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Spirito Santo

VISSUNGO - KILOMBOLOKO

1 edição
Rio de Janeiro
2019

Armazém de Quinquilharias e Utopias


© Spirito Santo 2019 - Todos os direitos reservados

Espaço reservado para a Ficha catalográfica

Armazém de Quinquilharias e Utopias


armazemdequinquilharias@gmail.com
21 55 995561007
SUMÁRIO

Crônica do pré Vissungo 5
Zé Maria Nunes Pereira 9
Sararamiolo, o pré vissungo 13
Vissungo recém-nascido 17
Aniceto e Clementina, cadê vocês? 31
Dançando no UNO Center, Wien 35
Vissungo afro beat 39
O Vissungo seminal 41
Vissungo num Kilombo real 43
Na Lapa de Makemba 45
Chico Rei, o filme 47
KILOMBOLOKO​! 59
KILOMBOLOKO! full álbum 63
Vissungo - Kilomboloko

Crônica do pré Vissungo
E o ego do artista solo se desfaz
Eu, Spirito Santo, quem sabe talvez, sem querer, o pai
(ou a mãe) criador (a) do filho sem mãe (ou sem pai) é
que vos diz:
A cabeça lembra, vagamente que foi como a visão de um
portão de ferro rangendo e se abrindo, num dia de sol
forte: um primeiro passo do pós-prisão, o medo de olhar
para trás e virar estátua de sal. Bem isso: Olhar para trás,
sem óculos escuros, sem filtros solares? Nunca mais.
Dos anos trancafiado como preso político da Ditadura
Militar lembro apenas vagamente. Flashs esparsos, to-
dos sem som. Nessa saída de brisa quente na cara, cha-
pada no sol a bordo da traineira que me levava da Ilha
Grande para o continente, brilhava de ofuscar a decisão
de nunca mais cair em arapucas de militância política, eu
quase ex terrorista regenerado (quase fui assassinado!)
ainda aos 23 anos.
_”Eu era um artista, porra! Já fazia música, teatro, pinta-
va, desenhava! Por que não assumir isso?”
Antes da prisão em 10 de janeiro e 1969 um curtíssimo,
embora muito bem-sucedido início de carreira envolvia
importantes prêmios num festival estudantil da TV Glo-
bo, já um gigante da mídia no período. Cantor da melhor
performance, ganhei também o prêmio de melhor intér-
prete masculino, cantando com grande orquestra, com
arranjo do grande Lyrio Panicali, regida pelo “fera” Ma-
rio Tavares.

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Spirito Santo

O empresário – ou alguém que se dizia representante - do


Grupo Manifesto (Gracinha Leporace entre outros) me
dera um cartão de visitas querendo me convidar para um
tour a Europa e Estados Unidos. Quem foi não voltaria e
faria carreira (Gracinha virou cantora do Brasil 66, banda
do Sergio Mendes que estourou no mercado mundial)1
O que importa é que o festival foi em agosto de 1968. Em
janeiro de 1969 eu estava preso num quartel do exército
como subversivo. Não usufrui quase nada dos prêmios
citados na carta de O Globo:
“Prezado Antonio José.
Além dos prêmios em dinheiro, troféus e
medalha e bolsa da Cultura Inglesa, você
fica tendo o direito a dez dias no Hotel Pri-
mus, de São Lourenço, oferecidos pela dire-
ção daquele estabelecimento.
Parabéns pela sua vitória e pela vibração
que a sua composição, particularmente pro-
vocou no público.
Conte sempre com O Globo.
Cordialmente
Péricles de Barros
Chefe de Promoções

1 A tal viagem, segundo o Fernando Leporace, com quem esbarrei


numa estação de rádio já em 2018, na verdade jamais aconteceu

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Vissungo - Kilomboloko

A minha música, tirou em terceiro lugar e era a mais po-


pular (aconteceu até vaia para a decisão do júri, como
era de praxe na época).
Júri: Eumir Deodato, Milton Nascimento, Marcos Valle e
Eliseth Cardoso, dos que me lembro. Festival no sábado,
saí na capa de O Globo de domingo. Virei celebridade em
Padre Miguel, meu bairro querido.
Apareci vários dias nas páginas de O Globo em agosto
de 1968. Era um dos primeiros festivais estudantis tele-
visionados e aconteceu no teatro João Caetano. Antes
do festival como um potencial favorito, depois, premia-
do entre os melhores (minha querida amiga Irinéa Maria
Ribeiro ganhou o primeiro lugar.)
(Repito sempre a história triste)
Quatro meses depois fui preso pela ditadura como sub-
versivo terrorista num início de madrugada chuvosa em
Padre Miguel e amarguei cerca de 2 anos de cadeia, in-
clusive uma etapa na Ilha Grande, onde também esteve
preso no Estado Novo o Graciliano Ramos, minha única
honra de ter estado naquele lugar.
Um jornal popular da época estampou numa manchete
exagerada “Presos os chefes da subversão na Zona Ru-
ral2. Imagina! Eu era, rigorosamente um guerrilheiro ur-
bano “pé de chinelo”. uma vida clandestina, mas a vida
real me atropelou e seguiu.
Que bom sobreviver.

2 Nome da época da atual Zona Oeste do Rio.

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Spirito Santo

Não fui para as Oropa. Nem mesmo como asilado políti-


co. Só fui mesmo muitos anos depois, como uma espécie
de asilado cultural.
Minha turnê, depois da prisão do exército foi para uma
cadeia da Polícia Civil3, a prisão no quartel do 2º BIB em
São Cristóvão onde rolou alguma tortura, a cadeia da
Dops4 no Rio e a prisão de segurança máxima da Ilha
Grande, que não me interesso em descrever.
Os sinais posteriores de homem livre apontavam para
que eu me tornasse um cantor compositor emergente
como tantos que o mercado andava absorvendo no mo-
mento. Ia bem nesse caminho tocando num violão com
harmonias inusitadas (aprendidas um tanto no Curso do
Maestro Guerra Peixe, um tanto de conviver com o gran-
de Codó e seus filhos) músicas bem originais.
O apartamento na Glória (saíra batido do subúrbio, já
que besta, nesse ponto eu ainda não era) vivia cheio de
gente que ia nas festas que eu promovia, só para me ver
cantar. Um clima de emergência mesmo, de um artista
com um estilo considerado instigante, prestes de ser
convidado por uma gravadora dessas da vida e seguir em
frente. Mas não.
Livre da prisão em 1971, em vez de uma carreira solo, ten-
tada ainda por uns meses, optei por formar um grupo
que, nascido em 1973 como “Sararamiolo”, adotou em
1975 o nome definitivo de Vissungo. As ideias comunis-
tas, coletivistas que me impregnaram a pós-adolescên-
cia, contudo, haviam se entranhado em mim, para sem-
pre.
3 Em Senador Camará, subúrbio distante da Zona Oeste, onde caí nas
mãos do famigerado Delegado Haroldo de Matos, assassino de bandidos pés de
chinelo no “Esquadrão da Morte” recém transferido da delegacia conhecida como
“Invernada de Olaria”)
4 Delegacia da Ordem Política e Social desde o século 19 famosa central
de aprisionamento de terroristas, políticos de esquerda, na Rua da Relação

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Vissungo - Kilomboloko

Zé Maria Nunes Pereira


O ‘Tata’ branco do Vissungo
Não tenho na minha já velha memória nenhuma referên-
cia de , sábio condutor de vidas, maior que este mara-
nhense emotivo que soube dia desses que se foi. Nem
encontro palavras para descrever a perda irreparável
que a alma vívida e intensa dele fará no rol de minhas
memórias mais preciosas, na memória de todos que con-
viveram com ele.
Não vejo quase ninguém lhe dando este crédito mereci-
do (quem sabe talvez por julgá-lo um branco a mais) mas
no meu entender, ele é sim o principal instigador desta
refundação daquilo que, aglutinando grupos diversos
de negros, naqueles politizados, embora tensos anos da
ditadura militar, acabou gerando sólidas instituições, o
IPCN carioca e o MNU nacional, para citar apenas as mais
bem sucedidas, inspiração para a criação de dezenas de
outras instituições antirracistas, políticas, culturais e ar-
tísticas pelo Brasil afora.
…A raiz da minha história está na separação dos
meus pais, quando eu tinha seis anos. Se desqui-
taram, fiquei com meu pai e fomos morar, primei-
ro, numa república de portugueses, depois, papai
comprou um casarão enorme e fui criado por uma
família negra: Mãe Lúcia, as irmãs e os meus dois
irmãos de criação, que eram mais velhos e me pro-
tegiam.”

…”Fui um menino de bairro negro e de cais do


porto; das minhas janelas eu via o cais. E mãe Lúcia

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Spirito Santo

teve muita influência em mim. Ela sempre se preo-


cupava em dizer: “Você vai ser grande, branco.”

…Ela era da ‘Casa das Minas’, mas nunca me levou


para lá, escondia tudo o que era de culto. As nossas
velhas de antigamente queriam que a nossa gente
negra fosse criada no mundo dos brancos. Não era
por alienação, era para vencer. Eu é que fazia ao
contrário.

No início dos anos 1970, eu jovenzinho ainda, o conheci


na seção de Ipanema da Universidade Cândido Mendes.
Ali, pela modesta injunção dele, em tumultuados, quase
anárquicos encontros vespertinos, se urdia o que viria
ser o refundado Movimento Negro Brasileiro.
…Eu sempre fui um assimilado ao contrário, um sujeito
africanizado desde muito cedo. Foi uma influência que
pareceu depois esquecida, mas mais tarde veio a marcar
muito a minha vida...”.

(Parte de entrevista concedida entre 15 e 28 de dezem-


bro de 2006, no Rio de Janeiro, a Verena Alberti e Amíl-
car Araújo Pereira)

Mas ele será sempre reconhecido por todos pelo seu in-
cansável trabalho de intelectual militante pela descoloni-
zação e a libertação da África, ainda envolta em sangren-
tas guerras naquela época em que tive o enorme prazer
de conhecê-lo
Sem nenhuma dúvida, tudo que sou hoje, esta ligação
com a pesquisa da cultura do negro no Brasil, a escrita,
a música, tudo dessas mesmas coisas, o kissange e a ma-
rimba dos quais me tornei mestre fazedor e ensinador,

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Vissungo - Kilomboloko

o Vissungo, tudo que sou como intelectual orgânico,


compulsivo, veio em boa parte dele, uma espécie de pai
– “Tata” - do que me transformei:  José Maria Nunes Pe-
reira.5
A memória mais intensa que me vem dele, vivificada pela
tristeza de perdê-lo, é a de uma daquelas tardes de sába-
do num pequeno quarto do apartamento da Rua Dois de
Dezembro (bairro do Flamengo, no Rio) onde ele, , com
a intensa emoção que o caracterizava, abria mapas, to-
cava vinis, cedia cópias em fitas K7 (as quais guardo até
hoje) emprestava livros, nos iniciando, ele, o branco, nas
coisas da África negra – de Angola, principalmente - sua
grande paixão.
A cena é ele, o querido Zé Maria, no calor do quarto, às
lágrimas, cantando para nós, pobres negros, um poema
Agostinho Neto musicado por Rui Mingas, que deixo
aqui como tributo saudoso a esse branco que foi grande.
“Mãe Angola
(Adeus à hora da largada)

Minha mãe
tu me ensinaste a esperar
como esperaste paciente nas horas difíceis
Mas em mim, a vida matou esta mística espe-
rança
Eu não espero. Sou aquele por quem se esperar
5 José Maria Nunes Pereira Conceição foi um dos fundadores, em 1973,
do Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) da Faculdade Candido Mendes,
no Rio de Janeiro, uma instituição de referência para assuntos ligados à África e
suas relações com o Brasil. Nascido em São Luis do Maranhão (1937), estudou
em Portugal (1947-1962) te participou dos movimentos de libertação das colô-
nias portuguesas na África.

