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SILVEIRAS E A REVOLUÇÃO LIBERAL DE 1842

UMA NOVA VISÃO SOBRE A MORTE DO CAPITÃO MANOEL JOSÉ DA SILVEIRA

Marco Aurélio Alves Costa

Casa que pertenceu ao Capitão Manoel José da Silveira –


hoje, em ruínas, compõe o patrimônio da paróquia de Silveiras, SP.
O Capitão foi alvejado por tiros e morto logo
que saiu à porta de entrada dessa sua morada.
(fotografada pelo autor, em setembro de 2011)

Desde muito criança ouvi avós e uma bisavó contando sobre a saga de nossos antepassados
bandeirantes, sobre o fausto vivido à época em que a cafeicultura foi, no século XIX, a mola mestra da
economia do Brasil. A beleza dos saraus, as tradicionais festas religiosas, as dificuldades do dia-a-dia, as
disputas políticas, a grande tristeza da escravidão, os segredos de alcova, as duas revoluções sangrentas
que marcaram profundamente nossa família: a Liberal, de 1842, e a Constitucionalista, de 1932... Muitas
dessas histórias cercam-se de mistérios. O episódio de 1842, entretanto, é o que se apresenta, para mim,
revestido de maiores contradições, principalmente no que tange ao assassinato do Capitão Manoel José da
Silveira (1794/1842).
Como se sabe, no dia 3 de junho daquele ano em que os liberais rebelaram-se contra o governo
imperial, descontentes com o fato de perderem o controle do poder para os rivais do Partido Conservador, o
chefe desta facção em Silveiras, sitiado em sua casa assobradada, em estilo colonial (infelizmente em
ruínas hoje), “pouco depois do meio-dia, sendo inútil qualquer resistência”, resolveu entregar-se e, “quando
saía à rua, foi assassinado”. A partir desse momento, os liberais dominaram Silveiras por mais de um mês,
sendo derrotados pelas tropas legalistas comandadas pelo então Barão, depois Duque de Caxias, em 12 de
julho de 1842, tendo tombado sem vida, naquele fatídico dia, mais de 50 silveirenses na histórica “Batalha
das Trincheiras”.
O que mais escutamos e lemos por aí é que a morte do Capitão Manoel José da Silveira está ligada a
questões meramente políticas, ao fato de ele ter tomado posse do cargo de subdelegado, desafiando as
autoridades locais do partido adversário, o Liberal, que, à época, concentravam-se na vila de Lorena, à qual
pertencia a então freguesia dos Silveiras.
Lê-se muito que, em Silveiras, o Partido Liberal era comandado pelas famílias Ferreira Pinto, Abreu e
Felix de Castro, antagonizadas pelos Silveira, Cunha Bueno, Guedes de Siqueira, esteios do Partido
Conservador local.
De fato, o líder dos liberais silveirenses era o Tenente Anacleto Ferreira Pinto (1782-1857), sendo que o
Capitão Manoel José da Silveira, assim como o Tenente-Coronel Manoel Bueno de Siqueira (1778-1866 –
meu hexavô – então comandante da Guarda Nacional) chefiavam o Partido Conservador. Entretanto, a
“matemática” dessa história, como frequentemente descrita, não fecha para mim quando constato, em
vários documentos e publicações, que um dos assassinos do Capitão Silveira foi o Tenente Antonio Bueno
da Cunha (1818-1865), um legítimo conservador, filho do citado Tenente-Coronel Manoel Bueno de
Siqueira, portanto, meu pentavô.
O que explicaria o fato de alguém tirar a vida de um dos líderes do partido ao qual estava ligado? Graves
dissidências internas? Teria o Tenente Antonio Bueno da Cunha, de apenas 24 anos, num arroubo da
juventude, aproveitado da situação para eliminar o Capitão Silveira e trazer para si e para seu pai o controle
total do Partido Conservador?
Adicionemos a isso outros fatos que, ao que parece, não têm sido considerados pelos estudiosos do
tema até hoje. Eu, pelo menos, nunca li publicações a respeito. O Capitão Manoel José da Silveira e um de
seus assassinos, justamente o Tenente Antonio Bueno da Cunha, eram primos! A genealogia auxiliará a
história nesse ponto. Vejamos:
Manoel José da Silveira era filho de Francisco Antonio da Silva e Anna Maria da Silveira. Esta era filha
do português Antonio da Silveira Guimarães e de Maria da Motta de Jesus, considerada uma das
fundadoras do rancho dos Silveiras, que deu origem à atual cidade de mesmo nome. Pois bem, Maria da
Motta de Jesus era filha do Tenente-Coronel Balthazar do Rego Barbosa e de Bernarda Rodrigues do Prado
