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O Duelo

Negra e fria noite de um mês que bem poderia ser dezembro ou agosto.
Necessidade de chuva, milharal ou plantação de cebola a ressentir. Sei não... Projeto de lua
nova, fim de minguante. Qualquer coisa assim, data que não me recordo com precisão.
Dias desses - melhor dizendo - noite dessas opacas e omissas, não fosse o encontro que
tentarei narrar.
Lá pelas bandas da CACHOEIRA, vindo de caminhos opostos, seguindo por
estradas diferentes, defrontaram-se a CULTURA e a POLÍTICA.
A CULTURA de bengala, cansaço visível diante de uma luta inglória. A POLÍTICA de
guarda-chuva em punho, colete e "sobretudo", distribuindo sorrisos e promessas.
Há muito os dois se evitavam. Um por sentir as suas esperanças à porta da miséria,
o outro por não ter como se explicar. Como tudo tem seu dia, o inevitável aconteceu.
Enfim a CULTURA e a POLÍTICA cara-a-cara, resmungos e caretas, cuspidelas
no chão... Diálogo de envergonhar Camões e Bilac, de fazer inveja a Bocage e ao
QUIRINO. Nome de mãe, ir-e-vir a lugares incomuns tornou-se a tônica da conversação.
Não fosse a intervenção do ESPIÃO, sempre presente nos locais improváveis, haveria
morte. Aparteando-os e tentando controlá-los, o ESPIÃO contou com a pronta
colaboração do SAPÉ, caminhante incansável nas madrugadas em busca de inspiração e
sossego.
A única saída plausível e aceitável foi marcar um duelo no estilo antigo e clássico.
Consideraram como local mais indicado, a saída da antiga estrada para Ubá, pouco após a
gameleira centenária, na primeira curva. Como padrinho de arma a CULTURA escolheu o
ATENEU SAPEENSE, a POLÍTICA preferiu a AREG.
Para testemunhas convidaram A VOZ DE GUIDOVAL, o MARLIÉRÈ, o
GUIDOVALENSE, O SAPÉ, o SACA-ROLHA, o SAPEENSE, o TURUNAS e o
ESPIÃO.
Ninguém queira aceitar a responsabilidade de ser o juiz deste evento. Com muito
custo, após vasta argumentação o CHOPOTÓ concordou, porém com uma ressalva :
- Serei juiz desde que eu possa ficar a uma distância considerável. Não quero
perturbar o meu curso pacato, não desejo complicações com a polícia, já que tais
"encontros" são proibidos por lei.
Aliás isto muito contribuiu para que o duelo não fosse preparado e badalado pelos
arredores, o que ocasionou a ausência de curiosos.
No dia determinado, que não posso precisar, verão ou outono, todos os envolvidos
marcaram presença. As testemunhas, os padrinhos de arma e o juiz CHOPOTÓ a uma
certa distância como combinado.
A CULTURA chegou um pouco mais cedo. A POLÍTICA, como de costume, atrasou um
pouco devido a burocracia. Num clima de suspense e inquietação a CULTURA escolheu
como arma a "palavra", a POLÍTICA ficou com a "meia-palavra".
O CHOPOTÓ deu o sinal de longe, numa época em que a poluição em nome do
progresso não agredia. Contaram-se os passos. Viraram-se ao mesmo instante. A
CULTURA mais rápida lançou no ar :
- Inútil !
Não afetou e nem tampouco sensibilizou a POLÍTICA. Esta por sua vez, milésimos de
segundos depois, antes mesmo que o eco se consumisse (inútil) no vale vociferou :
- Fé-da-pu...
O bastante para fulminar a CULTURA. Acorreram-se todos juntos à CULTURA. Nada
havia a fazer. Constataram-se o óbvio e o óbito.
Marcaram o enterro para o dia seguinte. Entretanto na hora de mudar a roupa da
CULTURA, o seu fiel amigo SACA-ROLHA, percebeu leve pulsação. Não divulgou o
fato para causar impacto, alvoroço.
A CULTURA não estava morta e sim num estado de catalepsia. De comum acordo o
SACA-ROLHA e o ESPIÃO, sempre sabendo das coisas, resolveram escondê-la em
local adequado, para que mais tarde pudesse ser medicada.
No caixão colocaram cinzas e não deixaram que ninguém o abrisse no velório para o
último adeus.
A POLÍTICA e a politicagem fizeram quarto entre lágrimas de pesar e fingimento. Houve
o enterro, sino, choro e missa. Só ninguém sabia exceto o SACA-ROLHA e o ESPIÃO,
que estavam enterrando as cinzas da ignorância.
Hoje algumas pessoas idealistas andam à procura de médicos e enfermeiros que consigam
tirar a CULTURA deste estado cataléptico.
O local onde sucedeu o duelo o povo resolveu denominá-lo de "CURVA da MORTE".

Verbetes para quem não conhece a história da cidade de GUIDOVAL

 QUIRINO : Cidadão simples, humilde, que viveu por mais de 80 anos,


falecendo em meados da década de 90. Natural da cidade de Miraí, era um louco
manso, emérito tocador de sinos de igrejas, conhecendo diversas harmonias e
cadências, conseguindo sons inacreditáveis. Peregrino percorria as cidades das
redondezas como : Guidoval, Visconde do Rio Branco, Ubá, Rodeiro e
Cataguases. Era capaz de recitar (xingar) palavrões que nem o Aurélio
conseguiu um dia registrar.
 AREG : Sigla do projeto de clube (Associação Recreativa e Esportiva
Guidovalense) que não passou dos alicerces e estruturas fantasmas. O insucesso
se deve as picuinhas políticas do município. Hoje, no local, abriga a Escola
Municipal Antônio José Barbosa e Centro de Saúde "Francisco Moacir da
Silva".
 CHOPOTÓ : Rio que banha e adorna a cidade.
 CACHOEIRA : Local do Rio Chopotó que antes da poluição que atualmente o
destrói servia para banhos das crianças e dos jovens, das pescaria dos mais
velhos e tanque das tradicionais lavadeiras.
 ATENEU SAPEENSE : Teatro lítero-dramático-musical que existiu na cidade
e foi fundado por Belarmino Campos
 TURNAS e SAPEENSE : Clubes carnavalescos que existiram antigamente na
cidade
 A VOZ DE GUIDOVAL, MARLIÉRÈ, GUIDOVALENSE, O SAPÉ, O
ESPIÃO : JORNAIS que existiram na cidade
 SACA-ROLHA : JORNAL que resiste bravamente ao tempo
Publicado no jornal SACA-ROLHA em 27/08/77 e Setembro/77 (Nºs 12 e 13)

Anos JK

Como acontece em qualquer ano, 1.959 teve as suas histórias para contar.
Pelas ruas, da então pacata Belo Horizonte; ouvia-se assobios da marchinha “Engole ele,
paletó”, sucesso carnavalesco no ano anterior.
A Igreja São Francisco de Assis, na Pampulha; construída na gestão do então
prefeito Juscelino Kubitshek, depois de longos anos interditada pelas autoridades católicas;
era benzida por D. João de Resende Costa. Este lindo projeto arquitetônico de Oscar
Niemeyer, com murais de Portinari , jardins de Burle Marx e painéis em baixo relevo do
escultor Alfredo Cheschiatti, ainda embeleza a nossa cidade.
O nosso mineiro de Diamantina, na presidência do Brasil; alçava vôos mais
ambiciosos, na construção da nova capital, Brasília.
O país vivia momentos de cívica ressaca com a conquista da Copa do Mundo na
Suécia, recebia os nossos campeões mundiais de Basquete e a tenista Maria Ester Bueno,
campeã do torneio de Wimbledon.
O Cinema Novo mudava os rumos da sétima arte, no país; Glaúber Rocha filmava
Barravento. O filme “Orfeu do Carnaval” recebia a Palma de Ouro no festival de Cannes
O disco “Chega de Saudade” , de João Gilberto, marcava o início da Bossa Nova.
Democraticamente o país se livrava da Revolta de Aragarças.
Enquanto toda esta efervescência ocorria, no bairro São Lucas, a boêmia marcava
presença através de Paulo Papini, Múcio e outros.
Vendo o peixe pelo preço que comprei, ou quase.

