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UMA GENEOLOGIA DA ORDEM DO DISCURSO EM

MICHEL FOUCAULT 1

Teresa Cristina Barbo Siqueira •

Este texto apresenta a relação entre as práticas discursivas e


os poderes que a permeiam, refere-se a uma ordem baseada nas
constrições, ou seja, numa im posição da ordem. Trata-se de buscar não
sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições de sua
emergência, as regras que presidem o seu surgimento, seu
funcionamento, suas mudanças, seu desaparecimento, em uma dada
época, assim como as novas regras que presidem a formação de novos
discursos em uma outra época. Tem como ponto central a discussão do
pronunciamento, na Aula Inaugural, ministrada por Foucault, no Collège
de France em 1970, intitulada: A Ordem do Discurso.
Palavras-Chave: Discurso; Ordem ; Poder.

Existe, para muita gente, um desejo de não ter que começar, de


não entrar nessa ordem arriscada do discurso, um desejo de se
encontrar logo de entrada, do outro lado do discurso sem ter que
considerar o que ele poderia ter de singular, de apavorant e, de terrível,
talvez de maléfico. A essa aspiração tão comum, a instituição responde
de modo irônico; pois torna os começos solenes, cerca- os de um círculo
de atenção e de silêncio, estabelece normas; impõe formas ritualizadas.
Por outro lado, é bem poss ível que o ato de escrever tal como hoje se
encontra institucionalizado, tenha lugar em uma “sociedade de discurso”
difusa, talvez, mas certamente coercitiva. Para ser escritor há de se
ater a um caráter intransitivo que empresta ao discurso, a singularida de
fundamental da escritura, a dissimetria afirmada entre a “criação” e
qualquer outra prática do sistema lingüístico, tudo isto manifestado num
certo estilo de formulação que encaminha a uma “sociedade do

1
Texto publicado na Revista Educativa – v.3, jan.e dez./2000 – Goiânia - G O
Dep. Educação da UCG, 1997, p.159/164.

Mestranda em Filosofia Política pela UFG e Professora no Departamento de
Educação.
End. Postal: rua T. 41 Qd. 12 Lt. 14 - Setor Bueno. Goiânia, Goiás.
CEP: 74.210.110 . Fone : 062.285.1198
e -m a i l : t e r e s a b r @ t e r r a . c o m . b r
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discurso”. Lembremos o segredo técnico ou científico, as formas de


difusão e de circulação dos discursos, bem como os que deles se
apropriam.
Tomando como ponto de partida, o pronunciamento feito por
Foucault na inauguração do Collège de France em 2 de dezembro de
1970, intitulado A Ordem do Discurso, discutiremos o entendimento do
autor sobre o discurso, fundado na “genealogia 2” do conhecimento,
compreendendo -a na relação com o projeto de uma inscrição dos
saberes, segundo afirma Foucault:

... na hierarquia de poderes próprios à ciência, um


empreendimento para libertar da sujeição os saberes
históricos, isto é, torná- los capazes de oposição e de luta
contra a coerção de um discurso teórico, unitário, formal e
científico. A reativação dos saberes locais – menores, diria
talvez Deleuze – contra a hierarquização científica do
conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder .
(Foucault, 1979, p. 172).

Neste discurso, Foucault lança a seguinte hipótese:

... em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo


tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída
por certos números de procedimentos que têm por função
conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível
materialidade (Foucault, 1996, p. 8 -9).

Em nossa sociedade, conhecemos vários procedimentos de


exclusão, de interdição, pois sabemos que não temos o direito de falar
à vontade, que não podemos dizer tudo em qualquer situação, que,
enfim, não podemos falar de qualquer coisa, existem os tabus, os rituais
da circunstância, o direito pri vilegiado ou exclusivo de um sujeito
determinado ou de alguns sujeitos.
O discurso não é um elemento transparente ou neutro, no
qual, por exemplo, a sexualidade se desarma e a política se pacifica.

