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Folhas Soltas de Um Homem Torto

Nasci numa vila operária chamada Povinho do Armour perto de um grande frigorífico oriundo
de Chicago. Era um lugar bucólico e aparentemente tranqüilo para se viver. Um povo simples e
uma vida prosaica num pedaço do pampa.

Tive uma formação acidentada e improvisada. Meus pais nunca revisavam meus cadernos
escolares nem indagavam sobre o meu processo de aprendizagem. Era apenas uma rotina de ir
para o “colégio”, voltar para casa, jogar bola ou vagar pelas redondezas até o entardecer.

Fui uma criança que cresceu sob o cotidiano do Saber Imediato e do Empirismo Instintivo de
uma ordem dominada por homens rudes e iletrados. Meu pai era mais um desses
trabalhadores braçais que, depois do batente, eram calaveras e chineros, títulos tácitos que
todo vivente masculino carregava com orgulho.

As revistas em quadrinhos salvaram minha vida intelectual. Elas despertaram meu cérebro
para o gosto da leitura e da escrita. Ler passou a ser uma viagem fantástica por muitos lugares
e épocas do mundo. Em meados dos anos 70 as crianças e adolescentes trocavam e
emprestavam suas revistinhas com muita freqüência. Era uma forma de compartilhamento
muito profícua.

Líamos de tudo um pouco, dos gibis da Disney à famosa coleção de Tex, uma saga em
quadrinhos desenhada por italianos, que tinha o faroeste estadunidense como temática.
Fantasma, Recruta Zero, Zagor, Ken Parker, Conan, Luluzinha, Almanaque Disney, Turma da
Mônica também eram títulos que consumíamos na época.

Não consigo lembrar o primeiro livro que eu li. Mas deve ter sido Capitães de Areia do Jorge
Amado. Só sei que a leitura passou a ser uma grande diversão e um portal para o
conhecimento de história, geografia, ciências, política e tudo o que um adolescente deseja
com sua sede de conhecimento.

A Biblioteca Pública Municipal Rui Barbosa de Sant’Ana do Livramento também foi outro
catalizador da minha atividade intelectual.

Era um lugar acolhedor onde havia encontros de jovens estudantes de Livramento em busca
de pesquisas para suas atividades escolares.

Eu estimava a minha vila e toda a zona do Armour mas a Biblioteca Pública foi uma epifania,
que abriu minha mente para múltiplas possibilidades. Era um lugar fascinante para um guri
fronteiriço, ávido por conhecimento.

Eu ficava pegando os livros do Machado de Assis na estante e, após ler alguns trechos, ficava
intrigado com sua fama. Não me atrevia a levar nenhum livro dele emprestado. Era uma
linguagem estranha para mim naquela época.
Só alguns anos depois, quando li os romances Quincas Borba, Memórias Póstumas de Brás
Cubas, Dom Casmurro, O Alienista e outros textos incríveis, compreendi o motivo de tamanho
reconhecimento.

Antes de mergulhar nessa sua segunda fase realista, eu apenas conhecia o Machado de uma
canção do Martinho da Vila e de ouvir seu nome na escola e na televisão.

Os livros politizados da primeira fase do Jorge amado eu li com muito prazer e espanto. Eram
histórias incríveis num cenário fantástico na Bahia.

Mas o livro que realmente foi minha Revelação literária, e de vida, foi As Vinhas da Ira, do
escritor estadunidense John Steinbeck.

Viajei com a família Joad pelas rodovias americanas numa epopéia dantesca. Foi a história
mais impressionante e sensível que eu conheci na juventude.

Tom Joad era trágico e corajoso. A narrativa do livro era um manifesto contra o capitalismo e
suas crises. A cena final foi indescritível! Eu fiquei completamente perplexo, num duplo
sentimento de revolta e fascínio. Foi um dos momentos mais significativos de toda minha vida
intelectual de fruição adolescente.

Lembro de ler esse livro clássico entre campeonatos de futebol sete, Matinês no Cinema
Colombo e jogos do Flamengo de Zico na TV.

Inaugurada em 26 de fevereiro de 1943, a saudosa Biblioteca Pública de Livramento é um


equipamento social de grande valor para a juventude da Fronteira.

A vida naquela época analógica dos anos 70 e 80 não era tão boa como as reminiscências às
vezes podem dar a entender. Costuma-se lembrar dos tempos passados como algo melhor do
que o tempo presente. Eu não penso assim há muito tempo. A época atual, com meus
cinqüenta e tantos anos, com meus filhos, com minha companheira e tudo mais, é a melhor
fase da minha vida.

Tive uma vida cheia de erros, excessos e desperdícios. Não sinto quase nenhuma saudade
melancólica de minha infância, adolescência ou de outros momentos que vivi. Sou muito feliz
hoje, e a distância de outros tempos até me fortalece.

Contraditoriamente, hoje a vida é boa e ruim. Visões de mundo absurdas conflitam com idéias
de progresso, num domínio maior de concepções niilistas e mistificadoras. Esse irracionalismo,
que é hegemônico hoje no Brasil, não é uma novidade da segunda década do século XXI. Nos
anos da minha infância e adolescência ele já estava presente no ethos da minha cidade.

O racismo, a homofobia, a misogenia e o negacionismo eram tão presentes como hoje. Talvez
o consenso da Constituição de 1988 tenha arrefecido essas manifestações mas não acabou
com elas. Penso até que essas idéias ficaram recalcadas todo esse tempo.
Conheci muitos “bolsonaros” ao longo da minha vida. Eles sempre estiveram presentes nas
escolas que estudei, nos empregos que tive, no serviço militar, nos jogos de futebol, nas
reuniões familiares e na minha vizinhança.

