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FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso.

Aula Inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de


dezembro de 1970. 9. ed. Tradução de Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Edições Loyola,
2003.

SÍNTESE

Hipótese: Em todas as sociedades a produção de discurso é regulada, selecionada, organizada e


redistribuída, caracterizando o poder da palavra e os eventuais perigos decorrentes dela, quais sejam:
os procedimentos externos e os internos de controle e delimitação do discurso.

SISTEMAS DE EXCLUSÃO QUE ATINGEM O DISCURSO


A PALAVRA PROIBIDA A SEGREGAÇÃO DA LOUCURA A VONTADE DE VERDADE
Opera pelos atos de Opera pelos atos de separação e Opera pelo "consenso da
interdição. rejeição. verdade".
Diz respeito à oposição razão e
Refere-se ao sistema histórico,
Envolvem o tabu do objeto, o loucura, em que esta sempre
institucionalmente constrangedor,
ritual da circunstância e o oscilou entre a palavra nula ou
que prevê o exercício do discurso
direito de quem profere o mais razoável que a das demais
para quem de direito, em ritual
discurso. pessoas, jamais aceita, ouvida e
requerido e previamente definido.
considerada, mas sempre excluída.

PROCEDIMENTOS INTERNOS DE CONTROLE DO DISCURSO PARA CONJURAR O ACASO DE


SUA APARIÇÃO
PRINCÍPIOS EM QUE CONSISTEM
. Discursos cotidianos que se esgotam nos atos mesmos de pronunciá-los e discursos
que fundamentam atos novos, tais como os textos religiosos e os textos jurídicos, em
que texto primeiro e texto segundo desempenham um papel solidário. "O comentário
COMEN TÁRIO
conjura o acaso do discurso fazendo-lhe sua parte: permite-lhe dizer algo além do
texto mesmo, mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo
realizado" (p. 25 e 26).
. É, de certo modo, complementar ao princípio do comentário. Não se trata do autor
individual, mas "o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e
origem de suas significações, como foco de sua coerência" (p. 26).
AUTOR
. "O comentário limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a
forma da repetição e do mesmo. O princípio do autor limita esse mesmo acaso pelo
jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do eu" (p.29).
. Princípio "relativo e móvel" que "permite construir, mas conforme um jogo restrito" e
que se põe tanto para o princípio do autor quanto para o princípio do comentário. Ao
do autor por definir domínios de objetos, conjunto de métodos, um corpo de
proposições verdadeiras, de técnicas e de instrumentos. Ao do comentário porque põe
no ponto de partida "aquilo que é requerido para a construção de novos enunciados"
DISCIPLINA
(p. 30).
. "Mas há mais; e há mais, sem dúvida, para que haja menos: uma disciplina não é a
soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem
mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em
virtude de um princípio de coerência ou de sistematicidade" (p. 31).
PROCEDIMENTOS QUE DETERMINAM AS CONDIÇÕES DE FUNCIONAMENTO DO DISCURSO
. Restringem o discurso ao preestabelecerem "propriedades singulares e papéis"
aos sujeitos. Determinam as regras para a troca e comunicação, além de
delinearem a qualificação daqueles que poderão entrar na ordem do discurso, ou
OS RITUAIS
no discurso da ordem. Definem "os gestos, os comportamentos, as
DA PALAVRA
circunstâncias, e todo o conjunto de signos que devem acompanhar o discurso;
fixa, enfim, a eficácia suposta ou imposta das palavras, seu efeito sobre aqueles
aos quais se dirigem, os limites de seu valor de coerção" (p. 39).
. Conservam ou produzem discursos, mas para fazê-los circular em espaços
fechados, distribuí-los segundo regras restritas, como as sociedades arcaicas
AS SOCIEDADES dos rapsodos gregos, nas quais "se exercem ainda formas de apropriação de
DE DISCURSO segredo e de não-permutabilidade", como "o segredo técnico ou científico, as
formas de difusão e de circulação do discurso médico, os que se apropriam do
discurso econômico e político" (p. 39-41).
. Baseados em discursos comuns, ensejam o sentimento de pertença. A doutrina
é sinal, manifestação e instrumento de uma pertença prévia: de classe, status,
grupo, nacionalidade, interesse, luta, revolta, resistência, aceitação. Liga os
OS GRUPOS
indivíduos a certos tipos de enunciação e lhes proíbe todos os outros,
DOUTRINÁRIOS
diferenciando dos demais aqueles a quem interliga. "A doutrina realiza uma
dupla sujeição: dos sujeitos que falam aos discursos e dos discursos ao grupo,
ao menos virtual, dos indivíduos que falam" (p. 43).
. Em escala ampla, como grandes planos, em que figura a educação. "Todo
AS APROPRIA- sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a
ÇÕES SOCIAIS apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem
consigo" (p. 44).
"A maior parte do tempo, eles – os rituais da palavra, as sociedades de discurso, os grupos
doutrinários e as apropriações sociais – se ligam uns aos outros e constituem espécies de grandes
edifícios que garantem a distribuição dos sujeitos que falam nos diferentes tipos de discurso e a
apropriação dos discursos por certas categorias de sujeitos. Digamos, em uma palavra, que são esses
os grandes procedimentos de sujeição do discurso" (p. 44).

