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Universidade de São Paulo

Departamento de Filosofia

Jacques Derrida: em direção à desconstrução

Prof. Vladimir Safatle


Segundo Semestre 2018
1. todo escrito é pleno de confusão e contradição;
2. intenção do autor não poderia superar contradições inerentes à própria linguagem;
3. solo seguro das certezas da linguagem ordinária se dissolve (obrigação de toda
verdadeira filosofia);
4. Derrida: a própria discursividade filosófica, seu estilo, seu modo de expor e definir
problemas, sua textualidade não é construída através de uma gramática neutra e
desinflacionada do ponto de vista metafísico; filosofia é uma episteme e depende de
uma episteme; os múltiplos discursos que se entrelaçam em uma dada época histórica
estão todos submetidos a uma mesma matriz comum de racionalidade, a uma mesma
episteme [Derrida lendo Foucault];
5. Episteme: conjunto de regras e sistemas que organizam o campo de experiências
possíveis e de possibilidades de saberes; [Foucault] saberes positivos de uma época
configuram-se a partir da definição de regimes gerais de ordenamento com suas
relações de diferença e de identidade;
6. condições e regras de formação do saber submete os discursos (histórico, filosófico,
jurídico, médico)
7. Foucault: haveria um “inconsciente do saber que tem suas próprias formas e regras
específicas” [episteme];
8. “metafísica da presença”: regime de discursividade fundado em um conjunto de
pressupostos, de exclusões e de tensões;
9. Derrida faz a crítica desta discursividade, desta metafísica que se confundiria com a
própria instauração da filosofia como lugar que pensa as expectativas de validade
presentes na multiplicidade dos saberes e práticas [crítica à racionalidade];
10. de nada adianta deixar o Outro falar, pois ele falará mimetizando nossa língua;
reconhecimento da alteridade é modo de sua inscrição no interior da minha gramática;
11. crítica pós-estruturalista da razão (Derrida, Deleuze, Foucault,
Nietzsche): linguagem pré-filosófica (linguagem “ordinária” própria ao senso comum)
naturaliza categorias filosóficas como unidade, substância, duração, causa, realidade, ser
e, principalmente, sujeito devido simplesmente à sua gramática; pressuposições não
problematizadas;
12. bom senso e o senso comum são imagens ortodoxas do pensamento
[implicações metafísicas e morais];
13. Logo, escrever de outro modo: Seria simultaneamente necessário, por meio
de análise conceituais rigorosas, filosoficamente intratáveis, e pela inscrição de marcas
que não pertencem já ao espaço filosófico, nem mesmo à vizinhança do seu outro,
deslocar o enquadramento, pela filosofia, dos seus próprios tipos. Escrever de outro modo
[DERRIDA, Margens da filosofia, op. cit. p. 27];
14. ‘Desconstruir’ a filosofia: pensar a genealogia estruturada de seus
conceitos; determinar o que essa história pôde dissimular ou proibir; história se faz
exatamente através dessa repressão [que se reprime em uma história?];
15. Qual a gênese do que aparece como pressuposto para nossa forma de
pensar; história dissimulada, reprimida; história da razão e de nossos modos de
racionalização;
16. Desconstrução: prática de leitura que nasceu da confrontação com textos da tradição
filosófica (Husserl, Heidegger, Rousseau, Hegel, Nietzsche); com textos das ciências
humanas (linguística, antropologia, psicanálise) e da literatura; recusa do modo
dominante de leitura de textos filosóficos; forçar a sistematicidade do discurso
filosófico a deparar-se continuamente com seus limites e misturar-se com aquilo que
lhe é estranho; relevância filosófica dos espaços em branco, dos não-ditos, das
resistências e das elisões necessárias à instauração de todo discurso fundador
[desconstrução não é “comentário infinito”]; comparar um texto com ele mesmo,
mostrar como, nele, trabalham questões que um autor mobiliza sem saber (já que ele é
muito mais um suporte do que um agente destas questões); exterioridade do texto,
aquilo com o qual o texto será confrontado, já está inscrita no próprio texto [“não há
nada fora do texto”];
17. “Texto”: sistema de coordenadas que articula múltiplas produções de saberes e
práticas a partir de um regime particularmente instável de ordenamento; nenhum texto
é homogêneo; um texto é sempre uma operação tensa de negociação; campo de
linhas divergentes de força; [redação de um texto] história de certos abandonos,
restrições e surpresas; conceitos incontroláveis; no interior do texto trabalha algo que
não é apenas o querer dizer do autor; [talvez não exista fazer filosófico sem] certos
deslocamentos, sem torções e reconfigurações;
18. Derrida / estruturalismo: denuncia metafísica visível nas noções linguísticas de signo,
significante e sistema (inspirado na fonologia); contra a antropologia de Lévi-Strauss, a
linguística de Saussure e Jakobson, a psicanálise de Lacan e mesmo aspectos maiores da
filosofia de Foucault;
19. Anuncio de Derrida “a unidade de tudo o que se deixa visar atualmente
através dos conceitos mais diversos da ciência e da escritura é, a princípio, mais ou
menos secretamente mas sempre, determinada por uma época histórico-metafísica a
respeito da qual entrevemos seu término. (...) O futuro só pode ser antecipado na forma
do perigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e só
pode anunciar-se, apresentar-se, sob a forma da monstruosidade. Para este mundo por vir
e para aquilo que, nele, teria feito tremer os valores do signo, da palavra e da escritura,
para aquilo que aqui conduz nosso futuro anterior, não há ainda epígrafe”. [DERRIDA,
De la grammatologie, Paris: Seuil, 1967, p.14];
20. Estruturalismo: “programa crítico interdisciplinar” [antropologia,
psicanálise, lingüística, crítica literária e reflexão filosófica / Claude Lévi-Strauss,
Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel Foucault, Roman Jakobson]; ,
entre outros; lingüística como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do
campo das ciências humanas;
21. No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a
lingüística ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como as
outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que
pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um
método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise 1 [LÉVI-
STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45];
22. Estruturalismo: sujeito não falam, são falados pela linguagem;
23. Lévi-Strauss: “Não pretendemos mostrar como os homens pensam nos
mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos,
talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um
certo modo, os mitos se pensam entre si” [LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31];
24. Lingüística: racionalidade das ciências humanas através do programa de
formalização estrutural; verdadeiro objeto das ciências humanas não era o homem, mas as
estruturas que o determinam;

1
Ou ainda, como nos diz Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato,
essencialmente definido por suas correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao
extremo pela lingüística estrutural e apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do
conhecimento científico” (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
25. Michel Foucault: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão
do homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente, as
normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de suas
formas e de suas condutas” [FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p.
376] ;
26. Linguagem: fato social central, todos estruturados como uma linguagem;
27. Lévi-Strauss: No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida
também no estudo de outros problemas), o sociólogo se vê numa situação formalmente
semelhante à do lingüista fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são
elementos de significação; como eles só adquirem esta significação sob a condição de se
integrarem em sistemas; os ´sistemas de parentesco´, como os ´sistemas fonológicos´, são
elaborados pelo espírito no estágio do pensamento inconsciente; enfim a recorrência, em
regiões afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de
parentesco, regras de casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos de
parentes etc. faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam do
jogo de leis gerais, mas ocultas [LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, op. cit. p.
48];
28. Saussure: arbitrariedade do signo [autonomia do signo em relação à toda
determinação prévia da referência]; lingüística saussureana: problema da referência;
estrutura do signo saussureano: unidade elementar de significação na língua; “o signo
lingüístico não une uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma imagem acústica”;
[SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 80]; desconsidera o problema da referência
[relação entre nome e coisa] como um problema lingüístico central; “imagem acústica”:
representação psíquica de um som; teoria convencionalista da linguagem: “todo meio de
expressão aceito em uma sociedade repousa em princípio em um hábito coletivo ou, o
que vem a dar na mesma, em convenção” [SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p.
82];
29. Signo: união entre um conceito [significado] e uma imagem acústica
[significante]; “Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da
tradição”2; esvaziar o problema da relação entre linguagem e referência;
30. Significação: não resulta da confrontação entre palavra e coisa, mas de
uma articulação posicional-opositiva dos signos entre si, como em um sistema [estrutura]
fechado; compreender a língua a partir do seu interior [leis estruturais de
funcionamento];
31. noção da linguagem como jogo: central para a filosofia do século XX
(Wittgenstein); jogo é instauração de um espaço no qual todos os acontecimentos são
produzidos e significados sem referência à exterioridade do que não se submete às regras
de organização do seu espaço; jogos produzem acontecimentos a partir das regras que
compõem a estrutura; Saussure: linguagem é como um jogo de xadrez que é jogado por
jogadores inconscientes [regras jogam o jogo, e não os sujeitos];
32. irredutibilidade arbitrária do jogo; impossibilidade de fazer apelo a uma
referência exterior [Claude Lévi-Strauss]; Lévi-Strauss: estrutura como o verdadeiro fato
social;
33. Derrida: jogo do estruturalismo como dispositivo fechado cujas regras
determinam a configuração do campo de acontecimentos possíveis; [Paul Ricoeur]
estruturalismo é “kantismo sem sujeito transcendental”; [Strauss]: longe de nos parecer
sinal de uma lacuna, se nos apresente como a consequências inevitável, no plano
filosófico, da escolha que fizemos em uma perspectiva etnográfica. Como nos pusemos
em busca das condições para que sistemas de verdades se tornem mutuamente
2
idem, p. 88
convertíveis, podendo, pois, ser simultamente admissíveis por vários sujeitos, o conjunto
dessas condições adquire o caráter de objeto dotado de uma realidade própria, e
independente de todo e qualquer sujeito [LÉVI-STRAUSS, Claude; O cru e o conzido,
São Paulo: Cosac e Naif, 2004, p. 30];
34. Lévi-Strauss: “A estrutura dos mitos”; Se o conteúdo do mito é
inteiramente contingente, como compreender que, de um canto a outro da terra, os mitos
se pareçam tanto? É somente com a condição de tomar consciência desta antinomia
fundamental, que provém da natureza do mito, que se pode esperar resolvê-la. Com
efeito, esta contradição se parece com aquela que descobriram os primeiros filósofos que
se interessaram pela linguagem, e, para que a lingüística pudesse constituir-se como
ciência, foi necessário primeiro resolver esse problema3;
35. Condição de legibilidade [perigo!] não devemos partir da análise
individual dos mitos em suas contingências inumeráveis; estabelecer esforço de abstração
que permita selecionar as regularidades que aparecem na extensão dos mitos
geograficamente e temporalmente dispersos; antropologia/lingüística: significação não é
imanente a cada representação, mas é dependente das relações das representações entre
si; regularidades não são de símbolos, mas de significantes;
36. Lingüística: determinação do valor lingüístico através da reconstrução dos
modos de relação entre unidades diferenciais elementares (fonemas); mitos deverá partir
desta determinação de unidades elementares; Lévi-Strauss: mitemas - “feixes de
relações”4 que determinam os modos de atribuição de um predicado a um sujeito;
“modelo lógico para a resolução de uma contradição”; explicação estruturalista parece
remeter sempre à constituição de totalidades;
37. redução da multiplicidade a determinações estruturais gerais; definir
conjunto de regras e sistemas que organizavam, de maneira transcendental, o campo
possível de experiências possíveis;

3
idem, p. 239
4
idem, p. 245
Jacques Derrida
Aula 3

Na aula passada, vimos alguns traços gerais do pensamento estruturalista. Programa


interdisciplinar de pesquisa que partiu da tentativa de redefinir por completo o padrão de
racionalidade das ciências humanas, o estruturalismo procurava realizar tal programa através da
defesa da lingüística como “ciência ideal”. Lembremos mais uma vez, por exemplo, do tom
ditirâmbico que animava a afirmação de Lévi-Strauss :

No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a lingüística ocupa,


entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como as outras, mas a que,
de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que pode reivindicar o
nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um método positivo e a
conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise5.

Este primado da lingüística implicava em um duplo efeito. Primeiro, como vemos na afirmação
de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística estrutural inspirada por
Saussure havia realizado um amplo processo de formalização de seu objeto, o fato lingüístico,
através da compreensão da linguagem como sistema diferencial-opositivo de unidades
elementares (fonemas). Não se tratava de uma matematização no sentido próprio àquela
implementada no campo das ciências físicas, ou seja, redução dos objetos a uma unidade comum
de medida que permite a implementação de processos de quantificação e comparação. Tratava-
se de uma formalização estrutural, ou seja, sistematização de “elementos que se especificam
reciprocamente em relações”6 e que não tem nenhuma realidade intrínseca para além deste
campo de relações.
Tal formalização visava compreender a organização da língua como um sistema fechado
(Saussure falará da língua como sistema arbitrário de signos), que responderá pelo processo de
produção de significações. Isto significava dizer que a significação não era o resultado da
confrontação entre palavra e coisa, mas de uma articulação posicional-opositiva dos signos entre
si, como em um sistema fechado. É da noção saussureana de “sistema” que nascerá o conceito
de “estrutura”: “ A língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas
em sua solidariedade sincrônica”7.
Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao
contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem de maneira
inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura fonemática que determina
seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas matrimoniais, os sujeitos não têm
consciência dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. Este caráter inconsciente
da estrutura será um dado fundamental para a objetividade do pensamento estruturalista, assim
como para o seu anti-humanismo. Para um pensamento estruturalista estrito os sujeito não falam,
eles são falados pela linguagem. De onde se segue a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não
pretendemos mostrar como os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos
homens, e à sua revelia. E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo

5
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45. Ou ainda, como nos diz
Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente definido por suas
correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo pela lingüística estrutural e
apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do conhecimento científico” (GRANGER,
Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
6
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
7
SAUSSURE, idem, p. 102
todo sujeito para considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre si” 8. Daí a
afirmação de que o verdadeiro objeto das ciências humanas não era o homem, mas as estruturas
que o determinam. Michel Foucault compreendeu isto claramente ao afirmar que: “Há ciências
humanas não em todo lugar onde é questão do homem, mas em todo lugar onde analisamos, na
dimensão própria do inconsciente, as normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à
consciência as condições de suas formas e de suas condutas”9.
Uma terceira característica do estruturalismo, além de seu método de formalização
estrutural a partir da determinação de sistemas onde todos os elementos têm uma profunda
relação de solidariedade entre si e da defesa da natureza inconsciente das regras de ordenamento
do sistema social, era o caráter transcendental de seu encaminhamento. Lembremos de como
Saussure determinava, como tarefa geral da lingüística nascente, estabelecer leis gerais,
permanentes, universais e incondicionadas que determinariam os fatos lingüísticos. Pois se
tratava, na verdade, de determinar as condições a priori para a existência de fatos lingüísticos.
Um questionamento transcendental a respeito da linguagem como elemento de estruturação do
pensamento se insinuava aqui. Tal questionamento deveria dar conta, entre outras coisas, da
maneira com que a linguagem estrutura o pensável e como ela se relaciona com a referência do
pensamento.
A natureza desse processo de estruturação estava claramente enunciada na afirmação de
que “A função simbólica antecede o dado” 10. Ou seja, ela não se conforma aos dados naturais, ao
contrário, ela estabelece previamente o campo possível de experiências no interior do qual a
própria noção de dado se disponibilizará. Daí porque alguém como Lévi-Strauss poderá afirmar:
“os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam” 11. Notamos assim que a anterioridade
da estrutura em relação ao dado é uma anterioridade que indica uma força formadora, força
formadora que pode ser esclarecida se compreendermos a natureza transcendental da estrutura na
sua função de determinar previamente a configuração do campo de experiências possíveis.
No entanto, esta articulação entre a transcendentalidade e a posição da estrutura como
inconsciente, entre inconsciente e transcendental, acabava por criar aquilo que um dia Paul
Ricoeur chamou de “kantismo sem sujeito transcendental”. Programa cujas conseqüências forma
claramente expostas por Gilles-Gaston Granger através desta afirmação que vale a pena retomar.

Seria inexato caracterizar este encaminhamento preliminar como simples abstração. A


estrutura lingüística aqui visada não é apenas um abstrato em relação ao fato da
linguagem; ela é aquilo que, na ausência de termo melhor, chamaremos com Husserl de
essência, ou seja, um esboço transcendental de objeto, para além de toda ontologia.
Transcendental aqui não conserva nenhuma significação propriamente idealista, na
medida em que não se trata de exposição de uma condição imutável de conhecimento de
objeto fundada na natureza de um eu abstrato (...) A palavra transcendental justifica-se
precisamente porque o esboço não se reduz a um empobrecimento do vivido por
abstração. Não importa qual seja seu estatuto genérico, o esboço constitui o guia de um
conhecimento conceitual possibilitando as contribuições de uma experiência controlada e
o desenvolvimento de uma combinatória.12

Para além do estruturalismo

Devemos levar em conta tais características do estruturalismo se quisermos compreender


as críticas de Derrida. De fato, a posição de Derrida é peculiar no interior do cenário intelectual
8
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
9
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
10
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
11
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
12
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
francês. Sem deixar de reconhecer, no estruturalismo, “uma aventura do olhar, uma conversão na
maneira de questionar todo objeto”13 da mais alta importância, Derrida nunca chegou a assumir
para si o programa estruturalista, como fizeram Michel Foucault, Jacques Lacan e, em menor
grau, Gilles Deleuze. Sua postura sempre foi marcada pela análise crítica que podemos
encontrar, principalmente, em dois textos de A escritura e a diferença: “Força e significação” e
“A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas” e em Da gramatologia. De
fato, muito contribuiu para isto a formação inicial de Derrida no campo da fenomenologia. Em
1954, ele defende uma dissertação para a obtenção de um diploma de estudos superiores cujo
título era: “O problema da gênese na filosofia de Husserl”. Tal trabalho só será publicado em
1990.
No entanto, Derrida não fará algo como uma crítica ao estruturalismo a partir da
fenomenologia ou de temas maiores da fenomenologia francesa de então, como o vínculo entre
sujeito e intenção significativa, o que traz, por conseqüência, a irredutibilidade do problema
lingüístico da expressão. Lembremos, a este respeito, da maneira como Merleau-Ponty afirmava
que: “Do ponto de vista fenomenológico, ou seja, para o sujeito falante que utiliza sua língua
com um meio de comunicação com uma comunidade viva, a língua reencontra a sua unidade: já
não é o resultado de um passado caótico de fatos lingüísticos independentes, e sim um sistema
cujos elementos concorrem todos para um esforço de expressão único voltado para o presente ou
para o futuro, e assim governado por uma lógica atual”14.
Na verdade, como dissera na primeira aula, a crítica de Derrida será, ao mesmo tempo
contra o estruturalismo e contra a fenomenologia. Gostaria, na aula de hoje, mostrar como se dá
a vertente da crítica ao estruturalismo. O primeiro aspecto desta crítica está claramente
enunciado na seguinte afirmação:

A estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, mesmo que estivesse sempre


presente, encontrou-se sempre neutralizada, reduzida por um gesto que consistia em dar-
lhe um centro, a reportá-la a um ponto de presença, a uma origem fixa. Este centro não
tinha por função apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura – de fato, não é
possível pensar uma estrutura desorganizada – mas, sobretudo, fazer com que o princípio
de organização da estrutura limitasse o que poderíamos chamar de jogo da estrutura15.

Analisemos detalhadamente esta afirmação. Primeiro, o que pode significar exatamente o


“centro” de uma estrutura? Grosso modo, podemos falar que se trata de definir a natureza do
elemento capaz de fundamentar a estrutura, de ser sua condição de produção de sentido. Diz
Derrida: este fundamento (que o filósofo chegará a chamar de “significado transcendental” por
aparecer como garantia da inteligibilidade do discurso) visa assegurar as operações de sentido no
interior da estrutura, mas ele mesmo não pode estar sob as condições daquilo que ele deveria
fundar. Por isto, seu estatuto é paradoxal. Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar
no interior da estrutura. De um lado, ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é
exatamente aquilo que não pode ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de
existência de elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede
então um lugar-Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se não
fôssemos estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado de signos
poderia ser ou uma metaestrutura (como se houvesse uma estrutura estruturante e uma estrutura
estruturada) ou uma designação ostensiva de uma referência naturalizada. Mas o problema da
metaestrutura nos levaria a uma certa regressão ao infinito. A saída pela designação ostensiva
não parece suportar as críticas feitas por Quine a respeito da indeterminação da referência.

13
DERRIDA, L´écriture et la différence, Paris: Seuil, 1967, p. 9
14
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
15
DERRIDA, ibidem, p. 409
Como o estruturalismo procura resolver este problema? Tomemos Lévi-Strauss como
exemplo a partir de uma discussão importante referente ao sentido do que antropólogos
encontraram em certas tribos sob o nome de mana, manitou, hau, orenda, entre outros. Grosso
modo, podemos dizer que mana é uma noção que encontramos na Melanésia e que “escapa da
categoria rígida de nossa linguagem e de nossa razão” 16. Ela visa designar uma quantidade de
idéias que poderíamos designar por: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, magia,
ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir magicamente. Esta confusão do agente, do
rito e das coisas é fundamental em magia. No interior do pensamento mágico, o mana é o que
produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Mauss afirma
que ele é a força por excelência, a verdadeira eficácia das coisas.
Ao discutir a natureza deste processo de determinação de valor que permite a constituição
de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve uma importante teoria a respeito de uma classe
particular de significantes da qual mana faria parte. Tal teoria, não por acaso refere-se à origem
da linguagem e da estrutura:

Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento na escala


da vida animal, a linguagem só pôde nascer repentinamente. As coisas não puderam
passar a significar de forma progressiva. Em conseqüência de uma transformação cujo
estudo não compete às ciências sociais, mas à biologia e à psicologia, uma passagem
efetuou-se, de um estágio em que nada tinha um sentido a um outro em que tudo o
possuía. Ora, essa observação, aparentemente banal, é importante, porque essa mudança
radical não tem contrapartida no domínio do conhecimento, que se elabora lenta e
progressivamente. Dito de outro modo, no momento em que o Universo interior, de uma
só vez, tornou-se significativo, nem por isso ele foi melhor conhecido, mesmo sendo
verdade que o aparecimento da linguagem haveria de precipitar o ritmo do
desenvolvimento do conhecimento. (...) É que as duas categorias do significante e do
significado se constituíram simultânea e solidariamente, como dois blocos
complementares; mas que o conhecimento, isto é, o processo intelectual que permite
identificar uns em relação aos outros, alguns aspectos do significante e alguns aspectos
do significado (...) só se pôs a caminho muito lentamente (...) o homem dispõe desde sua
origem de uma integralidade de significante que lhe é muito difícil alocar a um
significado, dado como tal sem ser no entanto conhecido17.

Este é um trecho que revela questões maiores do pensamento de Lévi-Strauss. Não é


difícil notar como a questão da origem trabalha toda esta reflexão, isto em um pensamento, como
o estruturalista, que teria, a princípio, livrado-se de questões sobre a origem e a proveniência
como fundamento. No entanto, a maneira que Lévi-Strauss conjuga o problema da origem é
peculiar. Ele diz: a origem é marcada por um excesso de significante, por uma superabundância
em relação às possibilidades de significado, o que encontramos na origem é uma experiência
radical de inadequação. Há assim, em todo sistema simbólico, significantes flutuantes (como os
significantes do tipo mana, aos quais se acrescenta os nossos trem, troço, coisa) que apenas
formalizam a inadequação entre significante e significado. Por isto, eles são “símbolos em estado
puro”, suscetíveis de assumir qualquer conteúdo simbólico, “valor simbólico zero”, ou ainda
“valor indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto suscetível de
receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância entre o significante e o
significado”18.

16
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
17
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss In: MAUSS, Sociologia e antropologia, São Paulo: Cosac
e Naif, 2006, p. 42
18
Idem, p. 39
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema simbólico é
o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando sua produção de
sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de uma inadequação interna ao
sistema19. Mesmo através desta astúcia que parece transformar o fundamento em um suplemento
sem significação positiva, Derrida insistirá que o problema do fundamento da estrutura arrisca-se
a continuar sendo, no fundo, uma versão do problema da origem. Um problema que, por sua vez,
deve ser compreendido como relevante apenas a partir da determinação do ser como presença
(mesmo que esta presença apareça como a inscrição de uma ausência, o importância é que a
ausência pode ser localizada, inscrita, controlada). Por isto, Derrida precisa dizer: “Poderíamos
mostrar que todos os nomes do fundamento, do princípio ou do centro sempre designaram a
invariante de uma presença (eidos, arché, telos, energeia, ousia (essência, existência, substância,
sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência, homem, Deus, etc.)”20.
Como vemos, a lista é grande e heteróclita. Já encontramos aqui um dispositivo
importante de relação entre o pensamento de Derrida e a história da filosofia. Trata-se de
procurar uma espécie de solo comum pretensamente pressuposto por posições distintas no
interior da história da filosofia, embora sempre possamos nos perguntar se afinal este solo existe,
se ele é realmente uma chave profícua de análise da dispersão da discursividade filosófica, se
realmente precisamos de uma chave-geral para pensar a história da filosofia.
No entanto, Derrida é suficientemente astuto para procurar recompor a noção mesma de
“chave-geral”. Daí a necessidade de repensar a relação entre história da metafísica e destruição
da história da metafísica afirmando:

não há sentido algum em abandonar os conceitos da metafísica para abalar a metafísica;


nós não dispomos de linguagem alguma – de sintaxe e léxico algum – que seja
estrangeiro a esta história; não podemos enunciar proposição destrutiva alguma que não
tenha já se deslizado na forma, na lógica e nos postulados implícitos disto mesmo que
queremos contestar21.