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Spirito Santo

A esperança somos nós os teus filhos


nascidos par uma fé que alimenta a vida

Nossas crianças nuas


nas senzalas mato
Os garotos sem escola
a jogar bolas de trapos

Nos areais ao meio dia


Nós mesmos, os contratados
a queimar a vida nos cafezais
Os homens negros, ignorantes
que devem respeitar o branco
e temer o rico.

Somos os teus filhos


dos bairros de pobres
conforme concebes
com vergonha de te chamarmos mãe
com medo de atravessar a rua
com medo dos homens
Somos nós a esperança
em busca da vida.”

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Vissungo - Kilomboloko

Sararamiolo, o pré vissungo


A glória efêmera dos embriões
1973. Aí, com vocês o embrião do Vissungo. Juntos como
todo grupo de músicos pouco mais que juvenis, quase
nada sabíamos do que faríamos da vida. A música, como
uma sereia boa, nos atraía, quase nos engolia. Uma his-
tória banal.
Do que me lembro, unia-nos eu, Spirito Santo e Carlos
Codó, o curso de teoria musical que mal fazíamos num
curso dirigido pelo Maestro Guerra Peixe. Identifico sau-
doso, que o nosso amor pela harmonia veio do velho gê-
nio Clodoaldo Brito, o Codó, como já foi dito, esquecido
mestre do violão de Gil, Caetano, Egberto, João Gilberto,
e tantos outros.
A extrema direita da foto, Antônio Codó, que iniciava
uma carreira solo. Lena Codó, à esquerda e o saudoso
Carlos Codó, ao lado do velho Codó, batucando. Tinham
a verve violonista do pai e isso nos deu este senso har-
mônico meio incomum na música mais popular da épo-
ca, com o Choro, rebuscada música da época anterior, já
se esvaindo.
Castro, o barbudo nunca foi um músico, mais exatamen-
te um poeta-músico, diria. Aldeoni, talentoso composi-
tor, não aderindo ao Vissungo, anos depois bandeou-se
para Londres, como violinista popular e nunca mais vol-
tou. Soube dele há pouco tempo atrás: Virou engenheiro
de som, algo assim e vive
bem em Londres, feliz. Ausente da foto por razões já es-
quecidas, havia também Lula do Espírito Santo.

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Spirito Santo

A carreira do Saramiôlo6 foi curtíssima. Que me lembre,


de importante um show de estreia no Teatro Casa Gran-
de, na zona sul do Rio e um outro no Teatro João Caeta-
no, junto com outros artistas. Nesse me lembro de ter-
mos sido, efusivamente elogiados num bar ao lado do
teatro por, Beto Guedes (irmão de Lô Borges), da turma
do “Clube da Esquina” do Milton Nascimento.
Do futuro Vissungo, que nasce dois anos depois, do ex-
tinto Sararamiôlo ficamos mesmo eu, Spirito Santo, es-
quálido, como era comum, ao centro da foto e, algum
tempo depois Leninha e Carlos Codó incorporados de-
pois no Vissungo. Muitas outras formações viriam, qua-
renta e tantos anos que temos, das quais, impávido, pre-
sente em todas as fases, tremulo apenas eu.

6 “Sararámiolo” (de “Sarará”/”Cerèrè”, etnia senegalesa) , expressã tor-


nada popular alguns anos depois por Sandra Sá numa música, é uma curiosa
expressão baiana, sugerida como nome da banda, diz respeito à crianças negras
com cabelos alourados pelo sal e pela subnutrição.

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Vissungo - Kilomboloko

Sararamiolo

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Vissungo - Kilomboloko

Vissungo recém-nascido
Música Brasileira Negra, MPB branca7
Em 1975, em plenos anos de chumbo, foi criado no Rio de
Janeiro o grupo musical batizado como Vissungo.
Em 1974, ainda sem nome definido, o grupo teve como
antecedentes o trabalho do trio formado por Spirito San-
to (composição, vocais, violão e percussão), seu irmão
Lula Espírito Santo (contrabaixo, vocais, bandolim, cava-
quinho e vocal) e Roosevelt da Silva (Violão).
É já desta fase a adoção do principal elemento da proposta
do grupo, aquele que o caracteriza definitivamente:
a pesquisa da cultura negra do Brasil, e a tentativa de
construir, a partir desta pesquisa, um conceito de música
negra brasileiro novo, moderno. Pura pretensão de
crioulos suburbanos a proposta tinha um jeito de para-
doxo: Como assim “construir um conceito de música ne-
gra “novo”... logo no Brasil? 8
Contada assim, sem nuances, parecia ser uma história,
absolutamente banal: Um grupo de jovens decide fazer
música em grupo e elege um estilo, inspirado no que lhes
parecia ser uma novidade curiosa, um nicho inusitado no
mercado.

7 Matéria, parcialmente escrita pelo autor em 2005 em comemoração aos


30 anos do Vissungo), atualizada para este livro que comemora agora, os mais de
40 anos.

8 Siga lendo, mas fique sabendo de antemão que a grande questão de


nossa história é termos assumido esta, aparentemente pretensiosa intenção.

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Spirito Santo

É que, praticamente não existia, algo que se pudesse


chamar de música negra moderna no mercado brasileiro.
Sério!
E olhem que estamos falando de uma época em que o
nosso mercado fonográfico vivia o mais surpreendente
surto de modernidade de sua história.
Era algo impensável, contraditório demais para aquela
época fulgurantemente musical. Incrível, mas, a formidá-
vel onda vanguardista da MPB dos anos 1970, por razões
até hoje pouco debatidas (sequer reconhecidas) não
chegava até a cozinha da tradicionalíssima música negra,
tornada contida, sutilmente retida pelo mercado como
espécie de ‘reserva técnica’ do folclore nacional.
A bem da verdade, podemos ver agora, havia sim uma
espécie de releitura da música de temática negra fei-
ta, contudo, estranhamente, apenas por compositores
brancos, de classe média, mais ou menos a mesma clas-
se de pessoas que urdira a “Bossa Nova” (na presunção
de “depurar” ou “modernizar” o Samba”) corrente as-
solada nessa época, anos 1970, por um racha ideológi-
co que, ousando de modo vanguardista falar ‘em nome
do povo’ (negros e nordestinos) compunha numa linha
épica - um tanto piegas diríamos - (como Chico Buarque e
Edu Lobo, por exemplo), ou de modo crítico, sarcástico,
como o “Tropicalismo” de Caetano Veloso e Gilberto Gil,
canções com veladas sugestões a uma utópica revolução
social que acabaria com a ditadura que já durava 10 anos.

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Vissungo - Kilomboloko

(Hora de frisar uma das nuances de nossa história que


seria crucial: Éramos negros de origem suburbana, há
pouco saídos de nossos bairros de maioria negra onde
questões como o racismo, por exemplo, não faziam tan-
to sentido, não nos incomodavam. Pios, crentes de que
seríamos no mundo “exterior” considerados gente co-
mum, com o direito de ocupar qualquer lugar que qui-
séssemos. Vivíamos, isto sim um ledo engano, logo des-
cobríamos)
Entenderam agora? Havia música negra no Brasil, sim,
claro! O mercado fonográfico nesse período, contudo,
de algum modo negava à esta música – melhor dizendo,
aos seus cultores reais9 - o direito de modernizar-se, re-
vestir-se de outras estéticas, como ocorria com a música
oriunda da África, do pós escravidão, nos EUA, onde gra-
vadoras do tipo Motow, por exemplo, na mesma linha
das precursoras que as antecederam, forjaram a explosi-
va e moderníssima “ Black Music” semente da mais bom-
bada Música Pop do planeta até hoje.
A questão morava então no campo das narrativas contro-
versas, tão comuns na história de nossa música popular.
Bastava olharmos, só de relance os episódios, imediata-
mente anteriores à década de 1970, que foram marcados
por um inusitado (e já citado aqui), ‘Movimento”, onda
de “modernização”, “depuramento” do Samba, mo-
vimento que, estranhamente era gestado em boates e

9 Para sermos mais exatos, os próprios praticantes dessa “música negra”


tradicional, de forma ingênua, também não se mostravam interessados em mo-
dernidade alguma. Talvez sofressem os resquícios da subalternidade da escravidão
ainda incutidos neles sob a forma de uma obediência cega, uma adoração ao pri-
mitivismo, tido como sendo “o lugar do negro”.

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Spirito Santo

apartamentos de Zona Sul do Rio, por músicos brancos,


de classe média que, em certo momento passaram a se
auto intitular criadores de um “novo” gênero musical
nacional, uma espécie de “inovação” ou internacionali-
zação do Samba, chamada “Bossa Nova”.
É muito estranho que a imprensa especializada da época
nunca tenha tido a sua atenção voltada para o fato dessa
“Bossa Nova”, no ato de sua invenção, numa época em
que haviam tantos músicos negros instalados na Zona
Sul do Rio, tocando em boates diversas, na faixa turística
entre Copacabana e Ipanema – notadamente os vários
músicos habitantes da favela da Praia do Pinto10 – não
tenha quase nenhum11 participante, com status reconhe-
cido de criador, que fosse negro.
‘Em 1969, os 7.000 moradores da Praia do Pinto
(favela localizada num terreno plano privilegiado,
bem no centro do bairro grã-fino do Leblon) recu-
saram-se, espontaneamente, a sair da favela e ser
transferidos. Durante aquela noite, um incêndio
“acidental” alastrou-se pela favela: apesar de mui-
tos moradores e vizinhos alarmados terem chama-
do os bombeiros, estes, evidentemente cumprindo
ordens, não apareceram. Pela manhã, quase tudo
tinha sido arrasado.

10 “A Praia do Pinto foi uma das mais conhecidas favelas de sua épo-
ca. Próxima à Lagoa Rodrigo de Freitas e ao Clube de Regatas do Flamengo,
surgiu no início da década de 1940, com o arrendamento do terreno da Chá-
cara do Céu, na Gávea. Com esse arrendamento, os moradores desse local
migraram para o núcleo que se tornaria a favela, que chegou a ser uma das
maiores do Rio de Janeiro. 
11 Nessa exceção, estamos nos referindo, diretamente á Johnny Alf,
por exemplo.