Após uma noite-madrugada, de um sem número de doses generosas de whisky e


saideiras, colóquios etílicos, repletos de filosofias e soluções para todos os problemas do
mundo, às 5 horas da manhã, o Múcio chega ao seu tugúrio.
Recebido pela companheira de todas as horas e a bondade das esposas
compreensivas aos noctívagos, Múcio é interpelado :
- Isto são horas ?
Com o jornal Estado de Minas sob as axilas e tentando manter um equilíbrio que o álcool já
não permitia, Múcio devolve com ares de suspeito espanto :
- Você não sabe ?
- Sabe o quê Múcio?
- O Errol Flynn...
- Que que tem o Errol Flynn ?
Com se a notícia pudesse causar grande dor à esposa, foi dando-a em conta-gotas.
- O ... Errol ... Flynn ... morreu ...
- MÚCIO... e o que é que você tem com o Errol Flynn ?
- Eu... eu não tenho nada, mas o Paulo (Papini) está inconsolável.
E com ares de quem é eternamente solidário aos amigos, adentrou a sua casa, tentando
manter a pose nos passos e nos gestos.
No caminho, para a sua cama, em busca do repouso necessário, cumprida a missão de
amenizar a tristeza do amigo, deixou sobre a mesa o Estado de Minas, onde se lia a
manchete : MORREU ERROL FLYNN.
Ildefonso José Vieira - 06/08/95
Miséria da Alma Humana

Fecha o semáforo da avenida Francisco Sales com avenida Brasil, coração boêmio do
Bairro São Lucas, frente ao barzinho TAROT. Paro o carro.
São quase 13:00 Hs, início do mês de junho, que apesar de outono no fim, já se prenuncia
em frio de inverno belo-horizontino, através de seu vento miúdo e renitente.
Sentado na lateral, da rua, o paraplégico, esmoler, descamisado literalmente, expõe a
mudança do tempo, através dos poros de seu dorso desnudo, pele, pelos empolados e hirtos.
Ironia, ou não; do destino, momentos antes, havia eu tirado do porta-malas, de meu carro,
uma blusa, que herdei, de meu pai, após a sua morte. Por prudência, nesses tempos
instáveis, deixo-a sempre ao meu alcance. Naquele instante, encontrava-se estirada no
banco do carona.
O sinal permanece fechado.
O mendigo, contrariando o costume instintivo, nada me pediu. Desgraçadamente, batia
fortemente com as mãos às pernas inertes. Gesto de revolta e desespero? Chantagem
emocional? Fúria dos desamparados a praguejar a sua sina ? Não importa. Pus-me a
refletir.
O vermelho do farol, daltonicamente imutável.
A blusa cinza que poderia agasalhar o pedinte, bem ao meu lado.
Fiz tenção em tirar uma moeda qualquer e dar ao pobre que nada me pedira. Não tinha
moedas na carteira ou outra quantia insignificante que se costuma dar aos infortunados.
Pensei em meu pai, na sua benemerência conhecida e reconhecida em Guidoval, pequena
cidade mineira, da Zona da Mata. Assenti, com meus botões; meu pai lhe daria a blusa
incontinenti.
Cogitei em lhe dar a blusa de meu pai. Cismei, será que é isto que o meu pai quer, seja de
onde estiver? Meditei, alguém está me colocando à prova?
Capetinhas e querubins, do sim e do não, ziguezaguearam meu pensamento, argumentando
e contra : “Estás querendo comprar uma passagem para o céu”; “Insensível, desumano,
egoísta”; “são francisco do asfalto poluído”; “quixote das causas perdidas”.
A sinaleira, nada de mudar a cor.
De soslaio, fui extraindo estas observações, não tive coragem de me fixar na fragilidade do
ser humano prostrado ao chão, ao meu lado.
Tive tempo de raciocinar sobre a falência de nossas instituições, e arregimentei álibis e
cúmplices, nos nossos governantes, que não conseguem, pelo menos; cuidar dos menos
favorecidos, das crianças, dos velhos. Emas em palácios calafetados.
Indiferente aos meus devaneios, o sinal de trânsito, por fim mudou para o verde, sem
esperança. O tráfego, a vida seguindo o seu fluxo. Arranquei o veículo, fui para o serviço,
com a alma mais fria.

Ildefonso José Vieira


05/06/95

Bondade Interior, Esperteza Capital


Aconteceu lá prá banda do Santa Efigênia. Nenhum preconceito com o bairro, morei lá,
guardo amigos e boas lembranças. Para ser mais preciso, na Rua Niquelina, numa loja,
recém-inaugurada; daquelas que de tudo um pouco tem. A história, me contou a
proprietária, moça do interior, coração de mulher, alma mineira.
Com a presteza de comerciante, em início de atividade, disposta a cativar prováveis
clientes, dirigiu-se ao senhor, acima da meia-idade, que adentrara o seu recinto.
- Deseja alguma coisa?
- Nada não... Quanto custa esta bicicleta ?
- Oitenta reais.
- Pois é, eu tenho quatro netas, e já comprei três bicicletas. Falta uma, para a mais nova.
Por acaso estava passando, vi, pensei... Aliás, na verdade é até coincidência, pois eu
passo sempre por aqui, para levar uns legumes, para um asilo ali em cima e nem tinha
reparado na existência do estabelecimento.
- É , faz pouco tempo que estamos aqui. Cidade grande é difícil, sabe.
- Como vai a sua terra ?
- Guidoval !? , tá jóia. Tive lá semana passada.
- Não diga! Também sou de lá. Qual a sua família?
- Do Zizinho do Marcílio.
- É mesmo, o Sô Marcílio é seu avô?
- Você o conheceu?
- Muito.
- E você é de qual da família ?
- Moreira.
- Parente do Angelino?
- Conhece o Angelino? É meu tio. Mundo pequeno esse. Olha aqui.
De longe o senhor mostrou a carteira de identidade. Deu para ler de relance e
rapidamente, Valdevino Moreira Leite. Mais não deu, o senhor guardou o documento.
A moça, também nem tão moça assim, para não desviar o rumo da prosa, voltou ao
negócio.
- Vai levar bicicleta ?
- Mas como eu estava contando, tenho uma fazenda, lá em Betim e vendo no CEASA
minhas verdurinhas, mas sempre guardo alguma coisa para asilo. A bicicleta fica prá
depois. Tava até querendo. Acontece, você não vai nem acreditar. A minha esposa
retirou os dois seios. Estou vindo da drogaria Araújo, fui lá comprar o soro, que o
médico receitou. Conterrânea, não se pode descuidar. Peguei a carteira, cadê o
dinheiro? Me roubaram e eu nem vi. E o pior é que desgraça não vem só. Meu
empregado me deixou lá no centro e voltou com a kombi para a fazenda. Tô precisando
de dinheiro para aviar a receita. Como diz no interior. Tô na mão de calango.
- Precisa de quanto ?
- Que isto menina, não esquenta não, eu me arrumo.
- Mas fala quanto
- Já que você insiste, é apenas vinte reais.
- Vou preencher o cheque.
- Não precisa, não quero dar amolação. Primeira vez que a gente encontra...e...
- Que nada, você conhece como nós lá de Guidoval somos.
- Mas...
- Depois você me paga. Vou preencher o cheque
- Não é justo... Fico sem graça. Você vai pensar o quê!
- Toma o cheque.
- Eu vou aceitar, mas você fica com o meu relógio. Estimação, foi de meu avô.
- Não precisa.
O senhor ameaçou, dessas ameaças que não se concretizam; a tirar o relógio do pulso.
- Toma o relógio, que quando eu vier pagar, você me devolve, inclusive aproveito e
trago umas coisinhas, mandioca, abobrinha, quiabo, umas couve, jiló. Você gosta de
jiló?
- Gosto, com angu e lombo de porco, uma delícia. Agora o relógio nem pensar.
- Aí eu fico sem jeito. Mas prometo que as 2 horas da tarde eu volto com o seu dinheiro.
- Passa mais tarde, lá prás 4 horas. Vou sair para resolver uns problemas.
- Então até as quatro.
O senhor se foi, rápido, sumiu, desapareceu, pelo menos, já se passaram 4 semanas.
Me contou mais a dona da loja. Veja como fui inocente. Chega um homem que nunca vi.
Fala das netinhas, o zeloso avô. Cita um asilo de velhos e sua caridade comovente.
Apresenta uma doença cruel para a sua esposa e qualquer mulher. Pesca de minha boca,
que sou do interior, o nome da cidade, meu pai e avô. Entrego-lhe de bandeja um parente.
Moreira existe em toda parte. Se faz vítima de um furto e desprotegido, a pé por culpa do
empregado. Mostra-se grato, a simular recompensa em legumes e verduras. Oferece
honestidade, em forma de relógio de estimação por garantia. Tanta incoerência e eu caí
como uma tola.
Para encerrar, a moça foi ao banco, naquela tarde. O cheque foi descontado na boca do
caixa. Bondade interior, esperteza capital.

