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Homem, um ser dialógico

Cezar R. Versa

A noção fundadora do conceito de dialogismo aparece na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem, do


formalista russo, Mikhail Bakhtin (1995). Nela fundamenta sua teoria, em que a interação social ocorre através
da palavra, a qual carrega em si valores ideológicos e históricos. Para tanto, fez um estudo das teorias anteriores
fundamentadas na lingüística geral, que explicavam o pensamento filosófico e lingüístico de seu tempo. Essa
reflexão pautou a sua concepção de linguagem, baseada sobretudo na dialogia.
A dialogia, a priori, pode ser entendida como uma ciência ancorada no diálogo, num sentido mais
amplo de uma relação dialética. Para Bakhtin (1995) tal termo concernia a algo muito além dessa concepção,
representando todo um processo constitutivo do mundo.

Dialogia foi o termo que mais usou para descrever a vida do mundo da produção e das trocas
simbólicas, composto não como um universo dividido entre bons e maus, novos e velhos, vivos
e mortos, certos e errados, verdadeiros e mentirosos etc. Mas como um universo composto de
signos, do mais simples, como dois paus cruzados formando uma cruz, até os enunciados mais
completos, como a obra de um grande pensador como Marx, cujos valores e significados não
eram dados e estáticos, mas extremamente ambíguos e mutáveis (Roncari in Barros, Fiorin
(orgs.), 1999, p.X)

Percebe-se que ademais de um conceito, o dialogismo fundamenta as próprias relações do homem com o
homem, dele com o mundo, além de tudo que o caracteriza enquanto humano. A variação de importância entre
homem-mundo não é o fundamental, pois tudo provém de trocas, simbólicas ou não, que remontam à própria
formação da existência humana. Ou seja, o homem depende do mundo, que sem o ser humano não seria o
mesmo mundo.
Bakhtin (1995) fundamenta seu pensamento a partir de uma reflexão das linhas teóricas da lingüística
geral tidas como certas em seu tempo. As duas orientações vigentes de sua época eram a do subjetivismo
idealista e a do objetivismo abstrato. “A primeira tendência interessa-se pelo ato de fala, de criação individual,
como fundamento da língua (no sentido de toda atividade da linguagem sem exceção). O psiquismo individual
constitui a fonte da língua” (Bakhtin, 1995, p.72). Ou seja, a língua é vista como sendo produzida a partir de um
ato individual, cada vez que alguém fala constrói sua linguagem embasada em sua psicologia própria, num
eterno processo de construção. Já a segunda orientação concebe a língua enquanto um sistema de signos
abstratos e autônomos, em que o ato individual de fala e a própria enunciação são descartados. O foco é o
sistema lingüístico formado pelo sistema das formas fonéticas, gramaticais e lexicais da língua.
O autor, tomando por base essas definições, começa a analisá-las criticamente, uma vez que tanto uma
como outra podem ser refutadas em alguns aspectos. Sua linha teórica vê na palavra mais que um ato individual
constituído, já que ela é social e ideológica. Pensar que os falantes têm a consciência, ou melhor, que eles vêem
a fala enquanto um sistema de formas normativas, parece também não se evidenciar.
Dessa forma, ele não concebe essas duas teorias como uma mais certa do que a outra, nem vê no
equilíbrio entre as teses do subjetivismo individualista ou das antíteses do objetivismo abstrato, a resolução de
tais questionamentos. Uma vez que “a verdade encontra-se além, mais longe, manifesta uma idêntica recusa
tanto da tese como da antítese, e constitui uma síntese dialética” (Bakhtin, 1995, p.109).
Rejeitar o ato da fala individual, como faz o objetivismo abstrato, é não considerar a enunciação, e dizer
que a enunciação é um ato individual de fala como faz o subjetivismo abstrato, é não ver nela uma de suas mais
importantes características, a de sua natureza social.

Com efeito, a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados


e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio
do grupo social ao qual pertence o locutor. A palavra dirige-se a um interlocutor: ela é função
da pessoa do interlocutor. (Bakhtin, 1995, p.112)