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Vissungo - Kilomboloko

Muitas famílias não conseguiram salvar nem seus


parcos haveres, e os líderes da “resistência pas-
siva” desapareceram completamente, deixando
suas famílias em desespero. No local, construíram-
-se prédios de apartamentos financiados pelos mi-
litares. [...]”

Fonte(s): PERLMAN, Janice. O mito da marginalida-


de. Favelas e política no Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976. 377 p.’

A estranha constatação se torna mais esquisita ainda


quando ficamos sabendo que nessa grande plêiade de
músicos negros a maioria era aficionada, tanto pelo jazz
quanto pelo Samba.
O fantástico, celebérrimo - e trágico - Wilson Simonal
foi o mais famoso músico oriundo da Favela da Praia do
Pinto, mas eles eram muitos. Monsueto Menezes por
exemplo, também ex-morador da mesma favela, acabou
ficando famoso mesmo como um sambista cômico, mais
lembrado como uma espécie de Mussum dos anos 1960,
apesar de ser um inspirado compositor de clássicos de
nossa música popular, tendo sido baterista em boates da
zona sul.)12
Como propor então - como alardeava por aí Tom Jobim,
entre outros – uma “modernização do Samba”, sem con-
siderar a participação de músicos...negros, tão moder-
nos quanto os brancos, os mesmos que tocavam e convi-
viam com esses mesmos brancos nas boates da zona sul?
Como se deu este filtro “racial” tão evidente?
12 Entre as composições de Monsueto Menezes, podemos destacar “A
Fonte secou”, “Mora na Filosofia”, “ Me deixa em paz”, entre muitas outras.

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Spirito Santo

Uma estranha seletividade, convenhamos que, entre ou-


tros fatores, acabou provocando na época, início e mea-
dos da década de 1960, uma verdadeira debandada de
músicos negros brasileiros para a Europa e os EUA, onde
alguns, como Moacir Santos, e o violonista Bola Preta
por exemplo, fizeram grande sucesso, exatamente com
um gênero ao qual o mercado estrangeiro deu o nome
de ... “Brazilian Jazz” 13.
A lista de músicos negros “modernistas” é profusa.
Podemos ressaltar, por exemplo o pianista Dom Salva-
dor e sua Banda Abolição (logo fixados no exterior) uma
proposta que se mostrou inaceitável para o mainstream
branco do período, justo numa época em que os “negros
abusados e pretensiosos” como o fulgurante Wilson Si-
monal, o maestro Erlon Chaves e o Trio Mocotó, fermen-
tavam algo de novo para o mercado, uma música assumi-
damente negra, que lançava o folclorismo compulsório,
submisso da música negra da época, às favas.
Teria sido, infelizmente a real “modernização” do Sam-
ba em franco progresso nessa época, abatida em pleno
vôo?
A contradição dos antecedentes

13 Bom refrescar a memória dos interessados com a informação de que


esta “modernização” da música negra tradicional, o Samba incluso, já havia
se dado mais de 40 anos antes, por Pixinguinha, Donga com seu Grupo “Oito
Batutas”, por meio da fusão desta música tradicional com elementos do Jazz norte
americano, a propósito também nascente, em fase de gestação. Há, poucos re-
pararam ainda, uma vocação atávica na música africana para a inovação e a
modernidade
(Este autor em “Do Samba ao Funk do Jorjão”, 2016. Incubadora Cultural/Sesc
Nacional)

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Vissungo - Kilomboloko

Música -africana inaugura as gravações de discos nos


EUA e no Brasil
“O fonógrafo foi anunciado por Edison em 21 de No-
vembro de 1877 e teve a sua primeira demonstração
pública em 29 de novembro do mesmo ano.[

O aparelho foi patenteado em 19 de feverei-


ro de 1878, mas é apenas quando Charles Tainter
e Alexander Graham Bell, em 1886, aperfeiçoam
o invento, mudando sua composição para pape-
lão coberto com cera que Edison resolve voltar a
trabalhar no invento criando um cilindro feito in-
teiramente à base de cera, mas violando a patente
de Bell.[1] Duas empresas distintas foram formadas
para explorar o cilindro e, no final da década, a co-
mercialização dos aparelhos (o fonógrafo de Edi-
son e o gramofone de Bell) e de cilindros virgens
e gravados com música ou palavra falada já dava
lucros significativos nos Estados Unidos. “

Sagazes emigrantes europeus (por alguma razão, em sua


maioria judeus, como Frederic Figner) buscando merca-
do para os fabulosos inventos fonomecânicos surgidos
no fim do século 1914, viajaram pelos EUA e outros países
14 “Os discos fabricados por Figner nessa fase inicial utilizavam cera de
carnaúba, eram gravados em apenas uma das faces e tocados em vitrolas movi-
das a manivela. Apesar das limitações técnicas, essa iniciativa representou uma
verdadeira revolução para a música popular brasileira, que engatinhava, pois até
então os artistas só podiam se apresentar ao vivo ou comercializar suas criações
por intermédio de partituras impressas.
O primeiro disco brasileiro foi gravado na casa Edison pelo cantor Manoel Pedro
dos Santos, o bahiano, em 1902. Era o lundu “isto é bom”, de autoria do seu con-
terrâneo Xisto Bahia. A partir daí, mais e mais artistas começaram a gravar suas
composições em discos que eram distribuídos pela casa Edison do Rio e também
pela filial que Figner havia aberto em São Paulo. A procura pelos discos cresceu
tanto que, em  1913, Fred decidiu instalar uma indústria fonográfica de grande
porte na Bulevarde 28 de Setembro, Vila Isabel, dando origem ao consagrado

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Spirito Santo

das Américas à dentro, caçando sons e artistas excepcio-


nais na música tradicional rural15, ou mesmo, embora em
menor proporção, das cidades, firmando a onda do disco
que se voltou, imediatamente para a música negro-afri-
cana.
(E aí, o paradigma de Robert Johnson e o simbolismo de
sua encruzilhada - o lendário trato com o diabo - talvez
possa fazer mais sentido). 16
A rigor, numa onda trazida pelos ventos desta emergente
indústria fonográfica norte-americana dos anos 1920/30,
alguns poucos empreendedores, se espalhando pelo
mundo, também haviam criado no Brasil gravadoras, de
olho no promissor mercado do disco, iniciado como vi-
mos, entre outros, por Fred Figner , o judeu tcheco que
criou no Rio a Casa Edison na década de 1910 e uma filial
em São Paulo anos depois.
É importante constatar que aqui, do mesmo modo que
nos EUA, a música mais apreciada comercialmente por
esses precursores – talvez por seu exotismo - era a mú-
sica negra rural, como o Jongo paulista e o Samba dos
morros e favelas cariocas. Música africana em suma, em
fase de espetacularização17.

selo Odeon, hoje sob responsabilidade da Universal Music.


(http://www.feparana.com.br/topico/?topico=641)
15 No caso dos EUA acharam as Worksongs, os Gospels , Spirituals e o
Blues do escravos do Sul do país.
16 Veja no link a genialidade de Robert Johnson: https://medium.com/@
robgordon_sp/sábado-de-blues-robert-johnson-os-muitos-mitos-do-maior-mito-
-do-blues-be467f742eef
17 https://cultura.estadao.com.br/noticias/musica,projeto-goma-laca-res-
gata-musicas-dos-anos-1920-50,1548119

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Vissungo - Kilomboloko

Ocorre que, voltando aos anos 1970, a ideia ‘contra-


culturalista’ de uma música negra ‘pop18, contudo, era
eletrizante para o clima de resistência cultural contra a
ditadura, que impulsionava a juventude artística, muito
criativa e atuante da época, rumo ao mergulho de cabe-
ça na experiência pop-vanguardista-nacionalista que foi
o ‘Tropicalismo’.
Mas havia também a não menos profunda busca da su-
til modernidade contida na música do ‘Brasil profundo’,
pesquisa inaugurada (em termos) pelo fabuloso Quin-
teto Violado, que fazia uma interessante fusão entre a
música tradicional nordestina com certos aspectos, diga-
mos assim, ‘pequeno burgueses’, da chamada moderna
música brasileira, com elementos de jazz e música eru-
dita, num caldeirão de muita inventividade e desprendi-
mento do convencionalismo reinante.
O nome do Vissungo, no contexto desta proposta de
certo modo ingênua, foi extraído então da idêntica ex-
pressão ‘Vissungo’ (‘Ovisungo’) que de modo genérico
denominava também cantos votivos ou de trabalho da
região do garimpo de ouro e diamantes em Diamantina,
Minas Gerais, no tempo da escravidão19.
18 Não confundir com o surgimento no Brasil, ainda no final dos anos 60,
da “Black Music”, que fortemente influenciada pelo movimento pelos direitos civis
dos negros nos EUA, tinha na verdade, no aspecto musical, uma vocação, muito
interessante ao mercado convencional, por ser “aculturada”, imitativa, embora no
bom sentido.
19 Em pesquisa particular deste autor apoiada pelo estudo de pesquisa-
dores, dicionaristas angolanos e portugueses, cruzada com observações pessoais a
expressão “Ovisungo” (o “Ovi” como prefixo plural) pode ser definida como “reper-
torio de cantos religiosos” a princípio afro-católicos no contexto de Diamantina, do
tempo da mineração escrava e, hoje em dia de modo geral, em cultos evangélicos
em Angola, o que nos sugeriu como sentido vernacular, o vocábulo “Louvor” (ou
“Godspel”).

25
Spirito Santo

A característica ‘etnológica’ da proposta, em particular,


acabou por revelar, de maneira fortuita, uma ligação di-
reta entre os dois irmãos fundadores (Antônio e Lula Es-
pírito Santo) e seu mais remoto passado. Descobriu-se
assim, no transcorrer da pesquisa que a família dos dois,
pela linha paterna, muito provavelmente, havia sido ini-
ciada por um antepassado (a) vindo (a) de Angola, que
havia sido escravo (a) exatamente naquela região e,
como tal, poderia ter um dia cantado vissungos.
(Coisa do destino talvez, gravado como memória gené-
tica.)
Em 1975 o grupo passa a ser formado também por, além
dos irmãos Espírito Santo (Antônio e Lula), pelos tam-
bém irmãos Carlos ‘Codó’ Brito (que substitui Roosevelt)
e Lena ‘Codó’ Brito (filhos do grande violonista baiano
Clodoaldo Brito, o ‘Codó’
É desta fase a criação das bases estético-musicais do tra-
balho do grupo, representadas pelo casamento entre a
pesquisa de campo em comunidades negras do interior
país e o dos elementos de modernidade, eventualmente
contidos nas inusitadas escalas desta música tradicional,
com fundas raízes na cultura africana da qual é oriunda.
Este aprofundamento nascia, principalmente, do sen-
so harmônico de Carlos Codó, herdeiro da erudição do
violão de Codó pai, professor emérito, desde a Bahia, de
muita gente boa, tal como João Gilberto, Caetano Velo-
so, Egberto Gismonti e Gilberto Gil (com quem este au-
tor chegou a cruzar, entre uma aula e outra, na casa de
Codó, no bairro do Estácio, no Rio).