(descendentes do bandeirante Diogo Barbosa do Rego – falecido em Guaratinguetá, em 1661, bem como
do fidalgo Dom João do Prado – 1510-1597).
Agora vamos ao Tenente Antonio Bueno da Cunha, filho, como já se disse, do Tenente-Coronel Manoel
Bueno de Siqueira, este, filho de José do Rego de Siqueira, o qual vem a ser irmão, por parte de pai e mãe,
da mencionada Maria da Motta de Jesus (Genealogia Paulistana, Silva Leme, Título Raposos Góes, volume
III, filhos 4-5 e 4-6, página 76).
Demonstrado que vítima e um de seus assassinos, além de partidários políticos, eram primos (tinham os
mesmos bisavós), há um terceiro elemento que os vinculava: a mulher do Capitão Silveira era Dona
Margarida Bueno de Siqueira, filha de Francisco Guedes de Siqueira e de Maria Bueno de Lima, portanto,
prima de segundo grau daquele que tirou a vida de seu marido e, de acordo com a tradição de família,
recebeu seu perdão.
É conhecido um artigo do escritor silveirense Vicente Felix de Castro (1822-1878), que vivenciou a
Revolução Liberal de 1842, bem como a trágica cena da morte do Capitão Silveira, artigo datado de 1872 e
publicado, em 1878, no “Almanach Litterario de São Paulo”, páginas 168-171, em que o autor aponta traços
da personalidade daquele chefe político conservador como sendo “homem sem instrucção, quase um
analphabeto, inimizado em todo o município por causa do seu caracter iracundo, vingativo e intolerante”...
Ora, aqui, à primeira vista, poderíamos cogitar que Vicente Felix de Castro, um liberal, filho e irmão de
ferrenhos liberais, totalmente envolvidos na rebelião, tomara uma posição parcial, tendenciosa. Parece que
não...
Da análise de fatos, documentos e depoimentos de ancestrais, depreende-se que o Capitão Silveira não
só foi homem odiado por seus adversários políticos, como também por uma facção de correligionários, além
de alguns familiares seus!
Como bem pontua o historiador Dr. Carlos da Silveira, no prefácio que escreveu para a obra de Aluísio
de Almeida, intitulada “A Revolução Liberal de 1842” (Editora Livraria José Olympio, RJ, 1944), os autos de
processos a que foram sujeitos os próceres da revolta, bem como outros relativos aos processos dos crimes
comuns praticados na ocasião, perderam-se “num descaso verdadeiramente criminoso”. Com base em
vários ofícios da época, trocados entre as autoridades das localidades envolvidas e os superiores das
administrações da capital da província de São Paulo e da corte do Rio de Janeiro, conclui-se,
inegavelmente, que houve processos devidamente autuados. Assim como Dr. Carlos da Silveira,
embrenhei-me pelo Arquivo do Estado de São Paulo, Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, arquivos de
fóruns de comarcas como as de Lorena e Guaratinguetá, mas, infelizmente, também não encontrei tais
documentos. É possível deduzir que os autos relativos a Lorena e Silveiras foram, inicialmente,
processados em Guaratinguetá, pois, como ainda informa o citado historiador e genealogista silveirense, o
então juiz municipal e de órfãos e delegado de polícia de Guaratinguetá, Dr. Antonio Leme da Silva, por
ofício de 12 de agosto de 1842, comunicava ao presidente da província de São Paulo, Barão de Monte
Alegre, que o chefe de polícia do Rio de Janeiro avocara a si o processo que então corria naquela comarca
paulista contra muitos indiciados. Afinal, por decreto de 18 de julho de 1842, foram desligadas,
provisoriamente, da província de São Paulo, passando para a jurisdição do Rio de Janeiro, as seguintes
localidades: Cunha, Bananal, Areias, Queluz, Silveiras, Lorena e Guaratinguetá. Desses autos, o chefe de
polícia da província de São Paulo, Dr. José Augusto Gomes de Menezes, extraiu uma relação que indica os
nomes de todos os pronunciados por envolvimento na rebelião, lista esta que compõe seu ofício número
229, de 8 de agosto de 1843, a qual foi integralmente reproduzida por Dr. Carlos da Silveira no prefácio a
que me refiro, bem como em artigo que publicou na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, volume XX,
de fevereiro de 1936. Transcrevo aqui parte dessa relação referente aos pronunciados pela morte do
Capitão Manoel José da Silveira:

“...
Relação Nº 3
Dos Réus que se acham pronunciados por crimes comuns praticados pela ocasião da Rebelião e que
ainda não entraram em julgamento:
Pronunciados pela morte do Sub-delegado de Silveiras, Manoel José da Silveira:
1º Padre Manoel Felix de Oliveira
2º Anacleto Ferreira Pinto
3º Francisco Felix de Castro
4º José Virgínio (conhecido por Juca Baeta)
5º Clementino José Ferreira
6º Antonio José da Silveira (conhecido por Antonio Hilário)
7º João Pinto de Oliveira
8º José Maria da Cunha: cobrador de Manoel Cornélio dos Santos (RJ)
9º José Pinto (conhecido por José Pinto Singó)
10º João Barros de Oliveira (conhecido por João Bicudo de Oliveira Filho)
11º Manoel Ignácio da Conceição Monteiro
...

Relação Nº 4
Dos Réus pronunciados por crimes comuns praticados pela ocasião da Rebelião e que têm entrado
em julgamento, com declaração do resultado dele:
Pronunciados pela morte do Sub-delegado de Silveiras, Manoel José da Silveira
1º Antonio Bueno da Cunha – Absolvido pelo Júri e apelado “ex-officio”: preso nesta Cidade.
2º João Antonio da Silva |
3º Manoel Roque de Castro | – Absolvidos pelo Júri e apelados pelo Promotor: presos nesta Cidade.
4º João Bicudo de Oliveira |
5º Vicente Moreira da Costa |
6º João Ribeiro Correia Onça | – Absolvidos pelo Júri e soltos.
7º José Rodrigues Pontes |

Com base nesta lista, documento único e histórico, bem como pelo que pude apurar no Arquivo do
Estado de São Paulo (Ofícios de Silveiras – Ordem C01290 – anos de 1833/42 a 1852), os 11 pronunciados
na Relação nº 3 acima estiveram sempre foragidos, não tendo jamais sido presos.
Dos dezoito pronunciados pelo homicídio, estiveram detidos, no Rio de Janeiro, somente os réus de
números 1 a 7, da Relação nº 4 supra citada, tendo os números 5, 6 e 7 sido soltos em primeira sessão de
júri. É digno de nota que o Tenente Antonio Bueno da Cunha foi absolvido pelo júri e o promotor, Dr.
Antonio Faustino Cesar, não impetrou recurso contra ele. A apelação deu-se de ofício, ou seja, partiu do
próprio juízo de primeira instância, por observância legal.
É perceptível que as pessoas “graúdas” da terra foram sendo preservadas e poupadas, o quanto
possível, mantendo-se foragidas pelas matas e fazendas da região, acobertadas por cúmplices – como
denunciava o subdelegado José Carlos Epifânio da Silveira ao presidente da província, Conselheiro José
Carlos Pereira de Almeida Torres, Visconde de Macaé, por ofício de 21/01/1843 (Ofícios de Silveiras –
Ordem C01290 – anos 1833/42 a 1852 – A.E.S.P.):