Alguns dos meus colegas de infância reverenciam esse personagem atroz. Postam mensagens
selvagens nas redes sociais da internet, cheias de erros grotescos de ortografia, expondo
pateticamente seu analfabetismo funcional temperado por preconceitos e mitos
irracionalistas.

O tempo presente, como todas as épocas, tem suas vantagens e desvantagens. Minha
felicidade não deixa de ser maior por causa dessa conjuntura desfavorável para o pensamento
crítico e para a idéia de progresso, de melhoria das condições sociais.

Não viajei para muitas cidades ao longo das cinco décadas da minha vida. A primeira viagem
foi em 1984, quando passei um mês de férias em Porto Alegre. Foi a melhor experiência que
tive no início da minha adolescência.

Meus tios moravam na rua Santo Antônio, no Bom Fim, a 100 metros da Redenção. Era um
lugar adorável e muito movimentado. Num raio de 400 metros ficava o Bar Ocidente, o Cinema
Baltimore, o Bar João, o Zé do Passaporte, a Lancheria do Parque, o Luar Luar, o Pôr do Sol e o
Escaler.

Eu estava no epicentro de toda a cena cultural da cidade e não sabia. Mas estava vivendo
aqueles momentos do verão de 84 com euforia juvenil. Via em alguns muros da Osvaldo
Aranha pichações contra a ditadura, pelas Diretas Já e de bandas como Camisa de Venus e
Capital Inicial.

Meu primo me levou para assistir o “GRENAL das Faixas” no Olímpico. Lembro que fomos
caminhando do Bom Fim até o estádio, na Azenha. Foi incrível caminhar entre a multidão de
colorados e gremistas pela Avenida João Pessoa.

Desses momentos eu posso afirmar que lembro com muita felicidade. Foram dias
maravilhosos que marcaram para sempre a minha vida. Naquele tempo eu já tinha decidido
que Porto Alegre seria o lugar onde eu queria viver o resto da minha existência.

De 1980 até 1985 eu fiquei mergulhado no universo do futebol. Assistia os jogos do Flamengo
de Zico, que foi o melhor time de futebol que eu vi jogar. Raul, Leandro, Marinho, Mozer e
Júnior; Andrade, Adílio e Zico; Tita, Nunes e Lico. Essa formação virou lenda no jogo contra o
Liverpool em Tóquio. O período 80-83 foi de supremacia do esquadrão futebolístico do
Flamengo. Eu assistia todas as partidas que passavam pela TV, ouvia jogos pelas Ondas Curtas,
lia a revista Placar e era um torcedor do clube da Gávea em pleno pampa gaúcho.

Em janeiro de 1985 acompanhei pela televisão alguns shows do primeiro Rock’n Rio. E no
Colégio Professor Chaves, onde estudava à noite, porque fazia um curso no SENAI de manhã,
conheci os roqueiros da cidade que me apresentaram Beatles, Iron Maiden , Pink Floyd e Black
Sabbath.
Mas eu estava disposto a cantar rock em português e mergulhei nas bandas brasileiras dos
anos 80 e no grande Raul Seixas. Ouvia Replicantes, TNT, Engenheiros do Hawai, que eram
grupos de Porto Alegre. Outras das minhas bandas preferidas eram Legião Urbana, Titãs, Ira,
Camisa de Venus e Paralamas do Sucesso.

Hoje talvez eu não queira visitar Livramento e caminhar por seus campos e ruas. Mas lá eu
passei momentos incríveis e memoráveis. A sessão de cinema do filme The Doors, no Cinema
Internacional lotado, foi fabulosa. O teclado de Manzarek impregnou a sala escura junto com a
voz de Jim Morrison . As portas se abriram naqueles loucos anos 90 sem sentido.

Foi em 1991 e eu estava no último ano do Segundo Grau. Havia voltado para minha derradeira
despedida da Fronteira, após vir morar em Porto alegre em janeiro de 1989.

Perdi e ganhei anos importantes nesse meu retorno precoce. Sentia falta da minha família e
dos dias da adolescência, que haviam acabado com o fim do serviço militar em dezembro de
1988. Foi uma grande desilusão!

Matamos a aula para assistir aquela sessão de cinema na Fronteira, da cultura subestimada.
Sim, as cidades gêmeas eram uma simbiose de comportamentos motores e mentais
ascendendo para um futuro que não aconteceu ainda. Mas a obra está aberta, apesar dos Free
Shop e da extinção do Grand Rex e do Imperial.

Frutuoso, Jesus, Serafina e Anaurelina

Frutuoso e Jesus eram vizinhos na minha Vila natal e sempre iam juntos para o batente na
fábrica. Não conheci Frutuoso, que era esposo de minha tia-avó Serafina. Jesus eu conheci na
minha infância. Eles atravessavam o bosque de eucalipto que ligava o Povinho do Armour ao
frigorífico. Uma chuva torrencial inundava a madrugada. Os dois operários estavam indo para
o trabalho. Seria mais um dia rotineiro se um raio não tivesse caído violentamente sobre os
dois, fulminando Frutuoso e deixando Jesus com danos no lado direito do corpo, que o fez
passar o resto de sua vida com o olho vazado e mancando de uma perna.

Serafina e Anaurelina eram irmãs e moraram juntas durante anos. Quando Serafina morreu,
Anaurelina, uma fumante inveterada e admirável solteirona, foi morar na casa de meus pais.
Aos poucos ela foi perdendo a memória e ficando cada vez mais prostrada. Morreu num dia
ensolarado de primavera perto de completar 90 anos.