26
Vissungo - Kilomboloko

Esta fase seminal, culmina com a descoberta, por parte


do grupo, da grande similaridade existente entre a cul-
tura negra tradicional do Brasil e o que, em termos mu-
sicais, ocorria na África contemporânea – notadamente
Angola e Moçambique.
A grande questão neste momento é que, apesar de se
estar vivendo uma época (1978) de grande efervescência
cultural, musical principalmente, havia muita restrição
– e até um certo desprezo - por parte do meio musical
em geral (e do mercado fonográfico em particular), por
abordagens artísticas voltadas, diretamente e de for-
ma mais aprofundada, para a cultura negra. Tolerava-se
o Samba convencional e algumas poucas propostas de
forma genérica denominadas ‘Música Afro’, geralmente
adaptações de pontos religiosos tradicionais, extraídos
do Candomblé e da Umbanda.
No âmbito da música essencialmente afro-brasileira, do-
minada por um exacerbado purismo, a modernidade era,
portanto, rigorosamente um conceito tabu. A releitura
criativa, a experimentação e a utilização livre de instru-
mentos ‘acústicos’, convencionais, misturados com ins-
trumentos eletrônicos, marcas essenciais da proposta
do Vissungo – já inseridos em outros gêneros musicais
desde o final da década de 60 (onde pontificou o ícone
“Alegria, alegria”, com Caetano Velloso e o grupo de
Rock argentino ‘Beat Boys’) não eram, estranhamente,
tolerados nas poucas bandas e grupos de música negra
existentes20.

20 Existiam também no eixo Rio de Janeiro/Bahia, além do Vissungo, os


grupos Tincoãs (de Mateus Aleluia) e Bamba Moleque (de José Carlos II, Luizão
Bastos e Antônio Krisnas), entre outros.

27
Spirito Santo

Este comportamento conservador (de algum modo ra-


cista) do meio musical, forçou o Vissungo a participar, de
forma militante, no chamado Movimento Negro, tornan-
do-se uma espécie de símbolo musical da luta antirracis-
ta carioca naquele momento, para alguns setores mais à
esquerda deste movimento.
No entanto, do ponto de vista de suas preferências cul-
turais, havia uma curiosa contradição se instalando no
seio deste movimento negro emergente, que passava
a subestimar – ou mesmo ignorar – em suas estratégias
e políticas, as eventuais lições advindas da luta antico-
lonialista, ainda em curso em Angola, Guiné Bissau e
Moçambique, por exemplo, para exercer no âmbito ex-
terno, uma atração política, de certo modo exagerada,
imitativa e acrítica, pela cultura negra norte americana,
notadamente, nesse caso, a chamada Black Music, trilha
sonora essencial da luta dos Panteras Negras e do neo
islamismo de Malcom X. Limitações comerciais de fron-
teiras culturais coloniais, se poderia dizer.
Neste mesmo sentido, no plano interno, tornando suas
opções culturais desta vez elitistas, este Negro passou
também a privilegiar uma cultura negra idealizada e, de
certo modo oficializada já que, apoiada em questionáveis
teses de eminentes antropólogos e etnólogos a partir da
década de 1930, referendava muito mais o Candomblé
baiano e produtos sucedâneos, em detrimento da mú-
sica negra de, por exemplo, Minas Gerais, São Paulo e
do próprio Rio de Janeiro (para ficar só nos exemplos da
região Sudeste) música oriunda das colônias e ex-colô-
nias de língua portuguesa que mandaram escravos em
maior número para o Brasil, exatamente a vertente para

28
Vissungo - Kilomboloko

a qual, por coerência artística e conceitual, o Vissungo se


voltava nesta época.
São estas contradições culturais que, afetando o merca-
do musical de um lado e o Movimento Negro de outro,
introduzem o Vissungo numa crise de identidade que o
leva a se afastar um pouco de sua proposta artística ori-
ginal, de vanguarda, interessado em contribuir na supe-
ração desta contradição que ameaçava afastar – como
por fim afastou - o Movimento Negro brasileiro de suas
bases populares mais evidentes.

29
Spirito Santo

30
Vissungo - Kilomboloko

Aniceto e Clementina, cadê vocês?


É ainda na tentativa de superar estas limitações ‘de
mercado’ que o Vissungo radicaliza seu mergulho nos
meandros da música negra tradicional, se ligando à
figuras essenciais como Clementina de Jesus (por im-
pulsão da Fundação Cultural de Curitiba, dirigida à épo-
ca pelo arquiteto e político Jaime Lerner, impulso que
nos une à Clementina num show antológico no Teatro
Paiol em 1977) e João do Valle, ícones da década ante-
rior, lançados nos shows ‘Opinião’ e ‘Rosa de Ouro’, mas,
de novo caídos no limbo do esquecimento, fora do mer-
cado.
Neste mesmo sentido, um pouco mais tarde, o grupo se
liga profundamente a Aniceto do Império Serrano, figura
histórica do samba carioca mais profundo (um dos maio-
res especialistas em Partido Alto), relegado ao total os-
tracismo na ocasião e grande influência no trabalho do
grupo a partir de então, dada ao seu enorme conheci-
mento das bases estruturais na gestação da música ne-
gra urbana da cidade do Rio de Janeiro desde o início do
século 20.
A fase se caracteriza também pelo aprofundamento, por
parte do grupo, de sua pesquisa de campo, exercendo
de forma militante a difusão da música africana, princi-
palmente angolana, não só em seus aspectos originais,
como também em sua expressão afro-brasileira, princi-
palmente, o Jongo, o Samba e a Congada.
A experiência, flagrada pela revista Cadernos do Tercei-
ro Mundo, ainda na década de 1970, editada por asilados
brasileiros no México e distribuída mundialmente, deu

31
Spirito Santo

ao Grupo o status de boa referência neste campo, não


só em seu viés, francamente etnológico, como em sua
opção pela difusão de aspectos da cultura popular do in-
terior do Brasil, que viviam, solenemente esquecidos nos
grotões.
O radicalismo desta fase, acentuando a crise de identida-
de, provocou um racha no grupo e a posterior dispersão
de alguns de seus membros originais que decidiram ten-
tar penetrar no mercado sob a forma de um grupo de
Samba convencional.
Sobrevém uma fase de muito engajamento ideológico e
alguma incerteza artística, com a adesão de músicos de
diversas procedências, compondo formações amadoras,
apenas adequadas, a um repertório onde predominava a
música negra tradicional.
As fusões mais recorrentes eram entre a música tradicio-
nal de Minas Gerais, e canções revolucionárias (“de in-
tervenção” como dizem os africanos) de colônias, como
Angola, Guiné Bissau e Moçambique, que promoviam
uma sangrenta guerra de libertação contra a metrópole
portuguesa. Pontificavam no repertório, letras do poeta
Agostinho Neto, musicadas por Rui Mingas, ambos an-
golanos, e de José Carlos Schwarz, compositor e guerri-
lheiro guineense, gravado nos EUA, em disco produzido
por Miriam Makeba.
Por vias transversas, no entanto, esta fase (meados da
década de 80) foi muito bem-sucedida, pois, represen-
tou o ingresso do Vissungo no mercado fonográfico,
a partir da autoria, junto com Wagner Tiso (e a voz de
Milton Nascimento) da premiada trilha sonora do filme

32
Vissungo - Kilomboloko

Chico Rei de Walter Lima Júnior21. O disco citado, grava-


do pela Som Livre – único da carreira do Vissungo até
bem pouco tempo - contém entre outras pérolas, o últi-
mo registro em estúdio da voz de Clementina de Jesus,
cantando a introdução da música Xico Reyna (de Spirito
Santo e Samuka).
São integrantes desta fase, entre outros, além de Sa-
muka de Jesus, os violonistas Laercio Lino e o multi-ins-
trumentista Antônio Naval, o acordeonista Tonico Pe-
reira, o percussionista Alberto Oliveira e o cavaquinista
Adão Hilton, cada um a seu modo contribuindo para a
concepção do trabalho que acabou sendo registrado,
em parte, no vinil de ‘Chico Rei’.
Seguiram-se entre 1987 e 1988 a participação do grupo
nos discos de carreira de Milton Nascimento (‘Encontros
e despedidas’), Wagner Tiso (‘Branco & Preto/Preto &
Branco’) e Tetê Espíndola (‘Gaiola’).
A crise de identidade do Vissungo, no entanto, prosse-
gue, pois, a vocação original do grupo na busca da mo-
dernidade artística (interrompida no início da década), só
poderia ser retomada, se contasse com novos músicos
com talento, experiência e vontade para encarar os no-
vos desafios musicais que, desta feita, seriam marcados
pela busca de um formato, ao mesmo tempo, moderno e
popular, de preferência dançante, tendência que passa-
va a predominar na música urbana do mundo inteiro na-
quela época (época do boom da indefectível ‘Lambada’),

21 A música do filme, realizada de modo separado pelo Vissungo (incum-


bido da parte da música tradicional africana) e por Wagner Tiso (incumbido da
música colonial europeia) foi premiada nos festivais de cinema de Ghent, Belgica
e Cartagena, na Colombia)

33
Spirito Santo

mas não exatamente no Brasil (apesar de ser a pátria da


“Lambada que – não se esqueçam – estourou e vingou
na França).
O grupo é por fim muito bem-sucedido nesta fase, en-
contrando com sua nova formação, composta por Spiri-
to Santo (composições, vocais solo e percussão étnica),
os retornados Lula Espírito Santo (baixo, viola, cavaqui-
nho, e vocais) e Carlos Codó (violão), além de Samuka
(percussão e vocais), José Maria Flores (bateria) e Braz
Oliveira (Guitarra) uma sonoridade muito aproximada do
que o grupo buscava desde sua origem.