“... o Alferes Francisco Lescura Banher conserva alguns criminosos em sua Fazenda,
comprometidos na rebelião, morte do finado subdelegado Manoel José da Silveira e crimes de
sedição, alguns d’estes criminosos como o Vigário Manoel Felix de Oliveira, Francisco Felix de
Castro, e outros, devendo ser infalivelmente capturados, athé quanto pelo apoio que lhes ministra o
dicto Alferes Lescura, chegão athé a vagarem pelas estradas, levando a pouco caso que fazem das
Autoridades a tal grau que o mesmo Vigário tem celebrado Missas em a Fazenda deste Lescura, com
assistencia de muitos de seos aggregados”...

Na resposta do presidente da província ao subdelegado de Silveiras é possível identificar quase um tom


de descaso:

“... Vossa Senhoria deve indicar a maneira de prender a estes criminosos”... (Ofício de 09/02/1843
– A.E.S.P. - Ordem C01290).

Quanto ao Tenente Anacleto Ferreira Pinto, pelo que se percebe da análise dos documentos da época,
parece que esteve foragido pela zona rural do Rio de Janeiro, deduzo que pelo município de Campo
Grande, onde tinha parentes.
Quando presos, vimos que tais “protegidos” eram absolvidos pelo júri local, sem recurso da promotoria.
O representante do Ministério Público, aliás, como visto, só apelou contra João Antonio da Silva, Manoel
Roque de Castro e João Bicudo de Oliveira, homens de condições sociais simples, sendo um destes
descendente de escravos. De fato, Manoel Roque de Castro, sapateiro, é também citado em documentos
como “Manoel de Tal, mulato” (ofício do subdelegado de Silveiras ao presidente da província, de 16/07/1843
– A.E.S.P. – Ordem C01290). Era alforriado, filho de escravos dos Felix de Castro, como também se
depreende da análise dos recenseamentos da época, daí ser indicado com este último sobrenome em
algumas ocasiões.
Ora, o Tenente Antonio Bueno da Cunha era oficial da Guarda Nacional, filho do Tenente-Coronel
Manoel Bueno de Siqueira, então comandante do 19º Batalhão de Infantaria de Silveiras. Vicente Moreira
da Costa, o 5º réu da Relação nº 4, era também oficial da mesma corporação militar, tendo sido da Guarda
de Honra do Imperador Dom Pedro I. O Professor José de Miranda Alves, meu avô, em seu livro “Silveiras:
história e tradição”, publicado em 1977, indicou, equivocadamente, como sendo tal pessoa, ou seja, Vicente
Moreira da Costa, o capataz responsável pela morte do Capitão Silveira. Mais tarde, quando identifiquei
esse engano, comentei com meu avô. Ele reconheceu e pediu que corrigíssemos essa questão tão logo
fosse possível. Providenciamos isso para a reedição de seu mencionado livro e, desde já, serve este artigo
como “errata” à página 47 daquela publicação de 1977.
Um nome, porém, que consta entre os pronunciados pela morte do Capitão Manoel José da Silveira,
chamou-me especial atenção. Trata-se do oitavo componente da Relação nº 4 supra citada, nome que só
menciono agora:

“8º Mariano José de Lima (conhecido por Mariano do Rego) – morreu na cadeia da Corte”.

