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“NAZISMO É DE ESQUERDA”: IMPLICAÇÕES DISCURSIVAS,

SILENCIAMENTO E MEMÓRIA

Iniciando os diálogos

O panorama político nos últimos anos no Brasil tem passado por diferentes e
ampliadas tensões. Desde 2014, a política brasileira é marcada fortemente por manifestações
políticas, por questionamentos à Constituição e à democracia brasileira. Em 2018, com a
eleição presidencial, Jair Bolsonaro é eleito Presidente da República, representando a direita
conservadora e nacionalista. Essa virada política não acontece somente no Brasil, mas no
mundo como um todo.1
Discursos alicerçados na anticorrupção, no nacionalismo, no patriotismo, na crença
religiosa e na forte desestabilização da esquerda mudaram os rumos da política no país.
Durante as eleições, um acontecimento discursivo se destacou nas redes sociais. A afirmação
foi levantada pela direita no Brasil: “o nazismo é de esquerda”. Esse discurso surgiu,
principalmente, com base na nomenclatura do partido Nazista da Alemanha, Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, por conter a palavra “Socialista” no nome.
Desse modo, o movimento direitista afirma que se tratava de um partido de esquerda, pois era
socialista. Esse enunciado é reforçado pela figura do presidente e ministros do governo em
diferentes momentos.
Não vamos nos deter aqui em discorrer sobre a polarização política que o Brasil
vivencia, mas, especificamente, no enunciado “nazismo é de esquerda” e em suas
implicações. Nessa direção, situado no campo da Análise do Discurso (AD) fundada por
Michel Pêcheux (1988) e em seus desdobramentos no Brasil (ORLANDI, 2015), o presente
artigo objetiva analisar os efeitos de sentidos produzidos nesse enunciado e como eles se
ressignificam no discurso, levando em consideração o confronto ideológico e discursivo; por
fim, busca compreender como a política do silêncio (ORLANDI, 2007) constitui esse espaço
do dizer.
Após esses apontamentos iniciais, parte-se para a análise do corpus, que é constituído
por charges que representam o enunciado “nazismo é de esquerda”. As charges foram
encontradas em diferentes comunidades da internet e circularam durante as eleições e durante
o discurso do Presidente Bolsonaro em Israel, onde ele reafirmou o enunciado. Elas foram

1
Essa afirmação vai ao encontro dos apontamentos realizados por professores especialistas da USP. Fonte:
https://jornal.usp.br/atualidades/o-mundo-vive-uma-desordem-economica-e-politica/
escolhidas a partir do evidenciamento (MOREIRA, 2007, 2009) que caracteriza o enunciado,
uma vez que, segundo a autora, o evidenciamento está na ordem do discurso e atua entre a
opacidade e a produção de evidências, materializa a disputa pelos sentidos constituídos
historicamente na tentativa de naturalizar sentidos outros, ressignificá-los.

