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DO INICIO ATÉ 1968: VOU TE DIZER COMO FOI

Lenine Bueno Monteiro


Assisti com prazer e ternura, à prosa dos participantes da nossa Roda de Conversa,
ambiente propicio para deixar o coração a falar. Entre tantas falas e tantos
companheiros se posicionando, o tempo não foi suficiente para que todos se
expressassem. E eu que estava carregando o microfone para uns e outros, não me
atrevi a dizer o que gostaria uma vez que a riqueza dos depoimentos não podia e nem
devia ser interrompida.
A muito tempo eu pensava em deixar um recado aos que vieram depois e não o fiz.
Por isso aproveitei a oportunidade para fazê-lo e deixo aqui meu depoimento sobre
um período em que muito se sonhou e se buscou alternativas para um tempo sem sol.
É o seguinte:
Nasci ali, em Corumbaíba no caminho para Araguari, onde um certo Cesar Carlos de
Almeida aportou em 1939, onde conheceu uma jovem, Abissínia, filha do “seu” Mané
Sapateiro, com quem viria se casar algum tempo depois.
Como o forasteiro se instalou eu não sei. Sei que ele conseguiu formar uma rede de
amigos que lhe possibilitou conseguir documentos pessoais e se estabelecer; simpático
e falante logo se inseriu nas rodas de conversas locais; diga-se que ele passou a ser
Clovis Bueno Monteiro, topógrafo que aprendera a profissão no Exército, passando a
defender o seu pão, com o teodolito mira, trena e outros afins.
Eu fui fruto do casamento da filha do Mané Sapateiro com o Clovis e nasci na
primavera de 1944, quando a grande virada antinazista acontecia na frente leste
europeia e o Exército Vermelho fazia bater forte corações comunistas por toda parte.
Por isso, de Lenine fui chamado.
Ano seguinte, 1945, findo os trabalhos de manutenção Estrada de Ferro Goiás e a
abertura da rodovia Corumbaíba – Araguari seu Clovis e família se dirigem a Pires do
Rio. Os alegres momentos do final de conflito animam a retomada da vida política
local: Getúlio era página virada, o jornal dos comunistas goianos – O Estado de Goyaz –
circula de modo (quase) livre e contribui para a reorganização do Partido, em meio a
grande animação causada pela Constituinte.
A eleição promove grande renovação no quadro político, Goiânia se afirma como
capital dinâmica e a estrada de ferro faz de Anápolis o grande centro comercial do
estado, alimentado pela nascente agroindústria e o beneficiamento de cerais – arroz,
feijão, milho e café – fazendo da Santana das Antas um polo de desenvolvimento
regional, terra de oportunidades; isto que nos levou para a “Manchester Goiana”,
como a cidade era chamada na época.
Toda minha formação acontece ali, orientada por meu pai, um livre pensador
comunista (?) que transitava por searas diversas – centros espíritas, maçonaria, clubes
de futebol de várzea, centros culturais – buscando sempre a “organização dos
trabalhadores”, o que significava “recrutamento para o partido”, vanguarda da classe
operária. Isto em Anápolis não era fácil. A cidade era muito marca pela polarização PSD
x UDN e a repressão sobre o PCB e os movimentos por ele conduzidos era permanente
e perpassou toda década de 1950, com os comunistas anapolinos conduzindo as lutas
dos trabalhadores - muito marcados pela vida rural - na organização sindical, na luta
pela criação da PETROBRAS, na busca de melhorias urbanas para a cidade (água
tratada, asfalto, liberdade de organização, entre outras). Mas existiam outras frentes
de luta: contra o uso da energia nuclear como arma de guerra, a coleta de assinatura
no Apelo de Estocolmo nos leva a bairros e vilas da cidade; contra a Guerra da Coreia,
quando se aventava a possibilidade de soldados brasileiros irem lutar na Ásia, além é
claro das eleições locais, sempre boicotadas pelos comunistas, o que não era bem
entendido pelos trabalhadores...
A morte de Getúlio causou enorme comoção e o temor de um golpe de estado fazia as
professoras, em suas preces de início das aulas, rezarem pelo Brasil e pela paz. O
período entre a morte do “Pai dos Pobres” e a posse de JK, foi marcado por muita
disputa: de um lado os udenistas - e o caiadismo - na expectativa de um golpe que os
levasse de novo ao governo e de outro o pessoal do PSD, neste momento apoiados
pelo PCB, defendendo a continuidade do processo político, a posse de Juscelino.
A forja de políticos era o movimento estudantil.
Anualmente, a UIEA, realizava, em setembro, seu Congresso com discussões acesas,
muito inflamadas onde não muito raramente a pancadaria acontecia. Durante uma
semana os colégios liberavam os estudantes/congressistas de suas obrigações
escolares e o CRA-Clube Recreativo Anapolino, dito o “Aristocrático”, abria suas portas
para receber a estudantada e suas discussões. As moções, teses, requerimentos eram
motivo de discussões acirradas, onde esquerda e direita se batiam e se utilizavam das
mais diferentes estratégias de convencimento.
No último desses congressos – 1963 – ainda me lembro de discutir com vários colegas
uma tese de minha autoria sobre a Aliança Operário-Estudantil-Camponesa; isto
retrata um pouco o clima daqueles encontros; ao final deles elegia-se a diretoria da
UIEA - União Independente dos Estudantes Anapolinos e as discussões sobre o
próximo congresso já se iniciavam.