Observa-se, aqui, que, apesar de pronunciado, este cidadão não passou, como os demais, por
julgamento. Mariano foi simplesmente capturado e morreu na prisão do Rio de Janeiro. Encontrei seu nome
relacionado entre os 160 alistados para a corporação da Guarda Nacional da freguesia dos Silveiras, para o
ano de 1836 (Ofícios de Silveira – A.E.S.P. – C01290). Localizei-o, também, num recenseamento de
Lorena, para o ano de 1835/36, referente à Freguesia dos Silveiras. Ele contava, então, “42 anos de idade,
era branco, livre, natural de Areias, cafeicultor, tinha capacidade para exercer qualquer cargo público, era
casado com Anna Maria de Vasconcellos, natural de Cunha, com quem tinha 5 filhos, possuindo 9 escravos
e fazenda no bairro da Bocaina” – terras vizinhas às do Tenente Anacleto Ferreira Pinto. Teria Mariano José
de Lima morrido de causa natural, maus tratos, ferimentos de batalha?
Quanto a Manoel Roque de Castro, seria ele o capataz mencionado pelo Professor José de Miranda
Alves em seu “Silveiras: história e tradição”? – fato este que ouviu dos antigos, como eu próprio dele escutei
e de minha bisavó Maria Francisca Bueno da Silva (1894-1987), bisneta no Tenente Antonio Bueno da
Cunha, um dos acusados pela morte do Capitão Silveira. Esta minha bisavó conheceu bem sua bisavó,
Dona Anna Rosa do Bonsucesso Quintanilha (1836-1902), viúva do Tenente Antonio Bueno da Cunha.

“Não conheci meu bisavô Antonio Bueno da Cunha, mas tive bastante contato com sua viúva,
minha bisavó Anna Rosa, avó materna de mamãe. Ela me contava muitas histórias sobre os antigos
e eu gostava de ouvir. Na época da revolução, a bisa Anna Rosa era uma menina, mas, depois,
casou-se com meu bisavô e conheceu de perto toda essa história horrorosa. Ela me disse que o
Capitão Manoel José da Silveira era um homem muito ruim, por isso teve um fim tão triste. Meu
bisavô, que não tinha juízo, atirou nele, ali na porta da Casa Paroquial, que, antes de ser doada à
Igreja, foi sua morada. Em seguida, a multidão partiu pra cima com foices e facões, destruindo o
corpo do pobre coitado. A cabeça foi arrancada fora e o corpo puxado, à cavalo, pelas ruas. Lá pelo
meio dos valentões estava um filho que o Capitão teve com uma negra. Meu bisavô era homem muito
bravo. Mocinho ainda, fez essa bobagem tamanha. Mamãe, que também era bem bravinha,
costumava dizer: ‘Sou brava mesmo, trago nas veias o sangue de meu avô Antonio Bueno da
Cunha’”!!! (depoimento de Dona Maria Francisca Bueno da Silva, colhido por mim, em 1985).

É inegável, conforme se depreende da análise de vasta documentação e bibliografia, que os primeiros


tiros que atingiram o Capitão Manoel José da Silveira partiram de um “grupo no qual se achavam, entre
outros, o Capitão Manoel Alves de Sene, Antonio Bueno da Cunha e Vicente Moreira da Costa” (Dr. Carlos
da Silveira – in prefácio ao livro ‘A Revolução Liberal de 1842’ de Aluísio de Almeida).
Encontrei interessante estudo do Dr. João Baptista de Moraes, intitulado “Revolução de 1842 –
Memória”, publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, “Typographia do Diário
Official”, volume XII, 1907, em que o autor, baseado nos depoimentos das testemunhas visuais do crime,
constantes do inquérito policial (portanto mais uma evidência de que houve autos de processo – hoje
desaparecidos), oferece-nos a seguinte versão (páginas 219 e 220):