Ildefonso José Vieira


28/06/95

Três Leões
Em 1984, à porta de minha casa, encontrei um envelope sem destinatário e sem remetente.
Curioso, como qualquer pessoa normal, não contive a indiscrição: Abri-o. Dentro, a
seguinte carta.
África, noite de lua grande.
Prezado desconhecido,
Mesmo sabendo que este relato irá se juntar aos aborrecimentos que o cotidiano cisma
sempre de aprontar, lancei esta carta ao vento. Que bons sentimentos a adote.
Quero crer que esta missiva acabará por encontrar boas patas, digo mãos.
Deixando de lado o leão-lero e desconversa, sigo adiante.
Sou o caçula de uma família de felinos. Família, por bem dizer, pequena, para leões de
plena selva africana. Meu pai tinha tudo para ser o rei. Um dia, uma corja de americanos,
em férias, transformaram-no em troféu. Minha mãe, sorte melhor teve, ao faleceu num
parto prematuro. Leoa também morre de parto. Inda bem que aqui não tem veterinário.
Senão morria, era, mais.
O companheiro, que está aí lendo, deve de estar pensando:
- Cumé que um leãozinho da selva pode saber de parto, veterinário, correio, o escambau ?
Esclareço. Aqui chega, com relativo atraso, a READERS DIGEST.
Antes que a sua a sua paciência me lance ao lixo, a carta, espero entrar no assunto que me
fez arranhar estas linhas.
Como caçula e órfão, desejo saber notícias de meus dois irmãos, que cedo-cedo,
abandonaram a nossa selva, hoje não tanto mais selva, vez que uns caras, serra-circular em
punho, desbastando aqui, acolá, transformaram a minha selva-terra, mais prá caatinga que
prá cerrado. Já tem leônculos, sem erudição, que para ver floresta, andam assistindo filme
de Jacques Cousteau.
Mas voltando aos meus dois irmãos. Não repare muito em carta de leão da selva. Sempre se
perde no assunto. Vai-e-volta. Vá escutando. Lendo. Um dos meus irmãos, posso adiantar
que, foi tentar a sorte num circo.
Mania, talvez, de leão querer lamber mulher. Dizem que é bom. Eu mesmo nunca tive a
oportunidade. Quem sabe um dia. Também não posso me queixar. Tenho a minha
leoazinha que anda me aquecendo em noites de verão e inverno. De quando em vez ela fica
uma fera por coisa de nada. Casamento tem dessas.
Voltando a esse meu irmão. O circo tem os seus atrativos. Para leão comodista, nada
melhor para fugir da saga desses caçadores fajutos, instintos homenalescos. Sem contar as
mordomias. Não é lá nenhuma estatal. Jaula duplex, com algumas leoas serelepes e ainda
por cima carne de graça, sem precisar correr atrás de lebres e linces. A bem da verdade
carne de gato, que dá desinteria das brabas, até acostumar. Mas carne é carne. Ruim são os
tempos de vacas magras, do circo. Aí é angu e ração. Quando tem. Mas pior é aqui, na
selva, a gente correr, correr, atrás de lebre e depois comer gato por lebre. Isso quando
aparece, aqui nesta selva, mais prá mata, caatinga, quase cerrado.
É o meu irmão deve de estar numa boa. Eu só queria notícias dele, quem sabe ele não me
arruma uma boquinha no espetáculo. Mesmo de marra-cachorro. Aqueles caras que só
trabalham quando o circo não está trabalhando.
A coisa anda feia, prezado desconhecido. Imagine ter cuidar de um tio desdentado. Triste?
Ponha-se no meu lugar. Nada mais triste que leão desdentado.
O titio até que não é exigente não. Qualquer bolinho de soja, parecido com carne, não sei
quem falou que o gosto é parecido, lhe satisfaz.
Acontece que a soja que tínhamos aqui virou produto de exportação. O FMI não dá sopa
não. Pobre do meu tio, logo ele que criou a FUNANIMAL, sociedade séria, sem desvios de
verba, presidente com eleição direta.
- Para quem só a READERS DIGEST, esse leão, anda conjecturando, mais que político
mineiro de antigamente.
Tá vendo, amigo, já parti para a intimidade, como nos enganamos com as aparências. Aqui,
com um pouquinho mais de atraso, chega a Folha de São Paulo, Financial Times, JB, Le
Monde, Pasquim, Saca-Rolha ( jornaleco de Guidoval, cidade pequena do interior de
Minas) e outros informativos. Se eu dissesse isto no início, você ia ler a carta? Lia é que
nunca.
Com união, montamos uma pequena biblioteca. Leão alfabetizado já anda numa pindaíba
danada, imagine analfabeto.
Só não consegui ler o Capital. Achei maçante e de massa nem leão italiano, se é que existe,
há-de gostar.
Vê-se localiza o meu irmão circense e me mande notícias.
Calma, não terminei ainda os meus pedidos. Esqueceu-se do meu outro irmão? Não sei o
seu paradeiro. Dizem que foi parar no zoológico. É bem provável. Não gostava nem de
cofiar a juba. Daí, compreende-se a sua inoperância, um acomodado. Em se tratando de
leão é pior que jejum de carne na quaresma.
Dizem à boca pequena, reparem só a boquinha do Jacaré fazendo fofoca, que zoológico não
passa de um cercado, cheio de bichos sonolentos, preguiçosos, onde pais imbecis, no fim-
de-semana, levam seus filhos, que por sua vez, na santa ignorância pueril, despejam
pipocas, elefantes, macacos, zebras, a-tudo-quanto-é-bicho.
Mesmo com estes desacertos, imperdoáveis, há algumas recompensas. Comida de graça,
abrigo dos temporais, sem BNH, isto no tempo em que havia o SFH, desobrigatoriedade
de título de eleitor. Também votar em quem ?
Meu relato, desvia-se em alegorias. Enfim de circos e zoológicos, de parasitas e palhaços, o
mundo está repleto.
Para encerrar, alguns detalhes dos meus leãomanos.
O Ré Beleão, que aderiu ao mundo circense, possui debaixo da orelha direita, uma pinta
vermelha, em forma de estrela. Em se tratando de pessoa bastante detalhista, você notará
pequena cárie, no leonino (canino), superior esquerdo.
O Sossé Galeão, que preferiu o zoológico, puxa da perna (pata) esquerda, sem
desmunhecar. Ao atento observador, não escapará que um dos fios da espessa juba,
identifica-se perfeitamente com a cor azul-outono-celeste.
Reconfortado, por sua prestimosa atenção, aguardo novidades, empenhando minha gratidão
antecipada.
Pela desgraça do Tarzan. Um amplexo de,

Leão Felis Leo

Muitas luas grandes e pequenas depois, pude mandar à selva, cheirando à mata, bem
caatinga, quase cerrado, pelos pés e asas de um pombo-correio com quem fiz amizade, a
carta abaixo.
Vereda-do-imbuzeiro, Noite de Frio e Chuva.

Feramigo Felis Leo,

A sua correspondência, por circunstância do destino, aportou em minhas mãos. Com o


propósito de dignificar um pouquinho os homens, decidi investigar o paradeiro de seus
irmãos.
A princípio, não percebi as dificuldades em identificar uma estrela vermelha, sob a orelha,
tampouco o fio azul-outono-celeste na juba de um leão. Tardiamente, compreendi que nem
os domadores e mesmo os zoozeladores, possuem laços tão íntimos com os felídeos, para
desvendar tais particularidades e peculiaridades.
Resolvi, por questão de comodidade e prudência, pesquisar por outros caminhos. Acredito,
com ressalvas, ter atingido o meu e o seu objetivo.
Confesso que a minha mania por frequentar cinemas, ajudou-me descobrir o Ré Beleão.
Para surpresa minha, sua e do tio desdentado, asseguro-lhe que seu irmão, trocou o circo
pelo cinema. Sua função, restringe-se a sorrir. Melhor dizendo, bocejar no início das
películas da Metro.
Não sei como pude demorar tanto em enxergar a cárie no leonino (canino) superior
esquerdo.
Agora você certamente há-de querer me interrogar : E o Sossé Galeão ? Sossega leão, digo
eu. Calma. Localizei-o.
Pela descrição que você me fez, não mudou muito. Burocrata. Trocou o zoológico pela
Receita Federal. Travestiu-se, com ou sem segundas intenções, em leão-propaganda do
imposto de renda. Sabe aquela pata, perna, manquitola? Já desmunheca, sinto em dizer.
Sabe, amigo Felis Leo, agora gostaria de lhe dar um conselho. Palavra de quem nunca foi
ou pretende ser caçador, fique aí na sua selva, cheirando a mata, bem caatinga, quase
cerrado, com o seu tio desdentado, suas ambições, seu reino por uma lebre, com a leoa de
tantos verões e invernos, mas poupe a sua raça de tantos e mais desatinos e desconsolos.
Não se venda. Não se corrompa. Não queira vir para a cidade, principalmente cidade
grande. Isto aqui é uma selva para animais mais ferozes, assim tipo homem. Mesmo que no
amanhã próximo, um americano, dois brasileiros, duzentos russos, quatrocentos e noventa e
um ingleses, novecentos e oitenta e dois indianos, mil novecentos e sessenta e quatro
pinochet's o transforme num troféu inútil. Vale a pena você correr o risco por aí mesmo.
Fique na sua floresta, mesmo que já não seja tão floresta como antigamente. O mundo
precisa de pessoas, animais puros como você. Aí estará mais protegido. Acredite se quiser.
Achei os seus irmãos, que você não se perca.
Um abraço, do amigo, de signo ascendente.
Com a garra de sempre ...

Ildefonso José Vieira - Dé do Zizinho

A Família Ideal

Comparo a organização de um país a uma família.