Com o golpe de 1964, o clima de medo e delações que se instalou na cidade, a UIEA,
foi tomada por estudantes interessados no prestígio que um cargo ali emprestava e
dos novos dirigentes exalavam o acre perfume da direita mais conservadora.
Os novos dirigentes estudantis buscavam convencer suas bases da importância do
esporte e o perigo do comunismo e que os grêmios estudantis fossem mais literários
do que políticos, pois isso prejudicava a cidade; afinal uma postura de oposição ao
golpe de estado significaria ser contra o Brasil, pois os militares salvariam o país e
outras sandices semelhantes nos deixavam possessos e impotentes.
Com o golpe, nossa família se dispersou por alguns meses, ficando eu na cidade para
não abandonar a escola; estava terminando o curso científico... No segundo semestre,
com um clima menos aterrorizante a família se reúne novamente e meu pai, sonhando
com um futuro melhor para mim me estimula e incentiva a buscar uma viagem para
Moscou, uma bolsa de estudo para a Universidade Amizade dos Povos Patrice
Lumumba.
No início de 1965, num encontro com outros jovens, dentro os quais se encontrava o
Romain Roland, meu querido amigo Land, filho do Basileu Pires Leal e entre um copo e
outro o Land me diz que o Basileu havia conseguido a bolsa para ele, mas que ele não
estava animado com a perspectiva. Mais do que de pressa, manifesto minha surpresa,
encantamento e incredulidade com a recusa. “Como pode você deixar escapar essa
oportunidade?”. Em meio a incredulidade geral, a oferta aparece: “Quer ir?”. Pego de
surpresa, possuído daquele espírito muito goiano que te impede de “arrepiar carreira”,
saiu um “Quero” lá do fundo, ainda meio incrédulo.
Dia seguinte, a coisa já tinha vazado para outros níveis, o Land realmente não queria ir,
fala com o pai, seu irmão Carducci me estimula, fala com meus pais, e cria as condições
mínimas para que eu partisse. De fato, o grande sonho que eu cultivava era viajar,
conhecer novos países, principalmente onde vivera a Madame Bovary, onde se passara
as greves de mineiros que vira nos romances de Zola, os campos por onde Dom
Quixote cavalgaram, as planícies por onde os guerreiros gregos se digladiaram e ia
muito por aí. E mais, conhecer a pátria-mãe do socialismo! É mole?
Bem, juntei minhas roupas um velho exemplar dos “Subterrâneos da Liberdade”,
minha clarineta, uma camisa Volta ao Mundo – papa fina do vestuário da época e lá fui
eu, de ônibus até São Paulo, continuando a viagem até Porto Alegre de trem e
seguindo para Montevidéu em outro ônibus. Por essas estradas seguia eu e meus
sonhos, admirando estátuas, os edifícios enormes, pessoas bem-vestidas, jardins
maravilhosos. Uma estátua equestre do Duque de Caxias me impressionou. Até a
Rodoviária paulistana me encantou!
Com meus sonhos e o endereço de um companheiro exilado no Uruguai, Demistoclides
Batista, líder ferroviário cassado, la fui eu!
E aí?
Aí deu tudo errado! Afinal, as bolsas eram nominais e não podiam ser trocadas assim,
informalmente, ao sabor do querer da garotada! O adido cultural da embaixada
soviética manifesta sua estupefacção e estranheza com o acontecido e não entendo
como aquilo poderia ter acontecido.
Enquanto isso, Batistinha me alberga primeiro em sua casa depois numa pensão de
uma camarada do PCU e me deixa em contato com outros estudantes do PCB que
esperavam para viajar: Bulgária, Hungria, Tchecoslováquia, Moscou; além disso, tinha
como vizinhos alguns marinheiros – Barreto, Amarante entre outros – que se
encarregaram de me fazer “entrar no clima”: Montevidéu era uma cidade
efervescente, com inúmeros cafés, dancings e os uruguaios do PCU de uma enorme
solidariedade com os brasileiros.
Um período de surpresas cotidianas: um dia conhecer Djalma Maranhão, ex-prefeito
de Natal, no outro ir conhecer Darci Ribeiro e Berta, os visitando no seu apartamento
em Pocitos; além deles, foram muitos os companheiros com quem tive contato e que
futuramente reencontraria em condições muito menos favoráveis; um período de
amadurecimento e descobertas existenciais e políticas.
E aí, em meio a tudo isso amadureci a ideia de voltar ao Brasil. O raciocínio era
simples: O pessoal que ali se encontrava me passou muita confiança e a quase certeza
de que o processo de reorganização estava em marcha e a oposição aos militares
precisava de todos, o que me incluía e dava contornos otimistas à volta ao Brasil. “Nós
vamos mudar o país!”: quem resiste a este argumento?
Era quase impossível continuar a viagem! Por isso procurei o nosso Batistinha e lhe
disse querer voltar. Madame Bovary, Germinal, Dom Quixote, os gregos podiam
esperar... E mais, o que Darci falara da Universidade de Brasília, impossível não ficar
sem folego. Brasília não podia esperar, seria meu próximo destino.
