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Breve fundamentação teórica e gestos de análise: descrição e

interpretação do discurso pelo impeachment


João Paulo Martins de Almeida – PPGLL/UFAL 1

Através do aparato teórico-analítico inaugurado por Michel Pêcheux para


o estabelecimento da Análise do Discurso, bem como a partir das contribuições
de Jean-Jacques Courtine e Eni Orlandi, intentaremos mobilizar gestos de
descrição e interpretação de dizeres oriundos mídia hegemônica comercial
brasileira, como a Veja e Folha de São Paulo, que puseram em circulação um
discurso anti-petista, alinhado à centro-direita do espectro político, cujos
valores ideológicos primavam pelas ideias de cunho liberal, privilegiando
características governamentais como o Estado mínimo, por exemplo. Assim, os
veículos de comunicação acima elencados materializaram, na linguagem, os
efeitos de sentidos que iriam contribuir para os acontecimentos que levariam ao
afastamento da ex-presidenta Dilma Rousseff em 2016, especialmente por
fazerem circular estes sentidos de maneira repetida e sem seu contraditório.
Entenderemos o discurso em conformidade com Orlandi (2005), como
um conjunto complexo de dizeres e de práticas sociais, sustentados em
relações ideológicas perante o mundo. Segundo a professora da Unicamp:

A Análise de Discurso, como seu próprio nome indica,


não trata da língua, não trata da gramática, embora
todas essas coisas lhe interessem. Ela trata do
discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem
em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de
movimento. O discurso é assim palavra em
movimento, prática de linguagem: com o estudo do
discurso, observa-se o homem falando. (1999, p. 13.
Grifo nosso).

Em consonância com Jean-Jacques Courtine (2016), a análise de um


processo discursivo se ancora na abordagem de zonas de trabalho, a saber:
nas condições de produção do discurso e a constituição de um corpus
discursivo; na seleção de palavras-chave na definição de entradas de um
tratamento; e na conceituação da relação enunciação/enunciado.
__________
1 Mestrando em Análise do Discurso do programa de pós-graduação em Linguística da Universidade Federal de Alagoas. Trabalho escrito para a disciplina “Estudos
em discurso e ontologia”, ministrada pela professora doutora Belmira Magalhães. Baseado no projeto de dissertação “A construção do impeachment de Dilma
Rousseff na mídia hegemônica como propulsora do discurso de ultradireita”
Deter-nos-emos na breve análise das condições de produção do
discurso a ser analisado – o discurso de direita da mídia tradicional brasileira a
respeito do impeachment, com seus desdobramentos e apropriações no
discurso da extrema direita política. Afirma Courtine (2016):

A noção de condições de produção do discurso regula,


em AD, a relação entre a materialidade linguística de
uma sequência discursiva e as condições históricas
que determinam sua produção; ela funda, assim, os
procedimentos de constituição de corpus discursivos
(conjunto de sequências discursivas dominadas por um
determinado estado, suficientemente homogêneo e
estável, das condições de produção do discurso). (p.
20).