O presidente , o Pai. o Congresso, a Mãe, a razão, o leme que não deixa o barco
desgovernar.
O Avô, a Justiça, que corrige seus filhos e netos, quando estes enveredam-se pelos
caminhos da perdição.
Os Filhos, os Cidadãos, a seguir o exemplo do Pai, da Mãe, confiante no sábio Avô.
Só pode dar certo se todos cumprirem as suas obrigações.
Se o Pai não dá o exemplo, os Avós não se intrometem a tempo e a Mãe passa a mão na
cabeça, os Filhos boa coisa, não serão.
Talvez a comparação seja despropositada, inverossímil, ou merecedora de mais
explicações. O dito popular diz: "Casa que falta pão, todos brigam e ninguém tem razão".
Nosso país , sem Pai, há várias gerações, perdeu o sentido de família. Quando me refiro ao
Pai, não é o aplicado a Getúlio Vargas. Pai dos pobres, Mãe dos ricos. O sentido figurado
que busco é de uma família comum. A família é o gérmen da sociedade disse um escritor, o
nome não vem ao caso.(Coelho Neto ou Rui Barbosa).
A Mãe, desculpem Mães do Brasil o exemplo, enveredou por caminhos, becos, atalhos,
nada recomendáveis.
E Avô, nem aí, deixou. Nem um puxão de orelha, nem no Pai, nem na Mãe, nos inúmeros
Filhos que passaram pelo poder e dele somente se beneficiaram, sem um mínimo de
decência.
Os filhos puxam ao que seus lhe são. Daí a cervejinha pro guarda da esquina. Avançar o
sinal vermelho, aposentar com plena saúde, colar na prova de matemática, furar a fila,
surrupiar a prova de física, adulterar a nota de português, "sabe com quem está falando",
credenciais falsas, não pagar o papagaio vencido, cantar a mulher do vizinho, levar
vantagem em tudo, sonegar o imposto que não vai ser aplicado em obra alguma, a fezinha
no jogo-de-bicho, não devolver o troco errado, trocar etiqueta de mercadoria no
supermercado, atestado médico falso, estacionar em fila dupla. Chega de exemplo.
O cartola de clube de futebol que interrompe uma partida quando o juiz marca um pênalti
contra o se u time, dá um tiro na bola e muda a decisão do árbitro. Não pude deixar de
apresentar mais um exemplo.
Mas a família é muito grande. A maioria insiste em ser honesta. Honesta e pobre.
Miserável e faminta. Via-de-regra, o Pai, a Mãe, tenta proteger os seus filhos menos
favorecidos. Parece que os Pais anteriores sempre consideraram esses filhos como
bastardos. Talvez nem soubessem da existência deles. Pais descuidados, Mães relapsas.
Filhos de muitos Pais e Mães.
Mas não posso deixar de me lembrar dos tios. Dizem até que tio nem parente é. No nosso
país são os empresários. Não vêem a hora de dividir a herança. Querem sempre a parte
maior. A parte do leão, até o da receita federal, que muitas vezes fica a ver navios.
E as tias? As tias são o corporativismo. Querem um bom casamento só para os filhos. Os
sobrinhos que se danem.
E os militares? Compará-los à sogra é sacanagem. Com as sogras. Vocês já conhecem a
velha!
A crise é familiar. O Pai, há muito não se preocupa com os filhos. Com a saúde, a
educação, a moradia, os transportes, o saneamento básico, a formação moral, o exemplo, a
dignidade.
A Mãe, coitada, deixa o marido fazer das suas, desde que ela também prevarique e dê os
seus pulos.
O Avô, pobrezinho, é cego, como a justiça, só não a faz. Também não escuta e não fala.
Os tios, cada dia mais gordos. Com dólares por este mundão afora.
Generosos dão até esmola para o PC. Tanta caridade ruboriza até São Vicente de Paula.
Titias queridas,(cartéis, sindicatos, CUT, estatais, máfia de branco(médicos), de preto
(advogados), do pó), a todo custo querem se preservar, monopolizar o privilégio, donas,
madonas, mandonas.
Os cunhados só podem ser os banqueiros. Sempre atrás de uma boa oportunidade.

" Resolvem entrar no jogo de emitir moeda. Pagam juros altos. Os tios banqueiros adoram
quando papai entra no jogo. Só não querem que a galinha dos ovos de ouro morra.
A imprensa, a vizinha fofoqueira, da janela tudo escuta, tudo vê, só que conta o caso do
jeito que lhe interessa, como se verdade fosse sempre.
O economista é o louco de estimação que toda família que se preza tem, principalmente, a
mineira, diz Fernando Sabino.
O primo da capital é o português. Vem prá visitar por uma semana, vai ficando, um mês,
enquanto houver mel e sopa.
Quando vamos visitá-lo, sempre apronta uma desculpa. A casa tá cheia, em reforma, o
síndico proibiu a recepção a parentes, coisas do condomínio. Estranho (?) não pode entrar
no prédio, etc...
Simples resolver o problema. É preciso cumprir a lei. A constituição, o código civil, o
penal, a CLT, o declaração do direito humano, a declaração do direito da criança, o direito
do cidadão, a portaria do Clube recreativo, o estatuto do condomínio, as regras do jogo, as
leis de trânsito, os Dez mandamentos da Lei de Deus.

Eu queria mesmo era falar da dívida. Externa, interna, moral, social, política, etc... Mas
primeiro essa família precisa tomar jeito. Tento. Vergonha. Que cada um cumpra o seu
dever. O executivo, o legislativo, o judiciário, o cidadão, o empresário, o banqueiro, o
sindicato, os profissionais liberais, os comerciantes.

CAUSOS do Sapé
BIS - Bebeto Ramos

Esta história é do tempo em que o Chopotó tinha água despoluida e peixe. Já se passaram
mais de 40 anos. Nesse tempo Guidoval tinha até cinema e local para artistas se
apresentarem em shows e peças teatrais.
Vamos ao fato. Uma cantora argentina apresentava-se no cinema do João Marceneiro.
Cantava os seus tangos sob os acordes de um bandônion.
Após encerrar o que seria a última canção, o Bebeto Ramos, então um rapazola,
levantou-se e pediu bis. Os amigos leais de farra acompanharam-no, como sempre.
A cantora, toda cheia de si, repetiu a canção.
Nem bem acabara a música e novamente o Bebeto pediu outro bis, agora com a
cumplicidade da metade do público e dos amigos. Antigamente era comum pedir bis.
A cantora entoou a mesma canção, sempre interpelada ao final com um pedido de bis.
O Bebeto a esta altura contava com a solidariedade de toda a platéia. A cantora, apesar de
rechonchuda; parecia até flutuar de vaidade no palco. O pedido de bis era demonstração de
carinho e de que o pessoal estava gostando do espetáculo.
Quando estava quase encerrando a repetitiva canção pela 6ª vez, o Bebeto, de pé, com a
cara mais limpa, que Deus lhe deu; a voz empostada, gritou para que todos escutassem :
- Vai cantar até aprender.
O empresário da esfuziante cantora portenha quis porque quis brigar e só não teve início a
uma guerra entre a Argentina e Sapé de Ubá por causa da turma do deixa-disso.

Coveiro Convicto
Na certeza de que seu familiar morrera envenenado, um conterrâneo nosso, conseguiu
após 3 meses de luta na justiça, que fosse feito uma autópsia no corpo do cadáver de seu
parente.
A perícia técnica chegou em Guidoval, subiu a Rua da Saudade e entrou o nosso campo
santo, onde repousam saudosos antepassados e amigos apressados.
A autoridade da Medicina Legal solicitou ao coveiro para desenterrar o corpo da suposta
vítima, suspeita de não ter falecido de causas naturais. Aliás, não compreendo este termo
“morte natural”. Para mim a morte é sobrenatural.
O coveiro, funcionário público municipal, não quis nem saber da ordem da autoridade e
respondeu :
- Oiá , doutô eu sou pago para enterrar e não prá desenterrar defunto.
Não houve argumento suficiente para fazê-lo mudar a sua idéia.
Chamaram o Zé Carangola que executou o serviço.
O coveiro, como todo bom curioso; acompanhou de perto todo o trabalho.
Eu até acho que o coveiro está certo.
Coveiro é para enterrar. Para desenterrar talvez fosse necessário contratar um descoveiro.
Ou dez-coveiros ?
Daí, talvez; a explicação para o matagal existente no cemitério. Capinar, também; parece
que não é função do zeloso coveiro municipal.

Liberdade de Expressão

No encerramento dos trabalhos da Câmara Municipal de Guidoval, o Presidente da


Seção, de praxe; anuncia :
- A palavra está livre.
Como sempre acontece, nessas ocasiões; ninguém se atreve a fazer uso da palavra.
Bom, há a danada da exceção. Era o caso do vereador Zé Carlotinha, fazendeiro e de
poucas palavras, que durante o seu mandato, sempre se levantava e dizia perfilado e solene:
Por mim a palavra será e sempre permanecerá livre.
Depois, impassível; sentava-se.
Como diz o nosso grande pensador e filósofo Millor Fernandes : “Livre Pensar, é só
Pensar”.
Equívoco ou Equivôco

O vereador Sebastião Vieira de Andrade, escrivão e tabelião juramentado, dirigia os


trabalhos da Câmara, quando foi interrompido em sua explanação por um vereador :
- Nobre vereador, aí houve um equivôco.
Sebastião Vieira Andrade, mordaz e sarcástico, apesar da aparência sisuda; tentou
corrigir e ajudar ao edil :
- Não seria equívoco ?
- Não é equivôco mesmo.
Para não prolongar a discussão e encerrar a polêmica, propôs-se uma votação. Político
adora voto. Votação secreta, não causa constrangimento. Libera a consciência e falsos
pudores.
Apurados os votos, equivôco ganhou por oito a zero. Sebastião Vieira de Andrade não
teve nem o gostinho do voto minerva no caso de um empate. Como na política nem sempre
ganha o correto.