Era o tempo da empresa de ônibus Ferrão. Perambulávamos pelas duas cidades gêmeas,
ávidos por novas aventuras. Passávamos por baixo da roleta do ônibus na linha Wilson, que
fazia uma grande volta iniciando no Terminal Armour, passando por vários bairros e sub-
bairros, até o Terminal Centro.

Andávamos por Rivera até o fim da avenida Sarandi, para ver treinos de futebol no antigo
Estádio Atílio Paiva.
Procurávamos taipas, açudes ou qualquer lugar para tomar banho e nadar. Éramos tisnados do
forte sol fronteiriço.

No entardecer caminhávamos até o Povinho do Armour, despreocupados por campos e ruas,


sentindo o cheiro das folhas das árvores, da terra e dos pastos. Fazíamos isso com certa
regularidade.

Mas jogar bola era o nosso principal divertimento diário. ( continua )

Justiça no Sarriá ( parte 1 )

O jogo entre Brasil e Itália na Copa da Espanha 82 é um dos mais notórios da história do
futebol. Muito se falou em injustiça, vitória do futebol força sobre o futebol arte. O próprio
Zico, um dos melhores jogadores da era pós-Pelé, lamentou a "injustiça" após a partida.

Eu tinha doze anos quando assisti essa partida pela TV, na casa de meus pais em Sant'Ana do
Livramento-RS. Foi minha primeira Copa do Mundo. A gurizada da minha Vila, ao longo dos
meses que antecederam o Torneio, foi colecionando as figurinhas do chiclete Ping-Pong.
Conhecíamos todos os jogadores da Itália, Alemanha, Argentina, Brasil, URSS e até de
Camarões, que era novidade na época. Completamos nossos álbuns e decoramos nomes como
N'Kono, Dasaev, Maradona, Blokin, Zoff, Passarela, Boniek e muitos outros.

Quando a Copa começou as surpresas surgiram. No jogo de abertura todos estavam curiosos
para ver Diego Armando Maradona. Na estréia, a Argentina jogou contra a Bélgica e perdeu
por 1x0. Foi a primeira partida de uma Copa do Mundo que eu assisti.

O Brasil estreou contra o forte time da URSS e saiu perdendo o jogo num frango histórico de
Waldir Peres. A virada da seleção brasileira veio com dois golaços. Sócrates driblou na entrada
da grande área e bateu no ângulo de Dasaev. Éder virou o jogo com outro chute certeiro de
longe. O Brasil passou trabalho mas soube contornar a adversidade com o talento técnico e
tático do seu time. Tínhamos ótimos jogadores e também um excelente senso coletivo.

A euforia, capitaneada pela Rede Globo, contagiou o país depois das goleadas contra Escócia e
Nova Zelândia. O "Encantamento" da mídia ( rádios, TVs, revistas e jornais ) espalhou comoção
e certeza do tetracampeonato. A Seleção Brasileira foi a primeira do grupo e na fase seguinte
pegou Argentina e Itália, que tiveram uma primeira fase discreta. O time platino perdeu uma e
venceu duas. A Itália, muito criticada pela sua mídia esportiva, empatou os três jogos contra
Polônia, Peru e Camarões. A segunda fase era de quatro grupos de três seleções e o vencedor
do grupo ia para as semifinais.

Itália e Argentina travaram o primeiro duelo. A Squadra Azurra venceu 2x1 e taticamente
encaixou o time. Bruno Conti era um meia que jogava pelo lado direito, indo e vindo, tão
moderno quanto qualquer jogador do século XXI. Fez uma grande partida junto de seus
companheiros, com destaque para Tardelli e Antognoni e a marcação implacável de Claudio
Gentile sobre Maradona.
O Brasil enfrentou a Argentina na segunda rodada do grupo. Jogou bem, dominou as ações, e
venceu por 3x1. Zico fez o primeiro gol e armou os outros dois junto com Falcão e Júnior. Os
platinos fechavam um ciclo com a despedida de alguns nomes como Ardiles, Kempes, Tarantini
e Filliol. A Itália viria a seguir. ( continua )

Justiça no Sarriá ( final )

Brasil e Itália decidiram o grupo no antigo Estádio do Sarriá, do Español de Barcelona. Estádio
modesto, que foi posteriormente demolido, para um clássico dessa envergadura. O jogo foi um
duelo tático e dramático com cinco gols. Muito se fala sobre essa partida épica. Naquele dia,
quando o jogo acabou, eu chorei e lamentei a injustiça da derrota. Todos ficaram muito
comovidos com a desclassificação.

Anos mais tarde, com o advento da rede mundial de computadores e a possibilidade de


compartilhar arquivos digitais de video através de downloads, consegui rever o jogo algumas
vezes. Conclusão: a Itália mereceu a vitória! Foi melhor que o Brasil em todos os aspectos e
venceu com justiça.

O time do técnico Enzo Bearzot tinha Zoff, capitão do time aos 40 anos, fechando o gol. O
sistema defensivo era muito eficiente e sabia jogar quando tinha a bola. Oriali era o ala direito
que ajudava o meio de campo. Collovati era o Stopper pela direita e marcou Serginho com
eficiência. Gaetano Scirea era o melhor líbero da época e cuidava da sobra, além de ser o
cérebro da zaga tinha um ótimo preparo físico. Claudio Gentile era o stopper pela esquerda e
marcou individualmente Maradona, Zico e Littbarski, reduzindo pela metade suas ações. Um
grande zagueiro que chegava junto, um carrapato, mas um jogador leal. Cabrini era o ala
esquerdo, com muita categoria, apoio ofensivo, inclusive marcando um gol na Argentina e
cruzando na cabeça de Rossi no primeiro gol contra o Brasil. O meio de campo italiano era
outro setor fortíssimo. Além dos alas, que compunham o setor, tinha Bruno Conti, Tardelli,
Antognoni e Graziani. Os 3 primeiros foram fantásticos ( versáteis, competitivos e focados ) e
Graziani era um bom jogador. Na frente Paolo Rossi, dispensando apresentações, goleador da
Copa com 6 gols nos jogos mais decisivos ( 3 no Brasil , 2 na Polônia e 1 na Alemanha ).