Aspectos teórico-metodológicos

Discorrendo sobre a temática da AD, Orlandi (2015) afirma que a área estuda a
mediação entre a língua e a realidade social do homem, tornando possível analisar a realidade
em que ele vive a partir do seu meio social. Sendo assim, a autora esclarece que a AD trabalha
com “a língua no mundo, com maneiras de significar, com homens falando, considerando a
produção de sentidos enquanto parte de suas vidas, seja enquanto sujeitos seja enquanto
membros de uma determinada forma da sociedade” (ORLANDI, 2015, p. 13-14).
Nessa perspectiva, ao levar em consideração o funcionamento discursivo da língua, é
necessário pensar não só no seu aspecto sintático, mas também na sua dimensão
social-cultural-histórica e política. Sendo assim, é necessário discorrer sobre os conceitos
basilares para a compreensão do referencial teórico segundo a AD. Os conceitos que serão
mobilizados a seguir nos ajudam a compreender a relação entre língua e ideologia,
considerando não só as manifestações da materialidade do texto, mas seu caráter
histórico-ideológico.
Nesse sentido, para Pêcheux (1988, p. 161), teórico precursor dos estudos da AD, o
sujeito já é, ou seja, “os indivíduos são ‘interpelados’ em sujeitos falantes (em sujeitos do seu
discurso)”, sendo constituído por essas interações. O indivíduo é interpelado a todo instante
por situações diversas, nas quais ele se assume enquanto sujeito que ocupa um espaço-tempo
na sociedade, por isso ele é “sempre-já” sujeito, está condenado a significar. Segundo
Pêcheux (1988, p. 154) “o sujeito é chamado à existência: na verdade, essa formulação evita
cuidadosamente a pressuposição da existência do sujeito sobre o qual se efetuaria a operação
e interpelação – daí não se dizer: ‘o sujeito é interpelado pela Ideologia’”, mas dizer “a
ideologia interpela os indivíduos em sujeito” (Idem, p. 155).
Esse assujeitamento do sujeito pelo “outro” consiste nas falas, nas representações que
carregamos de outras interações. O sujeito é atravessado por diferentes vozes no seu discurso,
porém é pela ideologia que os sentidos são determinados, “só há prática através de e sob uma
ideologia; só há ideologia pelo sujeito e para o sujeito” (PÊCHEUX, 1988, p. 149). Portanto,
não há sujeito sem ideologia, ele é um “efeito ideológico”. Não há sentido sem interpretação,
todo signo é ideologicamente marcado, consequentemente, todo signo é interpretado por um
sujeito que é afetado pela língua, marcada por processos sócio-históricos e ideologicamente
atestados. O sentido não existe em si mesmo, como aponta Pêcheux (1988, p. 160):

É determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo


sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é,
reproduzidas). Poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões,
proposições, etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles
que as empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a
essas posições, isto é, em referências as formações ideológicas nas quais essas
posições se inscrevem.

O sujeito é essencialmente heterogêneo. De acordo com Orlandi (2005, p. 53):

[...] ao dizer, o sujeito significa em condições determinadas, impelido, de um lado,


pela língua e, de outro, pelo mundo, pela sua experiência, por fatos que reclamam
sentidos, e também por sua memória discursiva, por um saber/poder/dever dizer, em
que os fatos fazem sentido por se inscreverem em formações discursivas que
representam no discurso as injunções ideológicas.

Os conceitos desenvolvidos por Pêcheux são essenciais para o trabalho em questão,


visto que são sujeitos em interação com o todo discursivo que produzem/reproduzem o
enunciado. Desse modo, faz-se necessário, nessa visada discursiva, realizar uma breve
discussão sobre acontecimento e memória discursiva para compreender como se dá o
funcionamento do sentido no movimento do discurso.
Pêcheux (1990), concebe o discurso não só como materialidade linguística, mas como
uma materialidade dotada de sentidos concebidos historicamente. Sendo assim, para esse
teórico, trata-se de pensar a materialidade discursiva em suas relações com a historicidade,
constituída por uma estrutura e um acontecimento.
Entretanto, algumas exigências são necessárias ao analisar a língua por esse viés.
Primeiro, “consiste em dar o primado aos gestos de descrição das materialidades discursivas”
(PÊCHEUX, 1990, p. 50), ou seja, descrever significa reconhecer que existe o real da língua,
com procedimentos, sob a forma da “existência do simbólico”. Segundo,

[...] a consequência do que se procede é que toda descrição [...] está intrinsicamente
exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsicamente suscetível de
tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido
para derivar para um outro. [...] Todo enunciado, toda sequência de enunciados é,
pois, linguisticamente descritível como uma série de pontos de deriva possíveis,
oferecendo lugar à interpretação. É nesse espaço que pretende trabalhar a análise de
discurso (PÊCHEUX, 1990, p. 53).