Dia do Guido

Antônio José Barbosa, jovem vereador, eleito aos 18 anos, de profícuo mandato, dentre
vários projetos, propôs a criação do Dia do Guido.
Além de homenagear Guido Marliérè e a tradicional região da Serra da Onça, criar-se-ia
um fato político, obrigando os nossos governantes municipais a entregar à comunidade,
nesta ocasião; obras públicas de interesse de nossos concidadãos.
Havia ainda a expectativa e a quase certeza, de se acrescentar mais uma data ao nosso
pobre calendário festivo, excetuando-se a Festa de São Pedro no Ribeirão Preto e
SANTANA / Guidovalense Ausente.
O projeto foi aceito com entusiasmo e a unanimidade de todos. O problema surgiu
quando da escolha da data.
Antônio Barbosa tinha a solução. O primeiro domingo de setembro. A festa estaria
sempre próxima a data nacional de 7 de setembro e esta proximidade, em determinados
anos; geraria feriados prolongados, quando as comemorações contariam com a presença
maciça de guidovalenses ausentes.
Acontece que a reunião quase foi pro brejo quando um vereador questionou :
- E se o primeiro domingo cair numa segunda.
Para não cair na gargalhada, os presentes, contiveram, a custo; o riso.
A lei criando o Dia do Guido foi aprovada. No início, nossos governantes até que a
respeitaram e a cumpriram. Parece que caiu no esquecimento. Uma pena, Guidoval merece
mais.

Homem ou Mulher

Por muitos anos, Juca Damato foi o delegado desta Guidoval- Sapé. Usava suspensórios,
óculos na ponta do nariz.
Gostava de jogar Buraco com os amigos e também de mulheres, no que fazia muito bem.
Dizem, não presenciei; que quando chegava uma reclamação na delegacia, ele indagava
para o seu ajudante de ordens:
- É mulher ?
Se o soldado respondia que era homem, Juca Damato decidia:
- É problema pro sargento resolver.
Em se tratando de mulher, Juca Damato, imediatamente atendia:
- Pode mandar entrar. Este caso, resolvo eu.

Barulho do Baralho

Marcílio Vieira, pai do ex-prefeito Zizinho, era sitiante, gostava mesmo é de lidar com
animais, principalmente, mulas e burros.
De gestos cautelosos, fala mansa, não tinha o vício de jogar, beber ou fumar. Mas como
não era de ferro, gostava de sapear o animado jogo de Buraco, que todas as noites ocorria
num sobradão existente na esquina das Rua do Fundão com a Rua dos Tocos. Para uma
referência atual, onde hoje fica a agência do Banco do Brasil.
Marcílio Vieira era aquele sapo calado, que não dava palpite nem na compra nem no
descarte. Não fazia cara feia, não resmungava. Tampouco tinha o atrevimento e a ousadia
de tomar as cartas da mão do jogador.
Sapeava porque não gostava de jogar, ou até mesmo pelo prazer de dizer que não jogava.
Também naquela época não tinha televisão para se ver. Hoje tem, mas só para quem possui
parabólica, aquela bacia enorme e esquisita em cima das casas, mais feia que camisa do
Botafogo secando no varal.
Pois bem... Certo dia, o jogo estava equilibrado e disputadíssimo. Última rodada.
Juca Damato estava por uma carta. Num é que lá fora, inicia-se um murmurinho. Vozes
difusas. Marcílio Vieira chega até à janela e vê que está ocorrendo um enorme bafafá, um
quiproquó qualquer. Várias pessoas envolvidas.
Não querendo perturbar o jogo, Marcílio Vieira, cochicha ao ouvido de Juca Damato :
- A confusão lá fora tá feia. É preciso providências.
Impassível, sem desgrudar os olhos das cartas e do baralho, Juca Damato, que há quatro
rodadas busca a carta prometida, responde baixinho :
- Agüenta aí, que o jogo está terminando.
O vozerio, a algazarra aumenta. Pernadas, poeira levantando, chapéu de palha voando.
Marcílio Vieira, retorna à janela e vê a barafunda crescer e tomar proporções
incontroláveis. Um dos brigões, retira da cintura um objeto. Peixeira ou arma de fogo. Não
dá para distinguir. Volta à mesa e diz impaciente e temeroso :
- Juca, a coisa tá preta, pode até sair morte.
O baralho insensível à busca do delegado, de propósito esconde a carta salvadora.
Imperturbável compra mais uma carta ingrata e pede ao amigo :
- Marcílio, vai controlando a situação. Tô indo.
Marcílio vai até a porta e vê um rapaz atirar com uma garrucha, que masca. Há uma
correria desordenada. Gente indo para a Rua do Campo, Fundão abaixo, Rua dos Tocos
acima e até lá para o lado de lá da ponte, na Rua do Comércio. A briga termina sem
vencidos e vencedores.
Na mesa redonda e verde, o adversário consegue bater e ganhar a partida do Juca
Damato. Desconsolado, levanta, ajeita os suspensórios, conserta os óculos, decidido a por
fim ao imbróglio na rua.
Antes, porém, não resiste à tentação e vira carta que ficou sobre o baralho para ser
comprada.
Cínica, sádica e ironicamente era ela.
Não a rasga e nem a morde, mas bem que ela merecia uns tapas.
Vai até a porta e pergunta :
- Cadê a briga, Marcílio ?
- Juca, os rapazes não agüentaram te esperar e já resolveram a contenda.
- Mas Marcílio, isto era hora deles aprontarem. Basta o danado do baralho.

Pão-durismo
Conto o milagre, mas não o santo. Um conterrâneo é tão pão-duro que perto dele
munheca-de-samambaia parece girassol da Rússia.
Algumas cenas eu vi, outras me contaram. Para se ter uma idéia, ele coloca a pasta de
dente atravessada, na vertical na escova. Não come banana para não jogar a casca fora.
Espirra sem estar gripado só para que alguém lhe diga “Deus te ajude”. Dispensa velório
para não gastar lágrimas.
Assiste a missa pela televisão, na casa do genro para economizar energia elétrica. Na hora
do ofertório, sai de fininho, vai a cozinha beber, de graça; água e cafezinho.
O Grilo do Zé Bento criou um capado a meia com ele. Só engordou a banda do nosso
miserável concidadão.
Se você o vir, se é que já reconheceu de quem estou falando; pulando de um prédio do
20°andar, pule atrás e estarás fazendo um bom negócio.
Na inauguração do Meia-Meia, havia acabado de filar um sonrisal do Vianelo, quando o
jogaram na piscina. Não fez nem borbulha, saiu com o comprimido espremido, intacto; na
mão esquerda.
Certa vez, foi ao Vasco (Reis) da Farmácia e pediu um analgésico para dor de cabeça. Ia
pagar a metade e se dor passase, voltaria para pagar o restante. O Vasco, um emérito
gozador; pegou o comprimido, partiu ao meio, guardou a metade e falou para o nosso
avarento :
- Volte depois para pegar e pagar o restante. Nessa, o sovina não se deu bem.
Para encerrar. Um dia um garoto da roça, perguntou-lhe as horas. Ele já achou um
desaforo, ter que dar as horas. A contragosto, retirou do bolso, o oméga ferradura. Com
rabugice, sem pressa, olhou de meia-jota, sem interesse, falou :
- Quatro horas.
O menino agradeceu e seguiu caminho. Na verdade, registrava-se 16 horas e 14 minutos.
Chico do Felício que estava ao lado comentou:
- O homem é danado. Economiza até os quebrados da hora.

Zé do Fio - Barão

Figura popular, folclórica, o Barão viveu sabiamente a vida. Bon vivant, deixava para
amanhã o que se podia fazer hoje. Parecia até baiano, em que a semana tem oito dias, 2ª,
3ª, 4ª, 5ª, 6ª, sábado, domingo e amanhã.
Cantava, voz tonitruante : “De manhã me faz a barba/ A tarde me dá beijinho/ Engoma meu terno
branco/ E eu saio bem bonitinho”. Ou então : “Esta me dava de tudo/ Me dava meia, sapato/ Terno de
Casimira e Camisa de Veludo”.
A sua frase filosófica mais marcante foi “A vida esta no sentir”.
Certa vez, apanharam-no distraído, às margens do Chopotó, perto da Cachoeira, vara de
pescar à mão. Querendo ironizá-lo, instigaram-no :
- Barão, como é que você quer pescar com o anzol fora d’água ?
- Quem disse, prezado; que eu estou pescando. Estou apenas conversando com a
natureza.

Chuva Passageira
Elpídio, é uma criança com mais de 60 anos. Gosta de fazer tudo ao contrário do que lhe
é mandado. Toca gaita, sem ser virtuoso, entretanto assovia com maestria, imitando aves e
pássaros. Não toca gaita não Elpídio! Não assovia não Elpídio! Não dá coice não Elpídio!
Como uma criancinha birrenta, Elpídio; dá coice, assovia, toca gaita, presente do Dr.
Plínio Meireles, compositor da música do hino de nossa cidade.

Elpídio é uma alma pura que alguns espíritos de porco sentem prazer em atazanar.
Dias passados, Luiza Amélia, filha do saudoso Dr. Mário Meireles, pai também do Dr.
Plínio e do meu amigo Dr. Aulo; chega em casa, correndo, devido ao enorme temporal que
estava por acontecer. Encontra Elpídio regando a horta.
Puxa dois dedos de prosa, com o cidadão adotado e amparado por sua família que nem
quer saber de conversa fiada e a dispensa :
- Deixa eu moiá as planta, Luizamélia; depois chove e eu não termino o serviço.