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A g e o n o l o g i a é c e n t r a d a s o b r e q u e s t õ e s r e l a t i va s a o s m e c a n i s m o s d o p o d e r .
S e g u n d o a f i r m a R o b e r t o M a c h a d o : “o q u e f a z a g e n e o l o g i a é c o n s i d e r a r o s a b e r -
compreendido como materialidade, como prática, como acontecimento - como peça
de um dispositivo político que, enquanto dispositivo, se articula com a estrutura
econômica. Ou, mais especificamente, a questão tem sido a de como se formaram
domínios de saber - que foram chamados de ciências humanas - a partir de práticas
p o l í t i c a s d i s c i p l i n a r e s .” ( M a c h a d o , 1 9 7 9 , p . X X I I I ) .
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Por mais que o discurso seja aparentemente “tranqüilo” e “sem função”,


as interdições que o atingem revelam, logo, sua ligação com o desejo e
com o poder. Temos aí, a título de esclarecimento, a psicanálise que
nos mostrou que o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as
lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo pelo qual e com o qual
se luta, é o próprio poder do qual queremos nos apossar.
Existe em nossa sociedade outro princípio de exclusão: a
separação e a rejeição. Para esclarecer e defender esse princípio,
utilizaremos a oposição entre a razão e a loucura. Desde a Idade Média,
e seguindo as apreciações de Foucault (1996, p. 10 -11),

Louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos


outros: pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula
e não seja acolhida, não tendo verdade, nem importância,
não podendo testemunhar na justiça, não podendo
autenticar um ato, ou um contrato... É curioso constatar que
durante séculos na Europa a palavra do louco não era
ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma
palavra de verdade.

O que percebemos é que a palavra do louco ou caía no


nada - rejeitada tão logo dita - , ou então, se referia a uma razão
ingênua, mística ou astuciosa, uma razão superior. De qualquer modo,
havia a exclusão, ou pela rejeição ou pela separação. Não existia uma
“loucura em si”, que seria capaz de captar as coisas de um modo
transparente. Não há um saber “neutro”, capaz de captar as coisas de
um modo direto. Mas deveríamos dizer que a “psiquiatria” inventa o
louco como objeto de saber. Cada época tem um louco à sua med ida.
Também os conceitos de “normalidade” e “patologia” são produzidos
pelas práticas médicas. Assim, o ser é construído pelo saber. E, se
temos em conta que o saber surge, por sua vez, produzido pelo poder,
podemos então deduzir que o poder político tem a capacidade de
produzir o real: o poder é a fonte de onde surge o visível (aquilo que se
vê como objeto construído) e o dizível (aquilo que se diz do objeto).
A ordem do discurso centra -se na linguagem, nos
conteúdos, na lógica dos discursos e na sua relação com os poderes
que se escondem atrás desses discursos. Os discursos são
considerados, na sua positividade, como “fatos”, e trata-se de buscar
não sua origem ou seu sentido secreto, mas as condições de sua
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emergência, as regras que presidem o seu surgim ento, seu


funcionamento, suas mudanças. Seu desaparecimento, em uma dada
época, seu aparecimento em outra, com novas regras que presidem a
formação de outros discursos em uma outra época. Este jogo é, por
assim dizer, variável num curso histórico marcado p or diferenças e
descontinuidades. Pode-se chamar a este “jogo de regras” de episteme
de uma época, o solo onde são constituídas as formações discursivas
que compõem as diferentes configurações no espaço do saber. Numa
determinada época e numa determinada sociedade, autoriza-se o que é
permitido dizer, como se pode dizê- lo, quem pode dizê-lo, a que
instituições isto se vincula, em uma palavra, a realidade que deve ser
reconhecida como verdadeira e a que deve ser excluída como
desqualificável.
O que é, no fim das contas, um sistema de ensino, senão
uma ritualização da fala; uma qualificação e uma fixação dos papéis
para os sujeitos falantes; uma constituição de um grupo doutrinal por
difuso que seja? Não é gratuito que Foucault considerara todo “sistema
de educação como uma maneira política de manter ou de modificar a
apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles
trazem consigo” (Foucault, 1996, p. 43).
Sabemos que a educação pode muito bem ser, de direito, o
instrumento graças ao qual todo in divíduo, numa sociedade como a
nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, no entanto, na sua
distribuição, naquilo que permite e impede o seu discurso, ela segue as
linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas lutas
sociais, uma vez que o sistema educacional possui uma maneira política
de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, dos saberes e
dos poderes que traz embutidos.
Daí sentirmos nossas escolas, desde a apreciação do seu
ambiente até os livros didáticos que acolhem e utilizam, como
promotoras de uma socialização de conveniência, que a todo custo
busca incutir valores que preservem o status quo . Em suma os
professores seriam os sacerdotes destacados para zelar do templo dos
interesses dos discursos permitidos.
Quando falamos, por outro lado, dos poderes que permeiam
os discursos, nos referimos a uma ordem baseada nas constrições,
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numa imposição da ordem, imposição da informação (aquilo que dá