O Brasil era um grande time mas 3 jogadores estiveram abaixo da média no jogo contra a
Itália: Júnior, Serginho e Éder. Na Itália os onze jogaram muito e estiveram acima da média,
concentrados no jogo o tempo todo. Zico foi muito bem marcado por Gentile e mesmo assim
deu um passe fantástico para o gol de Sócrates, procurou o jogo e sofreu um pênalti, onde
teve sua camisa rasgada por Gentile. O juiz israelense não viu. Falcão fez o gol mais bonito do
jogo numa trama ofensiva que começou com Júnior entrando na diagonal pelo meio, com
Cerezo levando a marcação de 3 italianos, Falcão recebendo a bola e ajeitando para um chute
fortíssimo de esquerda longe do alcance de Dino Zoff. Jogadores fantásticos como Zico,
Sócrates, Falcão, Júnior, Cerezo e Leandro não mereciam tal sorte.

Um jogo que entra para a antologia dos duelos do futebol onde a Itália foi mais eficiente e
controlou o ótimo time do Brasil. No fim fez-se justiça no Sarriá, em Barcelona.
Na minha infância, quando perguntavam minha religião, eu dizia, automaticamente, que era
católico.

Depois, influenciado por vizinhos, comecei a frequentar uma capela metodista na minha Vila.

No meio da minha adolescência conheci o Comunismo Científico, por intermédio de meu tio,
caixeiro-viajante, que se tornou um intelectual nas suas viagens pelo Rio Grande do Sul. Ele lia
nos hotéis e pensava bastante quando pegava a estrada. Tinha contato com o movimento de
trabalhadores em todo o estado e desenvolvia uma grande ação política.

Um dia, em meados dos anos 80, ele me presenteou com fotocópias de um livrinho intitulado
Capitalismo e Socialismo. Depois dessa leitura eu desenvolvi minha Consciência de Classe.

Tem uma história engraçada que aconteceu em 1985 ou 1986, não lembro ao certo.

Mas um amigo do Curso de Eletricidade do SENAI, que era petista, me convidou para uma
reunião do PT num apartamento de um casal de intelectuais, em Livramento.

Fui à reunião com uma camisa que ganhei do meu tio. A camisa era branca e tinha um símbolo
da Albânia, uma águia estilizada, tipo um escudo.

Embaixo, entre aspas, uma frase do Stalin: "O homem é o capital mais precioso".

Quando eu entrei na sala, que já estava com uma dúzia de petistas discutindo, todos olharam
para a camisa e se entreolharam.

Eu, um guri ingênuo, nem tinha noção das tretas sobre o bigodudo.

Foi a primeira vez que me chamaram de stalinista...

Stalin ficou na liderança da URSS de 1922 a 1953, morreu e os EUA continuavam segregando os
negros e praticando crimes terríveis contra esse povo. Não me ofendo quando um fascista, um
liberal, ou até uma certa esquerda demoniza Stalin. Os negros americanos estimavam a
liderança do líder soviético. Os comunistas lutam contra as três grandes discriminações sobre
as criaturas humanas, a discriminação sexual que pesa principalmente sobre as mulheres,
sensitária e de classe e a discriminação racista contra os povos não brancos e de origem
colonial.

Os negros estadunidenses, na primeira metade do século XX, chamavam Stalin de O Novo


Lincoln. Nessa época o racismo não era crime e era tolerado e praticado cotidianamente. Foi
com a grande contribuição do Movimento Comunista que o nazifascismo foi derrotado e a
idéia de uma única humanidade pôs em xeque o racismo moderno.

Todos os grandes movimentos de emancipação social no mundo são associados ao


comunismo. O ataque ao movimento comunista e a seus principais líderes é um dogma no
chamado Ocidente.

Camisas significam muito, é uma forma de expressar uma idéia, uma opinião.

Tive uma camisa branca, comprada num camelô em 1985, que tentava reproduzir a capa do LP
“Peace of Mind” do Iron Maiden. Era uma camisa tosca e barata. Mas eu, que queria mostrar
minha “radicalidade roqueira”, vesti a camisa e fui pra aula noturna. Os colegas mais
experientes da minha aula me fizeram perguntas sobre a banda britânica, que eu não conhecia
nenhuma canção. Passei vergonha.

Depois, um camarada da turma trouxe uma fita K7 da Donzela de Ferro e me iniciou no Heavy
Metal.

A camiseta eu nunca mais vesti...

Goleiro é uma posição delicada, movediça.

Um goleiro treina mais do que qualquer outro jogador do Onze titular. Ele é uma peça
essencial no sistema defensivo.

Ele deve falhar menos que os outros dez.

Se falhar em momentos decisivos põe tudo a perder.

Eu gosto de futebol, é um jogo imprevisível, instigante.

Um time de futebol vira o jogo trocando passes, indo à linha de fundo, fustigando o adversário
no retângulo gramado.

A torcida arde nas arquibancadas.

Uma vez um amigo me indagou: "Tchê, futebol é coisa de alienado".