Sonho Feliz

Zé Fenderracha nasceu para servir. Viveu mais de 86 anos, carregando água potável para
as famílias guidovalenses. Às vezes, em troca de um muito obrigado, às vezes por um prato
de bóia, na maioria das vezes a troco de nada.
Tocava Bumbo ou Prato nas corporações musicais. Suspirava em sua doce flauta,
melodias para virgens moiçolas ou floreava bemóis sufocados por estridentes sustenidos de
pistons em noites carnavalescas.
A vida nunca lhe reservou os primeiros lugares, o proscênio; percorreu-a pelas margens,
com decência, com altivez, sem soberba.
Meu pai, minha mãe, minha família sempre o trataram com dignidade. O parentesco
existente devia-se a minha saudosa vó-madrasta, Jandira.
Tive o privilégio de algumas confidências e torno-me um inconfidente de um de seus
inúmeros sonhos :
“ Caminhava sobre o parapeito da ponte, sobre o Chopotó, quando desequilibrou e caiu. Na queda foi
colhido por um barco repleto de mocinhas de 15 a 18 anos. “
Encerrou a sua narrativa dizendo-me :
- Sou feliz até nos sonhos.
Quem sou eu, pobre mortal; para duvidar dos sonhos dos puros. Que Deus o tenha.
Ninho de Votos
Próximo das eleições municipais, um cidadão, candidato a vereador, que não devo
mencionar o nome; chega para José Vieira Neto, o Zizinho do Marcílio, prefeito da cidade,
na ocasião e diz eufórico :
- Eu tenho 120 votos que ninguém ainda descobriu.
Mineiro, matreiro, com ares de crédulo, sem acreditar, ciente que o voto é a única riqueza
que a democracia deu aos pobres e mesmo assim, a maioria não sabe usar, Zizinho sem se
manifestar em riso, apesar de achar graça interiormente, devolve :
- Preciso descobrir este ninho.
Apurada as eleições, o conterrâneo tem apenas 3 votos.
Com certeza, o candidato a vereador; deve ter escutado poucas e boas de sua esposa, a sua
2ª eleitora fiel, depois do próprio :
- Eu bem que desconfiava que você tinha uma amante.

Atalhos

Em Belo Horizonte, eu dirigia por caminhos tortuosos e indecifráveis, becos e ruelas,


quando meu pai, Zizinho do Marcílio; me interpelou:
- Que caminho é este?
- É atalho. Respondi.
- Meu filho, se atalho fosse bom, ninguém fazia estradas.

Gol Bobo

Cuca sempre gostou de jogar futebol. O seu apelido servia para a torcida inventar alguns
cacófatos. “Tira o Cuca, deixa o Cucaí.” “O Cuca-é-ponta, o Cuca-é-linha.”
Amigo e íntimo da casa, certa feita disse ao meu pai; Zizinho do Marcílio :
- Perdemos o jogo por causa de um gol bobo.
- Porque também não fizeram um gol bobo e empataram a partida. Respondeu Zizinho.

Odilon Pelé
Odilon Pelé, foi centro-avante do Cruzeiro de Guidoval por algumas temporadas. Nunca
foi craque ou teve intimidade com a bola. Aguerrido e de explosão muscular sempre
marcava is seus gols.
E no futebol gol é o que importa.
Eu mesmo vibrei com muitos deles.
Certa feita, foi jogar na vizinha cidade de Rodeiro. Lá chegando, o time teve que vestir o
uniforme glorioso, branco-e-preto, no bambual, ao lado do campo de futebol.
O nosso efêmero atleta, inconformado pela falta de conforto, protestou :
- Este campo não tem VESTIAL. Este time não DITORIA.
Juiz de Embaixada
Jogar na cidade de Ervália sempre foi uma missão de guerra, quase suicida. Pelo menos
antigamente.
O nosso glorioso Cruzeiro, preto-e-branco, numa dessas incursões, sofreu mais que peixe
no nosso poluído Rio Chopotó.
A tradição mandava que o time visitante levasse o juiz. O famoso juiz de embaixada. Este
nome se deve mais porque antes de juiz e profundo conhecedor do esporte bretão, o árbitro
teria que agir como um diplomata a administrar botinadas, ponta-pés, hostilidade e um
resultado que agradasse a todos. Em síntese, uma tarefa impossível.
Num desses entreveros, pois na realidade o que menos existia era competição esportiva, o
juiz de Guidoval, escalado para apitar o confornto, após alguns desagrados à torcida local,
foi expulso. É verdade. Naquela época, era muito mais comum um juiz ser expulso, que um
jogador.
Tiveram que arranjar outro mediador para a contenda.
A muito custo, outro herói destemido do nosso Sapé, aceitou a incumbência de levar a
termo a disputa.
Pouco tempo se passou e a solução era novamente substituir o árbitro.
Daí não houve jeito de conseguir outro atrevido nas hostes do Sapé.
Para prosseguimento do embate foi aceito um juiz local. Não tardou muito e marcou um
penalti. Óbvio, a favor da agremiação da cidade de Ervália.
Em nome do espírito esportivo, não sem antes um pequeno tumulto, a penalidade foi
batida.
Acontece que o nosso goleiro, goal-keeper, em sinal de protesto e revolta, cruzou os braços
e nem sequer esboçou uma reação na tentativa de impedir o goal.
O juiz anulou a cobrança, mandando repetí-la. Antes, contudo; impôs ao Hélio Lagartixa,
o nosso goleiro que ele deveria se esforçar para impedir o goal. Tinha que pelo menos
pular.
A sua atitude anti-desportiva poderia responsabilizá-lo pela fúria da torcida local e tudo
mais que pudesse ocorrer. O juiz, intimou ainda um mis-en-scene desde que não pegasse a
bola.
Frente a esta chantagem, o nosso goleiro, Hélio Lagartixa; apenas simulou vontade em
defender a sua meta.
A equipe de Ervália venceu o metting. Nossos jogadores e torcedores sairam da cidade sob
uma chuva de pedras. Em tempo, o céu era de brigadeiro.

POESIAS E POEMAS

Não Olhes prá Trás

Não olhes prá trás ao cruzares o Equador.


À frente, cintilante estrela te fará companhia.
Não olhes prá trás,
Pelos feridos e mutilados que ficaram.

Não olhes prá trás,


Que o sal do destino tempera a nossa saudade impune.

Não olhes prá trás,


Pelos órfãos e bandidos, que adornam os nossos trilhos.

Não olhes prá trás,


Nem dobres uma lágrima virgem aos omissos e traidores.

Não olhes prá trás,


Somos prisioneiros do mesmo sentimento e verdade.

Não olhes prá trás,


Quem aguarda um segundo, espera a eternidade.

Não olhes prá trás,


Há sempre o lado colorido da saudade.

Não olhes prá trás,


Guardarei dos teus olhos, o amor, a sinceridade.

Não olhes prá trás,


À frente te espreita a realidade.

Não olhes prá trás ao cruzares o Equador.


O amor sobrevive além das intempéries.

Não olhes prá trás,


O amigo anda um passo à frente.

Não olhes prá trás,


O sentimento tem dimensões invisíveis.

Não olhes prá trás,


O vinho da festa tem sabor de amanhã.

Não olhes prá trás,


À vida, festeja-se eternamente.

Não olhes prá trás ao cruzares a linha do Equador.

Na linha do horizonte, somem-se ilhas, barcos, pedaço do céu.


Na linha do infinito, surgem galáxias, estrelas, pipa de papel comum.
Na linha do amor, há um fazer sentido.
Na linha telefônica que de ti escuto, ouço :
Tum-tum, plim-plim, tum-tum.
Estejas sempre na linha de frente.

Não olhes prá trás,


Lembre, não sonhe.

Não olhes prá trás,


Sonhe sem pesadelos.

Não olhes prá trás,


Grite, não sussurre.

Não olhes prá trás,


Sussurre, não lamentes.

Não olhes prá trás,


Por temor ou piedade.

Não olhes prá trás,


Por culpa ou castidade.

Não olhes prá trás,


Por favor ou falsidade.

Não olhes prá trás,


Por tristeza ou felicidade.

Não olhes prá trás,


Por motim ou caridade.

Não olhes prá trás ao cruzares a linha do Equador.


Nas linhas da mão, o destino, a vida, o coração.

Invisível linha que separa a razão da fantasia.


Imaginária linha que limita o pecado e o sonho.
Agônica linha de almas a flutuar.

Não olhes prá trás.


21/08/84
Lourdes
Teus olhos me fizeram ver a felicidade.
Teus lábios trouxeram-me o mel da saudade.
Nossas mãos em carinhos,
De positivas esperanças,
Por nossos caminhos,
De tantas andanças.

Quando enamorei-me de você,


Devo dizer que :
Foi pelos teus olhos, tuas mãos,
Teus cabelos de lindas tranças,
Teus dedos, por teu corpo.

Ao apaixonar-me de você,
Aconteceram razões marcantes.
Amo-te :
Não por teus olhos,
E sim pela luz do teu olhar,
Que aos meus ilumina.
Não por tuas mãos,
E sim por tuas carícias,
O afago, o aperto,
Que confiança transmite.
Não por teus cabelos,
E sim pela certeza
De que o luzidio deles
Na minha felicidade
Há-de brilhar.
Não por tua boca
E sim por teus beijos
E a compreensão de tua voz.
Não por teu nariz,
E sim pelo ar
Que você respira,
Me inspira e transpira
Na lira dos meus sonhos.