AS TRÊS TAREFAS
. QUESTIONAEMENTO DA VONTADE DE VERDADE
. Proposta de uma verdade ideal como lei do discurso e uma racionalidade imanente como princípio de
seu desenvolvimento. Reconduzir uma ética do conhecimento que promete a verdade ao próprio
desejo da verdade e somente ao poder de pensá-la. O modo ocidental de pensar tomou cuidado para
que o discurso ocupasse o menor lugar possível entre o pensamento e a palavra. O discurso virou
apenas o aporte entre o pensar e o falar. Deu-se, assim, a elisão da realidade nos discursos que
delineiam e expressam a verdade. "... uma cumplicidade primeira com o mundo fundaria para nós a
possibilidade de falar dele, nele; de designá-lo, finalmente, sob a forma da verdade... As coisas
murmuram, de antemão, um sentido que nossa linguagem precisa apenas fazer manifestar-se; e esta
linguagem, desde seu projeto mais rudimentar, nos falaria já de um ser do Qual seria como a nervura"
(p. 47-48).
. RESTITUIÇÃO DO CARÁTER DE ACONTECIMENTO DO DISCURSO
. A mediação universal é outro modo de elisão da realidade do discurso, cujo "logos da verdade não
são senão um discurso já pronunciado, ou antes, são as coisas mesmas e os acontecimentos que se
tornam insensivelmente no discurso, manifestando o segredo de sua própria essência. O discurso nada
mais é do que a reverberação de uma verdade nascendo diante de seus próprios olhos; e, quando tudo
pode, enfim, tomar a forma do discurso, quando tudo pode ser dito e o discurso pode ser dito a
propósito de tudo, isso se dá porque todas as coisas, tendo manifestado e intercambiado seu sentido,
podem voltar a interioridade silenciosa da consciência de si" (p. 48-49).

. SUSPENSÃO DA SOBERANIA DO SIGNIFICANTE


. "Quer seja, portanto, em uma filosofia do sujeito fundante, quer em uma filosofia da experiência
originária ou em uma filosofia da mediação universal, o discurso nada mais é do que um jogo, de
escritura, no primeiro caso, de leitura, no segundo, de troca, no terceiro, e essa troca, essa leitura e
essa escritura jamais põem em jogo senão os signos. O discurso se anula, assim, em sua realidade,
inscrevendo-se na ordem do significante" (p. 49).
. O paradoxo: nossa logofilia ocidental encobre nossa logofobia. A ordem do discurso que ordena a
realidade, ao fazer com que a riqueza da desordem do discurso fosse tragada pelas interdições,
supressões, fronteiras e limites, esquiva-se do incontrolável e manifesta um temor surdo de tudo o que
pode emergir no discurso não controlado do desejo; um temor do que possa surgir de violento,
descontínuo, combativo, desordenado e perigoso (p. 50).

PRINCÍPIOS METODOLÓGICOS DAS TAREFAS FILOSÓFICAS DE FOUCAULT


. Em contraposição ao papel positivo das fontes do discurso, tais como "a
. PRINCÍPIO DE do autor, da disciplina, da vontade de verdade, é preciso reconhecer, ao
INVERSÃO contrário, o jogo negativo de um recorte e de uma rarefação do discurso"
que elas realizam (p. 52).
. "Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se
. PRINCÍPIO DE
cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem" (p. 53). Não há
DESCONTINUIDADE
um discurso ilimitado encoberto pelos discursos do poder.
. O discurso não deve ser um jogo de "significações prévias". Considerar
que o mundo não apresenta uma "face legível" a qual teríamos apenas de
. PRINCÍPIO DE
"decifrar". O mundo "não é cúmplice de nosso conhecimento; não há
ESPECIFICIDADE
providência pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber
o discurso como uma violência que fazemos às coisas" (p. 53).
. "... a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade,
. PRINCÍPIO DE
passar às suas condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à
EXTERIORIDADE
série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras" (p. 53).
. São essas quatro noções necessárias para a tarefa da análise discursiva: a de acontecimento, a de
série, a de regularidade e a de condição de possibilidade. Acontecimento opõe-se ao termo criação;
série opõe-se à de unidade; regularidade à originalidade; condição de possibilidade à significação.
Criação, unidade, originalidade e significação têm dominado a história tradicional das ideias no
Ocidente e garantido o discurso da ordem, do poder. Urge estabelecer outra ordem ao discurso para
que seja possível o discurso do desejo.

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