Por isto, a posição “tática” da perspectiva de Derrida bem descrito da seguinte forma:

Nosso discurso pertence irredutivelmente ao sistema de oposições metafísicas. Só


podemos anunciar a ruptura deste pertencimento através de uma certa organização, uma
certa organização estratégica que, no interior do campo e de seus poderes próprios, viram
contra ele seus próprios estratagemas, produzem uma força de deslocamento propagando-
se através de todo o sistema, provocando fissuras em todos os sentidos e de-limitando-os
de cima abaixo22.

Ou seja, trata-se de forçar os conceitos e operações que serão criticados a exporem este
momento no qual eles estão prestes a dizer o contrário do que deveriam dizer. É este tipo de
leitura que Derrida irá impor aos textos de Lévi-Strauss.

O lugar privilegiado da etnologia

19
Outros, como Jacques Lacan, utilizaram esta mesma noção de um elemento paradoxal para descrever o seria o
fundamento da estrutura significante. No caso de Lacan, este elemento recebe o nome de Falo, enquanto
“significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado” (LACAN, Ecrits, Paris: Seuil, 1966, p.
690). Deleuze também insistirá neste elemento paradoxal (a seu ver, presente tanto em Lacan quanto em Lévi-
Strauss, afirmando que ele: “assegura a convergência de duas séries que ele percorre, mas à condição precisamente
de fazê-las divergir incessantemente” (DELEUZE, Logique du sens, Paris: Minuit, 1969, p. 55)
20
DERRIDA, ibidem, p. 411
21
Idem, p. 412
22
Idem, p. 34
Derrida começa lembrando que a etnologia ocupa um lugar privilegiado no campo das
ciências humanas, pois ela é uma ciência que nasce a partir de um descentramento. “Podemos
dizer em toda segurança que não há nada de fortuito no fato da crítica do etnocentrismo,
condição para a etnologia, ser sistemáticamente e historicamente contemporânea da destruição da
história da metafísica. Todas as duas pertencem a uma mesma época” 23. Mesmo partilhando um
discurso e uma conceitografia forjada no interior de tradições etnocêntricas, a etnologia procura,
estrategicamente, estabelecer uma relação crítica à história da metafísica e aos conceitos dela
herdados. A esta relação crítica, Derrida chama “desconstrução”.
Um exemplo fornecido pelo filósofo francês é a distinção natureza/cultura, tal como
aparece desde “As estruturas elementares de parentesco”, de Lévi-Strauss. Distinção que
acompanha a filosofia ocidental, diz Derrida, desde antes de Platão. Como tal distinção aparece
em Lévi-Strauss?
Primeiro, encontramos uma definição tradicional que vê a natureza como o que é
universal e necessário, enquanto a cultura seria um sistema de normas e regras que podem variar
de contexto a outro. A cultura é a esfera da contingência. No entanto, Lévi-Strauss lembra como
esta definição parece encontrar um problema ao confrontar-se com a lei do incesto. Questão
delicada, já que a lei do incesto marca exatamente a passagem, no ser humano, da natureza à
cultura. Na realidade: “A proibição do incesto é o processo pelo qual a natureza se ultrapassa a si
mesma (...) [Tal proibição] realiza, e constitui por si mesma, o advento de uma nova ordem” 24. É
por tal razão que ela possui, ao mesmo tempo, o caráter coercitivo das leis e das instituições (ela
é uma regra) e tem o caráter universal das tendências e dos instintos. No fundo, tal proibição
marca a passagem do fato natural da consaguinidade ao fato cultural da aliança. Submetendo-se
ao tabu do incesto, o homem insere-se, de uma vez por todas, em um sistema de trocas, ou ainda,
em um sistema de comunicação onde as mulheres são tratadas da mesma forma que sinais
lingüísticos. Assim, desde a instauração da proibição do incesto, a conduta humana é coordenada
por um sistema cultural de regras que forma uma estrutura capaz de ser analisada a partir da
utilização do mesmo paradigma que serve ao estudo da linguagem.
Desta forma, a ordem das descobertas empíricas é mobilizada para, ao mesmo tempo,
conservar e denunciar os limites de conceitos herdados da tradição metafísica. “Enquanto
esperamos, explora-se a eficácia relativa [destes conceitos] utilizando-os para destruir a antiga
máquina à qual eles pertencem e a respeito da qual eles são peças. É assim que se critica a
linguagem das ciências humanas”25. Como se fosse possível separar questão de método (ou
questão de validade) e questão de verdade.
Tal perspectiva leva o discurso etnográfico a aproximar-se daquilo que o próprio Lévi-
Strauss chamou de bricolage. Em algumas páginas célebres de O pensamento selvagem, Lévi-
Strauss abandona a antiga categoria do pensamento primitivo (ou pensamento mágico) a fim de
expor, em novo patamar, a distinção entre a razão ocidental e seu outro histórico-geográfico, o
pensamento moderno e estas formas de pensar na qual a modernidade teima em não se
reconhecer. Normalmente, define-se o “pensamento primitivo” a partir de duas características
maiores: um modo de pensar projetivo animado pelo medo e pela ignorância, assim como a
incapacidade de operar com simbolizações e abstrações. A primeira característica mostra o
pensamento primitivo (o fetichismo aqui é um ótimo exemplo) como modo elementar de defesa
contra um afeto: o medo diante do caráter imprevisível dos fenômenos naturais. Projetar
qualidades humanas em objetos naturais aparece como móbile de um pensamento assombrado
pelo medo, pensamento que ainda não se tornou “senhor da natureza” através do desvelamento
da estrutura causal dos fenômenos.

23
Idem, p. 414
24
idém, pag. 63
25
Idem, p. 417
Por outro lado, “o progresso natural das idéias humanas” seria resultado de um
movimento de abstração que consistiria em: passar dos objetos sensíveis aos conhecimentos
abstratos. As sociedades primitivas seriam estranhas a formas de pensamento que se abstraem
das determinações sensíveis imediatas a fim de construir conceitos e símbolos genéricos. Ou
seja, elas desconheceriam o pensamento conceitual, tomando por atributo imediato da coisa
particular o que é próprio de sua espécie, gênero, ou da estrutural causal da qual ela faz parte.
Lévi-Strauss rompe com esta tradição a fim de mostrar de que o “pensamento primitivo”
implica operações intelectuais e métodos de observação comparáveis àqueles próprios a nosso
conhecimento científico. Ele passa então à descrição destas extensas taxionomias zoológicas e
botânicas encontradas nos EUA e Canadá onde os elementos são distinguidos pela sua eficácia e
causalidade. Maneira de evidenciar a força de abstração própria ao chamado pensamento
primitivo. E aqui, diz Lévi-Strauss: “Ao invés de opor magia e ciência, valeria mais a pena
colocá-las em paralelo, como modos de conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e
práticos (...), mas não quanto ao gênero de operações mentais que supõem e que diferem menos
pela natureza do que em função dos tipos de fenômeno aos quais eles se aplicam” 26. Isto permite
ao antropólogo dizer que o dito pensamento primitivo é, na verdade, uma “ciência do concreto”
que em muito se assemelha à ação de um bricoleur. Por isto: “o que é próprio ao pensamento
mítico é exprimir-se através de um repertório cuja composição é heteróclita e que, ainda que
extenso, continua limitado; no entanto, faz-se necessário que o pensamento o utilize, não importa
qual tarefa ele precise realizar, pois o pensamento não tem mais nada à mão. Ele aparece assim
como uma espécie de bricolagem intelectual” 27. Por isto, o bricoleur fica sempre entre o percepto
e o conceito. Ele fica preso ao universo do signo, sem aceder completamente ao conceito. Daí a
idéia lévi-straussiana de contrapor o bricoleur ao engenheiro. Figura metafórica deste que
operaria com a capacidade global de reorganização e de instauração própria ao conceito. Como
se ele fosse capaz de reconstruir a totalidade de sua linguagem, sintaxe e léxico através de um
corte epistemológico.
No entanto, dirá Derrida: “o engenheiro é um mito: um sujeito que seria a origem
absoluta de seu próprio discurso e o construiria ´peça por peça´ seria o criador do verbo, o
próprio verbo”28. O engenheiro seria o mito produzido pelo bricoleur. Derrida não se contenta
em denunciar a divisão, mas quer afirmar que o próprio discurso etnológico de Lévi-Strauss
opera por bricolagens. O uso da distinção natureza/cultura seria aqui um exemplo privilegiado.
Este uso seria apenas um exemplo de um problema mais geral referente ao estatuto da estrutura
interpretativa da etnologia. Não seria ela um mito que se acrescenta à série infinita de
transformações e reconstruções dos mitos entre si? Não seria ela uma maneira dos mitos
“pensarem entre si”, como vimos na aula passada?
É o próprio Lévi-Strauss que levanta tais questões. Para Derrida, trata-se de indicar estes
momentos decisivos nos quais as próprias dicotomias sintetizadas pelo seu pensamento parecem
a ponto de desmoronar. Neste sentido: “o que parece mais sedutor nessa procura crítica de um
novo estatuto do discurso é o abandono declarado de toda referência a um centro, a um sujeito, a
uma referência privilegiada, a uma origem ou a uma arché absoluta”29.
No entanto, este pensamento bricoleur ao qual Derrida parece querer reduzir o
antropólogo não seria, por sua vez, uma forma de bloquear totalizações necessárias para todo
saber? Maneira de entificar um certo empirismo que se contentaria em descrever fatos e registrar
modificações sem nunca chegar a uma visão sistemática de conjunto. Aqui, entra em cena o
problema do recurso à totalidade. Problema ainda mais interessante se lembrarmos da função
manifesta da noção de “sistema fechado” no estruturalismo.

26
LÉVI-STRAUSS, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 26
27
Idem, p. 30
28
DERRIDA, ibidem, p. 418
29
Idem, p. 419
Neste ponto, Derrida afirmar existir duas maneiras de compreender o que pode ser um
sistema. Podemos imaginar que o sistema determina previamente o sentido de todos os
acontecimentos. Neste caso, teremos uma: “totalidade abandonada por suas forças, mesmo se ela
é totalidade da forma e do sentido, pois se trata então do sentido repensado na forma, e a
estrutura é unidade formal da forma e do sentido”30. Mas podemos compreendê-lo também sob a
forma de um jogo que permite substituições infinitas entre elementos finitos. Trata-se aqui, no
entanto, de um jogo peculiar. Não algo como um jogo de xadrez com suas regras regulativas
(metáfora maior para a compreensão da linguagem em Saussure). Mas de um jogo que
problematiza, que traz para dentro de seu sistema, o problema da relação entre o que é interno ao
jogo e o que lhe é externo (como, por exemplo, a história).
A metáfora do jogo é sempre uma metáfora da instauração que neutraliza o tempo e a
história. Para que um jogo funcione bem, não devemos nos perguntar o que existia antes do jogo.
Por isto, diz de maneira perspicaz Derrida, Lévi-Strauss: “como Rousseau, deve sempre pensar a
origem de uma estrutura nova a partir do modelo da catástrofe – desordenamento da natureza na
natureza, interrupção natural do encadeamento natural, separação da natureza”31. Essa ausência
da história é, segundo Derrida, compensada no pensamento estrutural por uma nostalgia da
origem, da pura presença e da imediaticidade rompida (Derrida dedicará páginas fundamentais
ao problema da origem e das sociedades sem história em Lévi-Strauss).
No entanto, seria possível pensar algo como uma história sem origem, isto em uma chave
muito próxima da noção nietzscheana de devir. História que afirmaria “a indeterminação
genética, a aventura seminal do traço”. Neste ponto, Derrida não está longe do Foucault de
“Nietzsche, a origem e a história” (1971). Ou seja, há um momento no pensamento francês onde
a noção nietzscheana de devir aparece como horizonte de orientação para a discussão das
relações entre pensamento e história. Mas o que nos ensinaria Nietzsche a este respeito? Que:
“procurar a origem é tentar encontrar ´o que já estava lá´, o ´isto mesmo´ de uma imagem
exatamente adequada a si (...) “ Mas o que aprendemos? “Que atrás das coisas, há ´algo
totalmente outro´; não seu segredo essencial, sem data, mas o segredo que elas são sem essência,
ou que sua essência foi construída peça por peça a partir de figuras que lhes eram estrangeiras” 32.
Uma das estratégias de Derrida, que veremos mais claramente quando comentarmos Da
gramatologia, consiste em dizer que estes significantes flutuantes que Lévi-Strauss apresentou
ao comentar as noções de mana, hau, manitou etc., significantes que vinham suplementar uma
inadequação radical entre significante e significado, poderiam nos abrir a uma outra forma de
compreender o que está no lugar do fundamento. Eu havia dito que, mesmo através desta astúcia
que parece transformar o fundamento em um suplemento sem significação positiva, Derrida
insistirá que o problema do fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no fundo, uma
versão do problema da origem. No entanto, devemos entender como Derrida irá procurar isolar
este fundamento, pensá-lo como suplemento (criticando inclusive alguns usos do mesmo, como a
noção lacaniana de “Falo”). Mas para tanto, será necessário afirmar que:

Há pois duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo. Uma


procura decifrar, sonha decifrar uma origem que escapa ao jogo e à ordem do signo, e
vive a necessidade de interpretação como um exílio [trata-se de perguntar : o que há fora
do jogo?]. A outra, que não está mais voltada à origem, afirma o jogo e tenta passar para
além do homem e do humanismo, o nome do homem sendo o nome deste ser que, através
da história da metafísica ou da onto-teologia, sonhou a presença plena, o fundamento
assegurador, a origem e o fim do jogo33.

30
Idem, p. 13
31
Idem, p. 426
32
FOUCAULT, Dits et écrits I, Paris: Gallimard (Quarto), p. 1006
33
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
Ou seja, a primeira vê o “jogo de linguagem” como aquilo que, ou oblitera uma
exterioridade na qual se leria a verdadeira matriz do sentido, ou sente esta imediaticidade como
possibilidade perdida (e já o termo “perdido”, neste contexto, diz e pressupõe muito mais do que
gostaria). A outra insistiria na irredutibilidade arbitrária do jogo, na impossibilidade de fazer
apelo a uma referência exterior que poderia fundamentar o jogo, impossibilidade vinculada (e
ainda não sabemos nada sobre a razão desse vínculo, o que podemos fazer com ele) à presença
do homem. Essas duas vias fariam parte do projeto estruturalista. Liberar uma via da outra é um
exercício que Derrida procurará fazer, mas através de uma perspectiva que lhe colocará para
além do estruturalismo e que o levará, durante um certo momento, a acreditar na possibilidade
de constituir um outro campo de pesquisas, chamado de “gramatologia”.
Jacques Derrida
Aula 4

Na aula de hoje, começaremos com o módulo dedicado às relações entre Jacques Derrida e a
fenomenologia de Husserl. Relação fundamental, já que foi a partir dela que se constituiu a
experiência intelectual do filósofo francês. Se acrescentarmos as relações de Derrida com o
pensamento heideggeriano, teremos um quadro extenso de debate entre a desconstrução e a
fenomenologia alemã. No caso da relação entre Derrida e Husserl, os textos principais são: a
dissertação de mestrado de 1954, defendida sob a orientação de Maurice de Gandillac e
intitulada O problema da gênese na filosofia de Husserl, a longa introdução e tradução do texto
husserliano A origem da geometria, de 1962 e, principalmente, o livro A voz e o fenômeno:
introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl, de 1966. Há ainda um
importante texto em Escritura e diferença, intitulado “’Gênese e estrutura’ e a fenomenologia”.
Depois desta primeira fase de confrontação com a fenomenologia, Derrida escreverá,
principalmente na década de setenta e oitenta, textos importantes sobre Heidegger como, por
exemplo, Heidegger e a questão, de 1987 e os textos de Margens da filosofia dedicados a
Heidegger ou escritos a partir de problemas suscitados pelo texto heideggeriano (como “Ousia e
gramme: nota sobre uma nota de Sein und Zeit” e “Os fins do homem”).
Antes de iniciar a análise da leitura derridiana de Husserl, vale a pena procurar
contextualizar o sentido da abordagem peculiar que Derrida impõe ao projeto fenomenológico.
Notemos, inicialmente, que a leitura de Derrida parece relativamente distante daquela que
podemos encontrar na fenomenologia francesa de então. Por exemplo, não encontramos em
Derrida algo como uma crítica ao estruturalismo (corrente intelectual dominante na França dos
anos cinqüenta e sessenta) a partir de temas maiores da fenomenologia francesa de então, como o
vínculo entre sujeito e intenção significativa, o que traz, por conseqüência, a irredutibilidade do
problema lingüístico da expressão. Lembremos, a este respeito, da maneira como Merleau-Ponty
afirmava que: “Do ponto de vista fenomenológico, ou seja, para o sujeito falante que utiliza sua
língua como um meio de comunicação com uma comunidade viva, a língua reencontra a sua
unidade: já não é o resultado de um passado caótico de fatos lingüísticos independentes, e sim
um sistema cujos elementos concorrem todos para um esforço de expressão único voltado para o
presente ou para o futuro, e assim governado por uma lógica atual”34.
Na verdade, como dissera na primeira aula, a crítica de Derrida será, ao mesmo tempo
contra o estruturalismo e contra a fenomenologia. Esta crítica dupla será animada pelo
reconhecimento da importância das questões ligadas à fundamentação da objetividade, presentes
tanto em Husserl quanto no estruturalismo. No entanto, Derrida age como quem está interessado,
principalmente, no que há de impensado em tal fundamentação, no que, no interior mesmo do
processo de fundamentação, parece exceder as promessas de segurança ontológica no agir e no
julgar enunciadas pelo fundamento. Vimos, na aula passada, como Derrida procurava tematizar
tal impensado no interior do estruturalismo. Retomemos rapidamente tal discussão a partir da
afirmação de Derrida:

A estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, mesmo que estivesse sempre


presente, encontrou-se sempre neutralizada, reduzida por um gesto que consistia em dar-
lhe um centro, a reportá-la a um ponto de presença, a uma origem fixa. Este centro não
tinha por função apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura – de fato, não é
possível pensar uma estrutura desorganizada – mas, sobretudo, fazer com que o princípio
de organização da estrutura limitasse o que poderíamos chamar de jogo da estrutura35.
34
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
35
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 409
Vimos como o “centro” de uma estrutura deveria ser compreendido como o elemento
capaz de fundamentá-la, de ser sua condição da sua produção de sentido. Diz Derrida: este
fundamento (que o filósofo chegará a chamar de “significado transcendental” por aparecer como
garantia da inteligibilidade do discurso) visa assegurar as operações de sentido no interior da
estrutura, mas ele mesmo não pode estar sob as condições daquilo que ele deveria fundar. Por
isto, seu estatuto é paradoxal. Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior da
estrutura. De um lado, ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente
aquilo que não pode ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de
elementos do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede então um
lugar-Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se não fôssemos
estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado de signos poderia ser ou
uma metaestrutura.
Vimos como o estruturalismo procurava resolver este problema. Lembremos da discussão
a respeito do sentido do que antropólogos encontraram em certas tribos sob o nome de mana,
manitou, hau, orenda, entre outros. Grosso modo, podemos dizer que mana é uma noção que
encontramos na Melanésia e que “escapa da categoria rígida de nossa linguagem e de nossa
razão”36. Ela visa designar uma quantidade de idéias que poderíamos designar por: poder de
feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica, ser mágico, ter poder mágico, estar
encantado, agir magicamente. Esta confusão do agente, do rito e das coisas é fundamental em
magia. No interior do pensamento mágico, o mana é o que produz o valor das coisas e das
pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Ao discutir a natureza deste processo de
determinação de valor que permite a constituição de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve
uma importante teoria a respeito de uma classe particular de significantes da qual mana faria
parte.
Tal teoria, como vimos, não por acaso referia-se à origem da linguagem e da estrutura.
Lèvi-Strauss afirma que a origem seria marcada por um excesso de significante, por uma
superabundância em relação às possibilidades de significado. O que encontraríamos na origem
seria uma experiência radical de inadequação. Haveria assim, em todo sistema simbólico,
significantes flutuantes (como os significantes do tipo mana, aos quais se acrescenta os nossos
trem, troço, coisa) que apenas formalizam a inadequação entre significante e significado. Por
isto, eles seriam “símbolos em estado puro”, suscetíveis de assumir qualquer conteúdo
simbólico, “valor simbólico zero”, ou ainda “valor indeterminado de significação, em si mesmo
vazio de sentido e portanto suscetível de receber qualquer sentido, cuja única função é preencher
uma distância entre o significante e o significado”37.
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema simbólico é
o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando sua produção de
sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de uma inadequação interna ao
sistema. A aposta de Derrida consistirá em liberar este suplemento ao fundamento de uma certa
metafísica cuja melhor descrição encontra-se exatamente nos textos dedicados à Husserl. Esta
metafísica estaria presente no estruturalismo através de uma nostalgia da origem, da pura
presença e da imediaticidade rompida. Metafísica radicalmente vinculada aos usos da noção de
signo. Há uma metafísica do signo a respeito da qual Derrida fará uma crítica radical. Devemos
compreendê-la melhor para afinal entrarmos no cerne da crítica derridiana ao estruturalismo.
Mas para isto, faz-se necessário irmos à Husserl.

Qual a origem da geometria?

36
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
37
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 39
De fato, a tese fundamental de Derrida é: “Em todo o lugar onde é questão do uso da noção de
signo, encontramos sempre o vínculo fundamental de um regime de pensamento à metafísica”.
Haveria assim uma unidade ontológica da noção de signo, o que permite a unificação da crítica a
todo regime de pensar para o qual a noção de signo é peça fundamental. Podemos mesmo dizer
que esta é a função de A voz e o fenômeno, a saber, fornecer um dispositivo geral de crítica à
noção de signo, compreendendo-o como peça fundamental daquilo que devemos definir como
“metafísica”. De uma certa forma, para Derrida, toda metafísica é uma metafísica do signo, é
uma redução da linguagem à dimensão do signo.
Mas qual o problema com a noção de “signo”? Responder de maneira adequada esta
pergunta irá nos exigir não apenas discutir A voz e o fenômeno, mas também Da gramatologia.
Uma discussão que exigirá também a leitura de um capítulo das Investigações lógicas, de
Husserl, intitulado: “Expressão e significado” (Ausdruck und Bedeutung). Leitura que pediria
para a aula que vem.
Por enquanto, gostaria de dar um passo atrás de expor as coordenadas gerais de um texto
que, em vários pontos, adianta e prepara a discussão que encontraremos em A voz e o fenômeno,
a saber, a Introdução à Origem da geometria, de Husserl. A origem da geometria é um pequeno
texto que pertence ao projeto geral do incompleto A crise das ciências européias e a
fenomenologia transcendental, que aparecerá em 1936. Grosso modo, Husserl diagnostica uma
situação de crise devido a uma “alienação objetivista” que ameaçaria a ciência européia. De onde
se seguiria a necessidade de uma reflexão capaz de regredir (Rückfragen) em direção ao sentido
original da ciência.
Antes de começarmos a discussão do texto de Derrida, vale a pena sublinhar que não se
trata de discutir aqui a adequação ou não da leitura por ele proposta. Trata-se de compreender
como, através do comentário de um texto da tradição filosófica, as peças centrais do seu próprio
programa filosófico foram desenhadas.
De fato, o comentário deste pequeno texto de Husserl serve a Derrida de ocasião para
uma discussão inaugural a respeito do problema da fundamentação da objetividade através do
recurso à noção de “origem”. Uma origem que não deixará de se articular ao problema da
exigência estruturalista que conduz à descrição compreensiva de uma totalidade segundo uma
legalidade interna, que não deixará de ser a reflexão sobre o fundamento de tal estrutura.
Por sua vez, o problema husserliano da origem só poderá ser corretamente compreendido
se posto no interior de uma reflexão sobre a linguagem e seus mecanismos de produção de
sentido. Pensar o problema da produção do sentido a partir da reflexão sobre a geometria permite
a Derrida perguntar: “Como se passa de um estado individual ante-predicativo originário à
existência de um ser geométrico em sua objetividade ideal?” 38. Que a idealidade seja aqui
inquirida a partir do objeto geométrico, eis algo que não poderia ser diferente. Pois o objeto
geométrico, assim como o objeto matemático, é o exemplo ideal devido à sua pureza em relação
à empiricidade:

Seu ser se esgota e transparece integralmente em sua fenomenalidade. Absolutamente


objetivo, ou seja, totalmente liberado da subjetividade empírica, ele, no entanto, não é o
que ele aparenta. Ele está sempre já reduzido a seu sentido fenomenal e seu ser é, desde o
início do jogo, ser-objeto para uma consciência pura39.

Ou como dirá Husserl:

Assim, na geometria pura nós em regra não fazemos juízos sobre o eidos ‘reta’, ‘ângulo’,
‘triângulo’, ‘seção cônica’ e tc., mas sobre reta e ângulo em geral ou ‘como tal’, sobre
38
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
39
Idem, Introduction à L´origine de la géométrie, Paris: PUF, 2004, p. 6
triângulos individuais em geral, sobre seções cônicas em geral. Tais juízos universais
possuem o caráter da generalidade eidética, da generalidade pra ou, como também se diz,
da generalidade ‘rigorosa’, pura e simplesmente ‘incondicionada’40.