Como condições de produção amplas do discurso, observa-se que, no


Brasil, governos com características do espectro político de esquerda, ou mais
voltados a uma agenda social, representam um óbice às elites burguesas que
compõem a nação. Ainda que o país tenha atravessado mudanças ao longo de
cinco séculos, sua estrutura social permanece basicamente a mesma:
empresas estrangeiras se instalam em território brasileiro e utilizam mão de
obra nacional, enquanto grandes latifundiários e/ou empresários, detentores do
capital financeiro e das propriedades, detêm os principais veículos de
comunicação, comandam a economia, o Direito e a política do país – e,
quando há ameaças ao seu protagonismo, esta burguesia não se escusa de
manobrar as regras jurídicas que ela mesma colocou ao configurar o Estado,
chegando mesmo a entregar o poder a aparatos político-militares, golpeando
governos que permitiam, ainda que minimamente, certa mobilidade na rígida
hierarquia social brasileira. Assim aconteceu com Getúlio Vargas em 1954,
com João Goulart dez anos depois e com Dilma Rousseff em 2016.
As condições restritas de produção do discurso pelo impeachment e
alinhado à extrema direita começam a se observadas a partir das
manifestações de junho de 2013. Inicialmente um movimento de massas que
pedia mais democracia, rapidamente foi capitalizado pela mídia nativa,
mormente a Globo, para fazer uma narrativa política contra o governo Dilma
Rousseff. À época, a ex-presidenta detinha 71% de aprovação popular; após
os protestos e a diuturna exposição na mídia deles, sua aprovação erodiu e
atingiu meros 21%. A pauta dos manifestantes era difusa, exigindo desde
melhores hospitais e escolas à saída de todos os corruptos da política nacional.
Logo, passaram a refutar a presença de partidos políticos nas manifestações e
a dizer que “o partido era o Brasil”, num ato de ufanismo anti-democrático.
Esse dizer, inclusive, seria recuperado pelo funcionamento da memória
discursiva no discurso da extrema direita em 2018 – através do slogan “Meu
partido é o Brasil”.
Esse movimento, contudo, não impediu a reeleição de Dilma em 2014,
mas gerou uma grande polarização na sociedade brasileira. E, a partir dessa
polarização, massivos protestos contra o governo reeleito foram mobilizados a
partir de março de 2015, tendo como mote a crise econômica capitalista que se
desenrolava, a corrupção do Estado e a insatisfação popular. A mídia cobria
tais protestos com parcialidade, visto que havia interesses ideológicos e de
classe distintos dos do governo.
Vistas já as condições, amplas e restritas, de produção do discurso ora
analisado, passaremos à exposição teórica baseada nos escritos pêcheutianos
sobre como proceder a uma análise discursiva. Para isso, é mister
compreender o conceito de processo discursivo. Conforme a lição de
Pêcheux (2014), “todo processo discursivo se inscreve numa relação ideológica
de classes” (p. 82), não devendo ser confundido com a fala (a parole), com
uma utilização individual da língua, mas, antes, remete a práticas de classe.
Avançará o autor inaugural da Análise do Discurso no desenvolvimento deste
conceito: “[...] a expressão processo discursivo passará a designar o sistema
de relações de substituição, paráfrases, sinonímias etc., que funcionam entre
os elementos linguísticos – ‘significantes’ – em uma formação discursiva dada”.
(PÊCHEUX, 2014, p. 148).
Reconhecendo a autonomia relativa do sistema linguístico e de suas leis
internas em relação à discursividade, o francês ainda nos dirá que “é, pois,
sobre a base dessas leis internas que se desenvolvem os processos
discursivos” (2014, p. 82). Destarte, a escolha de certas materialidades
linguísticas nos servirá para analisarmos o discurso e suas correspondentes
paráfrases.
Em sua explicitação sobre os fundamentos de uma teoria materialista do
discurso, Michel Pêcheux (2014) tratará das condições ideológicas da
reprodução/transformação das relações de produção, considerando, tanto
quando a ideologia, as determinações econômicas que condicionam a
reprodução/transformação destas relações, salientando que, ao assim fazê-lo,
designa “o caráter intrinsecamente contraditório de todo modo de produção que
se baseia numa divisão em classes, isto é, cujo ‘princípio’ é a luta de classes”
(p. 130). Se “a luta de classes atravessa o modo de produção em seu
conjunto”, inclusive naquilo que Althusser apontaria como os Aparelhos
Ideológicos de Estado (a família, a Igreja, a escola etc.), todas as relações
sociais são permeadas pelas contradições ideológicas e materiais das
diferentes formações sociais. Mais adiante em sua formulação teórica,
assevera Pêcheux:

[...] em sua materialidade concreta, a instância


ideológica existe sob a forma de formações
ideológicas [...] que, ao mesmo tempo, possuem um
caráter ‘regional’ e comportam posições de classe:
os ‘objetos’ ideológicos são sempre fornecidos ao
mesmo tempo que ‘a maneira de se servir deles’ – seu
‘sentido’, isto é, sua orientação, ou seja, seus
interesses de classe ao quais eles servem -, o que se
pode comentar dizendo que as ideologias práticas
são práticas de classe (de luta de classes) na
Ideologia. (2014, p. 132. Grifo nosso).