Ter essa compreensão de que todo enunciado é suscetível ao equívoco possibilita


observar que é pelo acontecimento histórico que se dá a tensão da língua, pelo conflito
ideológico. O outro social e historicamente constituído abre espaço para a possibilidade de
interpretação da materialidade discursiva, conforme Pêcheux (1990, p. 54) afirma “é porque
há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações
sociais em redes de significantes”. O acontecimento é, assim, inserido em redes de memória.
Descrever o acontecimento é diferente de interpretar o acontecimento pelo viés da AD.
Por fim, a terceira e última exigência, “a discursividade como estrutura ou como
acontecimento” (PÊCHEUX, 1990, p. 55). O discurso transita entre estrutura e
acontecimento; ele “marca a possibilidade de uma desestruturação-reestruturação dessas redes
e trajetos” (Idem, p. 56). Logo, o discurso mobiliza-se por meio do acontecimento, “é o índice
de uma agitação nas filiações sócio-históricas de identificação” (Ibidem), que se situa entre
essa agitação das filiações sócio-históricas (memória) e a atualidade.
Portanto, conforme salienta Orlandi (2015), ao analisar um objeto, um discurso, pelo
viés materialista, o analista precisa lembrar que este se insere no real da língua, é suscetível a
equívocos, logo oferece lugar à interpretação e está inserido em uma estrutura, mobilizado por
acontecimentos “entre a memória e a atualidade” (PÊCHEUX, 1990, P. 17). A memória
garante a existência do enunciado, mas ele nunca é mobilizado como o mesmo, está sempre
suscetível a mudanças pelo sujeito-outro e o acontecimento garante que o sujeito, em uma
situação discursiva, movimente essa memória, mas sempre se atualizando na discursividade.
Assim, o acontecimento discursivo se constitui enquanto ruptura da memória.
É importante frisar que a memória, segundo Pêcheux (1999), é construída socialmente,
é o que ele denomina como “memória discursiva”. O acontecimento faz com que ela seja
sempre ressignificada, confrontando os limites da homogeneidade social sobre um
determinado discurso. Nessa perspectiva, Pêcheux (1999, p. 56) ressalta que:

A memória não poderia ser concebida como uma esfera plena cujas bordas seriam
transcendentais históricos e cujo conteúdo seria sentido homogêneo, acumulado ao
modo reservatório: é necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções,
de deslocamento e de retomadas, de conflitos de regularização. Um espaço de
desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos.

A memória é inconstante; mesmo com imagens e documentações, está passível de


diferentes interpretações. A interpretação, como refletido acima, não é um gesto de
decodificação, ela é garantida pelo papel social da linguagem, pelo caráter singular do sujeito
que diz a partir de uma posição. Desse modo, ao rememorar um acontecimento, o sujeito é
chamado à interpretação face as condições materiais de existência, assim, os sentidos são
constituídos pelos processos sócio-históricos-ideológicos e pela posição que o sujeito ocupa
ao dizer.
Eni Orlandi (2007) realiza uma discussão fundamental sobre a teoria do silêncio. A
autora compreende o silêncio como fundante, silêncio que “atravessa” as palavras e indica o
que não está dito entre elas, ou ainda, os outros sentidos possíveis delas: “as palavras são
cheias de sentidos e não dizer e, além disso, colocamos no silêncio muitas delas” (2007, p.
14). O silêncio é considerado por Orlandi como um continuum absoluto, o real do discurso e
da significação, pois possui um aspecto cultural, social, histórico e político e, por isso, ele
significa, possui sentido, o qual está sempre em movimento.
A discussão que para nós se faz fundamental é o silêncio constitutivo da linguagem ou
a “política do silêncio”. Ela “se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos
necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva
dada” (ORLANDI, 2007, p. 73). Além disso, “a política do silêncio produz um recorte entre o
que se diz e o que não se diz” (Ibidem).
A política do silêncio (silenciamento) tem duas formas de existências: o silêncio
constitutivo e o silêncio local. Iremos nos dedicar ao silêncio constitutivo, pois ele marca o
lugar do sentido no não-dizer. Na fala de Orlandi (2007, p. 73), o silêncio constitutivo:

[...] pertence à própria ordem de produção do sentido e preside qualquer produção da


linguagem. Representa a política do silêncio como um efeito de discurso que instala
o antiimplícito: se diz “x” para não (deixar) dizer “y”, este sendo o sentido a se
descartar do dito. [...] Por aí se apagam os sentidos que se quer evitar.

