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entendimento
Victoria Wilson
Marcos Luiz Wiedemer
Início de conversa
Sob este prisma, Bakhtin introduz uma concepção de língua que se manifesta
como enunciado e, este, integrado aos diversos campos da atividade humana, emerge
em estreita relação com os gêneros do discurso e com as relações extralinguísticas. O
vínculo da língua e do discurso com a realidade leva o autor a afirmar que “a língua
passa a integrar a vida através dos enunciados concretos (que a realizam)”, e, assim, por
meio dos enunciados é que “a vida entra na língua” (op. cit., p. 265).
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Para maiores esclarecimentos a respeito, recomendamos a leitura do texto Análise e teoria do discurso
de autoria de Beth Brait (2006), no livro: Bakhtin: outros conceitos-chave.
O discurso, assim compreendido, somente pode estar integrado à vida (social),
colocando em xeque a herança de uma concepção arbitrária do signo linguístico e, por
conseguinte, do entendimento da língua como sistema abstrato e autônomo
desvinculado do corpo social. Volóchinov (2017, p. 94) afirma que o signo é “um
fenômeno do mundo externo”, tem natureza interindividual e ideológica: “onde há signo
há ideologia”, portanto o campo de um coincide com o campo do outro
(VOLÓCHINOV, 2017, p. 93). Esse raciocínio conduz à dimensão histórico-social e
ideológica como ponto de partida para uma análise linguística.
Enquanto na visão formal da língua, não há lugar para sujeitos reais (e seus
conflitos), na visão discursiva, aqui delineada, a insatisfação, a objeção, a concordância,
o conselho, o apelo, o agradecimento, a reclamação, o pedido de desculpas, o elogio, a
discordância, etc., são atos de fala, respostas concretas neste elo interminável da cadeia
discursiva:
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Concepção do quadro adaptado de Van Dik (apud MOURA NEVES, 1997) e Schiffrin (1994).
interno.
f) Gramática: centrada na língua e na f) Gramática: centrada no
oração (e não no discurso). enunciado/discurso (e nos gêneros) – atos
de fala
g) Fala (parole-Saussure / performance- g) Fala: manifestação concreta dos
Chomsky): a manifestação individual e enunciados. Foco da investigação – caráter
concreta da língua – não é o foco da epistemológico.
investigação e, sim, a langue e a
competência (L I).
h) Perspectiva centrada na abstração h) Perspectiva centrada na complexidade
científica, no entendimento da língua do fenômeno linguístico em sua
como sistema. A oração é neutra (sem materialidade, funcionalidade e realidade:
juízo de valor). relações valorativas estabelecidas na
interação.
i) Contexto: inserido no discurso de um i) Contexto: não é pano de fundo; é
único e mesmo sujeito falante; estruturador do enunciado; base para as
desvinculado da realidade. relações dialógicas.
j) Plano verbal/gramatical: recursos j) Plano do objeto do sentido/plano do
lexicais, morfossintáticos no interior da enunciado: os recursos gramaticais são
oração. constitutivos do plano discursivo.
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Em Severo (2009), é apresentada uma discussão da comparabilidade entre as duas abordagens (Bakhtin
e Labov).
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Outras áreas também utilizam o texto/discurso como unidade de análise, por exemplo, Linguística
Textual, Teoria da Enunciação, Semântica Histórica da Enunciação, Antropologia Linguística, Semiótica,
Sociologia da Linguagem, Linguística Aplicada entre outras.
campo do ensino de língua: Como trabalhar com os nossos alunos, por exemplo, a
metalinguagem, quando ensinamos as classes de palavras do português? Como explicar
a nossos alunos determinado uso linguístico, sem considerar o valor ideológico dos
signos e o contexto da enunciação? Se não são palavras o que pronunciamos ou
escutamos, mas atos de fala, o que dizemos, então, quando interagimos por enunciados?
Ao enunciarmos casa, podemos nos referir aos múltiplos sentidos que o termo
oferece, seja de modo monoacentual, seja de modo pluriacentual; podemos dizer muitas
coisas (e fazer muitas coisas com a linguagem). Nas palavras de Certeau; Giard e
Mayol (1996, p. 203), a casa é um espaço privado, é “o território onde se desdobra e se
repetem dia a dia os gestos elementares das “artes de fazer”, é antes de tudo o espaço
doméstico, a casa da gente. De tudo se faz para não “retirar-se” dela, porque é o lugar
onde a gente se sente em paz” (grifo nosso), o nosso canto. Quem e quantos de nós
podem pronunciar “a casa da gente”? Quantos de nós podemos experimentar as delícias
da casa própria, do território doméstico, do refúgio, da tranquilidade? Não foi de forma
aleatória que o bordão do programa do governo brasileiro, para a aquisição da casa
própria, na gestão do Presidente Lula, foi o seguinte: “Minha Casa Minha Vida”. A
casa está íntima e diretamente relacionada à vida. Podemos observar na fala de uma
moradora o quanto esse projeto foi importante para ela. Podemos escutar não só as
“palavras”, mas a entonação, que para Bakhtin, também está carregada de valor e
sentido. Diz a moradora: minha casinha; pra mim foi um sonho, minha casa própria: é
felicidade, harmonia, felicidade, TRANQUILIDADE; nosso sossego, nosso cantinho,
etc.11 Por essas razões, reafirmamos como Bakhtin, que “o domínio do ideológico
corresponde ao domínio dos signos: são mutuamente correspondentes. Tudo que é
ideológico possui um valor semiótico” (BAKHTIN, 1988, p. 33).
Para concluir
Referências
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