Uma guinada na vida
O retorno, em que pese a consciência de sua necessidade, deixou um travo amargo na
boca, superado com a possibilidade de discutir e informar aos amigos da “existência”
de um outro mundo, onde personagens míticas de nossas conversas, apesar da derrota
de 1964, se preparavam para voltar e derrotar os militares. Mas, enquanto isso se fazia
necessário continuar com a vida. Foi neste clima que preparei minha ida para Brasilia,
trombeteada aos quatro ventos como o acesso a um ensino inovador e revolucionário.
Isso me dissera o próprio Darci Ribeiro!
O segundo semestre de 1966 foi todo de mobilização em torno deste sonho, de
materializá-lo. Afinal, as nossas finanças dependiam dos rendimentos do Velho Clovis,
inconstantes e muitas vezes interrompidas, oportunidade em que a máquina de
costura da dona Abissínia assumia protagonismo.
Em Brasilia, junto com dois amigos – Geraldo Benicio e Francisco Moraes Jardim - e
contando com generosidade deles, fui para um apartamento da 405 norte, onde a
Dona Antônia alugava o “quarto da empregada”; ali morávamos os três e guardávamos
nossos “apetrechos”. Na minha memória o quarto não tinha mais do que quatro
metros por dois e meio... Os colegas tinham suas camas e pequenas mesas, eu, uma
velha “cama de campanha” e alguns livros, dentre os quais, como calouro de
arquitetura, eu me apegava muito a um: “Introdução a uma Estética Marxista”, que eu
jurava ser “tudo” e mais alguma coisa.
Feitos os arranjos iniciais, faltava viabilizar a sobrevivência, o que foi feito com a
simpatia e solidariedade do Serviço Social da UnB, onde um grupo de profissionais prá
lá de dedicadas se desdobravam para nos ajudar, jovens que vinham do “Brasil
profundo”, de diferentes quadrantes tendo como traço de união a crença na UnB e em
Brasilia. Ali, recebi os primeiros “vales-alimentação” e uma pequena bolsa mensal
capaz de suprir o básico do básico.
1968 começou em 1967: nos encontros e prosas com gente do Sul, do Nordeste, do
Norte, cariocas e paulistas - “cosmopolitas” e bem-informados - goianos de outras
cidades: Goiânia, Itaberaí, Ipameri... Músicos, poetas, cantadores! Tudo era novidade.
Além disso, eu esperava ser contatado pelo Partido, como o pessoal do Comitê
Universitário me dissera em Goiânia, o que aconteceria inteiramente por acaso e sem
os “mistérios” esperados; foi um sábado à noite, no boteco do Labareda, ponto de
encontro dos “sem-família” da universidade; ali, numa parada vindo da biblioteca
encontro um “veterano” que ouve uma intensa “troca de gentilezas” entre um
estudante de medicina e este locutor que vos fala, sobre a necessidade de ser de
esquerda, de combater a ditadura, de expulsar o imperialismo. E a inevitabilidade do
socialismo. Pode?! Na saraivada de argumentos, lícitos ou não, pertinentes ou
arrevesados, sai o meu nome, minha origem anapolina, o fato de estudar artes e uma
certa habilidade para manejar palavras...
Pronto, o contato estava feito e no dia seguinte eu seria procurado na “bandejão”,
nosso restaurante estrelado onde eu exercitava minhas habilidades na rampa de
atendimento, servindo feijão aos colegas e obtendo gratuidade de refeições, sempre
sob a direção paternal do “seu” Aldo. Ali as coisas se precipitam: Xico Chaves, eu e
Valtamir Constantino somos eleitos para o Diretório do nosso curso; quase em
seguida, em uma reunião do Conselho da FEUB, por proposta de Luiz Werneck sou
levado a uma vice-presidência da FEUB - Federação dos Estudantes da Universidade de
Brasilia.
Ali, 1968 havia começado.
No princípio fez-se a luz
A quantidade de novidades era inimaginável: manifestações “enormes”, como eu
nunca vira; uma combatividade estudantil invejável, como na expulsão do embaixador
americano da Biblioteca Central me deixavam entusiasmado.
De outro lado as atividades culturais, principalmente teatrais, para um membro ativo
do grupo de teatro secundarista de Anápolis foi demais; o cine clube da Escola Parque
da 308 Sul nos iniciava em um universo fílmico que nos deixava atônitos e
maravilhados: Goddard, Antonioni, Wajda, Glauber, Cacá Diegues, Jabor, Rui Guerra,
enfim, todo o Cinema Novo nos era apresentado e nos deixava em algum lugar entre a
perplexidade e o encantamento; Na gráfica do ICA, onde se podia entrar e especular
sobre cartazes, sobre a reprodutibilidade da obra de arte, a Bauhaus. Ou mesmo
cruzar com um Vicente do Rego Monteiro naqueles corredores; na Colina (blocos de
apartamentos pré-moldados destinados a professores e parcialmente “tomados por
estudantes) entre violões e serestas, discutir artes gráficas com mestre Claus Bergner e
ainda as aulas de História da Arte do João Evangelista nos iniciando nos caminhos da
beleza clássica; de Rubem Valentim e suas falas sobre o Concretivismo, sobre a
importância da África para as artes plásticas brasileiras, os concertos matinais dos
sábados, o acesso à Biblioteca Central, grupos de debates, onde a imaginação superava
o saber e as discussões iam até o amanhecer, relações pessoais de muita liberdade e
os sonhos povoando vidas!