Gesto de análise

O corpus que constitui o objeto de análise deste trabalho se trata de charges que
mobilizam o enunciado “nazismo é de esquerda”. A escolha do gênero charge se dá pelo fato
de retratar, por um viés cômico, mas ao mesmo tempo crítico, situações que dizem respeito à
sociedade, principalmente, no âmbito político, uma vez que decisões, discursos, movimentos
nesse âmbito atingem diretamente o funcionamento sociocultural e econômico de uma
organização social.
Nesse sentido, ao utilizar charges como objeto de análise, procura-se compreender o
funcionamento do evidenciamento de um acontecimento, que se trata do enunciado “nazismo
é de esquerda”. Ainda sobre a charge, D’Athayde (2010, p. 38-39) destaca que:

De acordo com o Dicionário de Comunicação, a charge é uma “crítica humorística


de um fato ou acontecimento específico, em geral de natureza política” (RABAÇA;
BARBOSA, 1978, p. 89) [grifo nosso] ou, ainda, na perspectiva de um artista
plástico e jornalista, uma “representação pictórica de caráter burlesco e caricatural
[...] em que se satiriza um fato específico, em geral de caráter político, que seja de
conhecimento público” (FONSECA, 1999, p. 26) [grifo nosso].
Um artista, ao optar pelo uso da charge para realizar uma sátira política, espera que o
seu leitor esteja inteirado do acontecimento sobre o qual a charge se refere, por isso,
normalmente, são retratados acontecimentos que tiveram uma repercussão forte na sociedade
e que estão na ordem do dia.
Sendo assim, ao constituir o corpus a partir de princípios teórico-metodológicos da
AD, objetiva-se compreender como “um discurso funciona produzindo (efeitos) de sentido”
(ORLANDI, 2015, p. 63). Desse modo, selecionamos duas charges que trabalham com o
enunciado “nazismo é de esquerda”, a fim de compreender seu funcionamento discursivo.
Perguntamos, a partir das análises, como os sentidos se constituem? A partir de qual tensão no
jogo dos sentidos? Como a política do silêncio constitui nesse espaço de dizer?

Análise

A primeira charge a ser analisada foi encontrada do blog “Humor Político: rir para não
chorar”, em 15 de outubro de 2019. Trata-se de uma charge sobre humor político, publicada
durante as eleições de 2018, quando o então candidato à Presidência da República realizou o
enunciado com mais ênfase durante a campanha. Do ponto de vista discursivo, a charge se
constitui enquanto materialidade linguística e visual:

Charge 1: Noticiário barra pesada: aula de história

Fonte: https://www.humorpolitico.com.br/tag/nazismo-de-esquerda/. Acesso em: 15 de out. de 2019.

Nessa charge, dois homens, vestidos com a mesma roupa, destacando-se a


camisa amarela e gravata verde, representam os apresentadores do noticiário.
Centralizados, noticiam os acontecimentos em forma de tópicos. Além disso, a
sequência discursiva constante do título NOTICIÁRIO BARRA PESADA, destacado na
cor vermelha e em negrito, apresenta o traço satírico da charge, demarcando a partir de
qual formação ideológica e discursiva ela foi construída, antecipando para o
sujeito-leitor um imaginário sobre o que será tratado no noticiário, ou seja, assuntos
difíceis de acreditar/ver. Enquanto materialidade significante (LAGAZZI, 2011), a cor
vermelha, no título, e as cores verde e amarela, na roupa dos apresentadores remetem,
respectivamente, a uma memória discursiva das posições antagônicas “comunismo” e
“nacionalismo” durante a Ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). O traço satírico
da sequência discursiva do título NOTICIÁRIO BARRA PESADA é reforçado pela
sequência “você acabou de assistir: A história do ponto de vista do Kama sutra2. As
posições ficam antagonicamente marcadas por essa sátira, que inscreve as sequências
discursivas - nazismo era de esquerda. 64 foi um movimento. O coiso é um mito na
mesma posição de quem interpreta o Kama Sutra. Podemos compreender os efeitos de
sentido produzidos pela imagem em composição com as sequências discursivas como
ponto de vista da história BARRA PESADA.
O enunciado textualiza acontecimentos que provocam rupturas entre a memória
e a atualidade da história, como o Golpe de 64 pelos militares no Brasil, que é
trabalhado discursivamente pela direita brasileira como fato histórico, ou seja, cuja
interpretação se dá pelo efeito de evidência produzido pela ideologia e, para o qual, não
cabem outros sentidos. Desta posição discursiva, o Golpe de 64 é discursivizado como
‘Revolução de 64’ (MOREIRA, 2009), que deve ser comemorado e relembrado com
orgulho, apagando, silenciando as torturas, as mortes, as censuras, as perseguições e as
lutas pela liberdade, em uma tentativa de naturalizar sentidos que produzem uma
formação imaginária positiva em relação ao que, aqui, estamos designando como Golpe.
Desse modo, a sequência discursiva 64 foi um movimento (Charge 1) mobiliza
fios da memória discursiva ao retomar já-ditos – como “Revolução de 64” - em uma
mesma região de sentidos. Temos um movimento na ordem do discurso que, segundo
Pêcheux (1999), aponta para uma memória discursiva que ressignifica, colocando em
conflito a atualidade e a memória. A materialidade linguística em destaque na charge
aponta para um confronto ideológico e político em relação ao seu contexto de produção.
Ela compõe a materialidade imagética da charge, possível pela
incompletude constitutiva das materialidades simbólicas. Seguindo Lagazzi (2011), no