Podemos concluir, assim, que as formações ideológicas não são apenas


maneiras de interpretar o mundo, compostas estritamente de ideias, mas,
antes, de fazeres, de práxis social, segundo a classe a que o sujeito pertence.
Se, conforme Pêcheux (2014, p. 135) assegura, “só há prática através
de e sob uma ideologia”, e que “é a ideologia que, através do ‘hábito’ e do
‘uso’, está designando, ao mesmo tempo, o que é e o que deve ser [...], sob a
‘transparência da linguagem’, aquilo que chamaremos o caráter material do
sentido das palavras e dos enunciados” (p. 146), passemos à tentativa de
investigar qual a formação ideológica e a discursiva que sustentam o discurso
aqui analisado.
O gênio de Pêcheux (2014) entenderá como formação discursiva
“aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição
dada numa conjuntura dada, determinada pelo estado de luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito” (p. 147). A formação discursiva é,
assim, a matriz de sentidos, o seu lugar de constituição: “Isso equivale a
afirmar que as palavras, expressões, proposições etc., recebem seu sentido da
formação discursiva na qual são produzidas” (PÊCHEUX, 2014, p. 147). No
nosso caso, a FI da mídia se alinha com o liberalismo e, no caso da extrema
direita que surgiu logo após, ao ultraliberalismo. Pode-se dizer que a FD
dominante é aquele alinhada ao mercado, ao capital, cujos dizeres possíveis
serão aqueles inscritos nas ideias liberais, conservadoras.
Tomamos, desse modo, “impeachment”, como trazido pela Revista Veja,
como nossa sequência discursiva de referência (SDr) acerca do discurso aqui
analisado, consoante a lição de Courtine (2006):

Precisamos primeiro conceber as determinações específicas ao


nível da formulação [o intradiscurso]: escolher uma sequência
discursiva – enquanto manifestação da realização de um
intradiscurso – como ponto de referência a partir do qual o
conjunto de elementos do corpus receberá a sua organização;
relacionar essa sequência discursiva a um sujeito e a uma
situação de enunciação determinada; mostrar como o sujeito
da enunciação e as circunstâncias enunciativas são atribuíveis
(referenciáveis) aos lugares dentro dos aparelhos ideológicos
de uma determinada conjuntura histórica. Nós chamamos o
conjunto de elementos que foram mencionados como as
condições de produção da sequência discursiva da referência.
(p. 25).

Figura 1. Edição extra de Veja de 18 de abril de 2016.

Esta SDr retoma, pela memória discursiva e pelo funcionamento do


interdiscurso no intradiscurso, o sentimento anti-petismo, contra o
protagonismo das classes populares; dá voz ao discurso contra a corrupção de
um grupo, mas, pela política do silenciamento, não aponta a corrupção
sistêmica na estrutura do Estado brasileiro, desde sua história como Colônia. A
produção de sentidos da forma-sujeito deste discurso opera para que haja o
silenciamento, ademais, de conquistas populares importantes do grupo
atacado, conquistas estas tais como a posição de uma mulher num posto de
poder, a distribuição da renda mais igualitária através de programas sociais, a
entrada de jovens negros e periféricos na universidade. São posições e
sentimentos de classe que são evocados com uma simples materialidade como
“impeachment” – pedia-se mais que a saída de Dilma; pedia-se, assim, a saída
da classe antagônica à burguesia da participação da vida nacional.
Vale salientar, também, os elementos da cena enunciativa: uma jovem,
branca, pintada no rosto com as cores nacionais, evoca o movimento dos
caras-pintadas – fazendo ecoar a memória discursiva do movimento que levou
ao impeachment de Fernando Collor de Mello em 1992. A bandeira do Brasil ao
fundo e o sentimento patriótico representam, neste momento, uma tomada de
posição contrária ao Partido dos Trabalhadores; este elemento discursivo será
reutilizado e metaforizado, tendo seu sentido deslizado no discurso da extrema
direita em 2018.
Em seu dizer, a Veja procura acionar uma memória discursiva com o fito
de sustentar ideologicamente a narrativa do impeachment, recuperando
elementos de saber já anteriormente proferidos e devidamente atualizados, ou
seja, percebe-se o funcionamento do interdiscurso no intradiscurso posto na
capa da revista: quanto àquele, Courtine (2016) o entende como localizado
num eixo vertical, no nível do enunciado, como “uma instância de
formação/repetição/transformação dos elementos de saber de uma formação
discursiva” (p. 23); quanto a este, diz o professor da University of Auckland que

[é] o lugar onde se realiza a sequencialização dos elementos


do saber, onde desnivelação interdiscursiva do [E] [o
enunciado, o repetível, o formulado e o reformulado] é
linearizada, provocando um achatamento em uma superfície
única de [e] [a própria formulação] articuladas. [É a]
“horizontalização” da dimensão vertical de constituição do
enunciado”. (COURTINE, 2016, p. 24)