Em meio a tudo isso uma inacreditável morte do “Che” (“Impossível! Duvido!
Propaganda Imperialista”), greve do complexo ICA-FAU (Básico + Curso de Arquitetura
e Música), Encontro Nacional de Cines-Clubes, o Curso de Teatro e Dramaturgia,
Tenessee Willians, Thorton Wilder, Sartre, Eudoro de Souza, Sábato Magaldi, João
Bethancourt, Flávio Império, Bernadet...
Vejam vocês: a Assessoria de Teatro da UnB consegue recursos de não sei onde e
financia uma serie de conferências com os grandes nomes do teatro brasileiro de
então, críticos, autores, diretores e atores. Após estes cursos e seminários os
participantes, como exercício prático fazem 30 montagens de diferentes textos,
clássicos e menos clássicos, do cordel a autores americanos, passando por Sartre entre
outros. foram feitas. Uma coisa inimaginável para mim.
Anápolis ficara para traz...
Em 1968, como receber os calouros da Arquitetura?
Janeiro se anuncia e com ele principia também a preparação da recepção aos calouros,
com livros, com atividades culturais e informações sobre o curso que lhes esperava.
Foi uma tarefa de gigantes: informávamos os garotos e buscávamos convencê-los da
justeza do movimento grevista iniciado no semestre anterior e em andamento; que
eles não podiam frequentar aulas, que deviam se juntar a nós contra os “picaretas” -
professores que a nosso ver não tinham condições de ministrar aulas naqueles cursos
e que violavam o espírito e o projeto original da Universidade. O fato de ter visto Darcy
Ribeiro e ouvido dele algumas frases sobre a necessidade de defender a Universidade,
fizeram de mim um “especialista” que podia falar com “muito conhecimento” sobre
este projeto...
Fazer as horas da casa
Um ar de certa normalidade no campus prevaleceu até final de fevereiro, quando a
questão dos excedentes volta com força (excedentes: estudantes que conseguiam
notas que lhes colocavam entre os aprovados, mas para os quais não existiam vagas).
Além da arquitetura, a música também já tinha parado no final de 1967 e em vários
outros cursos o fermento da paralização também se fazia presente, além da questão
da moradia estudantil, outra grande dor de cabeça para a Reitoria.
A alegria barulhenta dos grupos que circulam entre os prédios, diante dos alojamentos
estudantis convivia pacificamente com os “gramáticos” (pessoal que dormia após o
almoço nos gramados nas proximidades da Reitoria e o legendário auditório 2
Candangos que ficava naquele que era então um bloco das Ciências Humanas).
A possibilidade de abrir os horizontes intelectuais dos estudantes se realizava na
possibilidade de fazermos matérias - optativas ou de livre escolha, em qualquer curso
da Universidade fazia com que o Campus fosse o Território Livre do conhecimento, o
que significava a possibilidade concreta da ampliação do universo de conhecimento de
todos e de cada um, na medida em que os debates eram amplos e possibilitavam
trocas de informações as mais diversas, principalmente no que dizia respeito à politica
e às artes. Note-se que a própria concepção espacial do campus Universitário era um
exercício de liberdade. O nosso melhor Modernismo arquitetural estava presente em
edifícios de arquitetos como Alcides da Rocha Miranda, Oscar Niemayer, João Filgueira
de Lima (Lelé) para ficar em alguns dos mais conhecidos.
Por outro lado, a circulação ampla de informações, via jornais, revistas, funcionários de
Tribunais Superiores, Câmara e Senado, criavam um ambiente propicio ao
questionamento do autoritarismo e qualquer cerceamento da liberdade. A FEUB -
Federação dos Estudantes da Universidade de Brasilia, na sua própria natureza driblara
a legislação ditatorial funcionando como órgão autônomo e legitimo de representação
estudantil, sendo ao mesmo tempo DCE - Diretório Central de estudantes e UEE -
União Estadual de Estudantes. Explico: o primeiro, era a representação estudantil
implantada pela ditadura, com limites estreitos de atuação; o outro era a
representação “de fato”, legitima dos estudantes estruturada como braço estadual da
UNE, sem vínculo com a legalidade imposta, mas retirando sua legitimidade das lutas
estudantis. E estas, se dirigiam contra o embaixador americano, representante físico
do império, que se erguia em defesa da autodeterminação nacional e defendia o
Vietnan e sua luta contra os americanos invasores, além da defesa irrestrita das
mudanças que se operavam nos costumes, nas relações afetivas, no modo de se vestir
e tudo que pudesse contestar o poder estabelecido.
Este foi o clima em que recebemos a notícia da morte do estudante Edson Luiz de Lima
Souto no Calabouço lendário restaurante estudantil do Rio de Janeiro.
Em meio a comoção geral, o presidente da FEUB Honestino Guimarães convoca uma
assembleia geral para discutir o que fazer. Na frente da FEUB - um barracão em frente
à Reitoria - alguém hasteara o pavilhão da Frente de Libertação Nacional vietnamita.
A assembleia realizada no Auditório 2 Candangos foi elétrica e com muitos incendiários
e poucos bombeiros. O resultado não poderia ser outro: greve geral! A revolta era
generalizada e até mesmo facções estudantis mais conciliadoras concordavam que era
preciso fazer alguma coisa. Com as aulas paralisadas e, claro, a polícia cercando todas
as entradas da Universidade, o desafio da ação foi enorme para todos e abriu a
possibilidade de um salto de qualidade para o movimento estudantil.