2
As sequências discursivas que constituem o corpus discursivo serão marcadas em itálico.
gesto analítico da imbricação dessas materialidades, podemos trabalhar o equívoco do
acontecimento do significante na história.
Do lugar político, no qual essa charge foi construída, o enunciado nazismo é de
esquerda, assim como 64 foi um movimento e o coiso é um mito, se inscrevem a partir
de uma formação discursiva e ideológica oposta às posições discursivas apresentadas
pelo então candidato à Presidência da República, posteriormente eleito, em diferentes
pronunciamentos realizados por ele.3 São produzidos sentidos que demarcam uma
posição crítica e satírica quanto a esses enunciados, que é reforçada pela sequência
discursiva você acabou de assistir: A história do ponto de vista do Kama sutra. Em
relação à materialidade linguística, para agradar diferentes posições, o sujeito realiza
uma mudança histórico-ideológica em seu discurso de modo a possibilitar um prazer
aos seus seguidores, aos sujeitos que compartilham da mesma posição.
O embate entre a história e a política discursivamente constituída na memória
social é colocado em questionamento pelos sujeitos que interagem com o enunciado
“nazismo é de esquerda”. A charge, ao materializar esse confronto não só com o
nazismo, mas com o golpe e a idolatria ao atual Presidente da República – mito –,
materializa o debate presente na arena discursiva e aponta para uma mudança na
posição-sujeito cuja fala é perpassada por um vocabulário autoritário, nacionalista,
grotesco, mas que, ao mesmo tempo, produz essa tentativa de naturalização pelo prazer
de seus interlocutores.
Ao realizar esse gesto, o silêncio constitutivo se marca enquanto resistência dos
sentidos, “é preciso não dizer para poder dizer” (ORLANDI, 2007, p. 74). É pelo
discurso que se materializa na língua e se dá nas relações estabelecidas pelo sujeito com
o outro, que o silêncio se constitui nesses dizeres, enquanto tentativa de produzir um
prazer discursivo no outro que interage com o meu dizer, pois é pela fala pública do
atual Presidente do Brasil que as sequências representadas na charge são postas em
circulação.

3
“Não houve golpe militar em 1964.” (Durante entrevista no programa Roda Viva, da TV Cultura, em 30
de julho de 2018).
“Não tenho dúvidas de que o nazismo era um regime de esquerda” (em visita ao Centro Mundial de
Memória do Holocausto, em Israel, abril de 2019).
“Não sabem que foi um processo democrático [a posse de Castelo Branco na ditadura militar]. Teve
votação.” (Entrevista para o Instagram do BLOGDOMAGNO, 19 de maio de 2020).
“Não há dúvida né [que o nazismo é de esquerda]? Como é o nome do partido? Partido Nacional
Socialista da Alemanha, né?” (em visita ao Centro Mundial de Memória do Holocausto, em Israel, abril
de 2019).
A segunda charge foi publicada no jornal “Brasil de Fato” (03 de abril de 2019),
demarcado pelo seu caráter de militância na área jornalística, pela sua pluralidade e
diversificação quanto à composição do seu quadro de jornalistas, sempre retratando
acontecimentos do país de forma crítica. A charge é do autor Carlos Latuff e relembra o
contexto em que o ex ministro das relações exteriores e o presidente visitaram o Muro
das Lamentações dos judeus, na cidade de Jerusalém (Israel), e, nesta Condição de
Produção (PÊCHEUX, 1988), afirmaram que o “nazismo é de esquerda”.