Pêcheux (2014) entende interdiscurso como “‘o todo complexo com


dominante’ das formações discursivas”, cuja objetividade material “[...] reside
no fato de que ‘algo fala’ (ça parle) sempre ‘antes, em outro lugar e
independentemente’, isto é, sob a dominação do complexo das formações
ideológicas” (p. 149); quanto ao intradiscurso, Michel Pêcheux o formula como
“fio do discurso” do sujeito, isto é, “um efeito do interdiscurso sobre si mesmo,
uma ‘interioridade’ inteiramente determinada como tal ‘do exterior’” (p. 154). O
francês ainda avança em seu desenvolvimento teórico:
[...] a forma-sujeito (pela qual o “sujeito do discurso” se
identifica com a formação discursiva que o constitui)
tende a absorver-esquecer o interdiscurso no
intradiscurso, isto é, ela simula o interdiscurso no
intradiscurso, de modo que o interdiscurso aparece
como o puro “já-dito” do intradiscurso, no qual ele se
articula por correferência. (PÊCHEUX, 2014, p. 154).

É nesta materialidade linguística, pois, em que, conforme nos diz


Pêcheux (2015), estrutura (linguística) encontra o acontecimento (o processo
político do impeachment); é neste ponto nodal de encontro entre estrutura e
acontecimento que temos o discurso.
Em torno de nossa SDr, orbitam outras sequências discursivas que
tratam do tema, a saber:

S1: Brasil tem maior manifestação contra Dilma (Folha de São Paulo)
S2: Meu partido é o Brasil (mote da campanha presidencial de Jair Bolsonaro)

Primeiramente, percebe-se a recorrência da materialidade “Brasil” em


ambas as SDs. “Brasil”, neste sentido, sempre remete a uma ideia de unidade,
de unanimidade, como se o próprio país não fosse formado, em sua própria
constituição, por uma sociedade muito desigual, diversa e plural. O próprio
processo de impeachment e as eleições de 2018 não foram unânimes, mas,
antes, controversas, divididas, cindidas. No entanto, a tentativa do discurso
posto é de colocar um sentimento patriótico de unidade, mascarando, através
do falso efeito da transparência da linguagem, a contradição inerente das lutas
de classe envolvidas nestes fenômenos políticos.
O discurso da mídia, observáveis tanto na SDr quanto na S1, é
recuperado e tem seus sentidos metaforizados (ou seja, transformados,
deslizados, parafraseados ou ressignificados) na S2, que representa o discurso
do agora mandatário do Brasil. Seu discurso rememora períodos em que a
democracia era negada e o patriotismo exacerbado era exaltado, como no
período da ditadura militar, quando não havia partidos políticos de forma plural
e discursos como “Brasil: ame-o ou deixe-o” eram postos em circulação. Há a
negação da existência de partidos políticos para a representação popular, já
que “o partido é o Brasil”, é um só, é o próprio mandatário; além da ideia de
que o Brasil é uma unidade sem contradições, sem diversidade, sem história
de lutas.
Na breve análise que aqui realizamos, pôde-se observar o
funcionamento da memória e do silenciamento como essenciais no discurso. O
discurso, enquanto prática de linguagem e de ação social, é capaz de
promover mudanças na estrutura mesma do liame social que compõe uma
nação como o Brasil – daí a importância da Análise do Discurso em se
debruçar sobre as questões postas pela realidade material e inescapável na
qual se encontram os homens.
REFERÊNCIAS

COURTINE, Jean-Jacques. Definição de orientações teóricas e construção de


procedimentos em Análise do Discurso. In: Revista do Laboratório de Estudos do Discurso,
Imagem e Som – LABEDIS / Museu Nacional / Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: V. 1, n. 1, Jun. 2016, Semestral / Número de páginas 132 p. Tradução: Flávia
Clemente de Souza; Márcio Lázaro Almeida da Silva.

NAGLE, Leda. Entrevista com Jair Bolsonaro. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=VLLxBxN87ZE>. Acesso em: 27 ago. 2019.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes,


2005.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas:


Editora da Unicamp, 2014.

_______________. Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes, 2015.

UOL. Brasil tem maior manifestação contra Dilma. São Paulo: Grupo Folha, 2016.
Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2016/03/13/brasil-tem-maior-
manifestacao-contra-dilma.htm>. Acesso em: 31 ago. 2018.

ZANARDO, A. A manipulação em 100 capas de Veja. Portal Justificando, Carta Capital.


Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2016/05/13/a-manipulacao-em-100-
capas-da-veja-jogos-de-poder-7/>. Acesso em: 30 ago. 2018.

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