Não por teus ouvidos,


E sim pela atenção
Com que sempre me atende.
Não por teus dedos,
E sim por toda
Sinceridade do sim e do não.
Não por teu corpo,
E sim por uma união,
Uma só alma, vida a dois.
Nos dissabores e nas explosões
De alegria e felicidade.
Teus olhos me fizeram ver a felicidade.
Teus lábios trouxeram-me o mel da saudade.
Das mãos o adeus
Tão corriqueiro,
Que as bênçãos de Deus
Te atinja primeiro.

Maio/1976

Os Anjos
Os anjos existem e eu vi.
Pode não existir o céu e a vida eterna,
Mas os anjos existem e eu vi.
Numa forma serena, tranqüila,
Ajoelhada em pueril santidade
A orar.

Sabe lá Deus por quê, por quem,


E só mesmo o Senhor
Em precioso mutismo,
Que na imortal sinfonia de silencio
Se satisfaz e se abastece
Dos pequeninos gastos,
Da prece desprovida de ambição, sabe.

Os anjos existem e eu vi,


À minha frente
Com emoção, vaidade, zelo excessivo,
Querência de abraçar, beijar, fazer carinho.
Por respeito aos anjos,
Apenas sorri plenificado
À minha filha Thaís
De infinita infância e pureza,
Genuflexa a humílimo presépio.

28/12/84

Flor da Estepe
Flor da estepe, só, indefesa,
Exposta ao vento, à saga humana,
Ingênua, pura, fácil presa,
Flor nômade, rebelde, cigana.

Adorna o agreste desta solidão,


Fortaleza de simples formas,
Não se esconde fútil à mansão,
Como reza às flores, as normas.

Azaléas, violetas, rosas,


Crisântemos, hortênsias, cravos
De pétalas passageiras, momentos.

Flor da estepe, dos versos, das prosas,


Estigma, bandeira dos bravos,
Perfume ímpar dos sentimentos.

09/10/86

Tremor das Almas


Inesquecível momento...
Ao me ver em teus olhos de esperança,
Ouvir teus lábios em melodia profética,
Sentir e ser o perfume doce que transpira
Por todos os poros.
As tuas mãos acariciando o meu ego e emoção,
A tua língua a me percorrer em calafrios,
A tua boca em evolvendo, dando forma ao meu corpo.

O frenesi dos teus pelos íntimos, reduto sagrado, tocando os meus.


O orgasmo de nossos sentimentos em sintonia,
Em convulsão física e orgânica.
As tuas pernas envolvendo-me
Em malabarismos sensuais.
Os teus pés, fazendo-me cócegas eróticas,
Os teus cabelos a deslizar pelo meu peito,
Filigranas de ouro a me deliciar.
Plantação de trigo a fecundar o meu ventre,
O teu ventre a abrigar minhas fantasias pueris,
Os teus róseos seios, arquitetura dos deuses,
De sabor indizível a inebriar-me os sentidos.
A pinta de seus olhos, sábia pérola,
Incrustada no verde-mar, sóbrio de segredos,
Pequena mancha imaculada, personificada,
A te fazer única.

Os teus braços femininos, âncora e rede,


De meus desencontros, berço de meus acalantos.
O pescoço firme e esguio, nobre estrutura,
Dos que olham a vida de frente.

As tuas costas, dorso robusto, praia de meus desejos,


Porto de minhas tentações.
Simétricas montanhas de minas,
Os teus contornos virgens e desejados.
A respiração ofegante,
O êxtase, a sofreguidão, os murmúrios,
Os sussurros, o mel do amor,
O tremor das almas
O mínimo minuto de silêncio comum,
Homenagem ao ritual.
O abrandamento, a calmaria,
O sorriso contido, angélico
Dos mortais deuses da terra.
(In)felizes, sós e distantes.

Idéias Secas

Agreste sertão a nossa consciência


Onde a água da sensatez não rega
E a pobreza de nossa clemência
Encena a nossa dor seca, cega.

Mormaço de paz, esta ventania,


Que nos açoita com espinhos de cactos
E nos espicaça com falsa alegria
Destemperando ritos e fatos.

Vertigens, vorazes, vis,


Venta no oásis de nossa solidão.
Em enormes e disformes brasis
De fome, de sede, morre a união.

Em busca do poço da verdade


Nossas raízes insurgem sós,
O mundo lá fora muge maldade,
Ruge a desgraça, cala-se a voz.

E o calor abrasa, intensifica


Por fora da raia corre a emoção
Por dentro da raiva, sempre fica,
O sangue, o vinho , a traição.

07/10/83

Utópico Lavrar

A terra me basta,
Abasta o meu viver,
Calar me agasta,
Cantar só dá prazer.

Planto esmeraldas,
Canaviais de esperança,
Adoço serras nas fraldas,
Desfio fumo em tranças.

Mel de abelhas,
Centelhas divinas,
Pastorear ovelhas.
Galgar virgens colinas.

Cacheiam espigas de milho,


Pendulam loiros arrozais,
Reflete no campo o brilho,
Incomum perfume de paz.

Lavro e risco este solo,


Com calos de meu suor,
A rolar corpo-face-colo,
Trabalho que me faz melhor.

Quando desponta a lua,


Prece brota ma minha boca,
Abraço você toda nua,
Acaricio tua voz tão rouca.

Eu quero você morena,


Vadiando no caminho,
Se a touceira for pequena,
Busco mais pro nosso ninho.
05/11/81

Momento
Se este mundo durar,
Pelo menos vinte anos,
Não importa Nostradamus,
Desastres, apocalipses,
Claridade e eclipses,
Somos responsáveis
Por esta geração.

É melhor fazer de conta


Que nada irá se acabar.
E como os corações amáveis,
De caráter e perdão,
Ensinar aos nossos filhos,
Fraternidade e os trilhos
Que devemos caminhar.

Se a vida durar, pouca monta,


Que seja um só segundo,
Melhor fazer do mundo
Uma toca, um ninho, um lar,
Encontrar-se no semelhante,
A réplica, o bastante
Para se amar.

Mas se (a vida), o mundo se acabar,


Num piscar de pensamento,
Melhor será cantar,
Enquanto haja este momento.
(De meus bons papos com Sérgio Márcio Gomes)
02/10/81
Despedida da Calouros do Samba
Adeus,
Levo meu último samba à rua,
Por Deus,
Não quero loiros e falsos aplausos,
Tortura-me ouvir cantar
Portela, Mangueira e Beija-Flor,
Sons de escolas, Oh! Calouros,
Que aqui nunca pisou.

Cansei,
De lavrar refrões que não se cantava,
Tenho-te amor,
E este amor, só a mim, me basta.

Não por vaidade,


Assim me decidi,
Minha pureza reclamava
Uma história prá contar...
Cantar...

Se vai meu samba,


Inda fica o passista,
Se vai meu samba,
Inda fica o passista,

Roda, gira, ginga o povo,


Sapateia ao luar.
Não mate de novo
O que não se quer enterrar.
09/11/81

Pulsar e viver de um guidovalense Ausente


Eu quero bem perto a mim,
A dor, a saudade, a tristeza.
E se só rolar uma lágrima
De choro sentido será.
Mesmo que lágrimas não rolem,
Tristeza, saudade, dor,
Em mim hão-de se fartar.

Eu até queria choramingar


De dor, saudade, tristeza,
De vergonha, desprezo ou pudor.
E necessito clamar
Por este insensato e insano
Prazer de tanto te afamar.

E olha Chopotó
Que em tuas águas escuras e poluídas
- escumas de desamor -
Inda me banho.
Riscam-me cicatrizes
Do des-sorrir de um povo,
“Barão”, a te açoitar,
Em inúteis chacotas,
Despalavrear inconseqüentes,
Numa esquina torta.

E ouso sentido.
E oiço mordido murmurar,
Ecos de novouvir do Kôde falante,
Desditando semânticas,
Loiras pérolas do nosso divagar.
Assuntando madrugadas,
Limpidez que em nossos corações
Já não se constróem.

Amar Guidoval
Não é ter um beco ou saída,
Um clichê ou crachá,
Um título ou barganha,
Um sobrenome ou bengala,
Catituar postos ou virtudes,
Carimbar cartas ou contas,
Ensinar o bê-a-bá,
Possuir posses ou sítio,
Uma farta colheita,
Ou dez mil réis na caixa,
E mesmo cinqüenta tostões a juros.

Amar Guidoval
É simplesmente perscrutar e palmilhar
Tuas ruas com o povo e tuas crendices,
Num amor humilde de prece à Sant’Ana.
03/11/81

AMARÉ
Peixe não vive, fora d’água não,
Sem o teu amor eu me padeço,
Já implorei o teu perdão,
Me virei ao avesso,
Mas a tua ingratidão
Me transporta ao começo.

Já fiz de tudo prá você gostar,


Cheguei mais cedo, mudei de enredo,
Lancei perfume no ar.
E você com teu segredo,
Fez-se tudo desmoronar.

ABC...DEFiciente
Afoita a sabedoria que engrandece,
Bestial a censura que se instiga,
Catastrófica a ambição que se apodera,
Dilacerante a ferida que não se cura,
Eloqüente o discurso inconseqüente,
Flagelo que açoita nossas mentes.