Charge 2: Curso de história

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/artes/2019/04/03/latuff/index.html. Acesso em 16 de out. de 2019.

Na charge, é possível notar a figura do presidente caricaturada ensinando a


outros dois personagens. No canto esquerdo da charge, tem-se uma tabuleta com
ensinamentos sobre o nazismo - onde está escrito Curso de História Olavo de Carvalho
e Nazismo é de esquerda - diante da figura do presidente ensinando a história do
nazismo a partir das leituras do filósofo Olavo de Carvalho. Em resposta, os
personagens pensam em consonância: “Idiota!”.
No dizer “Olavo de Carvalho” como o precursor do “curso de história”,
buscamos compreender o modo como a crítica funciona. Olavo de Carvalho é
popularmente conhecido como o “guru” do presidente Bolsonaro, fazendo ressoar
efeitos de sentidos polêmicos em relação à intepretação da história do Nazismo e do
Brasil.
Para a compreensão discursiva da charge, é importante compreender os efeitos
de sentidos dos personagens que comparecem como alunos do presidente. A
materialidade imagética nos remete ao interdiscurso4, pelo qual podemos compreender

4
“Todo complexo com dominante das formações discursivas [...]. Algo fala sempre antes, em outro lugar,
independentemente, isto é, sob o complexo das formações ideológicas.” (PÊCHEUX, 1988, p. 162)
que os alunos se inscrevem enquanto: um judeu, fortemente perseguido pelos nazistas,
marcados por um dos maiores massacres conhecidos pela história; e um militar das
forças secretas nazistas, responsável por elaborar as perseguições e atuações das forças
nazistas, eram livres para decidirem e atuarem como desejassem5. Esses personagens
podem ser associados como alunos, tomando-se as marcas imagético-discursivas
enquanto materialidade significante. Sentados à frente do professor tem-se o judeu,
identificado pelo pijama de listras usado nos campos de concentração, além dos dois
triângulos sobrepostos em amarelo, para formar a Estrela de Davi na blusa e os pés
descalços remetendo ao despojamento das vestes e pertences que eram obrigados a
fazer; e o militar nazista identificado pela vestimenta característica dos militares e pelos
símbolos nazistas, como o que está no capacete.
Os personagens são constituídos ideologicamente pela história que vivenciaram;
portanto, marcam posições antagônicas entre si, mas ocupam a mesma posição
discursiva na charge, como podemos compreender com a sequência discursiva em que
ambos estão pensando o mesmo – Idiota - em relação ao Presidente da República. Já as
sequências discursivas Nazismo é de esquerda e Curso de História Olavo de Carvalho,
de um lado, marcam a posição professor (Presidente da República); e de outro,
assentados, os alunos (os sujeitos da história), cuja sequência discursiva Idiota! pode ser
compreendida como discordância quanto ao enunciado proferido pelo professor
caricaturado por Bolsonaro.
Por fim, destacam-se as cores fortes utilizadas na charge, como o vermelho na
inscrição “Nazismo é de esquerda”. Mais uma vez, a cor vermelha como materialidade
significante compõe o ponto de encontro entre a memória e a atualidade no gesto de
interpretação. Os efeitos de sentido historicamente constituídos do vermelho remetem a
signos que simbolizam o comunismo, a guerra; “a cor vermelha está ligada
historicamente a posições revolucionárias, transformadoras” (ORLANDI, 2015, p. 27).
Assim, a historicidade da cor vermelha ao longo da história é ideologicamente
constituída. Dito de outro modo, Pêcheux (1988) propõe que o sujeito não é destituído
de ideologia, mas é interpelado por ela. Nesse sentido, dessa posição-sujeito Presidente
da República, ao afirmar que o “nazismo é de esquerda”, há uma busca pelo