Esta definição do objeto matemático em sua independência em relação á subjetividade


empírica parece colocá-lo em uma relação de completa exterioridade em relação à história e sua
faticidade. Este é um ponto importante pois Derrida inicia seu texto lembrando que, para a
fenomenologia, a tematização da historicidade sempre foi ligada à condenação tanto do
genetismo historicista quanto do psicologismo. Todas as duas posições seriam figuras de um
certo materialismo para o qual a dimensão das empiricidades forneceriam o fundamento para
aquilo que procura ter validade incondicional. Contra elas, faz-se necessário insistir no vínculo
entre fenomenologia e filosofia transcendental. Vínculo que não significaria anular toda questão
relativa à historicidade. Pois os objetos transcendentais que assegurariam a possibilidade de
história, seu telos, não pertenceriam ao eidos do Ego concreto. Como se a história, como
experiência empírica, estivesse na dependência de um fundo de pressuposições eidéticas
revelado pela fenomenologia. É neste sentido que devemos interpretar a afirmação:

Necessidade de proceder a partir de fato da ciência constituída, regressão em direção às


origens não empíricas que são, ao mesmo tempo, condições de possibilidade; eis, nós
sabemos, os imperativos de toda filosofia transcendental [e da fenomenologia de Husserl]
em face de algo como a história das matemáticas41.

Mas contrariamente a Kant, para quem a construção própria à atividade do matemático e


do geômetra seria a explicitação de um conceito já constituído que ele encontraria em si mesmo,
os objetos visados pela intuição husserliana não existiriam antes dela. Conhecemos a dissociação
radical entre história e geometria que Kant apresenta logo na introdução à Crítica da razão pura:
“Aquele que primeiro demonstrou o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se
chamasse) teve uma iluminação (ging ein Licht auf)”42 que consistiu em compreender que ele
deveria trazer à luz (hervorbringen) a partir de conceitos pensados e já presentes a priori. Uma
iluminação nada tem a ver com o processo da constituição histórica, mas com o processo
analítico da apreensão do que já se encontra diante de nós.
No entanto, para Husserl, mesmo que a geometria em seu caráter normativo seja
independente da história, há a necessidade de descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo ligado ao
mundo da cultura. Ou seja: “para Husserl, as objetividades geométricas ideais, como a
triangularidade, devem advir de objetividades não-geométricas, elas não existem como tais antes
desta experiência”43. Derrida chegará a dizer que a intuição husserliana, no que concerne os
objetos ideais das matemáticas, é absolutamente constituinte e criadora. Na verdade, ao invés da
simples autonomia da idealidade lógica em relação a toda consciência em geral, Husserl quer:
“manter ao mesmo tempo a autonomia normativa da idealidade lógica ou matemática em relação
a toda consciência factual e as dependência originária a uma subjetividade em geral; em geral
mas concreta”44. Concreta, mas não empírica, como uma “experiência transcendental”.
No entanto, esta primeira experiência em solo ‘pré-científico” não pode colocar em causa
a unidade de sentido do que deve ser pensado como “geometria”:

40
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, p. 39
41
Idem, p. 20
42
KANT, Crítica da razão pura, B XII
43
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
44
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
A axiomática em geral, a partir da qual todo ideal de dedutividade exaustiva e exata pode
ganhar sentido, a partir da qual todo problema de decidibilidade pode em seguida surgir,
já supõe uma sedimentação do sentido, ou seja, uma evidência originária, um fundamento
radical, que é também um passado45.

Este passado não é a determinação factual de um acontecimento empírico que colocaria a


geometria nas vias da relatividade e da contingência dos fatos. Ele é uma espécie de “pré-história
transcendental” sempre vivenciada como distância e acontecido. Husserl nos diz haver “proto-
materiais”, “arqui-premissas” no mundo pré-científico da cultura, como se seu desvelamento
fornecesse as coordenadas de tal pré-história.”Toda história factual permanece na não-
inteligibilidade enquanto ela, concluindo sempre diretamente e de maneira ingênua a partir de
fatos, não tematizar o solo de sentido universal sobre o qual repousam o conjunto de tais
conclusões, enquanto ela nunca explorou o potente a priori estrutural que lhe é próprio” 46. Neste
sentido, a história não pode ser outra coisa que a recondução das formas de sentido históricas
dadas no presente à dimensão dissimulada das arqui-premissas fundadoras.
Por outro lado, isto exige uma forma cultural que não seja específica de cultura particular
alguma: “A idéia da ciência é o index da cultura pura em geral, ela designa o eidos da cultura por
excelência”47. A este respeito, Derrida chega a falar de cultura da verdade no interior da qual a
idealidade é absolutamente normativa.
De fato, a fenomenologia, e isto desde Hegel, descreve um movimento da verdade no
qual esta aparece como uma história concreta cujo fundamento são atos de uma subjetividade
temporal, atos fundados no mundo da vida como mundo da cultura. No entanto, esta
subjetividade não é uma subjetividade egológica; ela é uma subjetividade comunitária ou, se
quisermos utilizar um termo mais apropriado, uma intersubjetividade:

Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um objeto ou
de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela idéia ou horizonte
desta subjetividade total que se torna responsável, nele e através dele, de cada um de seus
atos de cientista48.

Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos uma
forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui, encontramos um dos
pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura nos remete à concepção
fenomenológica de linguagem. Pois ela implica na neutralização espontânea da existência
factícia do sujeito falante de uma língua particular (daí a insistência na tradutibilidade absoluta
dos objetos geométricos), das palavras e da coisa designada. Por isto, Derrida deve afirmar que:
“a objetividade desta verdade não poderia se constituir sem a possibilidade pura de uma
informação em uma linguagem pura em geral. Sem esta possibilidade pura e essencial, a
formação geométrica seria inefável e solitária”49. Esta linguagem pura é própria de uma
intersubjetividade transcendental como condição da objetividade. Desta forma, o problema da
origem da geometria nos remete, necessariamente, ao problema da constituição da
intersubjetividade e da origem fenomenológica da linguagem. O que não poderia ser diferente já
que o modelo da linguagem, para Husserl, é a linguagem objetiva da ciência. Uma linguagem
poética cujas significações não seriam objetos nunca teria, a seus olhos, valor transcendental.

45
DERRIDA, Introduction ..., p. 42
46
HUSSERL, idem, p. 202
47
Idem, p. 46
48
Idem, p. 50
49
Idem, p. 70
No entanto, Derrida é sensível ao “fundamento empírico” desta intersubjetividade
transcendental. Não lhe escapa uma afirmação como esta, de Husserl: “Na dimensão da
consciência, a humanidade normal e adulta (excluindo o mundo dos anormais e das crianças) é
privilegiada como horizonte de humanidade e como comunidade de linguagem” 50. Pois se a
maturidade do homem adulto e sua normalidade permitem uma determinação eidético-
transcendental rigorosa da consciência, então: “o privilégio de Husserl implica que uma
modificação factual e empírica – a normalidade adulta – pretenda ser uma norma transcendental
universal”51. Se quisermos utilizar uma palavra proibida, podemos dizer que tal modificação
factual e empírica não seria outra coisa que uma certa recaída na dimensão do psicológico. É ela
que permitiria assim a fundamentação da consciência de se estar diante da mesma coisa, da
consciência de um nós puro e pré-cultural.
Tudo se passa como se Derrida procurasse mostrar como a liberação da intersubjetividade
de um fundamento empírico acabasse por transformá-la, necessariamente, em uma forma de
“infra-ideal inacessível”, de natureza pré-cultural que sempre nos escapa. E aqui encontramos a
origem de uma temática maior que atravessará toda a experiência intelectual de Derrida, a saber,
o primado da escritura como modo de ser de uma linguagem liberada do peso da metafísica.

Para introduzir o problema da escritura

Para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-empírica entre egos faz-se
necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações empírico-factuais. Da mesma forma,
para que o objeto seja absolutamente ideal, ele deve ser liberado de todo vínculo a uma
subjetividade atual, ao modo de descrição próprio a uma subjetividade atual, a saber, a palavra
falada com suas contingências. Por isto, é a possibilidade de um outro modo de ser da
linguagem, ou seja, a escritura, que garantirá a objetividade ideal absoluta na pureza de sua
relação a uma subjetividade transcendental universal:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda cativa da
intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma comunidade de sujeitos
falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a escritura cria uma forma de campo
transcendental autônomo a respeito do qual todo sujeito atual pode se abster52.

Notemos aqui dois pontos centrais. Primeiro, a problemática derridiana da escritura nasce
da reflexão a respeito da condição de possibilidade para a fundamentação da objetividade e da
universalidade. Para um autor que passou à posteridade como defensor do relativismo e do
nivelamento geral entre ciência e literatura, o mínimo que podemos dizer é que se trata de um
ponto de partida inesperado. Ainda mais porque, em certos momentos, Derrida reconhece que
esta temática da escritura não deixa de ter relações com a noção kantiana de “Idéia”,
compreendida como “irrupção do infinito aos pés da consciência, que a permite unificar o fluxo
temporal como ela unifica o objeto e o mundo, por antecipação e a despeito de um inacabamento
irredutível”53. A Idéia se dá na evidência fenomenológica como evidência de um
“transbordamento essencial em relação à evidência atual e adequada” 54. Enquanto
transbordamento, ela impede o aprisionamento da gênese do ser e do sentido em um valor
estático e plenamente determinado. Como veremos, esta característica da Idéia será fundamental
para o advento da idealidade do objeto geométrico.

50
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
51
LAWLOR, ibidem, p. 112
52
DERRIDA, ibidem, p. 84
53
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 242
54
Idem, p. 250
Segundo, através do problema da escritura, Derrida procura atualizar uma temática cara
ao pensamento francês contemporâneo ao menos desde um pequeno texto de Sartre, de 1936,
intitulado A transcendência do Ego, a saber, a discussão a respeito das condições de
possibilidade e das conseqüências de um campo transcendental impessoal. Neste sentido,
encontramos uma proximidade bastante importante entre Derrida e Deleuze. Todos os dois
procuram realizar uma premissa maior : fundar uma filosofia transcendental liberada de uma
noção identitária de subjetividade. Como se a afirmação de Paul Ricoeur a respeito do
estruturalismo como um “kantismo sem sujeito transcendental” fornecesse, involuntariamente, a
chave que marcará os próximos passos da filosofia francesa contemporânea. Pois tudo se passa
como se Derrida e Deleuze dissessem algo como: “Franceses, só mais um esforço se quiserem
realmente escapar do psicologismo”. Pois é deste problema que se trata : uma certa dependência
subreptícia de temática empíricas na determinação do transcendental como campo. E será através
de uma linguagem não mais pensada como expressão de uma subjetividade, seja ela atual seja
ela transcendental, uma linguagem originada pela escritura, que Derrida procurará realizar tal
tarefa. Mesmo o recurso à Idéia kantiana como potência de indeterminação não será estranha a
nenhum dos dois. Basta estarmos atentos a páginas decisivas de Diferença e repetição, de
Deleuze.
Mas para tanto, Derrida precisará voltar-se contra Husserl, voltar-se em direção ao
impensado da axiomática da fenomenologia husserliana e, com isto, ir a uma região que não
poderia ser tematizada no interior da fenomenologia, já que uma região para além da filosofia da
consciência. Pois Husserl nunca questionará o fato deste campo transcendental exigir a
possibilidade jurídica de ser inteligível para um sujeito transcendental em geral. Por isto, o ato de
escritura aparece como uma redução transcendental. Através desta redução, abre-se uma origem
no qual encontramos o “a priori universal da história” 55. Um a priori que não é outra coisa que a
noção mesma de escritura. Esta relação entre história e escritura voltará com toda a força, como
veremos, em Da gramatologia. Lá, será o caso de problematizar esta relação comumente aceita
entre povos sem história e povos sem escritura, isto a fim de abrir o espaço para uma noção
renovada de história.
Na sua Introdução à Origem da geometria, Derrida aludirá a duas formas de pensar a
escritura. Uma, a de Husserl, visa reduzir ou empobrecer metodicamente a língua empírica até a
transparência atual de seus elementos universais e tradutíveis. A outra, vinda da literatura, em
especial da literatura de vanguarda (Derrida cita James Joyce), mostraria a unidade estrutural da
cultura empírica total através do equívoco generalizado de uma escritura que circula por todas as
línguas, que se instala no campo labiríntico da cultura encadeada por seus equívocos. Como
vocês podem imaginar, é pelos caminhos desta segunda forma de escritura que Derrida irá
trilhar. Não por acaso seu primeiro projeto de tese de doutorado, apresentado em 1957 para Jean
Hyppolite, terá por título : “A idealidade do objeto literário”.
Mas ainda não respondemos a questão colocada no início da nossa aula, a saber: como a
idealidade geométrica procede de sua origem primária intrapessoal (do primeiro geômetra) para
sua idealidade objetiva? Esta discussão sobre a escritura já nos fornece a resposta. Pois é certo
que o primeiro estágio de transição á objetividade ocorre no meio da intersubjetividade
lingüística. No entanto, esta linguagem não pode limitar-se à dimensão da comunicação atual
entre o inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não pode se limitar à dimensão da fala. “É
neste ponto que a importância da escritura, que Husserl descreve como ´comunicação que advém
virtual´, fica evidente. É apenas através da liberação em relação a toda subjetividade atual
permitida pela escritura que a objetividade e comunicabilidade do conhecimento científico pode
ser finalmente asseguradas”56.

55
Idem, L´introduction..., p. 112
56
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A possibilidade do
advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade poderia se afirmar e a
constituição da objetividade poderia ser assegurada, é solidária de uma certa anulação, de uma
certa negação sem retorno do modo de presença e de recuperação do sentido próprio à fala. Nos
limites da fala, temos sempre a possibilidade de direito de recuperar o sentido, isto através da
atualização da intencionalidade do falante. Nos limites da escritura, essa possibilidade se esvai.
Por isto, Derrida precisa afirmar:

O silêncio das arcanas pré-históricas e das civilizações desaparecidas, o sepultamento das


intenções perdidas e dos segredos guardados, a ilisibilidade da inscrição lapidar revelam
o sentido transcendental da morte, naquilo que a une ao absoluto do direito intencional na
instância mesma de seu fracasso57.

Este estatuto paradoxal da escritura, ao mesmo tempo o que constitui o sentido e o que
marca a possibilidade do desaparecimento do sentido, da não recuperação do sentido por uma
consciência, será o dado maior a ser revelado pela desconstrução. Derrida tende, neste momento,
a vincular o advento da escritura à instauração da geometria como ato filosófico de inauguração
da atitude teórica, da ultrapassagem do finito. “Nós estamos na infinitude matemática por termos
definitivamente idealizado e ultrapassado as finitudes sensíveis e factícias” 58.Há uma passagem
ao limite constitutiva do advento da geometria que Derrida descreve como “ato idealizador”,
“liberdade radical e disruptiva”, “descontinuidade decisória”. Esta passagem é a revelação de um
a priori que já se anuncia no próprio mundo da vida. Já no interior da vida há algo que ultrapassa
a simples faticidade, que se impõe como diferença em relação àquilo que é objeto de uma
consciência empírica. Isto permite a Derrida dizer que, sob o conceito de transcendental, sempre
houve a diferença originária da origem absoluta que deve anunciar indefinidamente sua pura
forma concreta como um para além de toda profusão factícia:

Transcendental seria a certeza pura de um Pensamento que, só podendo alcançar o Telos


que já se anuncia avançando sobre a Origem que indefinidamente se reserva, nunca
deveria ter aprendido que ela seria sempre a vir59.

Resta ainda procurar compreender como esta questão da escritura e da diferença servirá
como fundamento para uma crítica extensiva a todas as filosofias dependentes de uma teoria da
linguagem baseada na centralidade da noção de signo. Mas para isto deveremos adentrar a leitura
de A voz e o fenômeno.

57
DERRIDA, L´introduction..., p. 85
58
Idem, p. 140
59
Idme, p. 171
Curso Jacques Derrida
Aula 5

Na aula de hoje, daremos continuidade ao módulo dedicado à leitura de A voz e o fenômeno. Na


aula passada, foi questão de apresentar as linhas gerais do longo texto de introdução que Derrida
escreveu à Origem da geometria. Hoje, gostaria de começar a leitura de A voz e o fenômeno
através do comentário de seus quatro primeiros capítulos. Na aula que vem, terminaremos o
comentário do livro.
Vimos na aula passada, como Derrida partia das discussões de Husserl a respeito da
natureza da idealidade própria aos objetos geométricos, isto a fim de tentar responder a pergunta:
“Como se passa de um estado individual ante-predicativo originário à existência de um ser
geométrico em sua objetividade ideal?”60. Uma pergunta desta natureza implicava o
reconhecimento de certa “passagem” necessária, de um certo enraizamento entre a idealidade e
aquilo que não aparece imediatamente como idealidade. Pergunta importante pois estamos
acostumados a definir o objeto matemático em geral e o objeto geométrico em particular em sua
independência em relação á subjetividade empírica. O que parece colocá-lo em uma relação de
completa exterioridade em relação à história e sua faticidade.
Este é um ponto importante pois Derrida inicia seu texto lembrando que, para a
fenomenologia, a tematização da historicidade sempre foi ligada à condenação tanto do
genetismo historicista quanto do psicologismo. Todas as duas posições seriam figuras de um
certo materialismo para o qual a dimensão das empiricidades forneceria o fundamento para
aquilo que procura ter validade incondicional. Contra elas, faz-se necessário insistir no vínculo
entre fenomenologia e filosofia transcendental. No entanto, Derrida insiste que este vínculo não
significaria anular toda questão relativa à historicidade. Pois tratava-se de lembrar que a história,
como experiência empírica, estaria na dependência de um fundo de pressuposições eidéticas
revelado pela fenomenologia.
Para tanto, vimos como era necessário descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo ligado ao
mundo da cultura. Maneira de dizer que: “para Husserl, as objetividades geométricas ideais,
como a triangularidade, devem advir de objetividades não-geométricas, eles não existem como
tais antes desta experiência”61. Derrida chegará a dizer que a intuição husserliana, no que
concerne os objetos ideais das matemáticas, é absolutamente constituinte e criadora. Na verdade,
ao invés da simples autonomia da idealidade lógica em relação a toda consciência, Husserl quer:
“manter ao mesmo tempo a autonomia normativa da idealidade lógica ou matemática em relação
a toda consciência factual e a dependência originária a uma subjetividade em geral; em geral
mas concreta”62. Concreta, mas não empírica, como uma “experiência transcendental”. Neste
sentido, a historicidade implicada na geometria não seria outra coisa que a recondução das
formas de sentido históricas dadas no presente à dimensão dissimulada de arqui-premissas
fundadoras presentes no mundo da cultura.
Vimos como esta subjetividade em geral, constituinte e criadora, a respeito da qual alude
Derrida, não era uma subjetividade egológica; ela era uma subjetividade comunitária ou, ainda,
uma intersubjetividade:

Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um objeto ou
de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela ideia ou horizonte

60
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
61
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
62
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
desta subjetividade total que se torna responsável, nele e através dele, de cada um de seus
atos de cientista63.

Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos uma
forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui, encontramos um dos
pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura nos remete à concepção
fenomenológica de linguagem. Desta forma, o problema da origem da geometria nos remete,
necessariamente, ao problema da constituição da intersubjetividade e da origem fenomenológica
da linguagem. O que não poderia ser diferente já que o modelo da linguagem, para Husserl, é a
linguagem objetiva da ciência. Uma linguagem poética cujas significações não seriam objetos
nunca teria, a seus olhos, valor transcendental.
No entanto, para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-empírica entre
egos faz-se necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações empírico-factuais. Da
mesma forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele deve ser liberado de todo vínculo a
uma subjetividade atual, ao modo de descrição próprio a uma subjetividade atual, a saber, a
palavra falada com suas contingências. Por isto, é a possibilidade de um outro modo de ser da
linguagem, ou seja, a escritura, que garantirá a objetividade ideal absoluta na pureza de sua
relação a uma subjetividade transcendental universal:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda cativa da
intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma comunidade de sujeitos
falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a escritura cria uma forma de campo
transcendental autônomo a respeito do qual todo sujeito atual pode se abster64.

Ou, ainda, como Derrida dirá em A voz e o fenômeno:

O proto-geômetra deve produzir em pensamento, por passagem ao limite, a pura


idealidade do objeto geométrico puro, assegurar a transmissibilidade pela palavra e enfim
confia-la a uma escritura através da qual poder-se-à sempre repetir o sentido dirigido, ou
seja, o ato de pensamento puro que criou a idealidade do sentido65.

Desta forma, vimos como Derrida, leitor de Husserl, podia responder a questão sobre a
maneira através da qual a idealidade geométrica procede de sua origem primária intrapessoal (do
primeiro geômetra) para sua idealidade objetiva. É certo que o primeiro estágio de transição à
objetividade ocorre no meio da intersubjetividade lingüística. No entanto, esta linguagem não
pode limitar-se à dimensão da comunicação atual entre o inventor e os outros cientistas, ou seja,
ela não pode se limitar à dimensão da fala. “É neste ponto que a importância da escritura, que
Husserl descreve como ´comunicação que advém virtual´, fica evidente. É apenas através da
liberação em relação a toda subjetividade atual permitida pela escritura que a objetividade e
comunicabilidade do conhecimento científico pode ser finalmente asseguradas”66.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A possibilidade do
advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade pode se afirmar e a
constituição da objetividade pode ser assegurada, é solidária de uma certa anulação, de uma certa
negação sem retorno do modo de presença e de recuperação do sentido próprio à fala. Nos

63
Idem, p. 50
64
DERRIDA, ibidem, p. 84
65
Idem, La voix et le phénomène, p. 91
66
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
limites da fala, temos sempre a possibilidade de direito de recuperar o sentido, isto através da
atualização da intencionalidade do falante. Nos limites da escritura, essa possibilidade se esvai. É
tendo em vista um programa de constituição de um modelo de reflexão sobre a linguagem
baseado na noção de escritura que Derrida passará à redação de A voz e o fenômeno.

A vida transcendental

Derrida escreve A voz e o fenômeno para mostrar as premissas conceituais que estariam
presentes em A origem da geometria. Trata-se, na verdade, de perguntar: “A necessidade
fenomenológica, o rigor e a sutileza da análise husserliana não dissimulariam, no entanto, une
pressuposição metafísica?”67. A pergunta é posta tendo em vista a temática presente já no
subtítulo do livro, a saber, o problema do signo na fenomenologia de Husserl. Como vimos na
aula passada, Derrida acredita que em todo o lugar onde a linguagem é pensada a partir da
noção de signo, evidencia sua dependência em relação à metafísica. Pois a metafísica não seria
outra coisa que o discurso que precisa da noção de signo para fundamentar seu modo de relação
ao sentido. É por isto que Derrida diz ser possível partir do conceito de signo para compreender a
própria crítica fenomenológica à metafísica como momento interno à história da metafísica,
como realização histórica do projeto metafísico.
Todas estas proposições são ousadas e Derrida é cônscio disto. No entanto, ele entende
que colocá-las em operação é a condição para ultrapassar o quadro regulador da filosofia da
consciência. Digamos que, neste contexto, a consciência é, fundamentalmente, um modo de
presença dos objetos diante de mim. Neste sentido, poderíamos simplesmente seguir Heidegger
para quem a fundação do conceito moderno de consciência, através do cogito cartesiano, está
organicamente vinculado a uma noção de pensar como representação, como Vorstellung. Uma
representação que é pôr-diante-de-si, Vor-sich-stellen. Heidegger insiste que a estrutura da
reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente posicional.
Refletir é por diante de si no interior da representação, como se colocássemos algo diante de um
“olho da mente”. Pensar, aqui, só poderá ser então: “tomar posse de algo, apoderar-se
(bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen) [lembremos
que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-
presentar (Vor-stellen)”68.
Provavelmente, é por pensar nesta chave que Derrida poderá dizer que a idealidade da
idealidade, ou seja, o que determina o caráter da idealidade, é o presente vivo, a presença a si de
um conceito peculiar de vida que Derrida define como “vida transcendental”. O que nos explica
uma definição de consciência como: “a possibilidade da presença a si do presente no presente
vivo”69. Pois, como já vimos na Origem da geometria, o mundo da vida que serve de fundamento
para a constituição das idealidades geométricas não é o mundo de uma vida puramente factícia e
empírica, mas de uma vida que guarda no seu interior traços daquilo que tem validade
transcendental e trans-individual. Por outro lado, a própria “idealidade” será definida como a
forma na qual a presença de um objeto em geral pode ser indefinidamente repetida como o
mesmo. E aqui o conceito de “repetição do mesmo” é fundamental. Pois ele mostra como a
presença não é presença de algo que existe no mundo, mas é o nome que damos à simples
correlação com atos de repetição, eles mesmos ideais.
Mas Derrida não é indiferente a uma tensão no projeto husserliano. Pois esta vida
transcendental nunca conseguiria abstrair-se completamente do domínio da facticidade e isto, de
uma certa forma, acaba por interferir nos usos gerais do próprio conceito de transcendental.
Assim, Derrida pode, por exemplo, fazer uma afirmação como:
67
DERRIDA, ibidem, p. 3
68
HEIDEGGER, Nietzsche II
69
DERRIDA, ibidem, p. 8
Husserl nunca colocou a questão do logos transcendental, da linguagem herdada na qual a
fenomenologia produz e exibe os resultados de suas operações de redução. Entre a
linguagem ordinária (ou a linguagem da metafísica tradicional) e a linguagem
fenomenológica, a unidade nunca é rompida apesar das precauções, da aspas, das
renovações ou das inovações70.