34
Vissungo - Kilomboloko

Dançando no UNO Center, Wien


Tour nas Oropa. O afrobeat sonhado aqui, existia lá!
Ainda em 1988, com esta nova formação, o Vissungo faz
então sua primeira viagem à Europa, realizando uma das
melhores experiências de sua carreira no show na sede
europeia da ONU em Viena, em benefício da Unicef para
uma plateia, totalmente composta por africanos de to-
das as partes do continente, que dançavam, cada qual
ao jeito de seu país, aquela mistura de música brasilei-
ra, angolana, guineense e moçambicana que o Vissungo
apresentava. O som da Diáspora!
A forte energia produzida pela curta, porém, intensa pri-
meira experiência do Vissungo na Europa, não encontra,
no entanto, grande respaldo com o retorno do Grupo ao
Brasil. Envolvido em mais um de seus equívocos, o povo
brasileiro acabara de eleger o aventureiro populista Fer-
nando Collor de Mello que, após uma série de ameaças
ás ‘elites’, interrompia a maioria das iniciativas governa-
mentais voltadas para o fomento da cultura.
O intempestivo ato do ‘caçador de Marajás’, inviabiliza-
va o trabalho de artistas e, praticamente, determinou a
interrupção das atividades do Vissungo, que negociava
com contatos da Funarte da época, a gravação de seu
primeiro disco solo.
É quando surge o convite do sociólogo Tulio Aymone, da
Facoltá de Economia de Modena, Itália para que o Vis-
sungo (a princípio representado por Spirito Santo e Sa-
muka), se apresentasse no Festival Internacional de Cul-
tura do jornal do Partido Comunista italiano L’Unitá”, em

35
Spirito Santo

Bologna. Foi assim que o Vissungo, cansado de guerra,


decidiu, numa espécie de exílio voluntário, transferir-se
de mala e cuia para a Europa.
A carreira europeia do Vissungo se reinicia, portanto, em
julho de 1989, com a ida da dupla para Modena, Itália, a
fim de cumprir um contato para uma tournée de 12 espe-
táculos de música negra e dança afro-brasileira tradicio-
nal, cuja renda seria, em parte, revertida para a vinda do
restante da banda.
Artisticamente bem-sucedida, a tournée pelo norte da
Itália – Modena, Bologna, Reggio Emília, Corregio, etc.,
área na qual brasileiros combateram na segunda Guerra
Mundial (o soldado José Cyrilo, pai dos irmãos Espírito
Santo, entre elas), infelizmente, não teve uma renda su-
ficiente para bancar o sonhado resgate dos membros da
banda que ficaram no Brasil.
Transferindo-se para Viena, Áustria, após a experiência
italiana, o Vissungo foi recomposto com músicos locais,
entre os quais o excelente guitarrista vienense Claudius
Jelinek, o baixista uruguaio Pablo Solanas, o percussio-
nista senegalês Jimmy Wolof e os brasileiros Ita Moreno
(violonista) e Tatá Cavalcanti (bateria)

36
Vissungo - Kilomboloko

Vissungo afro beat


Durando cerca de três anos, a carreira europeia do Vis-
sungo, representou, como o fim de um ciclo, a realização
do sonho original contido na proposta inicial do grupo,
por uma música negra brasileira moderna, na qual não
se abrisse mão daquelas raízes africanas mais profundas,
proposta tão penosamente buscada no Brasil e enfim en-
contrada viva e pujante no mercado musical europeu.
É nesse momento que se constata que o conceito mais
moderno de música popular na Europa é aquele realizado
pela maravilhosa fusão de ritmos africanos das colônias
(Guiné, Senegal, Nigéria, Ghana, etc.), com a música ne-
gra norte americana (Soul, Funk), conceito fundado em
parte pelo grande músico nigeriano Fela Kuti, e conhe-
cido na África e na Europa genericamente como ‘Afro-
-beat’, movimento que tomou a África de Norte a sul
(onde pontificava o trumpetista Hugh Masekela).
(Munidos das informações obtidas na estada na Europa,
concluímos que a ausência de uma música africana mo-
derna no Brasil, se devia, principalmente a uma espécie
de reserva de mercado capitalista na qual, atrelado ao
mercado fonográfico norte americano, o mercado bra-
sileiro se via impedido de difundir a música pop africana
popular da Europa, que mantinha intensas e íntimas rela-
ções com a música de suas ex colônias.)
O resultado deste feliz, embora tardio, encontro do Vis-
sungo com os sons africanos que lhe eram similares ou
irmãos, pode ser felizmente mostrado em seu retorno
definitivo ao Brasil em 5 de novembro de 1995, num ines-

37
Spirito Santo

quecível espetáculo na Sala Cecília Meirelles, em come-


moração ao mês de Zumbi de Palmares.
Para a nova formação do grupo, com os dois únicos re-
manescentes da formação original, recorremos à uma
incrível fonte musical, de existência impensável na déca-
da anterior: Um núcleo de jovens músicos , negros em
maioria, com experiência em música pop adquirida em
sua dedicação militante à reggae Music, congregados
no Centro Cultural Donana, em Belford Roxo, na Baixa-
da Fluminense, inegável foco da posterior ascensão do
reggae no mercado pop brasileiro, com o KMD5 (banda
depois rebatizada como Negril) e o Cidade Negra (antes
liderada pelo polêmico Ras Bernardo).
Desta fonte maravilhosa e revigorante, foram arregi-
mentados Lauro ‘Biko’ Farias, baixo (logo em seguida
‘roubado’ pelo O Rappa), Reinaldo Amâncio, além do fa-
buloso batera Jahir Soares, ligado à esta cena musical,
decano do reggae raiz carioca até os dias de hoje. Inte-
graram também o Vissungo, neste seu último espetáculo
antes do recesso em 1996, Welington Coelho (depois do
Farofa Carioca) o vocalista Augusto Bapt e o percussio-
nista Paulão Menezes.
Ali, na Sala Cecília Meirelles, diante de uma plateia en-
tre surpresa e extasiada com a diferença gritante entre
o som que o grupo trouxe da Europa e os sons da co-
medida música negra em voga no Brasil (onde o Reggae
começava a pontificar), sem vislumbrar nenhuma janela
ou escaninho do mercado brasileiro onde pudesse se en-
quadrar, o Vissungo decidiu se recolher a sua significân-
cia, sabia-se lá até quando.

38
Vissungo - Kilomboloko

Além do LP do disco com a trilha sonora do filme Chico


Rei (hoje considerado um clássico em sites de discos ra-
ros) e de faixas há pouco tempo inseridas num remix da
Warner Music do disco de Clementina de Jesus, Doca e
Geraldo Filme, ‘Canto dos Escravos’, existe muito mate-
rial gravado pelo Vissungo, espalhado por aí, em mídias
diversas. Grande parte deste material, está em suportes
considerados hoje obsoletos, tais como fitas K7 e fitas
VHS, parte do qual foi remasterizado para o álbum que
estamos lançando agora.
O acervo do grupo (centenas de horas de registros de
áudio em fitas K7, negativos P&B e slides fotográficos)
fruto das pesquisas de campo22, até hoje razoavelmente
conservado, contém também interessantes registros de
shows e ensaios, no Brasil e no exterior, aguardando di-
gitalização, missão sobre a qual, alguém terá que se de-
bruçar um dia.
Legítimo produto artístico da inesquecível década de 70
do século 20, o Vissungo pode ser visto hoje, distancia-
damente, como uma espécie de símbolo natural da pri-
vação de acesso ao mercado – e aos meios de produção
e registro mais elementares – sofrida por determinados
artistas e grupos musicais brasileiros, antes do formidá-
vel advento desta atordoante revolução das mídias mo-
dernas, e seus meios e suportes democratizados (ou ba-
nalizados) como nunca o foram na história.
Como vinho envelhecido, o Vissungo andava ainda ador-
mecido numa adega destas da vida, num quintal destes
do mundo onde, brasa dormida, até hoje pulsam suas
22 Orientadas por Spirito Santo, tornado a partir daí um pesquisador in-
dependente de etnomusicologia

39
Spirito Santo

emoções agora, enfim gravadas, regravadas, digitaliza-


das, eternizadas, se tornando, portanto, imortais23.

23 Na verdade, um adendo bombástico: O Vissungo ressurgiu em 2009


está mesmo vivíssimo,  já fez muitos shows por aí e no momento lança, com
este livro, um

40
Vissungo - Kilomboloko

O Vissungo seminal.
A adolescência da banda, livro do Aires da Mata, a peça
teatral, os shows em São Paulo
O Vissungo, propriamente não nasceu, diretamente do
Sararamiôlo.
A leitura apaixonada do clássico da etnologia “O Negro
no Garimpo em Minas Gerais”, Inspiração fundamental
do gosto pessoal pela pesquisa etnomusicologica, en-
sejando o projeto de fazer uma adaptação teatral (meu
primeiro texto no ramo, escrito à duas mãos com o ator
Eugênio Santos), é que foi o start de tudo.

O espetáculo seria um musical, no qual um operário dub-


lê de compositor de escola de samba, decidia concorrer
no enredo daquele ano de sua escola, cujo tema estra-
nhíssimo para ele era “Os Vissungos do Tijuco”.

O enredo era baseado, exatamente no livro de Aires da


Mata Machado Filho, que reproduzia pesquisas realiza-
das em 1928, e tratava de cantos de trabalho e canções
votivas trazidas por africanos da região do Benguela
(ovimbundo), Angola, para os garimpos de ouro e dia-
mante da região de Diamantina, MG.

No processo de pesquisa do tema, o operário da peça


acabaria, numa analogia com a escravidão narrada no
livro, por reconhecer a sua própria condição de explora-
do, como se vê uma temática recorrente nos anos 1970,
inflamada pelos vapores de rebeldia artística contra a Di-
tadura Militar.

41
Spirito Santo

Foi para nos desincumbirmos da trilha sonora do espetá-


culo que convoquei meu irmão Lula Espírito Santo (ban-
dolim e contrabaixo) que, por sua vez convidou Roose-
velt da Silva (violão) comigo num segundo violão e nos
vocais. Formamos assim, um trio ainda sem nome, e mer-
gulhamos na decifração das partituras e na pesquisa do
livro que eu adaptaria.

A descoberta de que o pai deste autor, dos muitos segre-


dos deixados para a família, deixara o de que era nascido
em Diamantina, descendente de africanos daquela exata
região do garimpo, fez com que este fosse o principal
foco das pesquisas deste autor, por toda a vida, com via-
gens iniciadas em 1981 e muito material de pesquisa teó-
rica produzido.

O trabalho desenvolveu-se sempre de forma orgânica e


associando pesquisa de campo com referências teóricas,
reafirmando ou questionando dados orais ou bibliográfi-
cos, focando, basicamente na cultura africana do Sudes-
te do país (Rio, ES. MG, SP) com ligeiras incursões pelo
nordeste (BA)

Importante frisar que o acervo recolhido encontra-se na


fase de ter que ser adotado por alguma instituição, para
que se torne público, parte do qual (as entrevistas) já se
encontra em fase de ser digitalizado com este fim por
iniciativa do prof Flávio Gomes da UFRJ, restando con-
tudo farto material musical com muitas horas de música
negra do sudeste, principalmente Congadas, Candombe
e Moçambiques mineiros e Jongo do ES e SP.