“Ao chegar a porta, foi Silveira alvejado por António Bueno da Cunha que desfechou-lhe um tiro
— em seguida, o mesmo fizeram, Manoel Alves Senne e Vicente Moreira da Costa, sendo que o tiro
por este desfechado, escangalhou-lhe a cabeça – como depuseram muitas testemunhas
presenciaes.
Em seguida o morto foi atirado para o meio da rua. Um dos atacantes abriu-lhe o ventre, e depois
de arrastado, tiraram-Ihe a japona, mandaram atirar o corpo despedaçado ao campo da Fazenda,
tendo sido enterrado por seu filho Francisco Guedes, que verificou – que raro era o osso que não
estava partido.
Este acto bárbaro e demais factos referidos nesta memória foram extrahidos dos depoimentos de
Vicente Ferreira Pinto Pacheco, Manoel Gonçalves Gama, José Baptista Nogueira, Francisco
Barbosa Ortiz, Thomaz de Aquino Leme, Agostinho Corrêa Leme, Manoel Gomes, Faustino Xavier de
Moraes, Augusto M. Bueno de Castro, Bento José da Silva Barboza, Manoel José Marques, João
Galvão Franco, João Justiniano de Bittencourt, testemunhas no inquérito a que se procedeu perante
o Dr. Ignacio Manoel Álvares de Azevedo, chefe de Policia da Provincia do Rio de Janeiro, cuja
jurisdicção o governo estendeu às localidades paulistas limítrofes da província do Rio, que também
esteve prestes a ser conflagrada”.