Essa noção da palavra em relação ao outro é bastante importante para entendermos a concepção de
dialogismo. Por meio dela o locutor se define frente ao outro e vice-versa. O diálogo acaba por constituir-se a
partir das interações verbal e social. Ao falar tentamos convencer aquele que nos escuta, além do que, a posição
social de que proferimos também acaba por interferir, um médico falando com um profissional da saúde usa
determinado vernáculo, já com um paciente as escolhas lexicais são diferentes.
Para o formalista russo, a realidade fundamental da língua, sua verdadeira substância ocorre a partir do
fenômeno da interação social, ou seja, realizado através da enunciação. Logo, quando nos comunicamos
estabelecemos relações interativas, “estamos diante de um horizonte social definido que determina a criação
ideológica do grupo social e da época a qual pertencemos. Assim, pensar a enunciação é pensá-la a partir da
situação social, do meio social” (Romualdo, 2000, p.49).
A enunciação, por sua vez, torna a ideologia de um grupo verificável, pois o enunciador em seu discurso
carrega todo o conhecimento de mundo por ele adquirido até ali, suas crenças e seus ideais. A visão de mundo
de uma determinada classe social é a formação ideológica, que não existe fora da linguagem. “Em outros
termos, a formação ideológica tem necessariamente como um de seus componentes uma ou várias formas
discursivas interligadas. Isso significa que os discursos são governados por formações ideológicas” (Brandão,
2001, p.38). Por isso, cada formação ideológica corresponde a uma formação discursiva, que é aprendida pelos
membros da sociedade pelos pressupostos da aprendizagem lingüística, ao fazer um discurso reproduzimos o
aprendizado.
Para Bakhtin (1995, p.45) “o tema ideológico possui sempre um índice de valor social. Por certo, todos
estes índices sociais de valor dos temas ideológicos chegam igualmente a consciência individual que, como
sabemos, é toda ideologia”. Se o processo enunciativo acontece em consonância com o social, se efetiva dentro
de uma ideologia, a qual pode ser definida a partir daquilo que se apresenta no ato de fala, ou seja, na
enunciação em si.
O dialogismo para o formalista russo tem duas estâncias, a de princípio constitutivo da linguagem e a de
condição do sentido do discurso. Isto é:

as relações dialógicas – fenômeno bem mais amplo do que as relações entre as réplicas do
diálogo expresso composicionalmente – são um fenômeno quase universal, que penetra toda a
linguagem humana e todas as relações e manifestações da vida humana, em suma, tudo o que
tem sentido e importância (Bakhtin, 1981, p.34).

O princípio monológico regeria a cultura ideológica do modernismo, e o dialogismo seria a oposição a


isso constituindo-se a partir da linguagem e ao mesmo tempo, senão por isso, evidenciando-se como premissa
básica para o sentido do discurso. De acordo com Bakhtin (1981, p. 66), “no universo monológico, tertium non
datur: a idéia ou é afirmada ou negada, caso contrário ela simplesmente deixa de ser uma idéia de significação
plena”. Algo é ou não é, já quando se tem a possibilidade do diálogo o mundo passa a ser entendido por outra
perspectiva, pois o mesmo algo pode ser ou não, além do que muda a partir das interações social e verbal.
De acordo com Barros (1999) o dialogismo discursivo pode ser desdobrado em dois aspectos: o da
interação verbal entre o enunciador e o enunciatário do texto, relação do eu-tu; e o da intertextualidade no
interior do discurso, o diálogo entre os textos das mais diversas culturas, os resignificando.
Deve-se ressaltar que quando ocorre a interação verbal tanto da parte de quem profere o enunciado
quanto da parte de quem recebe, há a presença, o ladrilhar histórico e ideológico de ambos. Assim, para Bakhtin
(1995) o dialogismo interacional só ocorre com o deslocamento da noção de sujeito. Ele não é mais visto como
o centro das atenções, detentor de todo conhecimento, e sim, como alguém formado por vozes sociais, e logo
um sujeito histórico e ideológico.
As experiências e aprendizados provindos da interação do sujeito com o mundo e com os outros homens
configura sua historicidade. Vale dizer que dependendo do ambiente, das pessoas e de tudo que o cerca teremos
determinado sujeito. Por uma lógica marxista, poder-se-ia dizer que dependendo de sua classe social o sujeito
será regido por determinada ideologia, embora a ideologia vigente seja sempre a da classe dominante.

Em outros termos, concebe-se o dialogismo como o espaço interacional entre o eu e o tu ou


entre o eu e o outro, no texto. Explicam-se as freqüentes referências que faz Bakhtin ao papel do
“outro” na constituição do sentido ou sua insistência em afirmar que nenhuma palavra é nossa,
mas traz em si a perspectiva de outra voz (Barros, 1999, p.3)

Dessa maneira percebe-se que a perspectiva sócio-histórica sempre foi o centro das atenções do autor
russo. O diálogo é um processo em que o sentido é construído pelos participantes de um colóquio, os quais
sofrem a interferência de todas as experiências por eles vivenciadas. Logo, as palavras não são inéditas, elas
retomam o que outros já falaram, explicitaram ou tentaram fazê-lo. Sendo diferentes em cada momento,
proporcionando novas leituras e reconstruções da memória. Uma vez que “esses efeitos de memória tanto
podem ser de lembrança, de redefinição, de transformação quanto de esquecimento, de ruptura, de denegação
do já-dito” (Brandão, 2001, p.79).
A noção da palavra lançada ao outro retrata uma dualidade, ela sai de alguém para chegar a um outro.
Sua bifacetação remonta a sua gênese, que se dá através do produto da interação do locutor e do ouvinte. Para
Bakhtin (1995, p.113) “Toda palavra serve de expressão a um em relação ao outro. Através da palavra, defino-
me em relação ao outro, isto é, em última análise, em relação à coletividade”. Sendo assim, a interação é um
processo que envolve o social e, por conseguinte, as vozes que formam essa sociedade.

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