E maio ainda não chegara...
Rapidamente novas estruturas organizativas surgem a partir das demandas do
momento: Comissão de Segurança, de Mobilização, de Transporte. Eu me “alistei” na
Segurança, junto com o Camarada Samuel Baba, estudante de medicina com quem
muito me identifiquei naquele momento. Posteriormente nos encontramos várias
vezes, nas quebradas do mundaréu: Chile, Suíça e em outros cantos. Era um tempo em
que os carros próprios eram um luxo de muito poucos organizar transportes era vital.
Com a total “balburdia” instalada, a criatividade assumia o poder: cartazes inusitados,
pichações as mais diferentes, saraus e debates sob as “torturadas” arvores de nosso
cerrado, enfim, do jeitinho que o diabo gosta.
Os meses que se seguiram foram de intensa mobilização, com a presença dos
dirigentes da UNE, em nossas assembleias: Luiz Travassos, José Carlos Mata Machado,
Luiz Raul Machado, José Arantes, estavam sempre entre nós e participavam das
assembleias e dos debates que sempre aconteciam no Campus; no clima de
radicalização existente, as mobilizações se polarizavam entre duas tendências
hegemônicas no Movimento Estudantil de então: a ala liberada por Luiz Travassos,
aglutinada em torno da Ação Popular, movimento politico de essência cristã que
buscava no marxismo novos instrumentos de luta e, do outro, aqueles que se
alinhavam com as Dissidências do PCB, que se formavam e se alinhavam com Carlos
Marighela e que se reivindicavam de um processo de libertação nacional de novo tipo
e que dariam robustez a ALN, que viria a se tornar a maior organização de combate à
ditadura civil-militar de então.
Junho: novas mobilizações
Com a proximidade de um suposto final de semestre, pensar novas formas de
organização davam sentido à vida, entre uma e outra reunião. Os boatos mais
desencontrados circulavam: “a polícia vai invadir esta noite!”, “O Reitor está caindo”;
naquele momento, o que menos importava eram as estruturas formais e prevalecia o
poder do informal: discussão na Meca (mecanografia, barracão de madeira invadido
por dezenas de estudantes e transformado em alojamento) sobre a questão da
moradia estudantil; debate sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol e olhe, o Geraldo
Sobral vai falar!
No meio, a seresta do dia dos Namorados encantava a muitos e mostrava lados
inusitados de uma juventude que não queria se calar, mas romper com paradigmas
estabelecidos... E como queria!
Fechando junho, a primeira invasão de 1968: um amanhecer de pesadelo, com
policiais por toda parte tangendo estudantes de todos os cantos para a quadra de
esportes. Até as dez horas da manhã, triagem de quem fora preso e de repente, a
soltura de todos!
Julho: cadê as férias?
Com os mimeógrafos funcionando freneticamente, textos dos mais variados matizes
circulavam: trotskistas posadistas, comunistas ortodoxos, esquerda da esquerda, as
dissidências do PCB, que praticamente desaparecera do meio estudantil, coma
migração de seus militantes para a Dissidência que origina a Ação Libertadora
Nacional, outras vanguardas e muita confusão.
No final de julho, eu, Honestino Guimarães, Samuel Baba, José Prates, Paulo Speller
temos a decretação de nossas prisões preventivas. Naquele momento, eu que
trabalhava na oficina do “Correio Braziliense” como paginador (montador das páginas
do jornal, de acordo com um diagrama, para impressão) fui obrigado a abandonar meu
trabalho por falta de condições para nele comparecer: a polícia fazia plantão nas saídas
da UnB e na porta do jornal. Agosto se anunciava.
Um mês para ninguém esquecer
Depois de muitas reuniões, agosto tinha uma programação: imediatamente conseguir
a manutenção do clima de “mobilização permanente” diante do cerco policial, que se
tornara rotineiro, evitar a verdadeira caçada às lideranças do movimento); por outro
lado o crescente descontentamento com as condições das Universidades
realimentavam a conjuntura nos campi brasileiros, de norte a sul. O interessante é
observar que não é a negação pura e simples do que existia, mas a contraposição de
modelos de universidades, a busca da recuperação do que fora proposto por Darcy
Ribeiro e Anísio Teixeira. É incrível como persistiu e resistiu às tentativas de
desmantelamento as “vigas-mestras” do projeto UnB: nas mais diferentes
circunstancias - na luta politica, no sentimento de liberdade, no cultivo da busca do
conhecimento, estudantes e um grande número de professores se recusavam a seguir
os caminhos da acomodação, buscando sempre cultivar o debate, a busca de métodos
de abordagem da realidade capazes de satisfazer o livre exame das questões.