Eu falei pra ele que o futebol é uma cultura, um comportamento mental e motor,
desenvolvido pelo Ser Humano ao longo da sua relação com a natureza e da relação com seus
semelhantes.

Ele falou que eu devia parar de divagar.

Eu respondi que não estava divagando, apenas expressando uma ideia.

Ele, com sua inteligência limitada por preconceitos, não entendeu minha indagação...

Aprendi o significado de Cultura com Frantz Fanon, num livro chamado, se não me falha a
memória, "A Revolução Africana", numa passagem do livro chamada Racismo e Cultura.

O meu amigo disse que eu perdia tempo lendo livros.

Eu respondi que, ler livros, era minha forma de diversão, como os gibis da minha infância.

Era uma Cultura que estava comigo desde os tempos solitários da infância no Pampa, das
Taperas e da Geada...

O Futebol é um Esporte Maravilhoso!

É a bola, o gramado, a chuteira, a arquibancada, o rádio, a camisa, o futebol, um esporte


Magnífico!

Um drama, um tango, um samba...o Futebol!

Palavras nunca são suficientes para descrever o Belo Jogo!

Amor é quase uma definição desse Esporte!

Sou um homem de dois amores, Internacional e Flamengo!

Meu Coração é Grande!

Viva o Futebol!

Ir ao cinema era algo comum, na minha infância e adolescência, na Fronteira Sant’Ana do


Livramento/Rivera. O lado brasileiro tinha duas salas, o Colombo e o Internacional, e o lado
uruguaio, o Grand Rex e o Imperial. No matinê de domingo passava dois filmes. A interação
entre as pessoas e as duas cidades gerava uma dinâmica social bem peculiar. Foi uma época
boa nesse aspecto.

Hoje, esses cinemas, com exceção do Internacional, foram substituídos por lojas, locais de
cultos religiosos, etc.
Cobras e Pitangueiras

Numa pescaria em Cerros Verdes tinha um pomar de pitangueiras. Pescávamos sob uma
grande ponte da estrada de ferro.

Descíamos do trem na estação improvisada numa tapera. Aí caminhávamos pelos trilhos até a
segunda ponte, onde era o pesqueiro. Descíamos um barranco alto para acampar no mato que
costeava um riacho. Era nesse mato que ficava o pomar de pitangueiras.

Eu e minhas três irmãs subíamos nas árvores para comer pitanga. Mas isso não durou muito.
Minha irmã mais velha pulou de uma pitangueira gritando, “cobra! Tem um monte de cobra
enrolada nos galhos!!”.

Foi um pouco exagerado da parte da minha irmã. Eram poucas cobras em algumas árvores. Eu
lembro ter visto quatro delas enroscadas. Mas na pitangueira que eu estava não vi nenhuma.
Mesmo assim, pulei rápido e corri para o lado. Ficamos olhando as cobras, agrupados. Aí veio
aquele medo que se instala na gente quando vemos uma cobra. Parece que a qualquer
momento uma delas vai se enroscar na tua canela e te picar.

Corremos para o acampamento onde a mãe e o pai organizavam as coisas.

Eu fui em alguns bailes no "Farrapo". Foram poucas vezes pois a segregação teve efeitos
duradouros e atingiu minha geração também.

Só para ter uma ideia, o apelido do clube Farroupilha era "planeta dos macacos". Minha cidade
tem aspectos culturais deploráveis. Tinha uma cultura estadunidense muito forte devido ao
frigorífico de Chicago, o Armour.

Eu comecei a torcer para o 14 de Julho e frequentar o Estádio João Martins quando o Armour
acabou profissionalmente.

Teve uma temporada memorável do Leão da Fronteira com craques como Ricardão e Próspero
Silva, um negro uruguaio que era fantástico pela ponta esquerda. Próspero foi inscrito de
forma irregular e o 14 não subiu, mesmo ficando em segundo.

: Essa foi a temporada que eu mais assisti jogos no estádio, provavelmente eu fui em todas as
partidas em casa.

Acho até que os "porcos" faziam vista grossa.

Os brigadianos andavam de trio, a cavalo, rondando pela cidade?

A gurizada que ficava à noite conversando nas esquinas, via eles se aproximando, de longe, e
se escondiam até eles passarem.

Eu tinha 13 para 14 anos e estava a mil por hora.


Pulávamos o muro em todos os jogos, sempre superando os brigadianos, que andavam a
cavalo em trio.

O Solís e o Mauro eram jogadores conhecidos do time, na época.

O Solís era o Craque da minha zona do Armour, que reúne várias vilas, bairros e sub-bairros,
orbitando o frigorífico.

Ele era uma espécie de Beatle do futebol na minha zona.

Morreu jovem, pouco depois da aposentadoria do futebol.

Foi jogador do São Luís, de Ijuí.

Seu apelido era Pico e era uma espécie de herói lá na minha redondeza.

Joga bem na ponta direita do Grêmio Santanense.

Era rápido e goleador.

O Fábio de Los Santos era um jogador argentino do Grêmio Santanense, tipo um cigano da
bola.

Eu assisti alguns jogos do Grêmio mas não era fã do clube.

Um pecuarista da cidade foi o investidor do clube nessa época.

O Claudiomiro morava na frente do estádio do Grêmio Santanense.

O estádio do 14 ficava a poucos quarteirões do estádio do Grêmio.

O Solís, zagueiro do Armour era fantástico. Jogou no Botafogo do RJ.

O Solís do Armour, vulgo Café, e o Solís do Grêmio Santanense, vulgo Pico.

Os dois eram da minha zona.

Um era zagueiro e o outro era atacante.

O Solís, zagueiro, saiu na revista placar quando jogou no Botafogo.

Assisti no Gauchão de 1981.