Esta afirmação é decisiva. Primeiro, notemos a peculiaridade desta enunciação: “a


linguagem ordinária (ou a linguagem da metafísica tradicional)”. Ou seja, tudo se passa como se
Derrida estivesse a dizer que a linguagem da vida comum, esta linguagem que utilizamos em
nossas operações mais elementares fosse prenhe de posições metafísicas. Como se ela fosse
condição essencial para a constituição transcendental. Mas isto significa sustentar a proposição
de que devemos elevar as relações entre linguagem filosófica e linguagem pré-filosófica à
condição de problema filosófico maior. Pois a linguagem pré-filosófica, esta linguagem
“ordinária” própria ao senso comum, forneceria ao pensar filosófico seu conjunto tácito de
pressuposições não problematizadas. Trata-se de afirmar que nossa linguagem pré-filosófica
naturaliza categorias filosóficas como unidade, substância, duração, causa, ser, atribuição,
identidade, diferença e, principalmente, sujeito (e veremos de onde vem esta centralidade do
conceito de “sujeito”) devido simplesmente à sua gramática. Este é um dado fundamental : o
senso comum é uma gramática, entendendo aqui por “gramática” a articulação sistemática de
princípios e regras de estruturação e validação de enunciados. E não há gramática neutra do
ponto de vista de suas implicações metafísicas. Como se Derrida creditasse certos impasses da
filosofia husserliana à sua pretensa incapacidade de colocar em questão estruturas normativas e
lógicas herdadas de uma gramática naturalizada. Por isto que ele dirá que o logos transcendental
depende de uma certa linguagem herdada, para ser mais específico, herdada do mundo da vida.
Neste sentido, Derrida denuncia a dependência da linguagem filosófica aos pressupostos da
linguagem ordinária elevados à condição de uma “gramática pura lógica”.
Isto talvez nos explique porque Derrida insistirá, por exemplo, que entre meu Eu
transcendental e meu Eu natural e humano, há uma diferença radical. No entanto, eles não se
distinguem em nada que possa ser determinado no sentido natural da distinção. Pois o Eu
transcendental não é o fantasma metafísico ou formal do Eu empírico. Aceitar isto nos levaria à
assumir a metáfora do Eu espectador absoluto de seu próprio Eu empírico.
Mas este “nada” que distingue o Eu transcendental e o Eu empírico não implica, por sua
vez, alguma forma de adequação, o que só poderia nos levar à confusão de um verdadeiro
“psicologismo transcendental”. Na verdade, só seria possível “salvar” o transcendental à
condição de relativizar seu caráter constituinte a fim de compreendê-lo principalmente como
“inquietude transcendental” que impõe uma diferença que não pode ser substancializada.
Veremos como esta noção particular de transcendental, longe de assegurar a fundamentação das
condições de possibilidade de toda experiência, acabará por servir de peça de desconstrução da
noção mesma de “fundar”.
Por outro lado, é o conceito de vida que servirá para pensar esta relação de paralelismo:
“Mas a estranha unidade destes dois paralelos, o que os remete um ao outro, não se deixa
partilhar por eles e, dividindo-se a si mesmo, cola finalmente o transcendental a seu outro, é a
vida”71. Esta vida não é apreendida em sua ingenuidade pré-transcendental, na linguagem da vida
ordinária ou na ciência biológica. Na verdade, a vida empírica é colocada em parênteses para o
aparecimento de uma espécie de “vida transcendental”.
Para entender tal vida transcendental, devemos partir da indiscernibilidade entre
consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo essencial” entre logos e phonè. Como dirá
70
DERRIDA, ibidem, p. 6
71
DERRIDA, ibidem, p. 14
Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a ‘voz da consciência’, nela a consciência existe e se
dá realidade, porque a linguagem é a voz articulada” 72. No entanto, Derrida lembrará que não é
com a substância sonora ou com a voz física que Husserl reconhecerá uma afinidade de origem
entre logos e phonè: “mas à voz fenomenológica, à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à
animação intencional que transforma o corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib,
um geistige Leiblichkeit”73.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da enunciação,
indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer, antes de falar sobre
o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a presença de uma linguagem que
impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a enunciação diz os objetos do mundo, mas
ela os diz a partir da realização da presença do enunciador, ela os diz como objetos diante do
enunciador. Por isto, antes de comunicar algo, a enunciação comunica a presença de alguém para
um Outro. Ou, se quisermos dar um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento
derridiano, a enunciação não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do
enunciador. Se tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a manifestação
irredutível da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz a coisa, a pura voz que
se mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro som, já que ela porta a
expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o significado de uma exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a possibilidade de
anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro querer-dizer possa se fazer
ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-lugar de uma instância de linguagem
sem nenhum determinado advento de significado [aqui no sentido de relação à referência],
apresenta-se como uma espécie de ‘categoria das categorias’ que subjaz desde sempre a todo
pronunciamento verbal, sendo, portanto, singularmente próxima da dimensão de significado do
puro ser”74. Talvez um dos pensadores que melhor compreendeu esta natureza própria à
linguagem baseada na enunciação foi Jacques Lacan. O mesmo Lacan que, partindo da
experiência da fala no interior da situação analítica, dirá : “A função da linguagem não é de
informar [a estrutura de um objeto pré-linguístico], mas de evocar [a presença de alguém para
alguém]. O que eu procuro na palavra é a resposta do outro [ainda com a minúscula]. O que me
constitui como sujeito é a minha questão”75.
A afirmação é clara: a função da linguagem não estaria na representação de um dado
natural ou no comunicar um sentido pré-existente à comunicação. Sua função estaria
fundamentalmente vinculada ao ato de presentificar um sujeito, ele mesmo reduzido ao puro fato
de falar, de se comunicar com um outro. Mas isto significa, e Derrida saberá jogar com este
problema até o final, que no próprio advento da linguagem como instância de enunciação estará
inscrita a possibilidade de negar toda referencialidade, toda capacidade de fazer referência a
“algo”.

A voz do signo

A fim de discutir a natureza particular da enunciação, Derrida volta-se à discussão central


de seu livro, a saber, o conceito husserliano de signo. Derrida parte do comentário de um
capítulo central do segundo volume das Investigações lógicas, intitulado : “Expressão e
significado” (Ausdruck und Bedeutung). Lá, Husserl afirma existir uma certa confusão no uso da
palavra “signo” (Zeichen). Por vezes, ele significa “expressão” (Ausdruck), por vezes
“indicação” (Anzeigen). A confusão nos faz esquecer que “todo signo é signo de algo, mas nem

72
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
73
DERRIDA, ibidem, p. 15
74
AGAMBEN, ibidem, p. 55
75
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, 1966, p. 299
todos tem um significado (Bedeutung) do qual o signo seria a expressão” 76. Pois “signos no
sentido de índices (Anzeichen) nada expressam”; eles seriam bedeutunglos, sinnlos. O que não
significa um signo desprovido de significação, um signo que nada diz .
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação, o stigma e o
escravo. A respeito destes exemplos, Husserl dirá que é índice tudo o que serve para indicar algo
para uma essência pensante. Tal definição é muito próxima da noção tradicional de signo como
aquilo que designa algo para alguém. Não é difícil perceber como estas definições não são
claras a respeito do que, afinal, devemos entender por “indicar algo” ou “designar algo”. Mais a
frente, Husserl falará de “indicar algo”, neste contexto, como uma relação de motivação que se
apresenta de maneira objetiva em processos associativos. Esta motivação pode ser operada pelo
dedo que indica a coisa não-vista ou por um estado de coisas que nos remete a outro estado de
coisas. Husserl recoloca o problema da indicação no interior da discussão sobre associação de
idéias (já que mesmo a designação ostensiva não é outra coisa que uma forma elaborada de
associação).
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a relação à
referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin” é a Bedeutung, é a
denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro da revolução”; proposições
que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações absolutamente diferentes]. Mesmo
quando esta distinção aparece, ela não desempenha a mesma função que desempenha em Frege.
Esta recusa em operar com tal distinção trará conseqüências para a dicotomia
expressão/indicação. Pois ela implica em anular o problema da relação à referência extra-
linguística enquanto problema central na definição de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung. No
entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo traduzir,
bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante “exprimindo-se”,
como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma expressão quer dizer”77.
Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung, como objeto da intenção de um
querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser compreendida como o signo animado por
um querer-dizer (sendo que o querer-dizer, devido à natureza da relação de intencionalidade,
será sempre o ato de visar uma relação de objeto). Esta definição da Bedeutung pode nos
explicar porque Derrida afirma que, no final das contas, a diferença entre índice e expressão
aparece como uma diferença funcional, e não exatamente substancial. Dependendo da vivência
intencional que o anima, um mesmo fenômeno lingüístico pode ser apreendida como expressão
ou como índice. Por isto, Derrida deve dizer:

O idealismo transcendental fenomenológico responde à necessidade de descrever a


objetividade do objeto (Gegenstand) e a presença do presente (Gegenwart) – e a
objetividade na presença – a partir de uma interioridade, ou melhor, de uma proximidade
a si, de um próprio (Eigenheit) que não simplesmente um dentro, mas a possibilidade
íntima da relação a um lá e a um fora em geral78.

Como já sabemos, não se trata simplesmente de fundar as operações de significação na


interioridade de uma disposição psicológica do falante. Esta intenção própria ao querer-dizer nos
levaria ao puro solipsismo se fosse conjugada tendo em vista a individualidade do sujeito
psicológico. Ou ainda, ela nos levaria a dizer que a expressão subordina-se à capacidade de
indicar uma vivência psíquica através de um estado físico (tom de fala, gestos, ritmo das
palavras, etc.) e um conjunto de ações sociais. Fato que, para Husserl, equivaleria a confundir

76
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
77
DERRIDA, ibidem, p. 18
78
DERRIDA, ibidem, p. 23
expressão e indicação própria à tentativa, sempre falha, de comunicação da presença do vivido
do outro. Daí porque Derrida deve afirmar que: “A relação ao outro como não-presença é a
impureza da expressão. Para reduzir a indicação na linguagem e alcançar enfim a pura
expressividade, faz-se necessário suspender a relação ao outro”79.
Na verdade, o querer-dizer é o modo de presença, intersubjetivamente partilhado (mas de
uma intersubjetividade transcendental, para além da interelação entre Eus empíricos], que o
sujeito encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a demonstração de que o
próprio conteúdo do sentido não é outro que esta modalidade de presença. Daí porque Husserl
afirma não ser possível admitir que um solilóquio seja uma comunicação por signos, pois: “em
um discurso (Rede) monológico, não podemos nos servir da palavra como índice para o ser de
um ato psíquico”80. Em um monólogo, não há possibilidade de dissociação entre a palavra e o
estado psíquico que é por ela expressado. As palavras daquele que fala a si mesmo não podem
lhe servir de signos, de índices de suas próprias vivência psíquica. Na fala que endereço a mim
mesmo quando digo, por exemplo: “Você agiu mal”, a palavra aparece como desprovida de
distância, sua intenção me é completamente transparente (de direito, não haveria espaço para
uma intenção inconsciente aqui). Por isto, segundo Husserl, seria necessário abrir o campo da
vida solitária da alma a fim de apreender a natureza da expressividade. Uma expressividade que
aparece como pura voz. Uma vida que será posteriormente definida como a esfera noético-
noemática da consciência. [noema : o objeto enquanto idealidade presente à consciência, o
correlato intencional / noese : o ato que permite a apreensão de significações pela subjetividade
constituinte]
Abrir este campo exige uma forma de redução do domínio da indicação. Só assim seria
possível retornar à constituição ativa do sentido e do valor, à atividade de uma vida produzindo a
verdade e o valor em geral através dos signos. De fato, a significação indicativa recobrirá tudo o
que, na linguagem, será objeto de redução: a factualidade, a existência mundana, a não-evidência
etc. Ou seja, toda a camada de efetividade empírica pertence a esta indicação que deve ser
reduzida. Como se a redução, antes mesmo de advir método se confundisse com o ato mais
espontâneo do discurso falado, a simples prática da palavra, o poder da expressão.
Mas se voltarmos à expressão, veremos que ela é, antes de tudo, a impressão, em um
certa exterioridade, de um sentido que se encontra inicialmente em uma certa interioridade. Mas
o exterior visado aqui é este de um objeto ideal, ele é a esfera noético-noemática da consciência.
Maneira de lembrar que não há expressão sem a intenção de um sujeito fornecendo ao signo uma
espiritualidade (Geistigkeit). Não há expressão sem intenção voluntária, como se um ato
involuntário ou, como dirá outro aluno de Brentano, Freud, à mesma época de Husserl, um ato
falho, não pudesse expressar algo. Como se consciência intencional e consciência voluntária
devessem ser tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida pode dizer que, apesar de todos os
temas relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva, assim como da gênese passiva, o
conceito de intencionalidade estaria aprisionado à tradição de uma metafísica voluntarista: “o
sentido quer se significar, ele só se exprime em um querer-dizer que e apenas um querer-se-dizer
da presença do sentido”81. Ou ainda:

Faz-se necessário reconhecer que o critério de distinção entre a expressão e a indicação é


finalmente confiado a uma descrição bem sumária da ‘vida interior’. Nesta vida interior ,
não haveria comunicação porque não há alter ego82.

79
Idem, p. 44
80
HUSSERL, ibidem, p. 36
81
DERRIDA, ibidem, p. 37
82
Idem, p. 78
Isto talvez nos explique porque tudo o que escapa da pura intenção espiritual é excluído
da expressão: o jogo da fisionomia, o gesto, a totalidade do corpo e da inscrição mundana etc.
mesmo o corpo só pode comparecer à expressão ao ser transformado de Körper em Leib. A
essência da linguagem é seu telos, e seu telos é a consciência voluntária como querer-dizer.
Neste sentido, podemos mesmo dizer que aquilo que separa a expressão do índice é o que
podemos chamar de não-presença imediata de si do presente vivo. Pois há indicação toda vez
que o ato que confere o sentido, que a intenção animadora, a espiritualidade viva do querer-dizer
não está plenamente presente. Toda vez que a presença imediata e plena do significado não
estiver presente, o significante será de natureza indicativa e, por isto, inexpressivo.
Mas este presente é, até agora, presente a uma intuição ou a uma percepção “interna”. Por
isto, para recuperar a pura expressividade, faz-se necessário suspender a relação ao outro. “Pois
somente quando a comunicação é suspensa que a pura expressividade pode aparecer” 83. O que
significa dizer que, de uma certa forma, a expressão plena escapa ao conceito de signo, como
vimos no exemplo do monólogo, isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo que
representa alguma coisa para alguém.
No entanto: “Derrida sugere que a tentativa husserliana de apagar as funções externas e
indicativas da linguagem através de uma série de reduções que culminam em uma fala interior
auto-endereçada, está condenada ao fracasso” 84. Ainda não sabemos porque tal tentativa irá
fracassar, nem sabemos claramente o que Derrida pretende colocar em seu lugar. Para tanto,
precisaremos esperar até a próxima aula.

83
Idem, p. 41
84
DEWS, ibidem, p. 19
Curso Jacques Derrida
Aula 6

Nesta aula, gostaria de terminar a apresentação de A voz e o fenômeno. Vimos na aula passada,
como Derrida escreve A voz e o fenômeno a fim de mostrar as premissas conceituais que
estariam presentes em A origem da geometria. Já o título não deixa de fazer alusão à uma
tentativa de decompor a fenomenologia ao analisar o phainomenon e o logos (voz). Tratava-se,
na verdade, de perguntar: “A necessidade fenomenológica, o rigor e a sutileza da análise
husserliana não dissimulariam, no entanto, une pressuposição metafísica?” 85. A pergunta é posta
tendo em vista a temática presente já no subtítulo do livro, a saber, o problema do signo na
fenomenologia de Husserl. Como vimos, Derrida acredita que em todo o lugar onde a linguagem
é pensada a partir da noção de signo, evidencia sua dependência em relação à metafísica. Pois a
metafísica não seria outra coisa que o discurso que precisa da noção de signo para fundamentar
seu modo de relação àquilo que poderíamos chamar de “sentido do ser” ou, ainda, de origem. É
por isto que Derrida diz ser possível partir do conceito de signo para compreender a própria
crítica fenomenológica à metafísica como momento interno à história da metafísica, como
realização histórica do projeto metafísico. Na verdade, talvez Habermas tenha razão quando
afirma: “Um vez que o logos é sempre inerente à palavra falada, Derrida quer atingir o
logocentrismo do ocidente na figura do fonocentrismo”86.
Todas estas proposições são ousadas e Derrida é cônscio disto. No entanto, ele entende
que colocá-las em operação é a condição para ultrapassar o quadro regulador da filosofia da
consciência. Digamos que, neste contexto, a consciência é, fundamentalmente, um modo de
presença dos objetos diante de mim. Neste sentido, sugeri que deveríamos, por exemplo, seguir
Heidegger para quem a fundação do conceito moderno de consciência, através do cogito
cartesiano, está organicamente vinculado a uma noção de pensar como representação, como
Vorstellung. Uma representação que é pôr-diante-de-si, Vor-sich-stellen. Heidegger insiste que a
estrutura da reflexão que nasce com o princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente
posicional. Refletir é por diante de si no interior da representação, como se colocássemos algo
diante de um “olho da mente”. Pensar, aqui, só poderá ser então: “tomar posse de algo, apoderar-
se (bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen) [lembremos
que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-sich-stellen), de um re-
presentar (Vor-stellen)”87.
Provavelmente, é por pensar nesta chave que Derrida poderá dizer que o que determina o
caráter próprio da idealidade é o presente vivo, a presença a si de um conceito peculiar de vida
que Derrida define como “vida transcendental”. O presente vivo é a forma última, mais bem
acabada, da idealidade. O que nos explica uma definição de consciência como: “a possibilidade
da presença a si do presente no presente vivo” 88. Pois, como já vimos na Origem da geometria, o
mundo da vida que serve de fundamento para a constituição das idealidades geométricas não é o
mundo de uma vida puramente factícia e empírica, mas de uma vida que guarda no seu interior
traços daquilo que tem validade transcendental e trans-individual. Por outro lado, a própria
“idealidade” será definida como a forma na qual a presença de um objeto em geral pode ser
indefinidamente repetida como o mesmo. E aqui o conceito de “repetição do mesmo” é
fundamental. Pois ele mostra como a presença não é presença de algo que existe no mundo, mas
é o nome que damos à simples correlação com atos de repetição, eles mesmos ideais.

85
DERRIDA, La voix et le phénomène, p. 3
86
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa, Dom Quixote, p. 160
87
HEIDEGGER, Nietzsche II
88
DERRIDA, ibidem, p. 8
Para entender o regime de presença próprio à tal vida transcendental, devemos partir da
indiscernibilidade entre consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo essencial” entre
logos e phonè. Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a ‘voz da consciência’,
nela a consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a voz articulada” 89. No entanto,
Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou com a voz física que Husserl
reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè: “mas à voz fenomenológica, à voz na
sua carne transcendental, ao sopro, à animação intencional que transforma o corpo da palavra em
carne, que faz do Körper um Leib, um geistige Leiblichkeit”90.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da enunciação,
indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer, antes de falar sobre
o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a presença de uma linguagem que
impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a enunciação diz os objetos do mundo, mas
ela os diz a partir da realização da presença do enunciador, ela os diz como objetos diante do
enunciador. Por isto, antes de comunicar algo, a enunciação comunica a presença de alguém para
um Outro. Ou, se quisermos dar um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento
derridiano, a enunciação não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do
enunciador. Se tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a manifestação
irredutível da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz a coisa, a pura voz que
se mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro som, já que ela porta a
expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o significado de uma exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a possibilidade de
anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro querer-dizer possa se fazer
ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-lugar de uma instância de linguagem
sem nenhum determinado advento de significado [aqui no sentido de relação à referência],
apresenta-se como uma espécie de ‘categoria das categorias’ que subjaz desde sempre a todo
pronunciamento verbal, sendo, portanto, singularmente próxima da dimensão de significado do
puro ser”91. Mas isto significa, e Derrida saberá jogar com este problema até o final, que no
próprio advento da linguagem como instância de enunciação estará inscrita a possibilidade de
negar toda referencialidade, toda capacidade de fazer referência a “algo”. Haverá sempre, na
linguagem de signos, a possibilidade da palavra ser, como gostava de dizer Alexandre Kojève, o
assassinato da coisa.
Vimos, na aula passada, como Derrida procurava discutir esta natureza particular da
enunciação voltando-se se à discussão central de seu livro, a saber, o conceito husserliano de
signo. Derrida parte do comentário de um capítulo central do das Investigações lógicas,
intitulado : “Expressão e significado” (Ausdruck und Bedeutung). Lá, Husserl afirma existir uma
certa confusão no uso da palavra “signo” (Zeichen). Por vezes, ele significa “expressão”
(Ausdruck), por vezes “indicação” (Anzeigen). A confusão nos faz esquecer que “todo signo e
signo de algo, mas nem todos tem um significado (Bedeutung) do qual o signo seria a
expressão”92. Pois “signos no sentido de índices (Anzeichen) nada expressam”; eles seriam
bedeutunglos, sinnlos. O que não significa um signo desprovido de significação, um signo que
nada diz.
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação, fósseis e
animais pré-históricos, o stigma e o escravo. A respeito destes exemplos, Husserl dirá que é
índice tudo o que serve para indicar algo para uma essência pensante. Tal definição é muito
próxima da noção tradicional de signo como aquilo que designa algo para alguém. Não é difícil
perceber como estas definições não são claras a respeito do que, afinal, devemos entender por

89
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
90
DERRIDA, ibidem, p. 15
91
AGAMBEN, ibidem, p. 55
92
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
“indicar algo” ou “designar algo”. Mais a frente, Husserl falará de “indicar algo”, neste contexto,
como uma relação de motivação que se apresenta de maneira objetiva em processos
associativos. Assim, Husserl recoloca o problema da indicação no interior da discussão sobre
associação de idéias que nos remetem a estados de coisas, já a expressão não se submete à esta
dinâmica de associações.
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a relação à
referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin” é a Bedeutung, é a
denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro da revolução”; proposições
que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações absolutamente diferentes]. Mesmo
quando esta distinção aparece, ela não desempenha a mesma função que desempenha em Frege.
Esta recusa em operar com tal distinção trará conseqüências para a dicotomia
expressão/indicação. Pois ela implica em anular o problema da relação à referência extra-
linguística enquanto problema central na definição de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung. No
entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo traduzir,
bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante “exprimindo-se”,
como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma expressão quer dizer”93.
Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung, como objeto da intenção de um
querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser compreendida como o signo animando
por um querer-dizer (sendo que o querer-dizer, devido à natureza da relação de intencionalidade,
será sempre o ato de visar uma relação de objeto).
Este querer-dizer é modo de presença, intersubjetivamente partilhado, que o sujeito
encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a demonstração de que o próprio
conteúdo do sentido não é outro que a pura presença. Daí porque Husserl afirma não ser possível
admitir que um solilóquio seja uma comunicação por signos, pois: “em um discurso (Rede)
monológico, não podemos nos servir da palavra como índice para o ser de um ato psíquico” 94.
Em um monólogo, não há possibilidade de dissociação entre a palavra e o estado psíquico que é
por ela expressado. Na fala que endereço a mim mesmo quando digo, por exemplo: “Você agiu
mal”, a palavra aparece como desprovida de distância, sua intenção me é completamente
transparente (de direito, não haveria espaço para uma intenção inconsciente aqui). Por isto,
segundo Husserl, seria necessário abrir o campo da vida solitária da alma a fim de apreender a
natureza da expressividade. Notemos como a hipótese da vida solitária da alma visa provar que
uma expressão sem indicação é possível. Como se a distinção entre indicação e expressão
acabasse por ser fundamentada na idéia de “vida interior”95. Na verdade, tudo o que é exterior
será atribuído ao índice. Por outro lado, ela mostraria como: “O significado (Bedeutung) de uma
expressão está fundamentado nos atos da intenção significante e da consumação intuitiva desta
intenção – isto, claro está, não de um modo psicológico, mas no sentido de uma fundamentação
transcendental”96. Isto nos leva a esta afirmação maior de Derrida:

O telos da expressão integral é a restituição, na forma da presença, da totalidade de um


sentido atualmente dado à intuição. Estando este sentido determinado a partir de uma
relação ao objeto, o médium da expressão deve proteger, respeito, restituir a presença do
sentido ao mesmo tempo como estar-diante do objeto disponível à um olhar e como
proximidade a si na interioridade97.

93
DERRIDA, ibidem, p. 18
94
HUSSERL, ibidem, p. 36
95
DERRIDA, ibidem, p. 79
96
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 166
97
DERRIDA, ibidem, p. 83
Por outro lado, isto significaria dizer que, de uma certa forma, a expressão plena escapa
ao conceito de signo, isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo que representa
alguma coisa para alguém. No entanto: “Derrida sugere que a tentativa husserliana de apagar as
funções externas e indicativas da linguagem através de uma série de reduções que culminam em
uma fala interior auto-endereçada, está condenada ao fracasso”98.