Um agosto como todos os outros
Foi isso! As atividades do semestre começaram onde findaram as do primeiro:
mobilização, produção de material de divulgação, busca de organizar melhor os
estudantes para resistir aos ataques dos representantes dos militares. O Movimento
Estudantil - ME - onde se encontrava a diversidade das leituras sobre a realidade
brasileira e das saídas para sua crise, entrava em um período de grande ebulição, pois
unidades de ensino como a medicina e arquitetura encontravam-se em pé-de-guerra;
a primeira diante da questão dos excedentes. Já a arquitetura vivia uma crise
estrutural, que tinha suas origens na demissão coletiva dos professores em 1965; ali,
grande parte da equipe que Niemayer formara, deixa a UnB e a escola nunca se
recuperou do golpe. A maioria dos professores que os substituiram não tinham a
mesma linhagem; afinal, gente como Glenio Bianchetti, Alfredo Ceschiatti, João
Filgueiras - o Lelé - não é coisa fácil, ainda mais nas circunstâncias da saída de muitos e
a chegada dos substitutos. O peso era enorme, as diferenças saltavam aos olhos E para
condimentar ainda mais a situação, o próprio ensino das Artes era questionado: qual a
função social das artes e o papel do artista? Pode o arquiteto ignorar a situação de um
povo que tem um deficit habitacional de 40 milhões de unidades (1967)? A música
deve ser um simples elemento decorativo nos jantares da burguesia? Como não
valorizar nossas raízes culturais? Os elementos formadores da nacionalidade não
podem ser ignorados: um piano não pode ser mais importante que a nossa percussão;
pandeiro, violão e cavaquinho alimentam a musicalidade do povo; as sinfônicas...
como levá-las a outros universos? E o cinema, como forma de expressão e retrato de
situações presentes na sociedade: qual o seu significado? Foi neste clima que
aconteceu o encontro da Federação Nacional de Cineclubes, presidida pelo filho da
Pagu e de Oswald de Andrade, Rudá, que abriu o encontro para que a gente
apresentasse o que acontecia na UnB, não somente no Instituto Central de Artes, na
Arquitetura, na Música, mas em todas os outros cursos. O encontro que se realizava na
Escola Parque da 308 Sul foi transformado em um imenso fórum de debates sobre a
crise da Educação, o papel da Universidade e da democracia na construção de um
projeto nacional transformador.
Final de agosto, com os nossos Orixás cansados de nos defender da intensa repressão,
eis que, em uma manhã ensolarada do planalto, a policia invade a UnB, novamente e
após incendiar um carro na porta da FEUB, os agentes prendem Honestino Guimarães
e lançam uma vasta operação, com a PM invadindo salas de aulas, laboratórios,
alojamentos causando uma comoção enorme entre estudantes, professores e
funcionários, obrigando os estudantes já com prisão decretada pela Justiça Militar a
fugirem e se refugiarem fora do campus. Eu, de minha parte, perseguido nos
corredores do ICC, desci aos esgotos - conseguindo dali sair depois de algumas horas,
nas margens do Lago Paranoá, malcheiroso, esfomeado e com ferimentos leves, fruto
das quedas, por entre caixas de gordura abertas, dejetos fecais e tudo que por ali
existia. Dali saindo, devo ter ficado ainda algumas horas, tentando entender o que se
passava, esperando secar as roupas lavadas no lago e pensando no que fazer, quais os
próximos passos.
Enquanto isso, reunidos no Campus, aqueles que conseguiram se rearticular, deram
posse a Paulo Speller, uma bem orientada liderança da Psicologia como novo
Presidente da FEUB. Isso, não presenciei, pois isolado no cerrado na Asa Norte, nas
proximidades de um clube ali situado, o Minas, fiquei sem notícias e sem contatos.
Somente a noite consegui chegar na Asa Sul reencontrar os companheiros ter notícias
do que acontecera e me situar; isso foi como uma viagem às portas do inferno, que se
abririam para mim meses depois.
Setembro chegou
E com ele, minha saída de Brasilia. Os companheiros acharam que ali, depois da
cinematográfica prisão do Honestino, que eu teria a mobilidade muito reduzida e não
poderia fazer grandes coisas e por isso deveria desempenhar tarefas em outros locais;
como goiano, poderia ajudar no fortalecimento e divulgação do Congresso Regional
que prepararia o nosso Congresso Nacional (da UNE), a ser realizado em outubro. Dalí
então, fui para Goiânia na companhia de José Arantes, nosso representante (da ALN)
na UNE e mergulhamos fundo na divulgação do Congresso e no proselitismo de nossas
posições, buscando ampliar ao máximo nossa influência entre possíveis congressistas.
Goiânia foi uma “base de operações” levar também a Anápolis, Rio Verde e Uberlândia
e Uberaba. Foram dias de intensos debates, mobilizações as mais diferentes, seguidas
reuniões e embates com outras facções do ME. Lembro particularmente do pessoal da
engenharia (De Gaulle, Bolívar, Martiniano, Rubem Fonseca), da Arquitetura
(Wellington) da Medicina (Vanderlan) e outros, como Sonia, Ricardo Bufaiçal que além
do apoio militante a nossa estadia, deram contribuições substantivas ao entendimento
de como os estudantes goianienses viam o enfrentamento que vivíamos.
Aprendi muito.
Belo Horizonte e o Congresso Regional
De Goiânia, seguimos, separados, mas organizados em pequenos grupos, para Belo
Horizonte, onde seria realizado o Congresso Regional: Goiás, Mato Grosso e Minas
Gerais.