Ele fez um gol contra no jogo Armour 1x3 Caxias. Lembro desse jogo, fui com meu pai.

Deu um peixinho e matou o goleiro Feco.

Pantera e Metade

Pantera organizava excursões para o litoral. Era um negro esperto e malandro do bairro, com
aquela natural simpatia que fazia a alegria de todos. Apesar de sua vida marginal, era uma
espécie de empreendedor que fazia as coisas acontecerem.
As excursões eram umas das coisas que, mesmo com a desconfiança de todos, eram
tradicionais na vida de todos nós.

Metade era seu parceiro inseparável, uma espécie de Sancho Pança.

O veterano mulato tinha perdido partes de suas pernas, abaixo dos joelhos, num acidente de
moto.

Daí o apelido indefectível.

Os dois eram os organizadores das nossas excursões para Tramandaí.

Eram verões intensos de cerveja, samba e "otras cositas más".

Mesmo com suas limitações físicas, Metade era o rei do snooker. Dava capote em todo mundo
e puxava bolas no meio, fazendo tabela pela varanda.

Pantera era um agitador cultural, organizando atividades culturais como teatro na comunidade
e a geladeira do livro ao lado da parada do ônibus, uma biblioteca para acesso das pessoas que
aguardavam o coletivo. Tinha sempre uma ideia na cabeça e estava pronto para qualquer
parada.

Pantera era um tipo de liderança maldita na vila. Era a personificação da Contradição Objetiva,
a Dialética em pessoa, um e zero, sim e não. Um autodinamismo brutal e extremo. Acontecia,
criava, mesmo dando com os burros n'água muitas vezes, movimentava todos nós, numa
torrente de emoções singulares.

Metade, quando bebia, botava seus "ferros" na mesa e olhava fixo para nós. Um .38 velho e
uma faca pontuda que intimidavam a gurizada.

Pantera levantava da cadeira e discursava sobre arte, benção e maldição.

Pantera e Metade são figuras inesquecíveis. Outro dia flagrei Pantera numa foto no grupo do
Facebook da Associação de Moradores do meu bairro. Estava sentado de pernas cruzadas
entre outras lideranças comunitárias e seu semblante era iluminado por um sorriso calmo.

Metade foi visto por um amigo numa fila do Hospital Conceição e parecia preocupado.

CLARO-ESCURO

Entre o velho e o novo nascem os monstros

A globo foi a "internet" da ditadura militar de 64, o circuito, o esgoto por onde fluíram as ideias
Anticomunistas, neofascistas, enfim, a propaganda do regime.
Ao longo dos anos 70 e 80, até a CF88 praticamente, eram "ensinadas" matérias escolares
como Educação Moral e Cívica, OSPB, Religião, que seguiam essa linha de pensamento dos
golpistas de 64.

A Rede Mundial de Computadores, como todos conhecem hoje, tornou a Rede Globo e outros
veículos da mídia mainstream obsoletos e até descartáveis.

Os bolsonaristas odeiam a globo...

A ignorância é um dos projetos de política pública mais antigos da história do Brasil.

Revisionismo histórico

Apagamento histórico

Propaganda x história

Hagiografia x historiografia

Chegou um tempo na minha vida adolescente, lá por 1984, que eu percebi que minha mãe,
meu pai, minhas irmãs e a maioria das pessoas que eu convivia estavam alheias aos fatos
históricos, geopolíticos, estavam literalmente viajando na maionese e não entendiam o mundo
real.

Foi um período solitário mas ao mesmo tempo fascinante.

Tubarões Financeiros bancam o bolsonarismo e são, historicamente, os que alimentam a


cadela do fascismo.

Nasci reto e fui me entortando na vida. Escrevo certo por linhas tortas.

Um turbilhão de lembranças vem à toma agora em minha vida perto dos sessenta anos

Sonhos, memórias vivas de tempos infantis e adolescentes.

È um sofrer com o que aconteceu, com o que poderia ter acontecido e com o que poderá
acontecer. É uma constante preocupação que deixa rugas no rosto e um quase pavor.

É uma tradição de pensamento, uma tradição política, um movimento político.

Uma corrente de pensamento.

Mercantilização de aspectos essenciais ao ser humano.

Uma ideologia.
Cruza Que Eu Te Dou Uma Blusa

Será do Legião Urbana

Lembro como se fosse hoje daquele janeiro de 1980, quando voltava a pé com
meu pai do centro da cidade para o Povinho do Armour, do momento em que
ouvi no rádio de um bolicho na Vila Rui Ramos que o presidente Carter dos
EUA estava orientando seus aliados a boicotar as Olimpíadas de Moscou.
Naqueles tempos eu estava longe de ser politizado com meus dez anos de
idade, mas aquela notícia ficou grudada na minha mente durante todo o
restante da caminhada. Mais tarde na sala de casa, assistindo o Jornal
nacional com minha família, vi o Cid Moreira falar sobre o boicote. Olhei para o
meu pai e ele não expressou nenhuma reação à notícia. Minha mãe e minhas
irmãs também ficaram indiferentes ao que o âncora falou. Perguntei ao meu pai
o que era boicote e ele respondeu secamente que não entendia nem gostava
de política, muito menos de política de outros países. Mas eu sabia que era
uma espécie de abandono dos jogos e uma forma de conflito. Mesmo assim a
música das Olimpíadas de Moscou tocou bastante na TV durante os dias que
se seguiram. Até um LP com a música rolava nas discotecas e bailes da
Cidade. Continuei meus questionamentos na escola nos dias que se seguiram.