Galopante estrepitar e abusivo,


Hostil na mão que se estende acuada,
Inópia a voz que se ouve fugaz,
Jovial e benvinda mensagem de paz.

Lucidez da extrema unção


Moribunda que dita a verdade,
Nosocômio de vantagens e determinações,
Onipresente de vontades alheias,
Perspicazes em futurólogos senis,
Questão de poder e arbítrio,
Resíduos de um passado presente.
Sóbria a humildade que se registra,
Tambores que não rufam rancores,
Unidade retratada em traços de paz,
Versos e ventres parideiros,
Xaropes homeopáticos existenciais,
Zelam por nós, pobres e zambetas.
15/09/81

Sentimentos
Pousa suas mãos, sobre as minhas mãos,
Como mariposa, repousa como carícia,
Numa forma destoante de perdão,
Meio prosa, prova triste, fictícia.

Tímida, trêmula, meiga, frágil,


Pousa receosa, de perfume inibida.
De forma ríspida, rápida, ágil,
Descansa sua mão, sobre a minha vida.

Sonham anseios, nossas mãos vivas,


Buscam auroras, motivos, horizontes,
Verdades finitas, mentiras passivas.

Passeiam virgens, impuras, mão cativa,


Louca escrava em busca de fontes,
Mãos que buscam uma vida que viva.
06/11/80

Olhos Vedados
O poeta não pode fechar os olhos e sonhar.
Bom seria a vida no sonho do poeta, da criança, do bêbado otimista.
O poeta abre os olhos e percebe, o pesadelo , a realidade.

O mendigo, que não esmola caridade,


O mestiço vadio, a bolinar etnias.
O ritual dos versos e profetas apocalíticos,
O verbo desnutrido, sem consistência, desativado.
O tolo a blasfemar infames modismos,
O lacaio, corrupto, a se promover presidente.
O inocente, acorrentado à simplicidade,
A senzala dos gemidos e amores bastardos.
O verde do campo semeado de poluição,
O cinza da cidade, tinto de opressão e pressa.
O rio que corta a minha cidade, morto.
O sol da justiça, a esconder mesquinharias.
Os confins sombrios, deserto de idéias.
As aldeias insípidas, despojadas de líderes.
A borboleta colorida em matizes daltônicas,
O colibri receoso de flores e néctar contaminados.
O operário incrédulo do fustigante amanhã.
O salário, sabre de cobre, a cortar o futuro, o presente.
As múmias envoltas em secular silêncio,
Os zumbis, aparvalhando consciências puras.
Os militares triunfando batalhas inúteis.
Os guerrilheiros, zombando fúteis estratégias.
O curandeiro a propagar falsos milagres,
O ministro, em bacanais de supra-poder.
O anão a projetar sombra-gigante,
O samurai, prisioneiro de cultura tirana.
O sexo em orgias de fingido êxtase.
O prazer em fatias, migalhas do nem tô aí.
O jovem servil a-deus e ao diabo, principalmente.
O pecado em forma de absolvição incoerente.
A florista a pacificar esperanças e corações.
O santo, santo, a desmitificar cânones.
O poeta, num piscar de olhos, delira,
Os desacertos e virtudes da vida.

27/09/84

Precoce Demência
Não te conheci semente,
Gema rara, jóia de grandeza, a germinar frágil,
Com cuidados de bons jardineiros,
A brotar num campo distante,
Longe de meus ventos e orvalhos,
E bem guardar.

Não te conheci menina,


Da amarelinha e bonecas-fantasias.
Pés descalços a percorrer riachos de chuva,
Travessuras pueris, castigos adultos.
Menina-flor, purificada e santa.

Não te conheci jovem,


Revolucionária, sonhadora e feliz.
Pele suave, quadris estreitos,
Puberdade na face e famintas insônias.
Andarilha e poetisa a flutuar em versos.
Mártir de uma liberdade questionada,
Jovem-pétala, febril e linda.

Te conheci mulher,
Tímida, calorosa, aconchegante.
Eu a caminhar, sonetos escusos,
Enquanto navegavas por poemas sadios.
No prelúdio da noite, nos beijamos,
Em madrugadas boêmias, nos amamos,
Mulher-perene, segredo de minh`alma.

Não te conheço matriz,


Diferença não faz, não acrescenta.
Possuis a fertilidade das estepes,
Onde vicejam orquídeas raras.
Tens a multiplicidade dos templos
Em que se cantam todas as orações.
Matriz de meus dias meditativos.

Te perenizo no universo
E te proclamo : minha.
E mesmo que as minhas profecias,
Em falsas acontecências se resumam
E de tolo e charlatão, o mundo me chame...
Insistirei em cantar :
Minha semente, menina, jovem, mulher, matriz...
Universo de minha precoce demência. 27/09/84

Possuir sem Posse


Possuir a magia e enfeitiçar-se no amor.
Possuir a verdade e escravizar-se no sonho.
Possuir oceanos e afogar-se na bonança.
Possuir castelos e acordar na areia.
Possuir a fé e sofrer na incerteza.
Possuir todos os vultos e caminhar sem sombras.
Possuir todas as fontes e desidratar-se em miragens.
Possuir o infinito e dormir nas estrelas.
Possuir todos os corpos e amanhecer sem alma.
Possuir sem posse.

Por quê não ontem ?


Já não distingo a ausência de tua ausência,
À falta de teu corpo tomando forma em meu corpo.
Às tuas carícias ou tuas palavras,
À saudade de tua saudade ou ao perfume de tua essência.

Já se misturam, química de desejos;


A vontade de não mais ter vontade,
A lucidez a clamar demência,
A distância a pronunciar esquecimento,
O bem-me-quer querer, despetalar-se ímpar.

Já não construo, engenharia falida;


O amargo vago de meu amargo,
Na doçura bravia de horas vãs, fugidias,
Na pálida esperança de dias incertos,
Na cruel realidade que amordaça....
E passa...passa... passa...

EN PASSANT
Não faça... disfarça... passa...
Pássaros... Músicos... Mágicos...Palácios...

Sangue do meu sangue


Sinto esvair-me em sangue por todos os poros,
Cada centímetro de meu corpo, em pálida mina se transforma.
Jorra em filetes, líquido que os leuquêmicos reclamam,
Como se suor vermelho fosse, hemofílico, que não coagula.
Hiperglicêmico, insípido, que não adoça,
A realidade insalubre.
De meus olhos míopes e astigmáticos,
Gotícula de lágrima rola mansa,
Aos bêbados, aos magérrimos da Etiópia,
Aos lunáticos e encarcerados em nosocômios.

Pelos meus dedos, por dentre as unhas,


Escorrem o mel, que ao corpo alimenta,
Pelos mendigos, que mesmo a esmola abnegada, já não satisfaz,
Pelos manetas, frutos de guerras, concebidas sobre tapetes,
Entre uma trepada e outra e ar condicionado.

De meus pés varicosos e calo temperamental,


A merejar, como se vinho fosse, escorre lânguido,
A denunciar, pelos retirantes, que rastejam sertão e fome,
Pelos andarilhos, dos desertos, dos mares,
Dos asfaltos, da via-crucis.

De minha boca, por entre os dentes, como se um drácula fosse,


Rubro córrego, desliza a reclamar,
Por emudecidas vozes de profetas,
Pelos eternos amores sufocados,
Pela cúmplice mudez dos líderes,
Pela rouquidão dos povos assalariados.

Pelo meu ventre infértil, roliço, preguiçoso, banhas de sedentária burocracia,


Lagos a se formar, em rubor gritante,
Por barrigas famintas de desamparados trombadinhas,
Por gentil braçal desempregado, pelos ladrões de galinhas
Em quintais que nem mais se habitam.

Por minhas pernas vadias, irregulares,


Dissipam-se calores, de hemácias,
Em éter enebriante a protestar,
Pelos atletas, abandonados pela glória,
Por paraplégicos de governos doentios,
Pelos eternos aleijados de consciência e caráter.

Por meus braços de músculos frágeis; de abraços inúteis,


Gotejam, rios da cor que se diz comunista,
A esbravejar, por pelegos a se baterem por patrões,
Por lavradores que não saciam a própria boca,
Por operários que não aliviam a própria sede.

De meus ouvidos puídos, sedentos de música e poesia,


Arvorados de justiça própria,
Bloqueado de cerume, cor de pitanga e amora,
Inflama, blasfema, pelos porões em que enclausuram a liberdade,
Pelas fossas imundas em que se depositam falsa democracia,
Pelo vácuo inútil em que se penalizam as virtudes.

De meu cérebro, também retrógrado,


Vasos indecifráveis, incomunicáveis,
Vertem em furor, ondas sangüíneas,
Revoltas a vituperar contra sandices de inimigos,
Pelos irmãos de menos sorte e desfortúnios,
Por fariseus, crentes e o menino quase anjo,
Pelos proscritos, exilados e anônimos,
Por todas as formas que se traduzem cruel.

Mas o corpo é bem maior que todas as palavras antes ditas.


Pobre de meu corpo a esvair-se em sangue por todos os povos.
Pobre de minha gente a esvair-se de poros por todos os sangues.

O agnóstico ainda dirá :


- Mas tudo e tantos, disse e não disse, e outras e tantas e mais e tais.
Insisto :
- Sinto esvair-me em sangue por todos os poros.

Ildefonso José Vieira ( Dé ) 30/10/84

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