Num ambiente tenso - o Congresso era clandestino - nos reunimos em um Convento
em Contagem. Ambiente alegre e combativo. As diferentes tendências de pensamento
sobre como deveriam ser conduzidas as lutas se “enfrentavam” com toda garra do
mundo: de um lado aqueles que viam como centro da luta o enfrentamento direto ao
imperialismo norte americano, portanto, deveríamos principalmente centrar fogo na
Guerra do Vietnã, pois materializava todo o universo de contradições existentes entre
países ricos, pobre e miseráveis; de outro, aqueles que achavam que o enfrentamento
deveria ser travado a partir das condições existentes no dia-a-dia dos estudantes
brasileiros; ou ainda aqueles que partiam da internacionalização das contradições o
que nos levaria a uma internacionalização das lutas, portanto em um mesmo mundo, a
mesma luta.
As diferenças, não impediam que no fragor das batalhas, dos “enfrentamentos” vividos
a unidade se fizesse, pois, a ditadura era a mesma e os repressores também; e a
presença americana do mesmo modo (os acordos MEC-USAID) já existiam e faziam
sentir seus efeitos; no Brasil profundo, a laqueadura quase forçada das mulheres
camponesas e indígenas mostravam a que vinha o controle da natalidade. Atenção,
que não se confunda esterilização das camadas populares, com o uso da pílula
anticoncepcional; esta, utilizada pelas classes medias jogaram um papel
importantíssimo na mudança de costumes e no processo de liberação das meninas.
Acaba-se naquele momento a história de que fulaninha ou beltrano se “casaram na
polícia” pois a criminalização do amor ainda predominava.
O Réquiem dos Sonhos vividos
Contagem em alvoroço: a polícia descobrira o local do Congresso Regional da UNE!
Com um certo atraso, é verdade, pois o evento já havia terminado. As freiras que nos
albergaram se viram no centro dos acontecimentos e sobre elas a repressão começava
a baixar. Mas bola para frente! Esta Congregação, posteriormente se mudou para a
Amazônia desempenhando importante papel nas prelazias do Araguaia.
Após os balanços do Congresso, da predominância desta ou daquela tese,
inevitavelmente, em que pese os riscos, ainda em Contagem, passamos uma bela
noitada de confraternização com os companheiros de Belo Horizonte. É importante
frisar que setembro foi um mês particularmente agitado em Minas, com seguidos
confrontos de rua. Dia seguinte, seguir a viagem. Agora, rumo a São Paulo e ao XXX
Congresso da UNE. Ali mesmo recebemos as senhas e a forma de encontrar nossos
contatos em diferentes cidades da Grande São Paulo e imediações: Guarulhos, São
Bernardo, Santo André, Sorocaba, Campinas, Vinhedo etc. Lideranças de todo Brasil se
articulavam para chegar a São Paulo e a UEE - União Estadual dos Estudantes de SP, se
organizava para os receber; estudantes da imensa maioria dos estados.
Eu fui recebido em São Paulo por camaradas simpáticos a ALN ou nela integrados sem
que eu soubesse: Fernando Casadei, Regis, Jorge Bittar entre outros, começavam a se
distanciar do ME e não participariam do Congresso. Em uma tarde/noite fria com a
conhecida garoa presente, meus camaradas me deixaram em Ibiúna, na entrada do
sítio em que se realizaria o Congresso.
O Congresso
De congresso, congresso mesmo, muito pouco aconteceu; ali me reencontrei com o
camarada Zé Arantes, que de pronto reuniu companheiros do Paraná, do Rio, de
Minas, da Bahia, do DF e de Goiás para um bate-papo sobre os encaminhamentos do
Congresso, quem era quem, aliados, adversários, propostas, composição da chapa
para sucessão de Luiz Travassos, presidente da UNE em exercício, o que fazer no pós-
congresso, volta, encontros de militantes e foi por aí. Um torvelinho imenso de sonhos
que se despedaçaram noite adentro com a notícia de que a polícia tinha localizado o
Congresso e chegaria a qualquer momento.
Isto aconteceu ao amanhecer do dia 12.
Um pequeno “corre-corre” com cada um tentando escapar, sem nenhum sucesso. Não
conheço quem tenha conseguido, apesar do folclore em torno disso. A manhã gelada
foi palco da ação policial que deteve quase mil estudantes, a liderança do ME brasileiro
estava ali. A gente, enrolados em cobertores que foram distribuídos pela organização
do Congresso, foi obrigado a atravessas uma rampa de uns quintos metros e depois
disso caminhar até a estrada para sermos conduzidos presos para São Paulo; ali fui
conduzido ao DOPS, para depois ser levado ao Presidio Tiradentes que ficou
superlotado com a nossa chegada. Na cela onde fiquei junto com vários outros
estudantes me lembro de três: Leopoldo Paulino, de Ribeirão Preto e que lá se
encontra hoje, depois de peregrinar por vários países, Jean Marc, que foi solto
rapidamente para depois ser eleito presidente da UNE e José Wilson Lessa Sabag,
companheiro da USP, que depois foi assassinado pela Ditadura.
Ali, no dia seguinte - acho eu - fomos colocados em um pátio onde, formados em filas
sucessivas, fomos objeto de reconhecimento por parte de militares e policiais de
diferentes estados. De Brasilia, me lembro do Deusdete, “especialista” em UnB, do
DOPS brasiliense e de um certo major Clidenor, do SNI que ali estava para buscar as
lideranças do ME brasiliense que ali se encontravam. Fui reconhecido e recebi do
major um elogio: “Você é difícil de encontrar, Lenine!”, para logo depois se dirigir a
outra fileira e reconhecer também a Paulo Speller, que estivera no exercício da
presidência da FEUB e que também mereceu um comentário do major: “Speller, você
por aqui?”.