42
Vissungo - Kilomboloko

Vissungo num Kilombo real


1978, por aí. Olho, revejo centenas de fotos da longa e
aventurosa carreira do Vissungo, para ilustrar livro, dis-
co de vinil e CD do nosso projeto. Um turbilhão de me-
mórias se embaralhando em mim como um calhamaço
desencadernado que, soprado pelo vento largou folhas
desconexas, que eu vou organizando, dando algum sen-
tido, editando na cabeça como encadeamos sonhos que
só têm pé e cabeça enquanto dormimos.
Mas esta foto não. Jamais consegui me libertar do bêba-
do sentimento diante do encantamento dessas pessoas
que, presumo, nunca haviam assistido a um show de
música na vida, nem mesmo ouvido uma música como
esta que fazíamos e fazemos e que me instigam a pen-
sar, pensar até morrer, sabendo que jamais conseguirei
saber de nada sobre o que ficou marcado em suas me-
mórias vida adiante, dali para a frente.
Onde estarão essas pessoas? Quantas sobreviveram
àquela vida de chances zero ? Que energia aquela música
tão estranha a elas (apesar de, sendo de seus antepas-
sados africanos, viver entranhada em suas almas) que
substância ela, a música teria dado àquela gente?
Que força vital ou instinto, bandeira de liberdade, mes-
mo utópica, terá ficado fincada naquele palco de chão
batido, fedido a esgoto e desesperança?
Me lembro que - numa imagem que não foi flagrada -
nos mais altos barracos do morro que crescia logo ali, ao
lado do descampado ou terreiro onde ocorria o show,

43
Spirito Santo

as mulheres dançavam em quintais minúsculos, algumas


pondo roupas em varais.
Mas este corte, assim tão fechado, é onde a aura fantás-
tica da minha emoção se faz névoa de eternidade, como
uma nave espacial quase transparente, que voa no im-
ponderável espaço de mim mesmo.
Ah...Nem sei mais o que dizer...

Foto de Maria Helena M. Almeida. Os músicos no detalhe so-


mos eu, Spirito Santo, de costas, bata branca, o saudoso Car-
los Codó, de bata escura, ambos com violões e Lula Espírito
Santo, rosto à vista, com um cavaquinho. Os outros músicos e
o técnico de som, estão em outras naves.

44
Vissungo - Kilomboloko

Na Lapa de Makemba
A pesquisa-mãe
Janeiro de 2009. Diamantina. Roteiro parcial entre São
João da Chapada, Milho Verde e Quartel de Indaiá, Minas
Gerais.
Inesquecível viagem da - por enquanto – última coleta
de campo deste autor em sua eterna pesquisa sobre os
Vissungos do Tijuco, contexto e repertório de música
africana, angolana trazida por pessoas sequestradas, de
etnias em geral ovimbundo e Kimbundo para a região, a
partir da descoberta de ouro (no Serro Frio) e, posterior-
mente diamantes (em Diamantina), no século 18.
A pesquisa, iniciada no campo em 1981 (apenas 2 anos
após a coleta no local feita pelo etnomusicólogo austría-
co Gerhard Kubik) já conta com quase 40 anos de mate-
rial, com imagens e áudios colhidos no local - acrescido
de material recolhido por Luiz Heitor C. De Azevedo em
1944, gentilmente cedido pela Escola Nacional de Mú-
sica/UFRJ (gratidão à Andrea Albuquerque Adour e Sa-
muel Araújo)
A pesquisa em curso sugere, além de dados transatlân-
ticos fundamentais, a coleta suplementar de elementos
resilientes da cultura angolana muito diversos, além
da música, preservados na memória da população,
na arquitetura do século 18 e até mesmo na geografia
(grutas de suporte à habitação e mineração clandestina
de quilombolas desde o século 18) e na estética de
manifestações culturais locais.

45
Spirito Santo

Entre essas manifestações destacam-se os “Catupés”


(“Catopês” para alguns) por exemplo, que preservam
canções do tempo da mineração escrava, que assim so-
brevivem em outro contexto, o material recolhido não
recebeu ainda nesses tantos anos, nenhuma atenção ou
apoio de instituições oficiais afins, não só na cobertura
de novas coletas, mas também na sua sistematização
para disponibilização pública no Brasil e Angola (livro,
documentário, etc).
Mas isso é uma triste recorrência no Brasil quando se tra-
ta de “estudos negros” fora das linhas tidas como oficiais
ou hegemônicas, em geral historicamente equivocadas.
Seguimos firmes e em frente.

Como desdobramento natural das pesquisas no interior,


passamos a voltar nossas ações para a cultura urbana,
a fim de entender melhor o processo de sua transição
da Roça, das ainda presentes relações anteriores ditadas
pelo trabalho escravo, para a Cidade e o mundo exterior,
urbano, em geral.

46
Vissungo - Kilomboloko

Chico Rei, o filme


(...E a música dentro do filme)
O amigo fotógrafo Ricardo Beliel é quem nos conta:
” Quando estavam filmando em Ouro Preto estive
lá fazendo uma reportagem sobre o filme. Fiquei
lá umas duas semanas e estava sempre com o Gus-
mão e a Zenaide, que eu já conhecia, e o Severo,
que conheci lá, entre vários outros amigos que par-
ticipavam como atores ou técnicos. Mas nessa épo-
ca o filme já estava imerso por mil problemas de
produção. Os produtores alemães brigavam com
os produtores brasileiros e no final o filme foi se-
questrado e levado para a Alemanha. Acho que o
Walter nunca o terminou. Lembro que o contrato
inicial era para fazer uma série que passaria na TV
alemã e um longa para passar no Brasil. Nunca vi o
filme. O que aconteceu?”

No que respondo:
“O filme foi uma saga, mas foi concluído sim e chegou a
ser lançado na íntegra aqui na internet! Tinha aqui comi-
go uma cópia em CD, mas nunca tive coragem de com-
partilhar. É que este filme para mim é sagrado. É um dos
meus ritos de passagem para me tornar o que sou. Sei
quase tudo sobre a história deste filme.
É que no intervalo entre o ‘sequestro‘ do filme, citado e a
sua finalização fui convocado pela última vez pelo Walter
Lima Júnior, eu e meu parceiro de Vissungo, o Samuka.
Walter estava completamente só com seu sonhado fil-

47
Spirito Santo

me, os copiões com locações inconclusas, praticamente


sem grana, sem nada e precisava de alguma força.
O plano de Walter ao aceitar a direção do projeto era rea-
lizar, além da série contratada pelos alemães, um longa-
-metragem autoral. Deu quase tudo errado por proble-
mas de gestão da produção como você verá a seguir.
Depois de muito tempo de espera e negociações que
envolviam já a Embrafilme, Walter Lima conseguiu um
acordo com os alemães: Ir à Alemanha editar a tal minis-
série em troca dos copiões. Voltou com 54 hs de rolos de
celuloide (!) que foram artesanalmente transformados
(quem se lembra do que é uma moviola?) neste filme por
ele e pelo verdadeiro ninja da assistência de montagem
cinematográfica, Mário Murakami. Uma loucura.
A história do ‘sequestro‘ do filme é também muito in-
teressante, confusa e controversa. As más línguas atri-
buíam os problemas da produção a uma jogada comer-
cial da Provobis, produtora alemã do filme que, por sua
vez, segundo as mesmas línguas perversas, teria ligações
com a mais mal falada ainda (e, supostamente direitista)
Opus Dei.
A teoria da conspiração digna de um Código Da Vinci su-
geria enfim que o filme – uma super, quase mega produ-
ção para a época – teria sido, numa jogada de alto risco,
deliberadamente entregue a uma produtora amadora e
inexperiente do terceiro mundo (a Art 4 de José Eugênio
Müller Filho), cuja experiência anterior mais significativa
havia sido a produção de filmes dos ‘Trapalhões.
Impossível desvendar a verdade. A hipótese – que tinha
mais pinta de lenda do que a própria ‘lenda‘ de Chico

48
Vissungo - Kilomboloko

Rei – dava bem a medida da baixa credibilidade gozada


pela produção cinematográfica brasileira deste início da
década de 1980 (a produção do filme ‘Natal da Portela’
de Paulo Cesar Sarraceni, do qual também participamos,
tinha um enredo bem semelhante).
De fato, mesmo (pois este autor estava lá para presen-
ciar in loco) só a profunda crise que se abateu sobre a
produção na fase de Ouro Preto. O nababesco tratamen-
to dispensado à equipe e ao elenco já era uma pista clara
de que podia dar tudo errado, mas quem se preocuparia
com isto àquela altura?
Os prejuízos deixados na cidade pela Art4 foram astronô-
micos, quase colocara a cidade, cuja economia, naquele
período dependia quase, inteiramente da verba de Chico
Rei, à falência. As locações acabaram se transformando,
isto sim, num veio de ouro às avessas.
Do que vi com estes olhos e posso contar tem, por exem-
plo o desespero de grandes atores e atrizes como Maria
Fernanda, Nelson Dantas e Othon Bastos, monstros sa-
grados de nosso cinema na época, praticamente larga-
dos como reféns no hotel: Fugiram todos os responsá-
veis pela produção brasileira. Soube-se então do sumiço
também, dias antes dos brasileiros, dos atores e executi-
vos alemães, que se mandaram com os copiões, as malas
e as cuias para a Europa.
Presenciamos também, nestes mesmos dias, uma inu-
sitadíssima passeata do pessoal da figuração de Ouro
Preto e cidades vizinhas, a galera que fazia as vezes de
‘população escrava‘ do filme. Queriam porque queriam
como todos por ali, receber pagamento.

49
Spirito Santo

Este autor e Samuka, o parceiro de aventura, macacos


‘véios’, remunerados de antemão, estávamos ao lado de
Mário Carneiro (grande fotógrafo do filme, junto com o
José Ventura) quando a turba de ‘escravos‘ enfurecida
olhando para os cabelos claros (já grisalhos) dele e sua
alta estatura gritaram em coro:
_ “Alá! É ele! O alemão!”
Foi difícil convencer a turba de ‘escravos‘ a não linchar
o pálido e saudoso Mário Carneiro, brasileiríssimo e um
dos maiores fotógrafos de cinema do Brasil.
A crise a esta altura era já tão profunda que nós do Vis-
sungo, por ocasião da produção da cena final, já assu-
mida pela Embrafilme (que havia passado a controlar a
gestão financeira do filme) indispensáveis, responsáveis
que havíamos ficado pela arregimentação da figuração
de congadeiros e os instrumentos musicais ‘africanos‘
a serem usados na cena, exigimos num contrato radical
que a cena só aconteceria se recebêssemos, em cash,
100% do pagamento 2 hs antes da locação. Concordaram.
(Soube mais tarde que fomos uns dos poucos – senão os
únicos – a não tomarem calote, coisa mais do que corri-
queira em produções cinematográficas nacionais)
Tão certo deu esta nossa estratégia que antes mesmo de
se pensar, sequer em planejar a trilha sonora, já estáva-
mos contratados (e agora com excelente remuneração)
para construir os instrumentos musicais de cena, que po-
dem ser rapidamente vistos na cena final, ponto seminal
da pesquisa pessoal de organologia que estava, do pon-
to de vista profissional, literalmente começando ali.