O querer-dizer e a representação

Voltemos pois ao comentário do nosso texto no ponto em que o deixamos na aula passada, a
saber, o capítulo IV. Derrida compreende que o “nervo” da demonstração da diferença entre
expressão e indicação encontra-se nesta discussão referente à vida solitária da alma:

A função pura da expressão e do querer-dizer não é de comunicar, de informar, de


manifestar, ou seja, de indicar. Ora, a vida solitária da alma provará que uma expressão
sem indicação é possível. No discurso solitário, o sujeito aprende nada sobre si mesmo,
não se manifesta a si mesmo99.

Alguns comentadores afirmarão que isto demonstra como: “A interpretação de Derrida


compreende que o significado (Bedeutung) é apenas a função de um signo expressivo,
expressividade que é obtida através da representação (Vorstellung) idealizada de um sentido
(Sinn) primordial dado como completamente ou simplesmente presente (...) O resultado é a
redução da expressão e de seu ‘medium’, a linguagem, à auto-afecção de um discurso imaginado,
como determinado em um solilóquio”100. Mas devemos desdobrar mais demoradamente as
conseqüências desta operação.
Esta função do monólogo é essencial por nos revelar afinal o que devemos entender por
representação. Se Husserl pode dizer que, no monólogo, “não se comunica nada a si mesmo,
apenas representa-se a si mesmo como falando e comunicando”, é porque a representação não
está sendo entendida aqui como a presença de uma ausência, mas como uma re-presentação, uma
repetição da presença. Neste sentido, a representação é o modo de repetição, sempre renovável,
da presença no interior da idealidade da consciência. É devido a este conceito de representação
que podemos dizer que a idealidade absoluta, própria à pura expressão, será o correlato de uma
possibilidade de repetição indefinida, o que só é possível devido ao fato da representação
aparecer como a forma geral da presença:

A idealidade da forma da presença implica, com efeito, que ela possa se re-petir ao
infinito, que seu retorno, como retorno do mesmo, seja infinitamente necessário e inscrito
na presença como tal; que o retorno seja retorno de um presente que se reterá em um
movimento finito de retenção101.

Signo, representação e idealidade são definidos a partir da noção de iterabilidade. Um


signo é constituído por um conjunto de elementos iterativos. No entanto, esta possibilidade de
repetição infinita é, ao mesmo tempo, o fundamento do signo e sua dissolução. Ela é fundamento
porque um fonema ou grafema só pode funcionar como signo: “se uma identidade formal
permite reeditá-lo e reconhecê-lo”. Mas, como vimos, a pura expressividade desta presença
fundamental pressuposta pela repetição infinita implica dissolução da natureza comunicativa do
98
DEWS, Logic of disintegration, p. 19
99
DERRIDA, ibidem, p. 53
100
HOPKINS, Burt; Derrida's reading of Hussed in Speech and Phenomena: Ontologism and the metaphysics of
presence, Husserl Studies 2:193-214 (1985), p. 203
101
Idem, p. 76
signo enquanto capacidade sua de presentificar algo ausente, de, através da palavra “cão”,
atualizar o animal que não está no hic et nunc. Como se no processo de clarificação da presença,
a relação à empiricidade da referência ausente fosse sendo apagada. Como se a referência à
idealidade em sua pureza fosse indissociável de uma certa forma de dissolução bem enunciada
nesta longa afirmação de Derrida:

Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do conteúdo
de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo : a forma universal da
presença (tenho uma certeza estranha e única pois ela não concerne estado determinado
algum) não será afetada. É pois a relação à minha morte (ao meu desaparecimento em
geral) que se esconde nesta determinação do ser como presença, idealidade, possibilidade
absoluta de repetição. A possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a
dissolução do signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto,
produziria a significação102.

Este tema é central. Se a possibilidade do signo é esta relação à morte, outro nome
possível ao processo de esvaziamento do conteúdo empírico, de confrontação da palavra com um
certo vazio de objeto, então somos obrigados a admitir uma tensão interna à determinação
mesma da noção de presença. Pois a relação à desaparição em geral, à morte, encontra-se
paradoxalmente no cerne da determinação do ser como presença. Como se a possibilidade da
minha desaparição em geral devesse ser vivenciada para que uma relação à presença em geral
pudesse ser instituída. Daí esta passagem famosa onde Derrida aproxima o cogito cartesiano à
enunciação de um “Eu estou presente”, “Eu estou sempre presente na possibilidade incessante de
repetição da minha enunciação”. Proposição que Derrida não deixa de aproximar da enunciação
do Sr. Valdemar, personagem do conto de Edgar Allan Poe : “Eu estou morto”, “Esta presença
que nasce através do cogito implica minha desaparição como empiricidade”. O que Derrida diz
ao falar da determinação de meu ser como res cogitans como: “o movimento através do qual a
origem da presença e da idealidade se oculta na presença e na idealidade que ela possibilita” 103.
Questão que nos remete à discussão entre Foucault e Derrida a respeito da natureza própria à
fundamentação propiciada pelo cogito.
Isto leva, por exemplo, alguém como Giorgio Agamben a dizer que: “A centralidade da
relação entre ser e presença na história da filosofia ocidental tem o seu fundamento no fato de
que temporalidade e ser têm a sua fonte comum no ´presente incessante´ da instância de discurso.
Mas – justamente por isso – a presença não é algo simples, mas conserva em si, em vez disso o
secreto poder do negativo”104. Agamben chegará mesmo a dizer que isto demonstra como a Voz
fenomênica se estabelece como “fundamento ontológico negativo”, como ela já teria uma função
que, mais a frente, Derrida reconhecerá na escritura105.
Talvez possamos dizer que Derrida reconhece esta estranha negatividade no interior
mesmo da noção de presença. Ela aparece na maneira com que o filósofo francês procura mostrar
a coexistência tensa entre dois paradigmas da temporalidade em Husserl: um, pontilhista, que
privilegia a noção de instante, e outro, próprio à consciência interna do tempo, que nos leva a
discutir a noção de “retenção”.
Sobre o primeiro paradigma, sua necessidade vem do fato da presença a si dever se
produzir na unidade indivisa de um presente temporal. Derrida insiste que a evidência da
consciência está necessariamente vinculada à predominância do “agora” na determinação da
102
DERRIDA, ibidem, p. 60
103
Idem, p. 61
104
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 58
105
Daí porque Agamben deve afirmar, criticando Derrida, que: Identificar o horizonte da metafísica simplesmente na
supremacia da phonè e crer, então, poder ultrapassar este horizonte por meio do grámma significa pensar a
metafísica sem a negatividade que lhe é coessencial” (AGAMBEN, ibidem. P. 61)
experiência do tempo. O tempo é uma sucessão de “agoras”, uma sucessão de instantes. Esta
dominância do “agora” nos remete àquilo que Heidegger chamou de “conceito vulgar de tempo”:
“Para a compreensão vulgar do tempo, este se mostra como uma seqüência de agoras, sempre
‘simplesmente dados’, que, igualmente, vêm e passam. O tempo é compreendido como o um
após outro, como o ‘fluxo’ dos agora, como ‘correr do tempo’. (...) Os agora são, por assim
dizer, enquadrados nessas remissões e se enfileiram simplesmente um ao outro para constituir a
fila de um após outro”106. Esta “representação natural do tempo”, que teria um direito natural na
dimensão do ser cotidiano, estaria presente quando Husserl diz: “O agora atual é
necessariamente e permanece algo pontual, uma forma que persiste para sempre nova
matéria”107..
Derrida compreende que este conceito vulgar de tempo está, por exemplo, na base da
rejeição husserliana da estrutura freudiana do tempo. Pois o tempo em Freud é caracterizada pelo
fato de conteúdos mentais inconscientes só advirem consciente a posteriori (nachträglich). Ou
seja, estamos diante de um tempo que só é presente a posteriori, que em última instância nunca
foi presente, que sempre foi vivenciado como passado, como uma espécie de “passado puro” 108.
Ao contrário, para Husserl é um verdadeiro absurdo falar de conteúdo inconsciente que só
adviria consciente a posteriori, pois a consciência é necessariamente ser consciente em todas as
suas fases e momentos. Derrida chega mesmo a lembrar como, para Husserl, o agora pontual é a
“arqui-forma” (Urform) da consciência. O que talvez fique claro em afirmações como: “Todo
agora do vivido, mesmo o da fase inicial de um vivido que acaba de surgir, tem necessariamente
seu horizonte do antes. Mas este não pode ser, por princípio, um antes vazio, uma forma vazia
sem conteúdo, um nonsense. Ele tem necessariamente a significação de um agora passado, que
capta nessa forma um algo passado, um vivido passado”109.
No entanto, Derrida vê uma contradição entre esta concepção de tempo e uma outra,
pressuposta pelas operações de retenção e protensão. Pois, apesar desta temática do instante e do
“agora”, Husserl nos impede de falar de uma simples identidade imediata a si do presente. A
presença do presente percebido compõe com uma não-presença e uma não-percepção, a saber,
com a lembrança e a experiência primárias (retenção e protensão). A retenção, por exemplo,
aparece como caso de uma percepção cujo percebido não é ou foi um presente, mas um passado
como modificação do presente, como uma “não-percepção”, termo que Husserl utiliza na seção
XVI das Lições sobre a consciência interna do tempo. Isto permite a Derrida falar que tudo se
passa como se existisse uma continuidade, entre o agora e não-agora que destruiria toda a
possibilidade de identidade a si na simplicidade. Derrida pode estar também a pensar em
afirmações de Husserl segundo as quais:

todo vivo está num nexo de vividos essencialmente fechado em si não apenas do ponto-
de-vista da seqüência temporal, mas também do ponto de vista da simultaneidade [neste
sentido, o passado é, de uma certa forma, simultâneo ao presente, ele é a distância do
presente em relação a si mesmo]. Isso quer dizer que todo agora de vivido possui um
horizonte de vividos que também têm justamente a forma originário do “agora”, e como
tais constituem um único horizonte de originariedade do eu puro, o seu agora de
consciência completo e originário [no entanto, este horizonte único de originariedade,

106
HEIDEGGER, Ser e tempo, § 81
107
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, §81
108
Ver, neste sentido, a idéia central de Gilles Deleuze: “Os personagens parentais não são termos últimos de um
sujeito, mas os termos médios de uma intersubjetividade, as formas de comunicação e de mascaramento de uma
série à outra para sujeitos diferentes, na medida que estas formas são determinadas pelo transporte do objeto virtual.
Atrás das máscaras á sempre máscaras e o mais escondido é ainda um esconderijo, ao infinito” (DELEUZE,
Différence et répétition, p. 140)
109
HUSSERl, ibidem, § 82
deve nos lembrar como “todo vivido carece de complemento” , como todo vivido está
entre retenção e representação]110.

Derrida vê assim uma contradição entre duas possibilidades irreconciliáveis, como se


fosse questão de encontrar uma outra lógica do tempo sob o paradigma instantaneista : a) manter
a idéia de que o agora vivo só se constitui como fonte perceptiva absoluta em continuidade com
a retenção enquanto não-percepção (Derrida chegará a falar que estamos aqui diante da
différance no interior do próprio processo de auto-afecção; como ele mesmo lembrará: “O
próprio Husserl evocou a analogia entre a relação ao alter ego tal como ele se constitui no
interior da mônada absoluta do ego e a relação ao outro presente (passado) tal qual ela se
constitui na atualidade absoluta do presente vivo”111); b) conservar a originareidade do presente
vivo através do agora. Alguns comentadores verão nesta leitura de Derrida uma certa confusão
entre o “agora” do fluxo de consciência (onde as três dimensões do tempo estão em
simultaneidade) e o “agora” do presente vivo. Sem entrar no mérito da questão, gostaria apenas
de salientar que esta contradição é fundamental para a leitura feita por Derrida pois ela
demonstra a possibilidade de uma diferença irredutível no interior mesmo da experiência da
presença.

Voz e escritura

Os dois últimos capítulos são talvez os mais importantes do nosso livro. Neles, Derrida expõe
mais claramente as funções de sua dicotomia entre uma concepção de linguagem onde a
idealidade do significado está assentada na expressividade da voz e outra concepção cuja
disseminação do significado está assentada na noção de escritura.
A respeito do primeiro caso, Derrida dirá claramente que toda crítica da razão deve
começar por uma crítica do fonocentrismo, já que :

A metafísica, a filosofia, a determinação do ser como presença são a época da voz como
domínio técnico do ser-objeto, para bem compreender a unidade da tecné e da phoné, faz-
se necessário pensar a objetividade do objeto. O objeto ideal é o mais objetivo dos
objetos: independentemente do hic et nunc dos acontecimentos e dos atos da
subjetividade empírica que lhe visa, ele pode ser indefinidamente repetido, continuando
sempre o mesmo112.

Aqui, encontramos novamente a idéia de que falar das coisas é necessariamente impor
um domínio técnico sobre o que falo, sobre o que se submete à estrutura da minha fala. Falar das
coisas é colocá-las diante de mim, é colocá-las neste espaço virtual a respeito do qual eu sou o
fundamento. Neste sentido, a objetividade do objeto é aquilo que, no objeto, submete-se à minha
fala, porque, em um peculiar giro copernicano (talvez o mais astuto de todos, talvez o capítulo
mais insidioso do idealismo), foi minha fala que o instituiu. A fala arranca os objetos do hic et
nunc, do aqui e do agora, para colocá-los em um espaço que não teria a forma da mundaneidade.
Neste espaço virtual de pura presença, descubro que: “minhas palavras são ‘vivas’ porque elas
parecem não me deixar, não sair de mim, fora de meu sopro, em um distanciamento visível, não
cessar de me pertencer, de estar à minha disposição ‘sem acessório’”113.
Talvez seja por isto que Derrida pode dizer que a dissolução do corpo sensível e da
exterioridade é, para a consciência, a forma mesma da presença imediata do significado. Pois o

110
HUSSERL, ibidem, p. §82
111
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 77
112
DERRIDA, ibidem, p. 84
113
Idem, p. 85
significado só pode ser aquilo que se dá na abertura da transcendência. E nesta transcendência
aberta pela fala está sempre implicado que eu posso me escutar falando, que posso escutar minha
própria voz, sentir minha própria presença em uma auto-afecção de tipo absolutamente único.
Assim, nasce não só a subjetividade ou o para si, mas principalmente a identidade indissociável
de um certo regime de funcionamento da linguagem.
No entanto (e esse “no entanto” é aqui decisivo), esta auto-afecção coloca em operação
mais do que gostaria, ela dissemina algo que ela mesma não é capaz de controlar inteiramente.
Ela mostra como “a escritura habitava o interior da palavra”, como ela já estava em trabalho na
intimidade do pensamento. Pois Derrida não esquece que, se minhas palavras parecem não me
deixar, elas só podem ser vivas à condição de fundar uma idealidade sempre negadora da minha
empiricidade, ou seja, que só existe como negação incessante de minha empiricidade. Pois:
“Como o ideal sempre é pensado por Husserl sob a forma da idéia kantiana, esta substituição da
não-idealidade à idealidade, da não-objetividade à objetividade é diferida ao infinito” 114. A
univocidade da expressão objetiva aparece como ideal inacessível, e esta inacessibilidade à
consciência de algo que, de uma certa forma, me constitui não e outra coisa que aquilo que
Derrida entende por différance.
Esta différance não é a diferença entre dois termos opostos (Um e múltiplo,
transcendental e psicológico, vivo e morto etc.). Ela não é uma diferença estruturada, mas é uma
diferença que, ao invés de aparecer na relação entre um termo e seu oposto, é a diferença que
aparece na relação entre fundamento e fundado. Não por acaso, encontramos uma temática
similar em outros autores franceses da época, como Deleuze (Différence et répétition) e Lyotard
(Le différend). Por isto, Derrida pode dizer que o movimento da différance não é objeto a um
sujeito transcendental, ele produz toda e qualquer figura do sujeito. O sujeito é o que está no
lugar da différance como movimento em direção ao fundamento.
Por outro lado, différance é o nome do efeito produzido pela escritura. Já sabemos como
a escritura : “torna o que foi dito independente do espírito do autor e da respiração do
destinatário, bem como da presença dos objetos discutidos. O médium da escritura confere ao
texto uma autonomia lítica em face de todos os contextos vivos” 115. Derrida encontra algo disto
em Husserl através de sua “última exclusão”, esta que distingue querer-dizer e intuição, já que a
unidade da intuição e da intenção nunca é homogênea. É ela que me lembra como a ausência
total de sujeito e de objeto de um enunciado – a morte do escritor e a desaparição dos objetos que
ele descreveu – não impedem um texto de “querer-dizer”. Mas o que é uma escritura, um puro
traço que se impõe lá onde nenhum sujeito da consciência está mais presente, lá onde nenhum
objeto já foi engendrado? Para entender melhor a cena desta escritura, nós devemos passar de
Husserl a um outro autor que Derrida não cessará de se confrontar, vindo da mesma época:
Sigmund Freud.

114
Idem, p. 112
115
HABERMAS, ibidem, p. 342
Curso Derrida
Aula 7

Na aula de hoje, iniciaremos o módulo dedicado à relação entre Derrida e a psicanálise, em


especial através da leitura do texto Freud e a cena da escritura, de 1966. Trata-se, na verdade,
do fragmento de uma conferência pronunciada no Instituto de psicanálise, no interior do
seminário do psicanalista André Green. Texto fundamental não apenas por permitir a introdução
de uma das articulações maiores do pensamento de Jacques Derrida, a saber, o reconhecimento
da centralidade da relação entre psicanálise e filosofia. Este texto é fundamental principalmente
por fornecer, através da teoria freudiana da mente, o modelo de um aparelho psíquico para além
da filosofia da consciência. Podemos mesmo dizer que, em Freud, Derrida encontra uma reflexão
que lhe permite mostrar uma psique que não se submeteria mais às críticas que vimos à ocasião
de seus comentários sobre Husserl e os limites da fenomenologia. Mais do que uma psique,
temos através desta leitura de Freud as bases de uma “escritura psíquica” que fornece a Derrida
uma relação entre escritura e experiência de si para além dos móbiles da filosofia da consciência.
Uma relação baseada principalmente no trabalho da memória e do sonho.
A este respeito, lembremos rapidamente como Derrida insistia no vínculo essencial entre
consciência e linguisticidade, entre consciência e estrutura da linguagem. Vimos também como o
filósofo francês elevara o “fonocentrismo” a uma espécie de modelo hegemônico da linguagem
no ocidente. Entendamos por “fonocentrismo”, neste contexto, uma linguagem no interior da
qual a enunciação e a possibilidade, de direito, da expressibilidade integral da intenção fornecem
o fundamento para os processos de esclarecimento do sentido. De direito, a enunciação sempre
pode expressar integralmente a intenção. Expressão integral de uma intenção que não é apenas
querer-dizer, mas também visada em direção a um objeto transcendental. È isto que podemos
derivar de afirmações de Derrida como:

O telos da expressão integral é a restituição, na forma da presença, da totalidade de um


sentido atualmente dado à intuição. Estando este sentido determinado a partir de uma
relação ao objeto, o médium da expressão deve proteger, respeitar, restituir a presença do
sentido ao mesmo tempo como estar-diante do objeto disponível à um olhar e como
proximidade a si na interioridade116.

Tentemos desdobrar, em um outro quadro teórico, os pressupostos disto que Derrida


chama de fonocentrismo. Digamos que o aspecto mais importante de todo fonocentrismo é a
pressuposição de uma sólida identidade entre intencionalidade e força perlocucionária do ato de
fala, ou seja, força de modificação de estados de coisas, modificação do campo de experiência no
qual sujeitos estão inseridos. Isto significa que, no momento em que se engaja em um ato de fala
intencionalmente orientado, o sujeito sempre pode, de direito mas nem sempre de fato, partir da
pressuposição prévia de saber o que quer dizer e como deve agir socialmente para fazer o que
quer dizer. Este saber o que se quer-dizer funda-se na pressuposição da presença, idealmente
repetível, do objeto à mim. Em outras palavras, podemos dizer que essa presença ideal me
assegura que, em situações de performatividade, terei uma representação prévia e fundamentada
não apenas do conteúdo intencional de meu ato de fala, mas também das condições objetivas de
satisfação de tal conteúdo. Este último ponto é o mais complexo. Por ser a fala, antes de mais
nada, um modo de comportamento governado por regras e pelo meu conhecimento sobre falar
uma língua envolver, necessariamente, o domínio de um sistema de regras de ação social,
seguiria daí que o sujeito que fala teria sempre, de direito e previamente, a possibilidade de saber

116
DERRIDA, La voix et lê phenomène, p. 83
como tal sistema de regras determina a produção do sentido da ação em geral e dos atos de fala
em particular.
Tal pressuposição é uma conseqüência derivada, entre outras coisas, do que está em jogo
naquilo que os pragmáticos chamam de "princípio de expressibilidade" com sua definição de que
sempre haverá um conjunto de proposições intersubjetivamente partilhadas capaz de ser a exata
formulação de um determinado conteúdo intencional117. Princípio que vale também para a
regulação das expectativas referenciais dos usos da linguagem, já que o fazer referência a algo ou
a um estado de coisas implica na capacidade performativa e intencional de identificar este algo
através de uma expressão de sentido intersubjetivamente partilhado.
Neste sentido, o recurso a Freud quebra o que seria o regime fonocêntrico, isto na medida
em que o psicanalista nos obrigaria a aceitar a existência de conteúdos intencionais
inconscientes. De uma certa forma, o que Freud diz é: há conteúdos intencionais que não se
submetem ao regime de presença e disponibilidade próprios à consciência. A este respeito,
lembremos como eu disse na quinta aula que Derrida criticava o fato de que, para Husserl, não
haveria expressão sem intenção voluntária, como se um ato involuntário ou, como dirá Freud, à
mesma época de Husserl, um ato falho, não pudesse expressar algo. Como se consciência
intencional e consciência voluntária devessem ser tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida
podia dizer que, apesar de todos os temas relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva,
assim como da gênese passiva, o conceito de intencionalidade estaria aprisionado à tradição de
uma metafísica voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime em um querer-dizer
que é apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”118.
Estas proposições são fundamentais e devem ser compreendidas em toda sua extensão.
Derrida quer dizer que, com a noção freudiana de inconsciente, não se trata simplesmente de
dizer que haveriam conteúdos intencionais expulsos da consciências, alojados em outra cena e
acessíveis novamente à consciência após operações complexas de rememoração, de simbolização
e de verbalização. Como se o inconsciente fosse uma espécie de depósito de conteúdos mentais
recalcados e de pulsões não-socializadas que poderiam ser, depois dos processos analíticos,
enfim acessíveis à consciência. Na verdade, Freud teria trazido algo de natureza totalmente
diferente. Sua noção de inconsciente nos obrigaria a admitir que existem conteúdos e processos
intencionais que não se submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode
significar, que não se deixam pensar a partir do regime de linguisticidade próprio à consciência.
Por isto, a análise de tais processos, ou seja, a análise do inconsciente e de suas formações
(sonhos, sintomas, atos falhos etc.) só é possível à condição de assumirmos que eles implicam
um outro regime de linguisticidade. Ou seja, o inconsciente não pressupõe apenas uma outra
cena de enunciação, mas uma outra forma de produção do sentido, um outro regime de
linguisticidade. É este outro regime que Derrida procura nos textos de Freud. Por isto, Derrida
precisa insistir:

Não é um acaso que Freud, em momentos decisivos de seu itinerário, recorra a modelos
metafóricos que não são emprestados da linguagem falada, das formas verbais, nem
mesmo da escritura fonética, mas de uma grafia que nunca é assujeitada, exterior e
posterior à palavra falada. Freud faz apelo a signos que não vem transcrever uma palavra
viva e plena, presente a si e segura de si119.

117
Por « princípio de expressibilidade » entende-se que : « para qualquer sentido X e qualquer falante S, não
importa o que S queira dizer com X (intenções a expor, desejos a comunicação em um sentença, etc.), é possível
haver alguma expressão E de maneira que E seja a exata expressão ou formulação de X. Simbolicamente : (S) (X) (S
significa X P ( E) (E é a expressão exata de X)) » (SEARLE, Speech acts, p. 20)
118
DERRIDA, ibidem, p. 37
119
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 296
Neste sentido, a importância do recurso à Freud é clara. Ela fornece o modelo para pensar
uma vida que não é mais a vida transcendental que vimos em Husserl, vida do presente vivo, mas
é agora uma espécie de vida pensada sob o signo da escritura, vida que não precisa mais fazer
apelo à centralidade do conceito de presença, vida para além da metafísica da presença. Freud
fornece à Derrida o modelo de uma psique radicalmente distinta do horizonte regulador do
conceito de consciência.