5
De acordo com
https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-gestapo-terror-paranoia.phtml. Acesso
em 30 de abril de 2021.
apagamento de sentidos que colocam em luta a memória discursiva social, evidenciando
sentidos que tentam naturalizar um movimento de acordo com sua vontade de dizer.
A charge analisada trabalha esse caráter ideológico e histórico do sujeito, que se
materializa pela linguagem, que se manifesta pelas condições de produção e pelos
imaginários que o sujeito constrói de si e do outro. A política do silêncio se faz presente
pelo seu caráter constitutivo, pelos personagens caricaturados na charge – enquanto
materialidade imagética – pela materialidade linguística, pela disposição dos elementos,
assim como pela construção do imaginário social em torno dos personagens que
mobiliza efeitos de sentidos outros, apagando, necessariamente, os sentidos que a fala
do presidente mobiliza nos sujeitos interlocutores, conforme sinaliza Orlandi (2007), ao
reforçar que toda escolha discursiva apaga, necessariamente, outros sentidos possíveis.

Considerações finais

O presente estudo teve por objetivo realizar uma análise discursiva de charges
em que o enunciado “nazismo é de esquerda” é trabalhado como forma de
questionamento, com base na teoria materialista dos processos discursivos, a fim de
compreender os efeitos de sentido que discursos como esse deslocam, considerando os
sujeitos e a história.
A partir das análises realizadas, foi possível compreender que as charges
buscam, pelo jogo discursivo, trabalhar o modo como o dizer se projeta contra o
discurso do atual governo brasileiro, revelando-se como um movimento de resistência e
militância, em que os sentidos são mobilizados conforme a formação discursiva e
ideológica e o contexto político em que se inserem. É importante ressaltar que as
escolhas discursivas nas análises não são aleatórias, mas se constituem como
discursividades que evidenciam certos sentidos para silenciar outros.
Por fim, as análises nos apontam para um movimento de resistência quanto a
esse discurso, assim, o silêncio constitutivo que perpassa o discurso do presidente, por
mais que haja a tentativa de apagamento de certos sentidos, sentidos outros são
construídos pela/na interação discursiva, isto é, pelas posições ideológicas que resistem
ao discurso na arena discursiva.

Referências

D’ATHAYDE, Elza Maria. Entre o dizer e o não dizer: a charge política e a relação
com o silêncio. Dissertação (Mestrado) – Universidade Católica de Pelotas, Programa
de Pós-Graduação em Letras, Pelotas-RS, 2010.

GRISI, Celso Cláudio de Hildebrand e. O mundo vive uma desordem econômica e


política. [Entrevista]. Rádio USP. [S.l: s.n.]. Universidade de São Paulo, 10 de ago. de
2018. Disponível em: O mundo vive uma desordem econômica e política – Jornal da
USP. Acesso em 15 de outubro de 2019.

LAGAZZI, Suzy. A equivocidade na circulação do conhecimento científico.


Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, SC, v. 11, n.3, p. 497-514, set./dez. 2011.
LATUFF, Carlos. Bolsonaro ridiculariza memória do holocausto e faz reescrita à força
da história. Brasil de fato. 2019. Disponível em:
https://www.brasildefato.com.br/artes/2019/04/03/latuff/index.html. Acesso em 16 de
out. de 2019.

MOREIRA, Carla. Censura e silenciamento no discurso jornalístico. In:


RIBEIRO, Ana Paula; FERREIRA, Lucia Maria (Orgs.). Mídia e memória: a
produção de sentidos nos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. p.
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ORLANDI, Eni. Do fato para o acontecimento (da diferença à resistência). In: Orlandi,
Eni. Eu, Tu, Ele: Discurso e Real da História. São Paulo: Pontes Editores. 2ª Ed, 2017.

______. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. 12. ed, Campinas, SP: Pontes
Editores, 2015.

______. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6. ed. Campinas, SP:


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______. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 5. ed. Campinas, SP: Pontes,


2005.

PÊCHEUX, Michel. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre et al. (Org.) Papel da
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______. O discurso: estrutura ou acontecimento. Tradução Eni Pulcinelli Orlandi.


Campinas, SP: Pontes, 1990.

______. Semântica e discurso: uma crítica a afirmação do óbvio. Tradução Eni


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03 de outubro de 2018. Disponível em:
https://www.humorpolitico.com.br/tag/nazismo-de-esquerda/. Acesso em: 15 de out. de
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