Fechava-se um ciclo para mim. Dia seguinte, fomos conduzidos de volta a Brasilia em
avião da polícia federal, com direito a um pernoite no em Uberlândia, seguindo para
Brasilia, onde após uma passagem pela Polícia Federal, fomos conduzidos para a
Polícia do Exército, no Setor Militar Urbano.
Ibiúna, foi o canto do cisne do movimento estudantil brasileiro.
Depois do Congresso, a repressão muda de qualidade, como também as formas de luta
de significativa parcela da oposição ao regime. A prisão das lideranças repercutiu nas
Universidades e o esgotamento do ciclo lutas estudantis se escancara. Muitos
estudantes ficarão nas cadeias inclusive suas maiores lideranças como Luiz Travassos,
Vladimir Palmeira, Antonio Ribas, em Santos. José Carlos Mata Machado, Valdo Silva,
Jorge Baptista e João Mares Guia em Belo Horizonte; Beto Curvo, Stenio Jacob, Vitorio
Sorotiuk em Curitiba e muitos outros distribuídos por diferentes estados da federação..
Em Brasilia ficamos eu e Paulo Speller, mineiro de nascimento, psicólogo em formação
e opositor por consciência. Um detalhe pitoresco: como mãe do Paulo era irmã da
mulher do general Castelo Branco, ele era sobrinho do ditador por afinidade e estava
onde estava. Por vezes, a “fera” era objeto da curiosidade de alguns oficiais que
vinham vê-lo e confirmar a história...
Epílogo
A luta jurídica que se estabelece rapidamente em nossa defesa encontra fortes
barreiras com a caracterização dos “crimes” políticos como delitos contra a Segurança
Nacional e ganha corpo a montagem de um imenso aparato repressivo que de início se
monta apoiada no modelo estadonovista de repressão: uma polícia política civil,
prestando contas aos governadores e sem uma ligação clara com os verdadeiros donos
do poder, os militares. Isso muda e o aparato repressivo cria uma estrutura
diretamente ligada aos quarteis, quando não montadas dentro deles. Pode-se dizer
que após Ibiúna o governo deixa cair a fantasia liberal e parte para a repressão aberta.
Da minha cela em Brasilia, somente podia assistir aos acontecimentos, recebendo
semanais visitas de nosso advogado José Luiz Clerot, recebendo maçãs, chocolates e
cigarros enviado por nossos amigos e amigas. Não sei por que as pessoas enviavam
maçãs e chocolate aos presos... Poderia ser bananas, laranjas ou goiabas, mas não,
eram maçãs e chocolates, acompanhados de cigarros. Porque também sem um
cigarro, ninguém segura esse rojão iria dizer o nosso Chico Buarque.
Toda nossa expectativa se depositava no pedido de habeas corpus impetrado no STF
em favor dos líderes estudantis dentre os quais, o locutor que vos fala! Para nosso
advogado, seriam “favas contadas”: fontes geralmente bem-informadas davam conta
de que a quase totalidade dos ministros votariam a nosso favor. “Portanto, meninos,
façam as malas!”
No dezembro, 12, sai o habeas corpus! E deveríamos ser libertados no dia seguinte.
Alegria enorme, peito arfante! Era sair, reencontrar os companheiros, se informar
sobre o que estava acontecendo na Universidade, retomar a luta e ver no horizonte as
mudanças desejadas! Dia seguinte, o 13, uma manhã luminosa dos nossos cerrados, a
expectativa cresce; almoço servido e nada! Ficou para a tarde, pensei. E nada. Bem,
nada vale se amofinar, vamos esperar. A tarde veio e se foi e nada! Início da noite, os
sonhos se desfizeram: era promulgado o AI-5, instrumento mais poderoso de
repressão dos militares, suspendendo direitos civis, cassando, prendendo mostrando
ao Brasil a verdadeira face do regime. O ano pode não ter terminado, como depois
disse Zuenir Ventura. Mas as minhas expectativas, sim. Nenhuma ilusão a partir daí.
Seriam quase três anos em locais como aquele ou piores, como a OBAN, a
Penitenciaria de Linhares, em Juiz de Fora, o DOPS de BH, com direito a longos meses
no Presidio Tiradentes em São Paulo.
De 1968 a 1971, muita coisa aconteceu neste Brasil de meu Deus: Marighella, Joaquim
Câmara Ferreira, foram assassinados assim como boa parte da liderança estudantil que
generosamente enfrenta heroicamente a repressão da ditadura e sacrificam suas vidas
na luta pela liberdade e a democracia. Gente como Honestino Guimarães, José
Arantes, Jose Carlos Mata Machado, Lauriberto Reyes, Ailton Mortatti, companheiros
queridos com quem tive o privilégio de conviver, nos deixaram assim como muitos
outros companheiros.
Em 1971, no segundo semestre, deixo a cadeia e, confinado em Brasilia, devendo
comparecer semanalmente Auditoria Militar, inicio o meu processo de volta a UnB,
tentando retomar meu curso de Arquitetura. Como tinha sido preso antes da
promulgação do decreto 477, legalmente eu não poderia ser impedido de continuar
meu curso, ainda que o Reitor, em uma pequena reunião tivesse me garantido que eu
não continuaria a ser estudante daquela Universidade!
Mas isso já faz parte de outra história que eu conto depois!

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