Sobre a relação entre filosofia e psicanálise em Derrida

Antes de iniciar a leitura de nosso texto, faz-se necessário contextualizar esta operação peculiar
de recurso filosófico à psicanálise. Pois, por um lado, ela não será realmente uma novidade no
interior da experiência intelectual francesa do século XX. Desde a fenomenologia de Sartre e de
Merleau-Ponty, o recurso filosófico à psicanálise era uma constante. Basta lembrar da maneira
com que Sartre, após uma crítica conhecida à pretensa inconsistência da noção freudiana de um
inconsciente pensado principalmente a partir das operações de recalcamento, termina O ser e o
nada exatamente através da proposição de uma psicanálise existencial. Pensemos ainda a
maneira com que a psicanálise acompanha Merleau-Ponty desde a Fenomenologia da percepção,
dedicando várias sessões de seus cursos no Collège de Franca à psicanálise, chegando a propor,
em seu O visível e o invisível, fazer não uma psicanálise existencial, mas uma psicanálise
ontológica.
Após a fenomenologia, a psicanálise será peça maior dos debates em torno do
estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma noção de inconsciente
estrutural fundamental para o psicanalista francês. Lacan não só absorverá este programa
estrutural proposto por Lévi-Strauss como constituirá uma incessante interface entre filosofia e
psicanálise, entre tradição filosófica e problemas clínicos ligados às ditas doenças mentais que
aparecerá de maneira promissora para toda uma grande geração de filósofos franceses. Desta
conjunção entre antropologia estrutural e psicanálise, sairá um programa influente de pesquisa
que alcançará Foucault e Louis Althusser. Por exemplo, em As palavras e as coisas, livro que sai
praticamente na mesma época que o texto de Derrida sobre Freud, Foucault reconhecerá a função
central da psicanálise na ultrapassagem de uma epistème ainda presa à filosofia do sujeito e na
reconstituição do campo das chamadas “ciências humanas”. A este respeito, ele dirá que:

no horizonte de toda ciência humana, há o projeto de trazer a consciência dos homens às


suas condições reais, de restituí-la aos conteúdos e formas que a fizeram nascer e que
nela se esquivam: é por isto que o problema do inconsciente (...) não é simplesmente um
problema interno às ciências humanas (...) mas é um problema coextensivo à sua própria
existência120.

Mesmo que os desdobramentos do pensamento de Michel Foucault lhe levarão a ver, na


psicanálise, um astuto dispositivo disciplinar, é inegável que a frequentação de textos e questões
psicanalíticas foi fundamental para a constituição de seu próprio programa filosófico.
Por outro lado, filósofos como Deleuze e Lyotard não figuram à regra. Deleuze, por
exemplo, sempre teve grande proximidade com certos campos empíricos das ciências humanas,
como a psicologia e a psicanálise. Já a escolha de escrever dissertações sobre Hume e Bergson
tinha um pano de fundo ligado a epistemologia da psicologia. Hume é um teórico fundamental
para o associacionismo (corrente maior da psicologia do início do século XX e bastante criticada
pela psiquiatria fenomenológica hegemônica em solo francês nos anos 50). Por sua vez, Bergson
era tratado como antípoda de uma perspectiva associada em psicologia à crítica do chamado
“mito da vida interior” (Politzer). Já sobre a psicanálise, Deleuze se mostrará um leitor atento de
120
FOUCAULT, Les mots et les choses, pp. 375-376
Freud e Lacan. Isto é visível desde “Apresentação de Sacher-Masoch”. Há uma recorrência
constante à psicanálise em Diferença e repetição e Lógica do sentindo, principalmente através da
teoria das pulsões e do fantasma com sua noção de objeto do fantasma.
No entanto, O anti-Édipo representa uma ruptura brutal em relação a tal perspectiva de
aproximação. Em larga medida, a resposta a tal ruptura (que também pode ser encontrada em
Foucault) concerne o impacto filosófico de maio de 68. O anti-Édipo acabou conhecido com o
livro que mais claramente sustentou as aspirações libertárias globais que animaram a revolta de
68. Tais aspirações foram patrocinadas em larga medida pela recuperação de uma crítica às
instituições que se voltou necessariamente contra a maneira com que a psicanálise seria
dependente da inscrição do desejo no interior das regras do núcleo familiar, da perpetuação de
estruturas normativas burguesas de socialização que seriam os verdadeiros núcleos de
reprodução do capitalismo como forma de vida.
O caso da relação entre Derrida e a psicanálise segue, no entanto, uma coreografia
distinta destas relações de proximidade e distância que animam as experiências intelectuais de
Foucault e Deleuze. Derrida sempre verá em Freud um interlocutor maior, isto a ponto de dizer:
“seria inútil lembrar que desde Da gramatologia e Freud e a cena da escritura todos meus textos
inscreveram o que chamaria de seu “alcance” psicanalítico?” 121. Maneira de reconhecer que toda
a discussão sobre a definição mesmo de “escritura’ encontrava na obra freudiana um apoio
fundamental. Por outro lado, Derrida sempre verá em Lacan um risco de retorno da psicanálise
às vias de uma filosofia do sujeito e à uma teoria da linguagem claramente fonocêntrica. Sua
leitura de Freud será, assim, em larga medida, autônoma e distante de certas elaborações maiores
de Lacan (a grande referência na psicanálise francesa da época). Pois ela se inscreve na sua
estratégia de fornecer uma dupla crítica a duas continuações possíveis do fonocentrismo: a
fenomenologia e o estruturalismo. Na verdade, o esforço de Derrida poderá ser descrito como a
tentativa de evidenciar, contra Lacan, que as elaborações freudianas abrem o espaço para uma
consideração sobre a relação entre linguagem e inconsciente radicalmente estranha ao primado
estruturalista e fora de considerações antropológicas sobre o homem, filosóficas sobre a
consciência e lacanianas sobre o sujeito.
Se quisermos organizar os vários momentos de confrontação entre Derrida e a
psicanálise, encontraremos quatro momentos relativamente distintos. O primeiro é fornecido por
Freud e a cena da escritura. Aqui, trata-se principalmente de se apoiar na teoria freudiana do
inconsciente, da memória e da temporalidade (lembremos como o problema da temporalidade e
da memória já eram apresentados, à ocasião do comentário dos textos de Husserl, como caminho
para a crítica da metafísica da presença), isto a fim de fornecer as coordenadas gerais de uma
reconstrução da psique para além da filosofia da consciência.
Quase quinze anos depois, em 1981, Derrida retornará a Freud e a Lacan no livro O
cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Neste livro onde é questão da natureza da escritura e
do endereçamento, encontramos uma longa parte intitulada “Especular – sobre “Freud”” onde é
questão, principalmente, das conseqüências da teoria freudiana das pulsões para a desconstrução.
Uma leitura do texto Para além do princípio do prazer é sugerida. Nela, Derrida mostra-se
bastante cônscio da operação que faz. A teoria das pulsões é o núcleo daquilo que Freud chamou
de “metapsicologia” e que deve ser compreendido como uma espécie de núcleo conceitual
“especulativo” onde, a meu ver, encontramos algo muito próximo de uma verdadeira ontologia
do conflito (entre vida e morte, se quisermos utilizar os termos empregados por Freud). Derrida
serve-se desta teoria para pensar uma “intencionalidade pulsional”, uma disposição em direção
aos objetos enraizada em uma concepção peculiar de impulso. Neste sentido, estas elaborações
visam complementar o que já se apresentava em Freud e a cena da escritura.
Um terceiro momento vem, novamente, quase quinze anos depois, com o lançamento do
livro Mal de arquivo, em 1995. Nesta época, Derrida também copila alguns de seus textos
121
DERRIDA, Positions, p. 110
dedicados à psicanálise em outro livro : Resistências à psicanálise, de 1996. Servindo-se da
metáfora da memória como arquivamento, Derrida procura aprofundar as conseqüências de
pensar operações de memória partindo da existência de uma pulsão de morte, ou seja, de uma
pulsão de dissolução e anulação do que a memória procura arquivar. No fundo, trata-se de
procurar pensar em profundidade o paradoxo de um aparelho psíquico, como o proposto por
Freud, onde a pulsão de morte não é um mero entulho metafísico, mas um dispositivo central no
funcionamento do aparelho.
Por fim, um último momento pode ser encontrado no livro Estados de alma da
psicanálise, de 2000. Se admitirmos uma certa leitura que procura definir os últimos textos de
Derrida como animados por algo que poderíamos chamar de “guinada ética”, veremos que a
psicanálise aparecerá como um regime de discurso capaz de pensar as antinomias entre soberania
e crueldade. Antinomias que, segundo Derrida, seriam peças fundamentais para toda e qualquer
reflexão ética.
Como vemos, o recurso à psicanálise é periodicamente renovado por Derrida, não se
limitando a momentos específicos e restritos de sua experiência intelectual. Esta constância
demonstra a centralidade da operação, aliando a psicanálise a outros discursos (como a literatura)
que permitiram a Derrida integrar a filosofia em um movimento de tensão com outras áreas da
cultura. Esta aproximação funcional entre psicanálise e literatura, longe de ser compreendida
como uma depreciação à objetividade analítica, significa para Derrida reconhecimento da
similitude entre discursos capazes de não se submeterem ao regime fonocentrico da linguagem.

Escritura psíquica

Freud e a cena da escritura é um texto que procura apresentar as bases daquilo que
Derrida chama de “escritura psíquica”. Para tanto, Derrida propõe uma leitura peculiar dos textos
freudianos. Não será questão nem do comentário de conceitos metapsicológicos maiores, nem da
análise dos textos principais de Freud. Sobre o primeiro ponto, Derrida insistirá na “reticência
teórica em utilizar os conceitos freudianos sem aspas: eles pertencem todos, sem nenhuma
exceção à história da metafísica”122. Ou seja, mais uma vez, não se tratará (e Derrida é totalmente
cônscio disto) de um comentário de texto, mas de uma desconstrução que visa expor aquilo que
“da psicanálise, não se deixar conter no interior da clausura logocêntrica”. Ou seja, aquilo que
Freud produz contra seus próprios conceitos, herdados de uma filosofia da consciência e de uma
psicologia da representação. Por isto, Derrida se baseia em três textos “marginais”, à margem :
um rascunho não-publicado (Projeto para uma psicologia científica), uma carta (Carta n. 52,
endereçada à Wilheim Fliess) e um pequeno texto que até então passara praticamente
desapercebido (Nota sobre o bloco mágico). Derrida vê, no encadeamento dos três textos, uma
progressão em direção à compreensão do aparelho psíquico como uma máquina de escritura.
Maneira de mostrar como: “não há psíquico sem texto”123.
Comecemos com o Projeto para uma psicologia científica. Na aula que vem, falaremos
dos outros dois textos, a saber, a carta n. 52 a Fliess e a Nota sobre o bloco mágico. Escrito em
1895 (ou seja, antes do texto fundador da psicanálise, a saber, A interpretação dos sonhos, de
1900), este texto foi abandonado por Freud por considerar seu programa, em larga medida, um
fracasso. Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer uma psicologia como ciência natural, ou seja,
apresentar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partes
materiais determináveis e, com isto, livra-los de contradição” 124. Neste sentido, o Projeto é a
versão mais bem acabada da tentativa freudiana de adequar as elaborações por ele desenvolvidas
na clínica das neuroses (principalmente após os Estudos sobre a histeria, de 1895) à neurologia.

122
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 294
123
DERRIDA, Jacques; L’écriture et la différence, p. 297
124
FREUD, Nachtragsband, p. 387
O que encontraremos aqui é, entre outras coisas, a tentativa de descrever o aparelho psíquico
através de partes materiais que são, na verdade, neurônios. Derrida toma as descrições neuronais
de Freud como metáforas, o que, é claro, está longe das reais intenções de Freud. De fato, Freud
nunca deixará de ver a psicanálise como um setor avançado das ciências naturais, mesmo que ele
acabe rapidamente por abandonar o modelo neuronal em prol de modelos do aparelho psíquico
autônomos em relação às estruturas do cérebro. No entanto, é inegável que elaborações presentes
no Projeto serão absorvidas pelos trabalhos posteriores de Freud.
No Projeto, Freud tem pois dois conceitos fundamentais: neurônios e quantidade.
Seguindo a tradição da psicologia experimental, a quantidade em questão aqui é
fundamentalmente quantidade de excitação (Erregung) que exige do aparelho psíquico alguma
forma específica de reação. Por isto, Freud pode falar que a quantidade é o que diferencia a
atividade do repouso125. Esta excitação pode vir tanto do meio ambiente externo quanto ser
endógena (neste caso, Freud pensa naquilo que ele chama de Not des Leben – a fome, a
respiração e a sexualidade).
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio fundamental
de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com que os neurônios
tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação a fim de conservar um
estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o aparelho psíquico a abandonar
sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar de tais quantidades, os neurônios
voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de descarga (Abfuhr) aparece como a função
primária do sistema nervoso. Se no caso das excitações vindas do mundo externo, o aparelho
psíquico pode se desembaraçar do aumento da excitação através da motricidade, ou seja, fazendo
o organismo afastar-se da fonte de excitação, no caso das excitações endógenas, a descarga só
pode significar satisfazer as exigências ligadas à fome e à sexualidade, já que a motricidade neste
caso é sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar funções
específicas. Funções estas que exigem a existência de algo como a memória que, por sua vez,
depende da capacidade de “armazenamento (Aufspeicherung) de quantidades” de energia. Para
que exista memória, faz-se necessário que as excitações deixem marcas, traços duráveis 126. Mas
se a memória depende da capacidade de armazenamento, ela implica também uma capacidade de
conservar modificações que aparentemente entra em contradição com a tendência à descarga.
Neste sentido, a explicação da existência da memória aparece como uma das funções
fundamentais do manuscrito freudiano.
Freud lembra como toda teoria psicológica digna deste nome deve ser capaz de explicar
um fenômeno como a memória. Como dirá Derrida: “a memória não é uma propriedade entre
outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo” 127. No entanto, explicar a memória
não será algo simples para Freud. Pois ele não quer aceitar versões de alguma teoria
localizacionista da atividade cerebral, teoria que afirma ter o cérebro neurônios qualitativamente
distintos, dispostos em regiões cerebrais precisas e responsáveis por funções específicas. Ou seja,
ele não pode apelar à existência de um conjunto de neurônios, qualitativamente distintos,
responsáveis pela memória. Neste sentido, sua perspectiva é profundamente distinta daquela
125
Em As psiconeuroses de defesa, Freud compara quantidade, soma de excitação e a carga elétrica espalhada pela
superfície de um corpo. Em Estudos sobre a histeria ela estabelece analogias entre quota de afeto e excitação
elétrica nas vias condutoras do encéfalo.
126
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que se
oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das excitações, pela
sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na morte do organismo, a
“urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria apenas parcial, de forma somente
que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”. (BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida,
leitor de Freud)
127
DERRIDA, ibidem, p. 299
presente nos estudos do cérebro desde Franz Joseph Gall. Foi Gall que, no começo do século
XIX, propôs primeiramente que a funções específicas da atividade mental tem sua sede em
localizações específicas da estrutura cerebral (Gall chega a identificar 27 localizações que
responderiam por 27 faculdades mentais como : esperança, sublimidade, idealidade, tempo,
causalidade, auto-estima, entre outros).
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao menos,
duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível de resistência
produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar tais pontos, Freud
utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas barreiras permitem a
passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios permeáveis”. Se, ao contrário,
tais barreiras dificultam a passagem de quantidades, então teremos “neurônios impermeáveis”,
resistentes e retentores de quantidades. A memória depende destes últimos, que Freud chamará
de neurônios ψ. Os primeiros seriam responsáveis pela percepção, recebendo o nome de
neurônios φ. Que a percepção seja caracterizada por neurônios permeáveis, isto se explica pelo
fato da recepção a novas sensações e excitações ser condição maior para a sobrevivência do
organismo e para a plasticidade de sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a
passividade da percepção que recebe as impressões externas e a atividade da memória será uma
constante na teoria freudiana da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma quantidade Q de
excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis pela memória. Se ela for
muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá caminhos entre as barreiras de contato.
Senão, elas não modificarão o contato entre neurônios. Este ato de abrir caminhos, que Freud
associa à dor, é o que ele chama de Bahnung (que, em português traduzimos ou por “facilitação”
ou por “trilhamento”). A memória é, de fato, representada por estes caminhos de condução de
excitações que encontramos nos neurônios ψ. Como vemos, trata-se aparentemente de um mero
jogo de forças entre pressão de quantidades de excitação e resistência. Como se a significação,
evento necessário aos fenômenos da memória, nascesse da força pressuposta pela intensidade,
pela repetição e pela resistência.
Neste ponto, podemos entender melhor o que Derrida tem em vista ao afirmar que: “a
vida psíquica não é nem a transparência do sentido, nem a opacidade da força, mas a diferença
no trabalho das forças. Nietzsche já havia dito isto” 128. Há uma longa tradição de leituras sobre a
psicanálise freudiana que insiste em uma dicotomia entre a linguagem da força e a linguagem do
sentido presente na metapsicologia. Por um lado, Freud seria ainda dependente das expectativas
científicas da psicologia experimental do final do século XIX e das Naturwisseschaften. Por isto,
os processos psíquicos deveriam ser descritos a partir de um vocabulário onde se mistura
neurologia e metáforas científicas vindas da termodinâmica (força, energia, pressão, descarga
etc.). Mas, por outro, sua experiência intelectual abriria espaço para uma hermenêutica do
sentido, onde a cura seria pensada a partir do modelo de interpretações de uma consciência que
paulatinamente apreenderia reflexivamente suas próprias produções. Neste sentido, Freud se
aproximaria das Geistwisseschaften. Como dirá, por exemplo, Paul Ricoeur: “O discurso de
Freud se apresenta como um discurso misto, às vezes, ambíguo, que tanto enuncia conflitos de
força passíveis de uma energética, tanto enuncia relações de sentido passíveis de uma
hermenêutica”129.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento freudiano
mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre Freud e Nietzsche.
A aproximação serve para demonstrar que a aceitação do vocabulário da força não pode ser
compreendida como a aceitação de uma certa inscrição do freudismo em alguma forma de
naturalismo. Na verdade, Derrida vê nisto a figura de uma memória que funciona como escritura
128
Idem, p. 299
129
RICOEUR, De l´interpretation, p. 78
sem consciência, escritura que mostra, à contracorrente do que poderíamos esperar, que a
memória não é um atributo da consciência. De fato, Derrida precisa insistir que, em Freud,
encontramos inicialmente a idéia da memória como um sistema de Bahnungen, de ligações
neuronais ou, se quisermos utilizar um termo caro a Derrida, de traços que foram constituídos
levando em conta apenas diferenças entre jogos de forças. A este respeito, Derrida falará de
“topografia de traços”, “mapa de trilhamentos”, “espaçamento”.
Por outro lado, ao introduzir a ideia de que a vida psíquica é a diferença no trabalho das
forças, Derrida lembra como os trilhamentos mostram como as resistências entre os neurônios
não podem ser todas equivalentes. Caso assim fosse, a memória seria paralisada já que não
existiria diferença alguma na escolha dos itinerários. Isto permite a Derrida insistir que uma
diferença de intensidades, sem inscrição qualitativa, é o que funda a vida psíquica. Isto nos
permite pensar a vida como traço, antes de tentar determinar o ser como presença.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma psicologia
científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria de neurônios, por
ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à memória seria feito sem
apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a transformação de relações de quantidade em
diferenças de qualidade. Em especial, caberia à consciência operar as distinções qualitativas
próprias às sensações conscientes de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos.
Mesmo neste caso, a distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da
noção de assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Curso Jacques Derrida
Aula 8

Nesta aula, continuaremos a leitura de “Freud e a cena da escritura”. Vimos na aula


passada como o recurso derridiano a Freud visava quebrar o regime fonocêntrico de
funcionamento da linguagem, isto na medida em que Freud insistia na existência de conteúdos
intencionais inconscientes. De uma certa forma, o que Freud diz é: há conteúdos intencionais que
não se submetem ao regime de presença e disponibilidade próprios à consciência. A este
respeito, pedi que vocês lembrassem como eu dissera, na aula 5, que Derrida criticava o fato de
que, para Husserl, não haveria expressão sem intenção voluntária, como se um ato involuntário
ou, como dirá Freud, à mesma época de Husserl, um ato falho, não pudesse expressar algo.
Como se consciência intencional e consciência voluntária devessem ser tratadas como
sinônimos. Por isto, Derrida podia dizer que, apesar de todos os temas relativos à
intencionalidade receptiva ou intuitiva, assim como da gênese passiva, o conceito de
intencionalidade estaria aprisionado à tradição de uma metafísica voluntarista: “o sentido quer se
significar, ele só se exprime em um querer-dizer que é apenas um querer-se-dizer da presença do
sentido”130.
Estas proposições são fundamentais e devem ser compreendidas em toda sua extensão.
Derrida quer dizer que, com a noção freudiana de inconsciente, não se trata simplesmente de
dizer que haveriam conteúdos intencionais expulsos da consciências, alojados em outra cena e
acessíveis novamente à consciência após operações complexas de rememoração, de simbolização
e de verbalização. Como se o inconsciente fosse uma espécie de depósito de conteúdos mentais
recalcados e de pulsões não-socializadas que poderiam ser, depois dos processos analíticos,
enfim acessíveis à consciência. Uma noção de inconsciente construída a partir o modelo de
eventos passados que foram, em dado momento, presentes à consciência mas que, devido à forte
excitação que eles produziram, deveriam ser expulsos da consciência.
No entanto, Freud teria trazido algo de natureza totalmente diferente. Sua noção de
inconsciente nos obrigaria a admitir que existem conteúdos e processos intencionais que não se
submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode significar, que não se deixam
pensar a partir do regime de linguisticidade próprio à consciência. Eventos que, neste sentido,
nunca foram conscientes. Por isto, a análise de tais processos, ou seja, a análise do inconsciente e
de suas formações (sonhos, sintomas, atos falhos etc.) só é possível à condição de assumirmos
que eles implicam um outro regime de linguisticidade. É este outro regime que Derrida procura
nos textos de Freud. Neste sentido, o texto é uma reflexão sobre a especificidade do conceito
freudiano de inconsciente, assim como sobre a maneira com que o inconsciente freudiano nos
permitir nos livrarmos do amálgama entre vida psíquica e metafísica da presença. Isto implica,
como veremos, uma reconsideração sobre a temporalidade própria à vida psíquica, assim como
uma profunda reflexão sobre as relações entre linguagem e operações mentais. Derrida partirá
das considerações freudianas de operações mentais como a memória e os sonhos, isto a fim de
mostrar como elas nos colocam diante de um funcionamento da linguagem muito próximo
daquele que a desconstrução pressupõe.
Isto talvez nos explique melhor porque o conceito central em Freud e a cena da escritura
é “escritura psíquica”. Ou seja, o regime de escritura pressuposto pelas operações do psiquismo.
Aqui, devemos levar em conta como Derrida procura mostrar, em Freud, o advento de uma
metáfora radicalmente nova na compreensão do mental : a metáfora da máquina de escritura não
fonética : “O conteúdo mental será representado por um texto de essência irredutivelmente
gráfica. A estrutura do aparelho psíquico será representada por uma máquina de escritura” 131.
130
DERRIDA, ibidem, p. 37
131
DERRIDA, Ecriture et différence, p.297
No entanto, esta metáfora freudiana do psiquismo não é idêntica a outras metáforas que
conhecemos, como as metáforas óticas da consciência (com seus termos óticos como: reflexão,
especulação, clarividência, auto-observação, luz natural da razão) ou, mais recentemente, as
metáforas computacionais. Se toda descrição possível do psiquismo deve operar por metáforas,
nem todas as metáforas se equivalem. Pois há metáforas que, longe de serem a comparação entre
dois conhecidos (como quando digo “Seu discurso foi leonino” e coloco em relação dois termos
de sistemas distintos, mas previamente conhecidos), são a desconstrução do conhecido: “Através
da insistência de seu investimento metafórico, Freud transforma em enigmático aquilo que
conhecemos sob o nome de escritura”132. Um pouco como se certa metáforas não visassem,
através de analogias, clarificar o que elas procuram descrever, mas reconstruir a linguagem a
partir de um fundamento que não é, em si, claro. È assim que podemos compreender uma
afirmação como:

Não deveremos nos perguntar se um aparelho de escritura, como este descrito na Nota
sobre o bloco mágico, é uma boa metáfora para representar o funcionamento do
psiquismo; mas qual aparelho devemos criar para representar a escritura psíquica, e o que
significa, quanto ao aparelho e quanto ao psiquismo, a imitação projetada e liberada em
uma máquina, de algo como a escritura psíquica133.