Eu nunca fui um bom aluno. Gostava mesmo de matar aula para andar a
cavalo no campo ou roubar frutas pela vizinhança. A escola era uma chatice de
“decoreba”, moralismo militarista e professores agressivos com a criançada.
Mas fui à biblioteca e peguei um atlas para visualizar onde ficava Moscou. Essa
curiosidade infantil de investigar as coisas permanece comigo até hoje. Na sala
de aula não se pesquisava nada apenas se recebia um pacote fechado sem
qualquer reflexão ou investigação. Eu detestava aquele ambiente escolar.
Cantar o hino hasteando a bandeira no início da manhã, andar em fila para
entrar na sala de aula, ensaiar para o sete de setembro, tudo isso soava falso e
ridículo. A maioria das pessoas que comandavam esse sistema sinistro era
grosseira e carrancuda. Minhas orelhas estavam sempre vermelhas pelos
rotineiros puxões que recebiam. Eu tinha um colega que foi apelidado de Topo
Gígio de tanto levar puxão de orelha das professoras. E eram professoras no
feminino mesmo porque professor do sexo masculino era raro na sala de aula.
Até tinha um professor na Educação Física que posava de militar e mandava a
gente fazer polichinelo e correr em volta da quadra de futebol de salão.
Sobrava pouco tempo para jogar bola, que era a melhor parte da aula.
Não foi fácil ser criança nos anos setenta e nem estava sendo fácil naquele
primeiro ano da década de oitenta. Eu sabia que tinha alguma coisa errada
com a maioria das pessoas. A atmosfera era pesada e tudo parecia ensaiado e
falso.

Minha irmã me deu uma ficha telefônica e mandou eu subir até o posto policial,
onde tinha um orelhão, e telefonar pra rádio Cultura e pedir uma música do
Roberto Carlos. Subi correndo uma lomba de trezentos metros que separa o
povinho do Armour do bairro Bela Vista, onde ficava o posto da Brigada Militar.
Consegui, com minha fala infantil e telegráfica, pedir a música “Na Paz do Seu
Sorriso” em nome de Mana, dedicando a toda gurizada do Povinho do Armour.

O mês de janeiro passou e fevereiro trouxe a confirmação do nome de Telê


Santana como treinador da Seleção Brasileira. O futebol profissional começou
a ser transmitido pela Rede Globo com muito mais freqüência na minha cidade.
A Globo e o Canal Diez de Rivera eram praticamente os dois únicos canais que
“pegavam” na minha casa. Eu acompanhava os jogos de várzea na minha
redondeza e os treinos do pessoal da minha vila ao longo da semana, inclusive
jogando algumas vezes entre os mais grandes. Fora isso, acompanhava o Inter
quando meu pai ouvia no rádio. Mas nesse ano de 1980 foi quando iniciei
minha história acompanhando o futebol profissional na televisão.

O ódio ao Flamengo é uma moda em 2023 e cresceu no século XXI com a


ascensão das redes sociais, com o desenvolvimento da informação automática
e com a modernização das mídias e dos estádios de futebol. O mengão é o
maior clube do Brasil muito antes do ano de 1980, quando sagrou-se campeão
brasileiro vencendo o Galo mineiro numa final sensacional num Maracanã
superlotado. Eu era um guri de 10 anos e tive minha primeira grande
experiência televisiva numa final de Brasileirão. Foi um jogão de cinco gols com
Nunes e Zico decidindo e ofuscando dois gols de Reinaldo. Na TV P&B da
minha casa eu fiquei perplexo com a torcida do Flamengo nas arquibancadas
com bandeiras enormes e aquele grito de Meeeengooo, Meeengooo...

Nunca tinha visto nada igual e aquilo foi decisivo para me tornar Rubro-Negro.
Mas o melhor estava por vir nos noventa minutos. O jogo foi Incrível!

No primeiro gol Zico recebeu de Andrade e deu uma assistência precisa para
Nunes tocar no canto esquerdo de João Leite. Foi um lance rápido, dinâmico e
sagaz. Que dupla era Zico e Nunes! E ainda tinha Carpeggiani, Andrade,
Adílio, Júnior, Tita, Júlio Cesar Uri Gheler, que tinha o apelido graças ao
famoso prestigiditador que entortava talheres no Fantástico. E o Atletico
Mineiro tinha Cerezo, Reinaldo, Paulo Isidoro, Eder, Palhinha e outros grandes
jogadores. E tinha também o volante Chicão que representava aqueles caras
que “desciam a lenha” e impunham seu jogo na base da intimidação. Eu
conhecia vários guris dessa estirpe nos bairros que rodeavam minha vila natal.
Então eu sabia muito bem qual era a do Chicão. Mas Zico não se intimidava e
flutuava no gramado com maestria de Gênio. Eu sempre ouvia falar do Galinho
de Quintino e até aquele dia eu nunca o tinha visto em ação. E foi uma
epifania! O Camisa Dez da Gávea era digno da fama que carregava.

Reinaldo empatou o jogo mas o Maracanã continuava eletrizante. No segundo


gol do Flamengo

Era um outro mundo a década de 80 do século XX assim como é outro mundo


a década de 20 do século XXI. Podemos dizer que um mundo analógico foi
substituído por um mundo digital, mas não é só isso. Há uma unidade de
contrários nesse processo. Não desapareceu totalmente aquele mundo nem se
estabeleceu esse mundo que nasce. Os dois mundos estão em colisão ou em
simbiose? As duas coisas e talvez mais.

Por quê então falar ou lembrar dos anos 80? Que acontecimentos foram
relevantes naquela década que podemos falar agora para a geração do século
atual?