Está claro, portanto, por este trecho do inquérito policial, que o primeiro tiro, aquele que instigou a
barbárie, partiu do Tenente Antonio Bueno da Cunha, primo da vítima e seu correligionário político. O
segundo disparo veio do Capitão Manoel Alves de Sene, um liberal, e o terceiro tiro, provavelmente o fatal,
foi desferido por Vicente Moreira da Costa, ex-guarda de honra de Dom Pedro I. Manoel Roque de Castro
deve ter participado somente das agressões que a multidão, então descontrolada, lançou sobre o corpo,
provavelmente já sem vida, do Capitão Silveira.
Como vimos, a tradição de família trouxe-nos a informação de que estava presente entre os assassinos
um filho do Capitão Silveira, gerado fora do casamento, que chegou a ser seu capataz. Tentativa de
amenizar o estigma de homicida que recaiu sobre a figura de nosso antepassado Tenente Antonio Bueno
da Cunha? O fato é que documentos também comprovam a participação de Manoel Roque de Castro, ou
“Manoel de Tal”, no homicídio. Seria Manoel Roque fruto de relação de Manoel José da Silveira com alguma
escrava dos Felix de Castro, seus inimigos políticos e pessoais, o que inflamaria ainda mais os ódios entre
as personagens envolvidas? Não há como afirmar isso. Trata-se de conjecturas, mas ficam aqui os indícios,
diante dos comentários, à boca miúda, dos antepassados, ainda que improcedentes ou inapropriados, mas
quase apoiados em documentos que encontrei no Arquivo do Estado de São Paulo – os ofícios e
recenseamentos da época aqui citados.
Chama a atenção, também, e aqui mais um ponto embasado na genealogia, que, além do Tenente
Antonio Bueno da Cunha, outro parente do Capitão Manoel José da Silveira está entre os pronunciados por
seu assassinato. Trata-se de Antonio José da Silveira (também conhecido por Antonio Hilário) – o réu
número 6 da Relação nº 3 – primo-irmão do Capitão Manoel José. Jamais li publicações apontando
expressamente o envolvimento de parentes tão próximos e partidários políticos do Capitão Manoel José da
Silveira em seu homicídio. Fica aqui uma nova perspectiva para os estudiosos do tema – para que
desenvolvam trabalhos mais bem elaborados que o meu.
Só sei que, dessa história toda, diante de documentos, publicações, depoimentos de antigos e
evidências, sou forçado a concordar plenamente com o grande jurista, historiador e sociólogo Doutor
Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), da Academia Brasileira de Letras, que chegou a afirmar que
“nada mais conservador que um liberal no poder. Nada mais liberal que um conservador na oposição”.
É de se concluir que a Revolução Liberal de 1842 muito pouco ou quase nada teve de idealismo político.
Tratou-se mais de uma disputa entre oligarquias pelo controle do poder, rusgas pessoais. No caso de
Silveiras, aliás, identificamos questões de ódio entre parentes, estando entre os criminosos dois primos da
vítima e, possivelmente, um filho seu.
Após a anistia concedida pelo Imperador Dom Pedro II, em 14 de março de 1844, os processos judiciais
foram extintos e todos os envolvidos na Revolução Liberal de 1842 e na morte do Capitão Manoel José da
Silveira prosseguiram com suas vidas, passando os mais ricos da terra a reocuparem cargos de relevo. Por
despacho de 14/03/1846, Tenente Anacleto Ferreira Pinto, o principal líder da rebelião, foi sagrado
Cavaleiro da Ordem de Cristo, elegendo-se deputado provincial por São Paulo (1846-1847). Antonio Bueno
da Cunha, em 1º/08/1844, já fora promovido a capitão da Guarda Nacional, assumindo posto de “1º
Comandante da Companhia da Estiva”, pois ocupara com “honradez e promptidão o cargo de 2º
Comandante” e, já na primeira eleição para vereadores da vila de Silveiras, ainda que não eleito, pois
venceram os liberais, obteve votos. Em 1843, o Padre Manoel Felix de Oliveira, também um dos principais
cabeças da revolta, foi reconduzido ao posto de vigário colado da paróquia de Silveiras. O Capitão Manoel
Alves de Sene, apontado por testemunhas como sendo um dos que atiraram no Capitão Silveira, jamais foi
pronunciado ou processado e, em 1844, passa a ocupar o cargo de sua vítima – subdelegado da vila de
Silveiras.
Nos anos imediatos que sucederam a rebelião, as disputas políticas entre liberais e conservadores
continuaram acirradas. Silveiras e Lorena eram verdadeiros barris de pólvora. Esta turbulência tornar-se-ia
mais amena somente a partir de 1853, com o chamado “Ministério da Conciliação”, em que essas duas
facções políticas passaram, por um período, a alternar-se pacificamente no poder, conduzidas por Honório
Hermeto Carneiro Leão, Marquês de Paraná (1801-1856), sob o olhar beneplácito de Dom Pedro II, que,
com isso, agradando as elites dominantes, consolidava-se em seu trono.

Marco Aurélio Alves Costa


Advogado em São Paulo
Formado pela Faculdade de Direito da USP (Largo São Francisco)
rpimarco@gmail.com

REFERÊNCIAS

Alves, José de Miranda – “Silveiras: história e tradição” – publicação particular de 1977.


Castro, Vicente Felix de – in artigo publicado no “Almanach Litterario de São Paulo”, páginas 168-171, ano
de 1878.
Leme, Luiz Gonzaga da Silva – “Genealogia Paulistana” – volume III.
Moraes, João Baptista de – “Revolução de 1842 – Memória” – estudo publicado na Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, volume XII, ano de 1907, Tipografia do Diário Oficial de São Paulo.
Silveira, Carlos da – in prefácio à obra “A Revolução Liberal de 1842”, de Aluísio de Almeida, Editora
Livraria José Olympio, RJ, 1944.
Vianna, Francisco José de Oliveira – “O Idealismo na Evolução Política do Império e da República” – O
Estado de São Paulo – 1922.
Arquivo Público do Estado de São Paulo – Ofícios de Silveiras – anos de 1833/42 a 1852, Ordem
C01290.
Arquivo Público do Estado de São Paulo – Maços de População – Areias, Lorena, Silveiras.
Alves, José de Miranda – depoimento.
Silva, Maria Francisca Bueno da – depoimento.

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