Em que condições podemos projetar a escritura psíquica, o que ela impõe para a própria
compreensão do que é uma metáfora? Certamente, e esta é uma frase fundamental, “não há
psíquico sem texto”, nem há texto sem origem psíquica. Mas nada disto significa dizer que o
psíquico seja um “mero” texto. Antes, seria correto dizer que o psíquico reconstrói nossa noção
trivial de texto, abrindo-nos para “o sentido da escritura no sentido corrente”.
Três são os passos dados por Derrida na análise do que seria o conceito freudiano de
escritura psíquica. Em todos estes passos, vemos o aprofundamento de um problema central que
derivaria dos textos freudianos, a saber, o problema da memória. Derrida chega a afirmar que:
“A memória não é uma propriedade do psíquico entre outras, ela é a essência mesma do
psíquico”134. No fundo, Freud e a cena da escritura é um texto sobre como o conceito freudiano
de memória nos obriga a sair dos limites de uma filosofia da consciência.
Vimos, na aula passada, como Derrida iniciava seu trajeto comentando um manuscrito de
Freud, datado de 1895: Projeto para uma psicologia científica. Este texto foi abandonado por
Freud por considerar seu programa, em larga medida, um fracasso. Sua intenção, diz Freud, era:
‘fornecer uma psicologia como ciência natural, ou seja, apresentar os processos psíquicos como
estados quantitativamente determinados de partes materiais determináveis e, com isto, livra-los
de contradição”135. Neste sentido, o Projeto é a versão mais bem acabada da tentativa freudiana
de adequar as elaborações por ele desenvolvidas na clínica das neuroses (principalmente após os
Estudos sobre a histeria, de 1895) à neurologia. O que encontraremos aqui é, entre outras coisas,
a tentativa de descrever o aparelho psíquico através de partes materiais que são, na verdade,
neurônios. Derrida toma as descrições neuronais de Freud como metáforas, o que, é claro, está
longe das reais intenções de Freud. Na verdade, ele as toma como os rudimentos da construção
metafórica de uma máquina de escritura.
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio fundamental
de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com que os neurônios
tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação a fim de conservar um
estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o aparelho psíquico a abandonar

132
Idem, p. 296
133
Idem, p. 297
134
Idem, p. 299
135
FREUD, Nachtragsband, p. 387
sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar de tais quantidade, os neurônios
voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de descarga (Abfuhr) – pensado
principalmente como descarga através da fuga - aparece como a função primária do sistema
nervoso. Se no caso das excitações vindas do mundo externo, o aparelho psíquico pode se
desembaraçar do aumento da excitação através da motricidade, ou seja, fazendo o organismo
afastar-se da fonte de excitação, no caso das excitações endógenas, a descarga só pode significar
satisfazer as exigências ligadas à fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é sem
conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar funções
específicas. Temos então duas funções : funções primárias (ligadas à tendência à descarga) e
funções secundárias (ligadas às ações específicas). Tais funções secundárias exigiriam a
existência de algo como a memória que, por sua vez, depende da capacidade de “armazenamento
(Aufspeicherung) de quantidades” de energia. Para que exista memória, faz-se necessário que as
excitações deixem marcas, traços duráveis 136. Mas se a memória depende da capacidade de
armazenamento, ela implica também uma capacidade de conservar modificações; o que
aparentemente entra em contradição com a tendência à descarga. Neste sentido, a explicação da
existência da memória aparece como uma das funções fundamentais do manuscrito freudiano.
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao menos,
duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível de resistência
produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar tais pontos, Freud
utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas barreiras permitem a
passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios permeáveis”. Se, ao contrário,
tais barreiras dificultam a passagem de quantidades, então teremos “neurônios impermeáveis”,
resistentes e retentores de quantidades. A memória depende destes últimos, que Freud chamará
de neurônios ψ. Os primeiros seriam responsáveis pela percepção, recebendo o nome de
neurônios φ. Que a percepção seja caracterizada por neurônios permeáveis, isto se explica pelo
fato da recepção a novas sensações e excitações ser condição maior para a sobrevivência do
organismo e para a plasticidade de sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a
passividade da percepção que recebe as impressões externas e a atividade da memória será uma
constante na teoria freudiana da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma quantidade Q de
excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis pela memória. Se ela for
muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá caminhos entre as barreiras de contato.
Senão, elas não modificarão o contato entre neurônios. Este ato de abrir caminhos, que Freud
associa à dor (pois a dor é o que indica a irrupção de grandes quantidades em ψ; daí porque, diz
Freud, ela seria “o mais imperioso de todos os processos”) , é o que ele chama de Bahnung (que,
em português traduzimos ou por “facilitação” ou por “trilhamento”). A memória é, de fato,
representada por estes caminhos de condução de excitações que encontramos nos neurônios ψ.
Como vemos, trata-se aparentemente de um mero jogo de forças entre pressão de quantidades de
excitação e resistência. Como se a significação, evento necessário aos fenômenos da memória,
nascesse da força pressuposta pela intensidade, pela repetição e pela resistência. Como se a
“força produzisse o sentido”137.

136
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que se
oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das excitações, pela
sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na morte do organismo, a
“urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria apenas parcial, de forma somente
que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”. (BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida,
leitor de Freud)
137
Idem, p. 316
Vimos, na aula passada, como podíamos, a partir daí, entender melhor o que Derrida tem
em vista ao afirmar que: “a vida psíquica não é nem a transparência do sentido, nem a opacidade
da força, mas a diferença no trabalho das forças. Nietzsche já havia dito isto” 138. Há uma longa
tradição de leituras sobre a psicanálise freudiana que insista em uma dicotomia entre a
linguagem da força e a linguagem do sentido presente na metapsicologia. Por um lado, Freud
seria ainda dependente das expectativas científicas da psicologia experimental do final do século
XIX e das Naturwisseschaften. Por isto, os processos psíquicos deveriam ser descritos a partir de
um vocabulário onde se mistura neurologia e metáforas científicas vindas da termodinâmica
(força, energia, pressão, descarga etc.). Mas, por outro, sua experiência intelectual abriria espaço
para uma hermenêutica do sentido, onde a cura seria pensada a partir do modelo de
interpretações de uma consciência que paulatinamente apreenderia reflexivamente suas próprias
produções. Neste sentido, Freud se aproximaria das Geistwisseschaften.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento freudiano
mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre Freud e Nietzsche.
A aproximação serve para expor a figura de uma memória que funciona como escritura sem
consciência, escritura que mostra, à contracorrente do que poderíamos esperar, que a memória
não é um atributo da consciência. De fato, Derrida precisa insistir que, em Freud, encontramos
inicialmente a idéia da memória como um sistema de Bahnungen, de ligações neuronais ou, se
quisermos utilizar um termo caro a Derrida, de traços que foram constituídos levando em conta
apenas diferenças entre jogos de forças. A este respeito, Derrida falará de “topografia de traços”,
“mapa de trilhamentos”, “espaçamento”.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma psicologia
científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria de neurônios, por
ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à memória seria feito sem
apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a transformação de relações de quantidade em
diferenças de qualidade. Em especial, caberia à consciência operar as distinções qualitativas
próprias às sensações conscientes de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos.
Mesmo neste caso, a distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da
noção de assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Esta posição extemporânea da consciência fica ainda mais clara em uma carta de Freud a
Fliess (n.52). Aqui, Freud apresenta um esquema onde descreve mais claramente o que seria o
trajeto que vai da percepção de um estímulo à formação de uma representação consciente a ele
associado. No Projeto, entre a percepção e a consciência, havia a memória. Na carta, Freud
descreve a memória através de três estratos distintos que se formam sucessivamente : os signos
de percepção (I), o inconsciente (II) e o pré-consciente (III). Esta estratificação é fundamental
por indicar as sucessivas modificações das inscrições geradas pelo estímulo até alcançar a
representação consciente. Pois, como dirá o próprio Freud: “o que há de essencialmente novo em
minha teoria é a ideia de que a memória está presente não apenas uma, mas várias vezes e que se
compõe de diversas formas de “signos””139.
O que há de essencialmente novo aqui é a ideia de que a memória produz inscrições em
um sistema estratificado onde a passagem de um estrato a outro nunca é uma simples tradução,
mas uma transcrição (Umschrift). Através destas reinscrições em estratos, os traços mnésicos são
periodicamente reordenados. Toda nova inscrição modifica a inscrição precedente. Por outro
lado, muitas vezes a passagem de certos traços, de um estrato a outro, é bloqueada através de
recalques. Assim, o que chega à representação da consciência muito pouco tem a ver com o
estímulo que apareceu no nível da percepção.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter fragmentário
e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como impressões de coisas.
138
Idem, p. 299
139
FREUD, Carta 52
Seu caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos de deslocamento e de
condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência de contexto que faz o sonho
retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as próprias lembranças foram armazenadas
como fragmentos. Neste sentido, a atualização de uma lembrança nunca poderá ser a mera
apresentação de um conteúdo previamente arquivado. Ela é a construção de um sentido a partir
das exigências do presente. Derrida alude a isto ao afirmar:

O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...) Não há
verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro lugar. Não há
texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser modificado, a um
trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se seguimos a literalidade freudiana,
à consciência) que lhes seria exterior e flutuaria em sua superfície140.

Se não há texto presente em outro lugar, é porque a memória não é um arquivamento,


mas uma contínua e incessante interpretação. Pois as lembranças não são imutáveis, mas são
reconstituições operadas sobre o passado e em contínuo remanejamento. Não se trata de unidades
discretas perpetuando-se através do tempo. O que temos é um sistema dinâmico que, a partir do
presente, integra traços mnésicos em relações que se constituem a posteriori (nachträglich). Isto
levou Ronselfield a afirmar, sobre Freud:

Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser compreendida
como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas como uma história
global de esforços desdobrados para reaprender o passado, história situada em um
contexto dado, em um certo momento, que é este própria à repetição141.

O que demonstra como, fora do presente, a memória não existe. Ela faz da tríade
passado/presente/futuro não uma sucessão, mas uma conexão que, muitas vezes, se justapõe.
Como não é apenas uma retenção, mas atividade, a memória não conhece passado estático, ou
futuro não-realizado. A este respeito, lembremos, como dirá Loewald, que esta reinscrição do
passado a partir do presente não modifica “o que objetivamente aconteceu no passado”, mas
modifica o passado que o paciente carrega consigo em sua história vivida. No entanto, vale a
pena meditar sobre o fato de que:

Qualquer verdade histórica – independente do que Freud tenha pensado a respeito do


estatuto da realidade objetiva e da verdade da objetividade – é uma reconstrução ou
construção que reestrutura de uma maneira nova o que já no tempo no qual isto realmente
ocorreu foi uma construção mental, uma estrutura mnésica inconscientemente construída
pelos agentes temporais da mente142.

Ou seja, “o que objetivamente aconteceu no passado” já era, desde sempre uma


construção mental, pois já foi, desde sempre, uma interpretação que visava decidir a natureza do
sentido do fato. Não conhecemos nada como um “fato bruto” cujo sentido esteja para além de
conflitos de interpretação. No processo de interpretação social, mobilizamos repetições,
expectativas, medos que organizam os julgamentos enunciados. O que temos desde o início é um
conjunto de discursos que são reatualizados a partir de acontecimentos que, por sua vez, pedem
inscrições simbólicas. Neste sentido, a modificação de como sujeitos vivem fatos passados já é,

140
DERRIDA, ibidem, p. 313
141
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
142
LOEWALD, Hans, idem, p. 146
de alguma forma, a modificação do que objetivamente aconteceu. Se a psicanálise foi sensível a
força de reinscrição, é porque:

A memória, na psicanálise, não é apenas uma faculdade ou função do intelecto através da


qual a mente registra, retém e procura lembra-se de experiências, acontecimentos e
objetos. Para ela, a memória tem a ver como separação, perda, luto, restituição e
geralmente traz consigo o sentido de nostalgia, especialmente quando ficamos velhos 143.

Esta é uma colocação importante que ultrapassa o quadro estrito das técnicas de
intervenção clínica. Da mesma forma como não há percepção bruta, ou seja, a percepção não é
apenas o registro da presença de objetos, mas toda percepção é juízo carregado da memória das
percepções passadas, há faculdades conceituais em operação na mais simples percepção, o
rememorado nunca é um mero fato, pois de nada nos interessam fatos. Rememoramos
experiências como separação, luto e perdas; experiências que, por sua vez, são continuamente
recompreendidas através de sua articulação contínua com acontecimentos posteriores. Um pouco
como estas cadeias significantes em Lacan nas quais o acréscimo de um elemento tem a
capacidade de mudar retroativamente o sentido de todos os demais.
Lembremos, por exemplo, de como funciona o trabalho de luto. Freud tem um descrição
clara do processo:

A prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige que
toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se levanta uma
compreensível oposição: em geral se observa que o homem não abandona de bom grado
uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto já se lhe acena. Essa oposição
pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da realidade e uma adesão ao objeto por
meio de uma psicose alucinatória de desejo. O normal é que vença o respeito à realidade.
Mas sua incumbência não pode ser imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a
pouco com grande dispêndio de tempo e de energia de investimento, e enquanto isso a
existência do objeto de investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as
lembranças e expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e
superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido144.

Freud descreve um processo de fixação da memória em um objeto perdido reativa a


deslocamentos. Uma leitura rápida do trecho pode nos dar a impressão de que o luto se trata de
alguma forma de resignação diante do caráter inelutável da realidade. Resignação cujo preço
psíquico será sempre alto. No entanto, não compreenderemos com isto o tipo de trabalho que se
desenvolve no período de luto que permite um desligamento da libido. Para compreendê-lo
lembremos como tal trabalho de luto não opera por substituição do objeto perdido através do
deslocamento da libido. Dar a tal deslocamento o estatuto de uma substituição equivaleria a
colocar os objetos em um regime de intercambialidade estrutural, regime no interior do qual a
falta produzida pelo objeto perdido poderia ser suplementada em sua integralidade pela
construção de um objeto substituto a ocupar seu lugar. Um mundo de balcão de trocas sem prazo
de vencimento. Se o homem não abandona antigas posições da libido mesmo quando um
substituto lhe acena é porque não se trata simplesmente de substituição. No entanto, o tempo do
luto não é o tempo da reversibilidade absoluta. Vincular o luto a uma operação de esquecimento
seria, por sua vez, elevar a lobotomia a ideal de vida.
Nem substituição, nem esquecimento, o luto não significa deixar de amar objetos
perdidos. O desligamento a respeito do qual fala Freud não é um esquecimento, mas uma
143
LOEWALD, idem, p. 148
144
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
“operação de compromisso” a respeito da qual, infelizmente, o psicanalista não diz muito, da
mesma forma como não diz muito a propósito de um processo estruturalmente semelhante ao
luto, a saber, a sublimação. Talvez seja o caso de afirmar que tal operação de compromisso
própria ao trabalho de luto é indissociável da abertura a uma outra forma de existência, da
abertura de uma outra forma de realidade, entre a presença e a ausência, entre a permanência e a
duração. Uma existência espectral que, longe de ser um flerte com o irreal, é existência objetiva
do que habita em um espaço que força as determinações presentes através de ressonâncias
temporais145. Existência descritível apenas em uma linguagem de espectros que animam os vivos,
que dão à realidade uma espessura espectral pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca
estava destinado à desaparição, vida do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em
uma metamorfose contínua. É assim que desaparece a desaparição e é assim que o luto se afirma
como processo de conversão absoluta da violência das perdas e separações em ampliação do
presente. Pois esse espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma figura privilegiada da
linguagem de temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por isto, podemos dizer que o
trabalho de luto não é construção de processos de substituição próprias a uma lógica
compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se dispor em um presente
absoluto

O bloco mágico

Todas estas conseqüências estão sintetizadas na metáfora freudiana do aparelho psíquico como
um bloco mágico. Trata-se de um pequeno brinquedo composto de um bloco de resina e duas
folhas, uma de celulóide transparente e outra de papel encerado translúcido. Ao escrever no
papel, a resina marca as duas folhas permitindo a constituição de uma escrita. A segunda folha,
aquela que realmente recebe as impressões, serve como proteção para a primeira. Se esta
estivesse diretamente em contato com o bloco de resina, ela se rasgaria facilmente. Ao retirar o
contato das folhas com o bloco, ela volta a ficar vazia, enquanto todas as marcas passam para a
resina. Com o tempo, as marcas vão se acumulando, transformando-se em traços
incompreensíveis e interferindo na superfície de contato das folhas.
Freud encontra neste brinquedo uma metáfora para pensar a articulação entre
receptividade ilimitada da percepção e conservação de traços duráveis pela memória. Articulação
que lhe fez sustentar a existência de dois tipos de neurônios; um vinculado à percepção e outro a
memória. Ele ainda serve para figurar este processo de “suspensão do contato” entre consciência
e inconsciente através da separação periódica entre as folhas e o bloco.
O fato de estarmos diante de uma máquina de escritura é algo que não deve ser
negligenciado. Que a mente tenha como metáfora privilegiada um sistema de escrita e de
conservação de traços é algo que diz muito a respeito de como entendemos a atividade da
memória, para além da ideia clássica do arquivamento de imagens. Falta à metáfora do bloco
mágico, no entanto, a capacidade de não apenas receber impressões de fora, mas também de
escrever a partir de dentro, como se a escritura pudesse se reproduzida do bloco em direção às
folhas. Caso isto ocorresse, ou seja, caso a percepção pudesse se deixar marcar pela memória,
então teríamos uma representação perfeita do aparelho psíquico.

145
Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em GAGNEBIN, Jeanne
Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo: Editora 34, 2014
Curso Derrida
Aula 9

A unidade de tudo o que se deixa visar hoje através dos conceitos os mais diversos da
ciência e da escritura é inicialmente, mais ou menos de forma secreta mas sempre,
determinada por uma época histórico-metafísica da qual apenas entrevemos o
encerramento (...) O futuro só pode se antecipar na forma do perigo absoluto. Ele é o que
rompe absolutamente com a normalidade constituída e só pode se anunciar, se apresentar,
sob a forma da monstruosidade. Para este mundo por vir e para o que nele teria feito
tremer os valores do signo, da fala e da escritura, para o que conduz aqui nosso futuro
anterior, não há ainda epígrafe146.

É assim que se inicia a “epígrafe” de Da gramatologia. Como se vê, Derrida se compreendia em


um limiar histórico no qual toda uma época histórico-metafísica indicava seu encerramento. Seu
esforço filosófico mais relevante se coloca assim como a tentativa de ultrapassar tal época,
reconhendo que uma ultrapassagem desta natureza só poderia equivaler a aproximar-se do que se
antecipa apenas na forma do perigo absoluto. De que perigo fala exatamente Derrida? Que
monstruosidade é esta própria a tal mundo por vir?
O que vem depois desta época histórico-metafísica terminal ainda não pode ser pensado,
a não ser de forma monstruosa. Ou seja, não temos ainda figura. A filosofia crítica irá pois
procurar abrir o espaço ao que não tem figura, a uma experiência da diferença que ainda não terá
figura e que se abrirá a uma ciência peculiar chamada aqui de “gramatologia”.
Notemos como o livro começa colocando-se sob a égide de uma certa crítica da
metafísica definida como era histórica de um modo de ser da linguagem definido como
“logocentrismo”, ou seja, linguagem que tem, na palavra falada, seu modelo fundamental.
Derrida insiste que a história da metafísica sempre foi vinculada à operação de recalcamento da
escritura para fora dos limites da palavra falada. O regime de presença e de objetividade
constituinte desta larga época histórica que Derrida chama de “metafísica ocidental” seria
profundamente dependente da elevação da palavra falada à condição de modelo fundamental e
originário da linguagem. Pois o privilégio dado à phoné respondeu a uma necessidade profunda.
O sistema do ‘escutar-se falando’ através da substância fônica produziu a ideia de mundo a partir
da diferença entre o dentro e o fora, a idealidade e não-idealidade, o transcendental e o empírico.
Este sistema procurou reduzir a escritura a uma função segunda: mera tradução de uma palavra
plena e plenamente pronta. No entanto, a anterioridade da escritura em relação à palavra expõe
os motivos de um esquecimento que tem a idade da metafísica e de sua preparação ao advento da
disponibilização dos objetos pela técnica.
Neste sentido, criticar a metafísica só poderia ser possível à condição de criticar o modo
de ser da linguagem que a suporta. Isto implicaria abrir caminhos para uma linguagem que
reverta a predominância da fala sobre a escritura e que, com isto, nos libere dos regimes de
objetividade e presença que marcam a essência dos modos de determinação do sentido
hegemônicos na metafísica ocidental. Pois aqui já deve ter ficado claro como a escritura
tematizada por Derrida teria, ao menos para o filósofo francês, um potencial desarticulador de
noções maiores como: origem, presença, idealidade do sentido, entre outras. Ela marca, na
verdade, propriedades estruturais presentes tanto na palavra falada quanto na palavra escrita.
Propriedades que, se liberadas do regime fonocêntrico que procura colonizá-las, poderiam
instaurar uma linguagem capaz de abrir as portas para o encerramento desta longa era histórica
definida, por Derrida, como era da metafísica ocidental. Esta escritura seria composta por traços
que devem ser compreendidos como inscrições que não são organizadas em sistemas, como no
146
DERRIDA, De la grammatologie, p. 14
caso dos significantes. Tal como no texto de Derrida sobre Freud, esta escritura de traços está em
contínua reconfiguração a partir de uma temporalidade que remete a “um passado que não pode
mais ser compreendido sob a forma da presença modificada, como um presente-passado”147.
Este é o contexto de enunciação do projeto de uma gramatologia. A gramatologia não
seria apenas uma espécie de “ciência da escritura” e de suas propriedades, setor a ser
acrescentado ao campo das ciências humanas. Antes, ela seria um regime de reflexão sobre a
linguagem que nos abriria as portas para a problematização daquilo que serviria de fundamento
às ciências humanas, a saber, o homem. Daí uma afirmação central como: “Ela [a gramatologia]
não deve ser uma das ciências do homem, pois ela coloca inicialmente, como sua questão
própria, a questão do nome do homem”148.
No entanto, não é certo que esta ciência verá o dia, já que a unidade de tudo o que se
deixa visar atualmente através dos conceitos os mais diversos da ciência e da escritura é
determinada por esta época histórico-metafísica da qual vemos o encerramento. Neste sentido, a
gramatologia acaba por se apresentar como um projeto negativo face ao estabelecimento da
ciência e da filosofia. Daí porque ela só pode se aproximar no perigo absoluto.
Mas podemos compreender melhor esta afirmação decisiva sobre a gramatologia como o
que coloca em questão o próprio nome do homem, recorrendo a certas colocações já presente à
ocasião da publicação de A voz e o fenômeno. Lá, vimos como Derrida insistia no vínculo entre a
linguagem pensada a partir da palavra falada e a centralidade da consciência enquanto modo de
presença dos objetos, maneira de radicalizar a noção constitutiva da subjetividade transcendental.
O regime de presença determinado pela linguagem encontra na consciência (tal como pensada
pela fenomenologia de Husserl) seu espaço fundador. O que nos explica uma definição de
consciência como: “a possibilidade da presença à si no presente vivo”149.
Vimos, por outro lado, como a consciência era indissociável do fenômeno da voz como
puro querer-dizer que:

indicando o puro ter-lugar de uma instância de linguagem sem nenhum determinado


advento de significado [aqui no sentido de relação à referência], apresenta-se como uma
espécie de ‘categoria das categorias’ que subjaz desde sempre a todo pronunciamento
verbal, sendo, portanto, singularmente próxima da dimensão de significado do puro ser150.

Pois haveria uma proximidade absoluta entre a voz e o ser, a voz e o sentido do ser, a voz e a
idealidade do sentido.
Por outro lado, devemos lembrar como Derrida insiste que mesmo um conceito
transcendental de consciência (como o que encontraríamos na fenomenologia de Husserl) não
pode deixar de se sustentar em uma certa antropologia. Daí porque Derrida era sensível a
afirmações como: “Na dimensão da consciência, a humanidade normal e adulta (excluindo o
mundo dos anormais e das crianças) é privilegiada como horizonte de humanidade e como
comunidade de linguagem”151. Pois se a maturidade do homem adulto e sua normalidade
permitem uma determinação eidético-transcendental rigorosa da consciência, então: “o privilégio
de Husserl implica que uma modificação factual e empírica – a normalidade adulta – pretenda
ser uma norma transcendental universal”152. Se quisermos utilizar uma palavra proibida,
podemos dizer que tal modificação factual e empírica não seria outra coisa que uma certa recaída
na dimensão do psicológico.

147
DERRIDA, De la grammatologie, p. 97
148
Idem, p. 124
149
Idem, La voix et le phénomène, p. 8
150
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 55
151
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
152
LAWLOR, ibidem, p. 112
Assim, quando Derrida afirmava que a gramatologia poderia colocar em questão o nome
do homem, tratava-se de ver, em uma reflexão sobre a linguagem que parte do primado da
escritura, a possibilidade de tematizar a dependência das ciências humanas a um campo
transcendental anterior à constituição de todo e qualquer sujeito. Daí uma afirmação central
como:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda cativa da
intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma comunidade de sujeitos
falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a escritura cria uma forma de campo
transcendental autônomo a respeito do qual todo sujeito atual pode se abster153.

Pois: “a escritura é esse esquecimento de si, esta exteriorização, o contrário da memória


interiorisante, da Erinnerung que abre a história do espírito”154. Este campo transcendental
poderia ser apreendido apenas através de uma história da escritura que, longe de nos fornecer a
arqueologia de uma episteme determinada, nos fornecia: “uma possibilidade comum e radical
que nenhuma ciência determinada, nenhuma disciplina abstrata, não pode pensar como tal” 155.
Esta história da escritura que forneceria a possibilidade de desconstrução dos motivos
metafísicos presentes em nossa linguagem seria o verdadeiro sentido da gramatologia.