50
Vissungo - Kilomboloko

Envolvidos até os ossos em nossa pesquisa sobre Conga-


das mineiras, já cobertas as áreas mais ao sul, na direção
de Belo Horizonte (acompanhados pelos fotógrafos Sér-
gio Witlin, Célia Abikalil e Maria Helena Matos, que do-
cumentavam as nossas coletas de campo) cuidávamos
agora da área de Minas Gerais que tinha acesso pela ro-
dovia Fernão Dias.
A ideia era planejar um novo trajeto de coletas futuras
nesta região. Foi assim que chegamos à Ouro Preto,
atrás das congadas locais, coincidentemente ao mesmo
tempo em que as locações de Chico Rei ali se realizavam.
Chegando em Ouro Preto, quem nos apresentou ao Wal-
ter Lima foi o então amigo Ricardo D’Almeida, à época
casado com uma pessoa ligada à produção do filme. Nos-
so encontro com Walter Lima foi, literalmente cinemato-
gráfico: Dentro de uma antiga mina de ouro desativada,
a 315 metros chão a dentro, nas cercanias de Mariana,
cidade vizinha à Ouro Preto.
Na cena, da qual nunca me esqueci, estavam Antônio Pi-
tanga, o sergipano Severo D’Acelino (o Chico Rei do fil-
me), o saudoso Haroldo de Oliveira e outros ‘escravos‘,
enfurnados todos entre as pedras no cenário opressivo
daquela que representava a histórica e lendária Mina da
Encardideira. A cena mostrava o encontro do veio de
ouro que ensejou a redenção de Chico e seus malungos
todos.
O filme tinha sérios pecados etnológicos originais en-
cravados no roteiro anterior escrito pelo novelista da TV
Globo na época Mário Prata. Este argumento era basea-
do por sua vez num romance muito fantasioso de Agripa

51
Spirito Santo

de Vasconcelos, além de indicar para as opções de pré


produção – como ainda hoje é recorrente – um projeto
calcado demais em mitos e chavões estéticos nagoístas
(yoruba, nigerianos) do Candomblé, incompatíveis com
a história bantu do Chico Rei e a cultura negra do Kongo
e de Minas Gerais em especial.
Aliás, providencialmente, foi o fato de apontarmos nos-
sa pesquisa, exatamente para este aspecto em especial
da questão – o equívoco da opção por uma estética ba-
seada no mito da ‘supremacia nagô‘ - o que estimulou
Walter Lima a nos convidar para esta consultoria total-
mente voluntária, solidária mesmo, já na primeira noite
em que conversamos, numa agradável bebericação da
cachaça mineira “vale do Jequitinhonha” com mel, num
bar na praça central da cidade.
Foram diversas seções de consultoria informal. No auge
das locações, mais ou menos a cada 15 dias, Walter man-
dava a produção convocar no Rio, eu e Samuka, para
acertarmos alguns detalhes e minúcias digamos assim,
‘etnológicas‘ da produção.
Um dos incidentes mais curiosos de toda esta nossa ex-
periência, aliás, foi o surdo conflito instalado entre nós
e o elenco ‘africano‘ do filme, que tendo como guru o
fantástico ator Mário Gusmão, havia sido arregimentado
quase todo em Salvador, Bahia.
É que com a nossa chegada influindo nas decisões ‘etno-
lógicas‘ da direção do filme, a consultoria também infor-
mal que eles mesmos, os baianos, faziam, principalmen-
te àquela ligada às danças e ao figurino, tudo baseado,

52
Vissungo - Kilomboloko

quase inteiramente nas coisas mais recorrentes do Can-


domblé e da Capoeira da Bahia, tiveram que ser revistas.
Foi assim então, e por conta desta constatação etnoló-
gica, que fomos contratados para criar e produzir toda a
cena final do filme, para a qual sugerimos – e efetivamen-
te levamos para Ouro Preto – dois grupos de congadei-
ros reais, arregimentados em duas cidades que serviam
de base para nossas pesquisas (Oliveira e Machado).
A decisão modificava radicalmente a participação do
elenco negro, principalmente do grupo de apoio forma-
do pelos baianos citados, que não teriam tempo de se
adaptar às danças performances de trato puramente
bantu, forte característica cultural dos figurantes minei-
ros o que, de certo modo obrigava os baianos a ficarem
discretamente afastados da cena final.
A decisão impactou também, decisivamente o figurino
destes novos participantes, já que o vestuário de trato
‘nigeriano‘ criado pelo diretor de arte se tornara total-
mente inverossímil a partir daí e precisava também ser
corrigido. A nossa salvação (a saída diplomática) foi a
greve por pagamentos em que a equipe de produção
estava também inserida, o que permitiu que eu e e o
parceiro Samuka (Samuel de Jesus) fôssemos liberados
para criar ali, na hora, o figurino dos congadeiros. Fize-
mos como os pés nas costas, simplesmente seguindo a
alguma pesquisa baseada nos manjadíssimos – e óbvios
- Debret e Rugendas.
As pranchas destes artistas sugeriam, simplesmente que
os escravos libertos de Chico Rei, nas circunstancias de
uma festa de coroação de um rei africano em Minas Ge-

53
Spirito Santo

rais, poderiam usar partes aleatórias de roupas portu-


guesas, tornadas símbolo evidente de sua ascensão so-
cial, misturadas a este ou aquele hábito africano do tipo:
turbantes e bandanas, elementos flagrados no trabalho
daqueles desenhistas, testemunhas oculares da vida dos
escravos de séculos atrás. O figurino estava pronto, por-
tanto, nos cabides do próprio “guarde robe” da produ-
ção, entre os jaquetões, sobretudos e chapéus de três
bicos usados pelos personagens brancos do filme.
Outro problema crucial foi que com a súbita eclosão da
crise na produção não deu para que se filmasse algumas
cenas essenciais à continuidade do roteiro original de
Walter Lima. O projeto do longa-metragem ficava assim,
de certo modo seriamente ameaçado. A própria cena fi-
nal, na parte da figuração totalmente produzida por nós,
teve que ser improvisada e filmada a toque de caixa,
numa única tarde. Filmou-se apenas o ensaio, pois, não
houve tempo (luz) para se filmar as cenas definitivas.
O filme nos seus finalmentes, a despeito de todas os seus
percalços foi, portanto, concluído e criado na moviola.
Ao final, com a fita montada nós do Vissungo fomos en-
fim contratados pela gravadora Som Livre para realizar a
trilha sonora (a parte ‘africana‘, pois, a ‘europeia‘ como
se sabe foi criada por Wagner Tiso) trabalho geral em
dupla autoria, que acabou premiado como melhor mú-
sica nos festivais de Ghent, na Bélgica e Cartagena, na
Colômbia.
Até o arguto especialista e amigo José Carlos Rodrigues
em seu excelente e lapidar trabalho ‘O negro brasileiro
e o Cinema‘ dá uma escorregada na ficha técnica da tri-
lha de Chico Rei, grafando o nome de Mílton Nascimento

54
Vissungo - Kilomboloko

como o principal autor do trabalho, quando Mílton ape-


nas gravou duas músicas de Wagner Tiso. Salvou-nos um
outro crítico, com este texto definitivo sobre o papel do
Vissungo em Chico Rei que orgulhoso vivo replicando
por aí:
“…O épico Chico Rei deu continuidade ao projeto
de um cinema histórico mais atento às elaborações
mitológicas que ao rigor das versões acabadas.
Lima Jr. usa a história do primeiro escravo a se tor-
nar dono de ouro no Brasil para investigar as suas
próprias raízes negras. O Vissungo, em sua fusão de
arte e militância, teve papel decisivo na formata-
ção sonora do filme, que ainda mobilizou ícones da
música negra brasileira como Milton Nascimento,
Clementina de Jesus, Naná Vasconcelos e Geraldo
Filme. Chico Rei assinalou também a primeira cola-
boração direta de Wagner Tiso numa trilha de Wal-
ter, parceria que iria se repetir em três dos quatro
filmes seguintes do realizador.

(Em ‘Um cinema que quer ser música’ artigo de Car-


los  Alberto Mattos, Publicado na revista Veredas
-CCBB/Rio, Nov-2000)

Empolgante me ouvir cantando música tradicional afro


mineira e tocando as kalimbas do filme. De relance eu
posso até ser visto na cena final, tocando uma furiosa
marimba.
Compus muitas músicas nesta época especialmente para
esta trilha sonora ‘africana‘ do filme, da qual participa-
ram também outros integrantes, com destaque para Sa-
muka de Jesus. As duas melhores canções, “Saudades do
Kongo” e “Chico Reina” (esta em parceria com Samuka,

55
Spirito Santo

cantada na introdução pela saudosa Clementina em sua


última aparição em estúdio, já debilitada demais para os
solos que, acabei eu mesmo tendo que cantar) nem apa-
recem no filme, mas estão no vinil produzido pela Som Li-
vre com a trilha sonora original . Ah, como era gostoso –
e aventuroso - fazer cinema brasileiro naquela época!”24
Vissungo e Milton Nascimento
Encontro sem despedidas.
1985. O nosso trabalho na trilha-disco de Chico Rei, o
filme, agradou muito ao co-autor Wagner Tiso, que me
telefonou, empolgado dizendo que estavam ele e Milton
Nascimento ouvindo, naquele momento, o copião da fita
K7 com nossa música para o filme.
Ficaram maravilhados de tocarmos coisas em 3/4, po-
lirritmias...imagina! A missão que assumimos de criar a
trilha do filme fora uma opção óbvia: compor e/ou repro-
duzir música negra, africana, música complexa, ora (Tiso
compôs a música “europeia). Nem entendemos tanta
surpresa.
Veio daí a indicação e o convite para participarmos, como
convidados especiais do disco de carreira do Milton Nas-
cimento: “Encontros e Despedidas”, gravando na faixa
título.
Chegamos no estúdio da Polygram na Barra da Tijuca, RJ,
bem animados, com um arranjo bem instigante de per-
cussão, estranho, interessados em dar um sabor mais
rascante à música, ideia que agradou em cheio ao produ-
tor, o então festejado Mazolla.
24 Texto extraído de post de uma rede social, em resposta à Ricardo Beliel,
fotografo em reportagem realizada por ele em Ouro Preto à época das filmagens.

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Vissungo - Kilomboloko

A surpresa inusitada era a ausência do “cara”, do dono


da música, sonhávamos com um congraçamento duran-
te a gravação. Mas nada.
Quando entramos, desconfiei de um sujeito sozinho, ta-
citurno, sentado no sofá mais ao fundo, no canto mais
escuro de um corredor, fora da sala de gravação.
O taciturno lá continuou durante as 6 horas de gravação,
totalmente alheio ao que gravávamos, um ser estranho.
A gravação, contudo, foi delícia. Mazolla era um mestre
e nos deixou livres, à vontade! Só aí, ouvindo muito or-
gulhosos o resultado, perguntamos e soubemos por Ma-
zolla, que o taciturno do sofá era...Ele
Entrou no estúdio e timidamente foi se abrindo. Elogiou
o resultado, disse algo formal como “vocês deram o cli-
ma que a música precisava”. Abraçamo-nos todos muito
e felizes, posamos para a camerazinha amadora que um
de nós levara e pronto!
Acho muito belo o tom de irmandade sincera expresso
pela semelhança dos sorrisos na imagem.
Saiu então essa foto rara, hoje histórica, linda!
Que bom sobreviver.