Diretas Já, fim da ditadura militar, Constituição de 1988 são exemplos da


importância desse período, talvez sejam as coisas mais importantes e vou falar
muito sobre elas. Mas o ambiente cultural, o entretenimento e o modus vivendi
daquele mundo também merece destaque e pode trazer muitos ensinamentos
e gargalhadas. Foi um tempo muito interessante em todos os aspectos. Foi
uma década que buscava superar um tempo e construir outro. Penso que esse
é um aspecto essencial desses anos e por isso vale cada palavra, cada
lembrança gasta nessa brincadeira com a língua escrita.

Era um tempo maluco e não estou exagerando. A gente ia de bando no cinema


aos domingos e chamávamos isso de matiné. Eram dois filmes e não importava
se era os Trapalhões ou um faroeste qualquer. A diversão era o que importava.
O saquinho de pipoca tinha um cheiro delicioso e o escurinho do Cinema
Colombo era algo inigualável.

Os jogos de futebol eram parecidos com o matiné. Também era um bando que
ia junto. A gente dava um jeito de pular o muro do estádio pra ver o jogo.
O bêbado com o copo plástico em punho perseguia o bandeirinha na tela
cuspindo ofensas. Era um espetáculo a parte, muitas vezes melhor que o jogo.

Bla, Bla, Bla, Bla...

Muitos torcedores de futebol babam de ódio pelo Flamengo. É uma espécie de


bolsonarismo futebolístico amparado em ilações e fake news. O Flamengo é
acusado de ganhar roubando do Galo Mineiro, do Grêmio de Porto Alegre e de
todas as outras vítimas de Zico, Adílio, Nunes, Júnior, Leandro, Bruno Henrique
e Gabigol. Essa narrativa vai se consagrando quanto mais é repetida pelos
haters de muitas partes do Brasil. Impedimento, juiz comprado, bola na mão,
mão na bola, bla, bla,bla,bla...

Feco, Solís, Raul Santos, Rudinei, Paulo Ferro, Coringa, Astronauta, Romário,
Luis Carlos, Eusébio, Boneco, Miranda, Leopoldo. Quem é do Armour e tem
mais de 50 anos vai lembrar imediatamente.

As histórias de 1980 e 1981 sobre o Armour Futebol Clube são muitas.

Será verdade que um dos filhos do Vigil, que era gandula, salvou o Armour de
levar um gol em 1980? Eu ouvi do Cebola, outro filho do Vigil, que estudou
Eletricidade comigo no Senai em 84/85, essa história fabulosa.

Quem pode me confirmar isso?

Procurei em jornais na internet e não consegui nada sobre esse acontecimento


folclórico.

Naquela época éramos jovens e isso engana, faz parecer que era melhor que
hoje.

Estilo de vida adoecedor

Antigamente É Que Era Bom...

O fim da infância e o início da adolescência é um período da vida muito


importante e complexo. Por isso todo esforço individual, social e estatal deve
ser feito para priorizar os cuidados com essa faixa etária.

Mas refletir e agir sobre esse tema é, para alguns moralistas de plantão, uma
bobagem, “frescura”, “boiolagem”, falta do que fazer e coisa de “esquerdopata”.

“No meu tempo de guri, meus pais me educaram com vara de marmelo e relho
trançado e eu virei um cidadão de bem”, diz o marido adúltero fazendo arminha
com a mão e pregando moral de cueca.
Esse cidadão “saiu do armário” nos últimos anos e gerou uma multidão de tipos
empoderados que batem no peito orgulhosamente esbravejando serem
trabalhadores, cristãos e família. Ora, uma velha canção que não é nova nem
aqui nem na conchinchina. Convivo com esses moralistas desde a minha
infância nos anos setenta e a minha adolescência nos anos oitenta, mas eles
não tinham tanta visibilidade como hoje.

Nos dias atuais, muitos “bichos escrotos saem dos esgotos” e andam
desfilando com suas caríssimas camisas amarelas da CBF, muitos babando de
raiva e fazendo selfies pelas ruas do Brasil.

Todos esses “cidadãos de bem” acham que as crianças e os adolescentes


devem trabalhar sem que o “Estado protetor” se meta na esfera da vida e da
liberdade de ninguém.

A generalização é a regra para esses sociólogos de boteco. “Eu vendia pão


caseiro na rua quando era criança no interior e nunca fui abusado”, diz um
sábio de whatsapp com seu smartphone em punho.

Qualquer pessoa honestamente intelectual e com um estudo básico de História


sabe que as crianças e os adolescentes, as mulheres, os negros e os
assalariados estavam muito mais desprotegidos e vulneráveis nos anos setenta
e oitenta, em relação aos dias de hoje, que também não são lá essas coisas.

Era um mundo praticamente sem lei, um salve-se quem puder. Só para ilustrar
alguns exemplos bem simples, mulheres eram xingadas nos estádios de
futebol, crianças tinham suas orelhas puxadas por professores e “negro quando
não caga na entrada, caga na saída”. E todos davam risada! Que tempo bom
que não volta nunca mais! E alguns desses saudosistas celebram no Facebook
o famigerado Ki-Suco, a ficha telefônica e outras bizarrices do gênero, num
festival de mau gosto!

Antigamente é que era bom...é o mantra repetido diariamente.

Ainda bem que a Constituição de 1988, subestimada por muita gente, foi
promulgada e começamos um período de mudanças que ainda está longe de
ser concluído, mas que graças a muitos brasileiros de luta iniciou um novo
tempo.

Aliás, tenho muito orgulho de alguns momentos dos anos oitenta como o Fim
da Ditadura Militar,as Diretas Já e o processo Constituinte.

A queda de braço continua no século XXI...

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