito distante de nós.
Mas, certo dia, sentimos a escalada da violência aumentar de repente na nossa
cidade. A linha da tensão começou a subir na primeira semana de abril daquele ano,
quando agentes internos do Destacamento de Operações e Informações, participaram
ao comandante do Batalhão de Infantaria, sobre a “presença no município de cinco
subversivos, bem treinados na arte da guerrilha, remanescentes de um grupo armado
de São Paulo”. Os milicos propositadamente espalharam a notícia, deixando a cidade
em pavorosa.
Nas semanas seguintes, num piscar de olhos, todos nós, civis, viramos suspeitos,
inimigos internos: houve buscas e apreensões, interrogatórios, inquéritos, prisões, tendo
por alvo várias famílias da cidade. Até os pacatos filhos de Dona Marcelina, fazedores
de telhas e tijolos, e os filhos juvenis do Antônio Eva, coroinhas da igreja matriz, foram
apreendidos e espancados. Sem falar do Gringo, morador de rua, imitante do Elvis
Presley nas calçadas do comércio, surrado a coronhadas de fuzil em plena luz do dia,
pelos milicos, por ter ele, uma vez, declamado o “Brasil vai bem, mas o povo vai mal”.
Impossível não sentir que nossas liberdades civis e a nossa segurança individual
estavam sendo pisoteadas, em nome de uma suposta “ameaça à segurança nacional”.
Passados duas semanas, numa noite de segunda para terça, os milicos tocavam o
terror na cidade. Eram cinco de maio. Chovia forte. Ficamos trancafiados em nossas
residências, apreensivos, submersos num silêncio ruidoso, quebrado, vez outra, por
latidos de cães, vozes esgaçadas e, no início da madrugada, por seguidos disparos de
fuzis, vindos do subúrbio. Por fim, os sons esvaeceram através da chuva, cujas águas
Carlos Bonfim

com odor de ácido fênico arrastavam microsseres pelos esgotos subterrâneos, até ao
Córrego das Antas.
Descobriu-se que naquela aterrorizante noite, na Vila Jaiara um jovem chamado
Miguel agonizava banhado no próprio sangue, num cômodo entre objetos revirados,
ossos e músculos das pernas expostos, lesões abertas de bala no abdômen. No absoluto
breu, ele passou o restante da madrugada em tresvario, murmurando nomes dos
companheiros, segundo ele, assassinados durante intensas sessões de tortura, por uma
equipe de milicos do Destacamento de Operações e Informações. Os paramédicos que
o resgataram falavam que o jovem não sobreviveria.
Um agente atuante na época, hoje militar da reserva, contornou-nos que no dia
seguinte desses eventos, no Batalhão de Infantaria, no extremo Oeste da cidade, a
alvorada esguichava ares de enxofre. Na saleta da Segunda Seção, o capitão Borges,
notório em abater os opositores políticos do regime, arrancando-lhes rins e corações,
rosnava triunfante, informando aos superiores: “Desmantelamos a nesga da última
célula de comunistas guerrilheiros: eram cinco subversores, e desinfetamos quatro”. E
antes que perguntassem, ele concluiu, explicando: “Acatando ordens do comandante,
deixamos um sobreviver, se o energúmeno tivesse sorte”.
Aquele mesmo agente confessou-nos que noutro dia alto da madrugada, no lugar
onde o córrego vira Rio das Antas, sob um nevoeiro disperso, ribeirinhos avistaram
quatro macrosseres boiando inchados entre dejetos domésticos, todos de mãos atadas
pelas costas, marcas de furos de tiros na nuca, sinais de rins e corações arrancados.
Antes de mais curiosos se aproximassem, os cadáveres foram recolhidos às pressas,
por uma equipe de milicos de quepes brancos. Desapareceram com os corpos.
Na época, sabíamos que no Batalhão de Infantaria, capitão Borges se alimentava
da popularidade entre os pares pela truculência com os subalternos, e na cidade, pelo
estilo grosseiro de sempre recorrer aos berros para os civis que o olhassem enviesado.
Durante as semanas seguintes após aqueles eventos, correu notícia de o capitão Borges
ter sido condecorado pela regional do Centro de Operações e Defesa Interna, com a
medalha General Sampaio. Duas semanas e dois dias depois, de medalha no peito, o
capitão regressava à cidade. Ao desembarcar às dezessete horas na estação ferroviária,
clima de aparente calmaria, o rompante e impetuoso capitão Borges foi surpreendido,
com cirúrgicos golpes de faca, o coração jogado na plataforma, os rins e testículos nos
trilhos, mediante rapidíssima ação de um ente incógnito, surgido e desaparecido na
multidão feito fantasma. Até hoje, sem identificarem o assassino nem o mandante, as
autoridades não desvendaram as circunstâncias do crime.

2
Carlos Bonfim

Miguel por milagre sobreviveu aos ferimentos da tortura. Porém, tocava a vida
conduzindo o corpo infértil, sulcado de cicatrizes, alma marcada de lesões pruridas.
Convivia discreto, desconversando, evitando o assunto. Mas, decorridos muitos anos,
certa vez, numa reunião de jovens na biblioteca diocesana, revelou-nos da virada em
sua vida, quando assumiu os negócios das gráficas do avô paterno, após o falecimento
de seu pai, um general de brigada do exército. Isto nos tomou de surpresa, deixando-
nos curiosos.
Um dia resolvemos aparecer na Vila Jaiara. Então pelo fim da tarde conseguimos
a confiança de alguns residentes, que nos pedindo sigilo, contaram que Miguel jamais
deixou de visitar aquele local do Córrego das Antas, na mesma data: cinco de maio;
alguns juravam que sobre as águas nevoentas e impuras do córrego, nesse dia ele
jogava flores brancas e vermelhas; também falaram de juntos rezarem um Pai Nosso e
três Ave Maria, e nesse momento ouvir ele murmurar uma prece em meio a soluços,
citando os nomes Alberto, Catarina, Pedro, Wilton. Foram estas as únicas informações
colhidas dos moradores.
Mas, neste ano, ninguém notou Miguel aparecer no dia cinco de maio.
No início de abril, jornais noticiaram a morte de Miguel, o corpo achado na sala
de jantar da casa, ao lado de um periódico, estampando a manchete: “Quatro ossadas
encontradas em uma vala coletiva – cemitério clandestino criado à época da ditadura
militar”. Citava ainda que sobre a imagem ilustrativa da manchete, Miguel deixara
rabiscado, a lápis, as frases “Meus eternos Alberto, Catarina, Pedro, Wilton...Mamãe,
jogue minhas cinzas ao Córrego das Antas”.
Um jornal de circulação nacional, noticiou no passado Miguel integrar um grupo
armado, atuante contra a ditadura militar, cuja cúpula, na época, ironicamente fazia
parte o seu pai, um general de brigada do exército: “Agora, daquele combativo jovem
insurgente, restava só um cadáver, em avançado estado de decomposição, dobrado de
joelhos sobre as pernas, o crânio atravessado de tiro de pistola, a partir da boca”. E
concluía a reportagem: “Que dor profunda, que desespero secreto, que desventura do
coração empurra uma pessoa ao suicídio? ”
Hoje, segundo uma informação recém adquirida por nós, cujos jornais sequer
cogitaram, soubemos o verdadeiro motivo que levou Miguel atentar contra a própria
vida: não mais aturou carregar a culpa inextinguível, atormentando implacavelmente
sua existência já por dezenove anos, desde aquele cinco de maio: delatado os quatro
companheiros ao demoníaco torturador capitão Borges.

Você também pode gostar