57
Spirito Santo

Da esquerda para a direita: Lula Espirito Santo, José Maria


Flores, Titio  Spirito Santo, Milton Nascimento, Adão Hil-
ton. Agachados: Alberto, Samuel Jesus e Laercio Lino Car-
valho

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Vissungo - Kilomboloko

KILOMBOLOKO​!
O álbum, o disco, o CD, o ingresso na Matrix sonora
O Vissungo é, pois, um projeto musical que concebeu
seu som a partir de muita pesquisa e experimentalismo,
como você viu por aqui, em muitos links abaixo e acima,
caso nunca tenha ouvido falar de nós.
Fomos assim, com o tempo nos especializando na mú-
sica africana que julgamos dizer mais respeito à cultura
brasileira geral, a música da Diáspora africana no Brasil25,
fazendo sempre alguma releitura que torne esta músi-
ca adequada à realidade dos sons do que chamamos de
música popular (pop), moderna, urbana, a música das
mídias do mundo inteiro ou seja: sem concessões ao fol-
clorismo vão, ansiando a modernidade.
O resultado, na linguagem simples do Mercado, pode
ser caracterizado como algo entre o Afro-beat e a Black
Music, só que avançamos sem grandes compromissos
com os modismos do mercado, construindo uma música
muito particular e original, que nunca se adequou muito
bem aos caixotinhos desse pragmático shopping center
em que se transformou à indústria da música no Brasil.
Acreditamos à esta altura que esta é, para o bem e para
o mal, a nossa marca e legado
Entre outras, esta talvez seja a razão de, por mais incrível
que pareça, com uma carreira que já dura 44 anos (1975
a 2019) com uma rica estada na Europa, nunca tenhamos

25 Como seria óbvio, a música da Angola atual, antigo Reino do Kongo


nos tempos coloniais e alguma coisa de Moçambique (além de um pouco só
de música da Nigéria oriundas da Nigéria nagô e do Dahomey, hoje Benin,
contidas no Candomblé).

59
Spirito Santo

tido (até agora) a oportunidade de gravar, exatamente


o nosso som de carreira, a nossa proposta real.
É o que este livro, sucintamente revela. Gravamos bas-
tante, fizemos muitas turnês por várias partes do Brasil
e do exterior, mas sempre tivemos este nosso som real,
ignorado pelo mercado brasileiro, que tem lá a sua lógi-
ca comercial e nunca pretendeu nos inserir num de seus
escaninhos estético-comerciais.
Sempre nos convidaram para gravar apenas aquela
música negra mais próxima dos modelos da MPB mais
convencional, os sons «negros» mais subalternos enfim,
como se este fosse o único lugar a nós destinado e
pronto.
Mas não. Os tempos nesses anos todos de nossa trajetó-
ria, mudaram. O mercado fonográfico tradicional, recon-
figurou-se no emaranhado da enigmática Matrix de pos-
sibilidades surgidas com a evolução das mídias virtuais,
que são planetárias.
Nos animamos a tentar uma campanha de financiamen-
to coletivo assim, preparados para o que desse e viesse. 
 Hora de agradecer, com emoção a todos os apoiadores
da campanha que, ao final das contas. A bem da verdade,
não foi, absolutamente bem-sucedida
(Arrecadamos em longos meses de apelos na mídia, par-
cos 15% do total necessário).
Este projeto visou, portanto, nessa oportunidade,
modestamente acabar de vez, a qualquer custo, com
essa dicotomia entre nossa música tão original e as

60
Vissungo - Kilomboloko

pessoas que, eventualmente gostariam de nos ouvir


aqui, ali, no mundo inteiro.
Hora de agradecer, especialmente o carinho de Flavia
de Oliveira, Samuel Araújo, Luiz Antonio Simas, Jair Mi-
randa, Januário Garcia, Itamar Dantas, Alberto Musa
e  Xavier Vatin, personagens dos simpáticos vídeos de
apoio que nos ajudaram a empurrar o trem das incansá-
veis solicitações nas redes sociais.
Se quiserem saber como conseguimos seguir com o
projeto, a resposta é a cara de nossa carreira, sempre
cheia de percalços:
Resiliência.
Deflagrado o processo, sangria desatada, seguimos com
a busca de apoios diversos, tendo já garantidos com a
pequena quantia auferida, os custos com estúdio. O tem-
po necessário para ir cumprindo cada missão foi bastan-
te longo, mas enfim, chegamos lá.
Neste aspecto, os valorosos Caio Rosa, fotógrafo, autor
dos clips da campanha, das sensacionais fotos da capa e
contracapa do projeto, cuja arte esteve associada ao we-
bdesign Rodrigo Rosm, ambos integrantes do coletivo
de arte, nascido na PUC Rio, Off Color, bem como Gui-
lherme Marinho, responsável pelo selo Mondê que nos
colocou no admirável mundo novo das plataformas digi-
tais além de Paulo de Carvalho, responsável pela editora
Armazém de Quinquilharias e Utopias, produtora deste
livro que acompanha os vinis e CDs.
Estas foram, realmente as peças fundamentais para a
efetiva conclusão do projeto.

61
Spirito Santo

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Vissungo - Kilomboloko

KILOMBOLOKO!
Full álbum VISSUNGO
Em KILOMBOLOKO!   gravamos ou remasterizamos 11
exemplos da nossa extensa e impressionante trajetória
musical, expressando a modernidade estranha de nossa
proposta que, agora registrada, por certo se eternizará:
Músicas e performances

1- FLEMA DI KORSON - Canção Kriol (Crioulo Guine Bis-


sau)
Autor: José Carlos Schwarz/ Guiné Bissau
Voz: Spirito Santo
Guitarra: Claudius Jelineck (artista convidado)
Viena, Áustria)
Baixo: Leri Machado
Violoncelo: Hudson Lima (artista convidado)
Viola Caipira: Lula Espírito Santo 
Percussão: Swamy Shopa/Spirito Santo
Coro: Mônica Rangel e Roberta Orlans

2- CANDOMBE PARA GARDEL - Milonga


Autor: Rubem Rada/Uruguai

63
Spirito Santo

Voz: Spirito Santo


Baixo: Leri Machado
Violão: Lula Espirito Santo
Bateria: Jahir Soares
Guitarra: Reinaldo Amâncio
Saxes: Antônio Saraiva (artista convidado especial)
Tambores: Joaco Vaccari (artista convidado), 
Percussão:Swamy Shopa/Júnior Crispim
Coro: Lula Espirito Santo/Spirito Santo/Samuka/Mônica
Rangel e Roberta Orlans

3- ULELELÉ – Tema tradicional bantu (Remastered/ Live


in 1981)
Autor: Domínio Público
Voz: Spirito Santo
Baixo: Lula Espírito Santo
Bateria: Zé Maria “Kitu” Flores
Guitarra: Naval
Percussão: Samuka/Spirito Santo

4- PAPA LOKO – Ponto de Vudu haitiano


Domínio público/Haiti

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Vissungo - Kilomboloko

Voz: Spirito Santo


Baixo: Joaco Vaccari (artista convidado)
Violão:Lula Espirito Santo
Bateria: Jahir Soares 
Vocal::Lula Espirito Santo
Percussão: Swamy Shopa/Spirito Santo

5-XANANA – Polifonia de marimbas em 3/4(Remastered/


Musikfabrik 2001 - part. Vissungo 2018)
Autor: Spirito Santo/ Eber Freitas
Vozes: Spirito Santo  e Luizão Bastos
Marimba solo e marimba soprano 1: Spirito Santo
Marimba Baixo: Umberto Alves (in memorian)
Marimba tema tenor: Eber Freitas
Violão: Lula Espírito Santo
Baixo: Joaco Vaccari ( artista convidado)
Percussão: Eber Freitas, Umberto Alves e Luisão Bastos
(in memorian)

6-DAMBALAH – Seção de percussão (Remastered/ Mu-


sikfabrik 2001 - part. Vissungo 2009)
Autor: Spirito Santo

65
Spirito Santo

Percussão 1- Solo Djembè/ Repique: Spirito Santo


Percussão 2: Surdo “Tímpano”/congas: Luisão Bastos
(in memorian)
Percussão 3 / Congas/Caixa: Eber de Freitas
Percussão 4: Agogô/ Bongô- Umberto Alves (in memo-
rian)

7- KILOMBOLOKO – Funk/Samba
Autor: Spirito Santo
(Introdução) Cavaquinho e voz: Lula Espirito Santo
Vozes: Spirito Santo e Samuel de Jesus
Base/programação: Brenno Dub Rezende
Baixo: Joaco Vaccari (artista convidado)
Guitarra :Reinaldo Amâncio
Côro “Feminino”: Lula Espirito Santo, Spirito Santo e
Samuel de Jesus

8-CURRAL DAS ÉGUAS - Samba


Autor: Spirito Santo/Roberto Nascimento
Voz: Spirito Santo
Vocal: Lula Espírito Santo
Cavaquinho: Lula Espirito Santo

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Vissungo - Kilomboloko

Violão: Reinaldo Amâncio


Surdo/Pandeiro/Tamborim e Ganzá: Dinho Rosa
Trombone e Cornet: Saulo Danza   
9- TIO ANTONIO - Kabetula
Sam Mangwana /Angola
Voz: Spirito Santo
Violão:Lula Espírito Santo
Baixo: Leri Machado
Guitarra: Reinaldo Amâncio
Bateria; Jahir Soares
Percussão: Spirito Santo/ Samuel de Jesus e Júnior Cris-
pin

10- DONDÉ / TEMA TERESA – Jongo/ Salsa africana


Spirito Santo/Domínio Público
Voz Introdução arquivo K7/Mp3: Tia Tereza (In Memo-
rian) Fita gravada em pesquisa de 1973 por Spírito Santo
Voz: Spirito Santo
Guitarra: Reinaldo Amâncio
Baixo: Leri Machado
Violão:Lula Espirito Santo
Côro: Spirito Santo/Lula Espirito Santo/ Leri Machado

67
Spirito Santo

Percussão: Swamy Shopa/ Spirito Santo


11- TRANCELIM – Moda de Viola
Domínio Público/Brasil
Vozes: Lula Espírito Santo e Spirito Santo
Viola Caipira: Lula Espírito Santo 
Viola Braguesa: Samuel Araújo (artista convidado)

Gravado no Estúdio Livre, Rio de Janeiro por Luiz Filipe


Cavalieri (faixas 01, 02 , 04, 07, 08, 10, 11)
Tomba Records: (faixa 09) por Bruno Marcus
Estúdio Uzina: (faixa 5 e 6) Ricardo Calafate
Mixagens: Felipe Cavalieri e Joaco Vaccari
Masterização: Renato Pereira e Ricardo Rente

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Vissungo - Kilomboloko

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