forma a algo). Por exemplo: em termos de entropia negativa, tomada da
Cibernética Social, seria aquela mediação social que faz com que os
discursos possam ser lidos e entendidos. A redundância nos conteúdos
dos discursos reproduzem o sistema de valores das tradições, de uma
dada sociedade, num determinado tempo. Seria a informação discursiva
que dá ordem à entropia, ou ausência de informação redundante: o
reconhecimento da distribuição ordenada dos elementos em todas as
circunstâncias ou situações em que o homem possa se encontrar.
Na informação existe a novidade, como e lemento primordial,
ela é nova, rompe com a ordem do discurso e é vanguarda. Na
informação que aparece em grande parte dos discursos
institucionalizados, não existe novidade, portanto não há informação.
Trata-se de discursos redundantes que reproduzem o sistema. Nisso
consiste a ordem do discurso assinalada por Foucault (1996). Na
verdade, a redundância se refere ao discurso que não é novo, sua
finalidade é prever e corrigir os erros de transmissão, antes que
ocorram perturbações, com um processo de retroal imentação. Michel
Foucault, indo além do discurso, faz uma leitura analítica do poder da
ordem discursiva, assinalando que a quebra dessa ordem, melhor
dizendo, a introdução no discurso de “novidades” produz a ruptura dos
muros do sistema. Desta forma, a força da vanguarda radica-se em
quebrar a redundância e inovar no discurso.
Há, em nossa sociedade, uma espécie de temor surdo
frente a novos acontecimentos, ao surgimento de quaisquer enunciados,
a tudo o que pode haver de diferente, de descontínuo, de desordem e
até de perigoso, promovido por esse burburinho incessante e
desordenado do discurso. Tudo se passa como se os interditos, as
entradas, os limites do discurso tivessem sido dispostos de maneira
que, ao menos em parte, sua grande proliferação seja dominada, a sua
parte mais ameaçadora seja alijada e que a sua desordem seja
organizada, segundo figuras que esquivam àquilo que é mais
incontrolável.
Se quisermos analisar as condições do jogo e os seus
efeitos, é preciso, segundo Foucault (1996), tomarmos três decisões,
quais sejam: interrogar a nossa vontade de verdade; restituir ao
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discurso o seu caráter de acontecimento; e, finalmente, abandonar a


soberania do significante. Para isso, o autor propõe que o discurso deve
ser orientado pelos seguintes princípios: inversão, descontinuidade,
especificidade e exterioridade.
A partir destes princípios, Foucault (1996) propõe duas
perspectivas. De um lado, a perspectiva “crítica” que põe em ação o
princípio de inversão, procurando distinguir as formas de exclus ão, de
limitação e de apropriação do discurso; mostrando como é que se
formaram, a que necessidades respondem, como é que se modificaram
e deslocaram, qual o constrangimento que exerceram efetivamente, e
em que medida que foram modificados. De outro lado, a perspectiva
“genealógica” se propõe a questionar como é que se formaram as séries
de discurso, se por intermédio, se com o apoio, ou apesar dos sistemas
de exclusão; qual foi a norma específica de cada série de discursos e
quais as suas condições de aparecimento, de crescimento e de
variação.
Tendo como base o raciocínio supracitado, é conveniente
questionarmos como serão propostas novas idéias e novos discursos no
contexto da educação. Como vão ser analisados os acontecimentos
atuais e como serão modific ados a apropriação dos discursos, dos
saberes e dos poderes. Uma pergunta que precisaria de uma resposta
firme é se essa tarefa vai ser possível, ou, será que o papel do
educador é somente validar o status quo ?
Abrimos, assim, espaços para problematizações , reflexões,
críticas, inversões. Espaços que não sejam os da ordem do discurso e
que, em vista disso, levem à desconstrução da norma. Tarefa crítica
que põe em ação o princípio de inversão, procurando, conforme referiu-
se enteriormente, tanto distinguir as várias formas de exclusão, de
limitação quanto mostrar como os discursos se formaram, a que
necessidades respondem, como é que se modificaram e deslocaram. De
acordo com Foucault (1996), há que se questionar como é que se
constituem as séries de discursos, qual foi a norma específica de cada
série e quais as condições de aparecimento, de crescimento e de
variação desses discursos. Encontramo- nos frente a essa difícil e
desafiadora tarefa da ação educativa. Tarefa difícil, sim, porém
possível.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. de Laura Fraga de


Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

________. Microfísica do poder . Org. e Trad. de Roberto Machado. Rio


de Janeiro: Graal, 1979.

MACHADO, Roberto. Por uma genealogia do poder. In.: Microfísica do


poder . Rio de Janeiro: Graal, 1979.

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