A escritura habita a fala desde sempre

Vimos no início de nosso curso como, em todo lugar onde é questão do signo, Derrida
acredita encontrar sempre a mesma metafísica. Para ele, a era histórica da determinação do
sentido do ser como presença é a era do signo. Para Derrida, esta era histórica do signo encontra
seu ponto de maturidade no momento em que a determinação da presença absoluta aparecer
como presença à si no interior da subjetividade. Ou seja, ele tem inicialmente em mente o grande
racionalismo do século XVII. No entanto, sua crítica ao signo terá, em Da gramatologia, dois
personagens principais. Dois personagens aparentemente totalmente distantes um do outro, a
saber, o lingüista Ferdinand de Saussure e o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Neste amálgama,
vemos a tentativa derridiana de desenvolver uma crítica do signo que dê conta, em um
movimento duplo complementar, tanto da “ciência ideal” que visava animar um processo de
racionalização do quadro interdisciplinar das ciências humanas (lingüística estrutural de
Saussure), quanto de uma crítica da razão moderna que forneceu um dos quadros mais
duradouros de reflexão da crítica do progresso. Por outro lado, Derrida vê em Rousseau uma
expressão maior do sujeito moderno através de sua crítica da escritura representativa, decaída,
segunda, instituída, isto em prol da voz e da palavra. Voz que funda a consciência e o corpo (as
paixões como a voz do corpo). Por isto, boa parte de Da gramatologia será dedicada ao
comentário do Ensaio sobre a origem das línguas.
Derrida apoiava-se em trechos de Saussure a respeito da relação entre linguagem escrita e
linguagem falada a fim de mostrar o vínculo da lingüística estrutural à metafísica. De fato,
Saussure afirma que a única razão da existência da escrita seria a de representar a linguagem
falada. Esta submissão da escrita à fala seria apenas mais um capítulo a demonstrar que:

O pecado sempre foi definido – entre outros por Malebranche e por Kant – como a
inversão das relações naturais entre a alma e o corpo nas paixões. Saussure acusa aqui a
inversão das relações naturais entre a fala e a escritura. Não é uma simples analogia: a
escritura, a letra, a inscrição sensível sempre foram consideradas pela tradição ocidental

153
DERRIDA, Introduction à l´Origine de la géométrie, de Husserl, p. 84
154
Idem, De la grammatologie, p. 39
155
Idem, p. 141
como o corpo e a matéria exteriores ao espírito, ao sopro, ao verbo e ao logos. E o
problema da alma e do corpo é sem dúvida derivado do problema da escritura. Problema
a respeito do qual – inversamente – ele parece emprestar suas metáforas156.

Ou seja, as dicotomias que impõem ao pensar a necessidade de distinguir o sensível e o


inteligível, a matéria e a forma, a natureza e a cultura encontram no rebaixamento da escritura
em relação à fala um fundamento suplementar.
No entanto, Saussure reconhece que a palavra escrita se mistura tanto à palavra falada
que ela acaba por usurpar-lhe o papel principal: “É como se acreditássemos que, para conhecer
alguém, seria melhor olhar sua fotografia ao invés de seu rosto” 157. Essa usurpação abre a
linguística à gramatologia, dirá Derrida. Ou seja, ela libera o devir a uma gramatologia geral no
interior da qual a fonologia será apenas uma região circunscrita. Saussure insiste em lembrar que
a língua falada tem uma tradição e um desenvolvimento normalmente independente da língua
escrita. Na verdade, a língua falada evolui constantemente e mais rapidamente do que a língua
escrita. Ao final, a grafia acaba por não corresponder ao que ela deveria representar. Assim, no
século XIII os franceses pronunciavam “roi” e “loi”, enquanto se escrevia também “roi” e “loi”.
No século XIV, a pronúncia modifica-se para “roé” e “loè” e, no século XIX, para “rwa” e
“lwa”. No entanto, a escrita sempre continuou como “roi” e “loi”. Mas o que seria realmente
problemático para Saussure são situações nas quais nos deparamos com a “tirania da letra” que, à
força de se impor à massa, influencia a língua falada e a modifica: “Isto só acontece em idiomas
muito literários nos quais o documento escrito desempenha um papel considerável” 158. Saussure
traz como exemplo a maneira com que os parisienses falavam “sept femmes” fazendo soar o “t”.
Derrida encontrará nesta temática da usurpação dos direitos da língua falada pela escrita
ecos da noção de progresso como esquecimento de uma origem simples. Como se a escrita fosse
a dissimulação da presença natural, primeira e imediata do sentido. “Sempre acabamos por
esquecer que aprendemos a falar antes de aprendermos a escrever, e a relação natural é
invertida”, dirá Saussure. Derrida quer, no entanto, mostrar como a linguagem é, desde o início,
escritura: “A usurpação começou desde sempre” 159. A usurpação começou desde sempre porque
a linguagem natural nunca teria existido, ela nunca estaria intacta, já que sempre foi uma arqui-
escritura. A escritura habita a fala desde sempre.
Para insistir em tal caráter, Derrida fala da escritura como “traço instituído”, como
inscrição ainda não organizada em sistema. Um traço que é pura diferença, pois não vale como
originário, assim como vimos nos traços mnésicos freudianos.
A fim de mostrar como a escritura habita a fala desde sempre, Derrida se propõe criticar o
conceito saussureano de signo. Tal como no caso do conceito de signo na fenomenologia de
Husserl, Derrida quer mostrar como há algo no interior do signo que não pode mais ser
compreendido no interior dos limites da metafísica da presença. Por isto, o destino do signo seria
procurar recalcar algo que, no limite, lhe ultrapassa.
Saussure definia o signo como a união de um conceito e de uma imagem acústica, ou
seja, de um significado e de um significante. Notemos inicialmente como o “conceito” ao qual
Saussure refere-se é apresentado como uma imagem genérica de objeto ou, se quisermos utilizar
uma descrição de Heidegger, “vista de um objeto qualquer”. Esta imagem está em posição de
esquema e permite ao esquema pôr-se como "conceito sensível de um objeto", como
transposição sensível do conceito. Para que haja uma transposição sensível do conceito, faz-se
necessário uma regra capaz de prescrever a inserção do sensível em uma vista possível,

156
Idem, p. 52
157
SAUSSURE, Cours de linguistique générale, p. 45
158
Idem, p. 53
159
DERRIDA, De la grammatologie, p. 55
prescrição que cria uma imagem do conceito de um objeto, e não imagem de um objeto
particular. Daí a afirmação:

A percepção imediata de um dado, por exemplo, desta casa, já contém necessariamente


uma vista prévia esquematizadora da visão em geral, é apenas através desta vista prévia
[Vor-stellung] que o ente reencontrado pode se manifestar como casa, pode oferecer a
vista de uma 'casa dada'160.

É pensando em uma perspectiva desta natureza que Derrida pode ver, na noção saussureana de
significado, uma “idealidade de sentido”161.
Por outro lado, lembremos como Saussure não define o significante como uma substância
sonora, como a realidade fática imediata da palavra falada. Antes, ele é a representação psíquica
de um som, uma imagem acústica, imagem que aparece quando dizemos uma palavra em um
monólogo interior. Isto não deixa de nos remeter à leitura que Derrida propôs de Husserl, onde o
recurso à vida interior, ao solilóquio, aparecia como fundamento para o sentido compreendido
como expressão. Tendo em vista as temáticas apresentadas em seus estudos sobre Husserl,
Derrida se mostra bastante advertido em relação à maneira com que o recurso à noção de
imagem acústica procura livrar a sistematicidade da língua da dependência à empiricidade da
fala efetiva, pois:

A imagem acústica é o escutado (l´entendu / que também pode ser “o compreendido”),


não o som escutado, mas o ser-escutado do som. O ser-escutado é estruturalmente
fenomenal e pertence a uma ordem radicalmente heterogênea em relação ao som real no
mundo162.

Pois esta representação psíquica do som não pode ser compreendida como uma realidade
interna simplesmente copiando uma realidade externa. Por trazer no seu bojo a diferença
irredutível em relação à substância fônica, ela nos remete ao problema da idealidade da
expressão em Husserl. A diferença se dá aqui, de uma certa forma, como diferença ontológica
entre a faticidade da substância fônica e a idealidade da imagem acústica. Derrida chega a falar
da diferença entre o “sensível aparecendo” e o “aparecer vivido” (que Saussure chama de
“impressão psíquica” /empreinte psychique). Esta imagem acústica que não é exatamente minha
fala, que é fala de ninguém, já que é idealidade que funda a possibilidade do som organizar-se
em sistema.
No entanto, Derrida baseia-se nesta noção de idealidade presente no sistema de
significantes para interpretar a afirmação de Saussure: “A língua não é uma função do falante,
ela é o produto que o indivíduo registra passivamente” 163. Se o indivíduo registra passivamente a
língua como produto é porque ela se impõe a ele em sua sistematicidade. Na verdade, ele deve,
no limite anulá-lo, anular a faticidade de sua fala, para poder impor-se em sua realidade
transcendental. Como se no processo de clarificação da presença, a relação à empiricidade fosse
sendo apagada. Como se a referência à idealidade em sua pureza fosse indissociável de uma certa
forma de dissolução bem enunciada nesta longa afirmação de Derrida:

Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do conteúdo
de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo : a forma universal da
presença (tenho uma certeza estranha e única pois ela não concerne estado determinado

160
HEIDEGGER, idem, p. 159
161
DERRIDA, De la gramamtologie, p. 93
162
Idem, p. 93
163
SAUSSURE, ibidem, p. 30
algum) não será afetada. É pois a relação à minha morte (ao meu desaparecimento em
geral) que se esconde nesta determinação do ser como presença, idealidade, possibilidade
absoluta de repetição. A possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a
dissolução do signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto,
produziria a significação164.

Vimos em aulas passadas como este tema era central. Ele volta em nosso texto através da
afirmação canônica: “Todo grafema é testamentário. E a ausência original do sujeito da escritura
é também esta da coisa ou do referente” 165. Se a possibilidade do signo é esta relação à morte,
outro nome possível ao processo de confrontação da palavra com um certo vazio de objeto, então
somos obrigados a admitir uma tensão interna à determinação mesma da noção de presença. Pois
a relação à desaparição em geral, à morte, encontra-se paradoxalmente no cerne da determinação
do ser como presença. Como se a possibilidade da minha desaparição em geral devesse ser
vivenciada para que uma relação à presença em geral pudesse ser instituída. Como Derrida não
admite um sujeito transcendental que deixe de ter sua gênese em uma antropologia que tem
medo de dizer seu nome, ficamos com a situação paradoxal de nos confrontarmos com um
sistema de significantes que se afirma anulando a possibilidade de sua recuperação por uma
consciência. Desta forma, Derrida espera realizar a desconstrução da noção e signo a fim de que
o advento de uma arqui-escritura desprovida de sujeito possa aparecer.

Afinal, sabem os Nambikwaras escrever?

No interior desta desconstrução da história geral da escritura, Derrida parte para a crítica
à idéia de uma origem na qual encontraríamos povos sem escritura e sem história. Derrida vê
nesta estratégia um etnocentrismo para o qual povos sem história estariam ou aquém de um
conceito realizado de “homem” ou além de um conceito decaído de “homem”. Nos dois casos,
encontramos uma exclusão intransponível entre nossas formas de vida e o que teria ficado
adormecido na origem.
A fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia deve livrar-se de três
preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a história da escritura. O primeiro é
um certo preconceito “teológico” que assume o mito de uma escritura primitiva e natural dada
por Deus. O segundo deveria ser chamado de “preconceito chinês”. Pois todos os projetos
filosóficos de escritura e de linguagem universal nos séculos XVII e XVIII encorajaram a ver na
escrita chinesa então descoberta, um caso exemplar de uma escrita não-fonética, um modelo de
língua subtraída à história. Derrida lembra de Leibniz que via, na língua chinesa, uma profunda
arbitrariedade ligada à essência não-fonética de sua escrita e não-imitativa de seus caracteres.
Essa arbitrariedade implicaria em estaticidade e ausência de historicidade, já que a fala seria o
motor das mudanças que se dão na história. Por fim, Derrida fala do “preconceito hieróglifista”
que transforma o desprezo etnocêntrico pela escrita não-fonética em admiração hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de partida, a
história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau como um momento
maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto determinação do ser como presença.
Derrida então esboça algumas estações disto que seria sua leitura de tal história. Com Platão, a
idealidade da presença oferecida à repetição fora constituída sob a forma objetiva da idealidade
do eidos e da substancialidade da ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da
representação (onde se vê uma clara influência da história heideggeriana da filosofia), da idéia
como modificação de uma substância presente à si, consciente e certa de si no momento de sua
relação à si. A idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no elemento de uma
164
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 60
165
Idem, De la grammatologie, p. 101
consciência que aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas, por outro lado, Derrida
insiste que esta experiência de auto-afecção só pode se realizar através da voz, já que a voz é
exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se falando”. Neste sentido, Rousseau
teria sido um caso exemplar de filósofo que compreendeu como a experiência da voz funda a
presença imediata da substância à si mesma. Para tanto, bastaria lermos Ensaio sobre a origem
das línguas. Daí seu lugar central no interior do projeto de Da gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele nos
relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de racionalização do
campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a saber, o estruturalismo. De
fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria fundado a etnologia em particular e as
ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-Strauss, enquanto Descartes seria prisioneiro das
pretensas evidências do Eu, passando diretamente da interioridade de um homem à exterioridade
do mundo sem ver que entre os dois extremos encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau
nos teria mostrado que: “para chegar a se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao
conhecimento do homem, faz-se necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 166. Ou seja, para
construir a categoria genérica do homem, faz-se necessário recusar o domínio das auto-
evidências imediatas, mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que me faz duvidar
que seja Eu que pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma natureza comum
recalcada pelo advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-Strauss. Ele
quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau, uma metafísica incapaz
de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e decaída. Identidade que estaria
definitivamente exilada e violentada devido ao advento da escritura e da história. O que permite
a Derrida colocar esta questão maior: “O que liga a escritura à violência? O que deve ser a
violência para que algo nela se iguale à operação do traço?”167.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos” dedicado
aos Nambikwaras, ‘pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os mais primitivos que
podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de uma “infância da
humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os Nambikwara teriam tido acesso, pela
primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à escrita apareceria como uma ruptura em
relação à infância, um exílio em relação à presença. No entanto, Derrida quer corrigir esta
história da queda através do acesso à escrita ao lembrar que:

Há escritura a partir do momento em que o nome próprio é rasurado em um sistema, há


“sujeito” a partir do momento que esta obliteração do próprio se produz, ou seja, a partir
do momento do aparecer do próprio e da primeira manhã da linguagem168.

Ou seja, trata-se de vincular a escritura não apenas a um sistema codificado de caracteres


em número limitado que serviriam para procedimentos elementares de comunicação. A escritura
já está presente a partir do momento que o nome próprio é enunciado. Esta é uma idéia
fundamental. Pois o nome próprio não pode ser compreendido como a apelação única reservada
à presença de um ser único, ele não pode ser compreendido como o dispositivo que asseguraria a
indexação do singular em um regime de transparência pura. Para Derrida, e aqui seguindo
explicitamente Lévi-Strauss, todo ato de nomeação é necessariamente ato de classificação,
inscrição no interior de um sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao filho, por exemplo,
classifica-o de acordo com sua linhagem, inscreve-o em uma repetição que lhe faz continuar o
nome do avô, os ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é necessariamente rasura do que o

166
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
167
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
168
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
particular poderia aspirar de particularidade irredutível. Desta forma, podemos dizer que o nome
próprio: “defines ambiguity because it is the point where ambiguity and determinacy coincide.
The suggestion that the conditions for the possibility of proper names are also the conditions for
their impossibility is typical of Derrida’s deconstructive strategies. He always aims to show that
the conditions of possibility are necessarily the conditions of impossibility”169.

169
STOCKER, Barry, Derrida on deconstruction, p.
Curso Derrida
Aula 10

Na aula de hoje, daremos continuidade a nossa leitura de Da Gramatologia. Vimos na aula


passada como a gramatologia aparecia como uma desconstrução da história geral da escritura.
No interior desta história, Derrida parte da crítica à ideia de uma origem na qual encontraríamos
povos sem escritura e sem história. Derrida vê nesta estratégia um etnocentrismo para o qual
povos sem história estariam ou aquém de um conceito realizado de “homem” ou além de um
conceito decaído de “homem”. Nos dois casos, encontramos uma exclusão intransponível entre
nossas formas de vida e o que teria ficado adormecido na origem.
Na verdade, neste ponto vemos a ligação entre a desconstrução e crítica do colonialismo.
A discussão a respeito de povos sem escrita é um setor importante da crítica a uma visão colonial
do progresso histórico. Povos sem escritura estariam presos ainda à oralidade, a um horizonte
originário, desconhecendo o tempo e suas transformações. Por isto, estaríamos a falar de
sociedades pretensamente estáticas. Neste sentido, a generalização da escritura para toda e
qualquer sociedade implica reconhecimento de uma temporalidade múltipla sem h ierarquia, de
um processo histórico sem origem, atraso e desenvolvimento. Há uma generalização da história
trazida pela gramatologia.
Vimos como, a fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia deveria livrar-
se de três preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a história da escritura. O
primeiro é um certo preconceito “teológico” que assume o mito de uma escritura primitiva e
natural dada por Deus. O segundo deveria ser chamado de “preconceito chinês”. Pois todos os
projetos filosóficos de escritura e de linguagem universal nos séculos XVII e XVIII encorajaram
a ver na escrita chinesa então descoberta, um caso exemplar de uma escrita não-fonética, um
modelo de língua subtraída à história. Derrida lembra de Leibniz que via, na língua chinesa, uma
profunda arbitrariedade ligada à essência não-fonética de sua escrita e não-imitativa de seus
caracteres. Essa arbitrariedade implicaria em estaticidade e ausência de historicidade, já que a
fala seria o motor das mudanças que se dão na história. Por fim, Derrida fala do “preconceito
hieróglifista” que transforma o desprezo etnocêntrico pela escrita não-fonética em admiração
hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de partida, a
história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau como um momento
maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto determinação do ser como presença.
Derrida então esboça algumas estações disto que seria sua leitura de tal história. Com Platão, a
idealidade da presença oferecida à repetição fora constituída sob a forma objetiva da idealidade
do eidos e da substancialidade da ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da
representação (onde se vê uma clara influência da história heideggeriana da filosofia), da ideia
como modificação de uma substância presente à si, consciente e certa de si no momento de sua
relação à si. A idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no elemento de uma
consciência que aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas, por outro lado, Derrida
insiste que esta experiência de auto-afecção só pode se realizar através da voz, já que a voz é
exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se falando”. Neste sentido, Rousseau
teria sido um caso exemplar de filósofo que compreendeu como a experiência da voz funda a
presença imediata da substância à si mesma. Para tanto, bastaria lermos Ensaio sobre a origem
das línguas. Daí seu lugar central no interior do projeto de Da gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele nos
relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de racionalização do
campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a saber, o estruturalismo. De
fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria fundado a etnologia em particular e as
ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-Strauss, enquanto Descartes seria prisioneiro das
pretensas evidências do Eu, passando diretamente da interioridade de um homem à exterioridade
do mundo sem ver que entre os dois extremos encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau
nos teria mostrado que: “para chegar a se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao
conhecimento do homem, faz-se necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 170. Ou seja, para
construir a categoria genérica do humano, faz-se necessário recusar o domínio das auto-
evidências imediatas, mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que me faz duvidar
que seja Eu que pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma natureza comum
recalcada pelo advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-Strauss. Ele
quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau, uma metafísica incapaz
de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e decaída. Identidade que estaria
definitivamente exilada e violentada devido ao advento da escritura e da história. O que permite
a Derrida colocar esta questão maior: “O que liga a escritura à violência? O que deve ser a
violência para que algo nela se iguale à operação do traço?”171.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos” dedicado
aos Nambikwaras, “pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os mais primitivos que
podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de uma “infância da
humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os Nambikwara teriam tido acesso, pela
primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à escrita apareceria como uma ruptura em
relação à infância, um exílio em relação à presença. No entanto, Derrida quer corrigir esta
história da queda através do acesso à escrita ao lembrar que:

Há escritura a partir do momento em que o nome próprio é rasurado em um sistema, há


“sujeito” a partir do momento que esta obliteração do próprio se produz, ou seja, a partir
do momento do aparecer do próprio e da primeira manhã da linguagem172.

Derrida alude ao fato de que, entre os Nambikwaras, o emprego do nome próprio era
proibido. Lévi-Strauss conta, por exemplo, um jogo no qual as crianças acabavam por lhe contar
o nome próprio da outra, provocando raiva naquela que teve seu nome revelado. Este ato de
esconder o nome, de rasura-lo no uso social é, para Derrida, prova de que estamos diante de uma
nomeação que porta em si mesma a consciência de sua ausência de imanência.
O fato do nome próprio ser assim solidário de sua rasura implica que ele rompe com o
mito da origem de uma lisibilidade transparente e imediatamente presente. Isto é apenas a
consequência do fato de nunca apenas nomearmos, nós classificamos o outro ou nos
classificamos a nós mesmos. Ou seja, trata-se de vincular a escritura não apenas a um sistema
codificado de caracteres em número limitado que serviriam para procedimentos elementares de
comunicação. A escritura já está presente a partir do momento que o nome próprio é enunciado.
Esta é uma ideia fundamental. Pois o nome próprio não pode ser compreendido como a apelação
única reservada à presença de um ser único, ele não pode ser compreendido como o dispositivo
que asseguraria a indexação do singular em um regime de transparência pura. Para Derrida, e
aqui seguindo explicitamente Lévi-Strauss, todo ato de nomeação é necessariamente ato de
classificação, inscrição no interior de um sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao filho,
por exemplo, classifica-o de acordo com sua linhagem, inscreve-o em uma repetição que lhe faz
continuar o nome do avô, os ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é necessariamente rasura do
que o particular poderia aspirar de particularidade irredutível. A linguagem sempre será solidária
de uma violência:

170
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
171
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
172
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
A violência originária da linguagem que consiste em inscrever uma diferença, em
classificar, em suspender o vocativo absoluto. Pensar o único no sistema, inscreve-lo, tal
é o gesto da arqui-escritura: arqui-violência, perda do próprio, da proximidade absoluta,
da presença a si, perda em realidade do que nunca teve lugar, presença a si que nunca foi
dada mas sonhada e sempre já desdobrada, repetida, incapaz de aparecer de outra forma
que através da sua própria desaparição173.

Esta violência já é o movimento de uma história, de uma temporalização caracterizada


pela consciência da inconsistência do originário. Por isto, toda arqui-escritura traz também uma
arqui-violência. Mas não porque a escritura marca a perda das relações próprias, de proximidade
absoluta. Sua violência é a paradoxal decomposição do que nunca teve lugar, do que nunca foi
dado, do que era incapaz de aparecer de outra forma que através da sua própria desaparição. Por
isto, Derrida pode afirmar que : “a différance em seu movimento ativo – o que é compreendido,
sem esgotá-lo, no conceito de différance – é o que não apenas precede a metafísica, mas também
transborda o pensamento do ser”174. Pois esta arqui-escritura produzida pela defférance impede a
consolidação das relações entre ser e sentido . Daí porque Derrida poderá dizer:

Nisto que chamamos a vida real de suas existências em “carne e osso”, para além do que
podemos circunscrever como a obra de Rousseau, e atrás dela, houve apenas escritura,
houve apenas suplementos, significações substitutivas que só puderam aparecer em uma
cadeia de reenvios diferenciais, o “real” só aparecendo, só se acrescentando ao tomar
sentido a partir de um traço de um chamado de suplemento, etc.175,

A origem das línguas

Derrida procura aproximar a leitura que Lévi-Strauss faz dos Nambikwaras do Ensaio
sobre a origem das línguas, de Rousseau. O Ensaio é uma reflexão política e antropológica que
funda uma forma de crítica social da modernidade baseada na compreensão das relações sociais
modernas como a generalização dos processos de alienação. Rousseau ainda terminará seu texto
insistindo na maneira com que a emergência de uma outra linguagem é condição fundamental
para a emancipação política, no que reencontramos algumas pressuposições fundamentais de
Derrida. Pois a degradação da línguagem é o sintoma de uma degradação social e política. Para
Rousseau, ela tem sua origem na aristocracia e na capital.
Derrida insiste no fato de Rousseau compreender a passagem à escritura como uma
disruptura das relações, um meio perigoso e uma resposta crítica a uma situação de desamparo.
Lembremos do que fala Rousseau: “as línguas são feitas para serem faladas, a escritura serve
apenas de suplemento à fala”. Esta posição de suplemento é fundamental para Derrida. Ele
insistirá como o suplemento tem necessariamente duas funções. Primeiro, o suplemento se soma,
ele é um a mais, uma plenitude que enriquece outra plenitude. Mas o suplemento também
substitui o suplementado, ele se insinua no lugar de. Neste sentido, ele é exterior, fora da
positividade à qual ele se acrescenta. Há uma perversão própria ao suplemento. Há um engano,
um ato de enganar a natureza primeira. Ele é aquilo que suplementa uma falta na natureza, uma
voz que suplemente a voz da natureza.
Mas esta compreensão da relação entre fala e escritura em Rousseau vincula-se a uma
metafísica que consiste em excluir a não-presença ao determinar o suplemento como
exterioridade simples, como pura adição ou pura ausência. Esta determinação será, no entanto,

173
DERRIDA; Da gramatologia, p. 165
174
Idem, p. 206
175
Idem, p. 228
contraditória em Rousseau. Derrida tentará mostrar como a todo momento ela parece caminhar
para outra direção. Por exemplo, no Ensaio sobre a origem das línguas, Rousseau fará uma
distinção entre as línguas do sul, expressivas, cantadas e próximas da origem musical da
linguagem, e as línguas do norte, informativas, marcadas pela falta de musicalidade e pela
distância, linguagem mais apta à escritura. Esta língua é habitada pela proximidade à morte, à
carência. A escrita aparece como expressão da morte, mas também tour de force para guardar a
vida.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem com os homens que temos diante de nossos
olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a seus cuidados com uma
predileção tal que parece assim mostrar como ela é ciumenta deste direito 176.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo Rousseau, a saber, a
ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de natureza como estado de penúria no
interior do qual seria necessário lutar para sobreviver, pois estaríamos sempre as voltas com a
experiência da finitude da vida. De certa maneira, não seria errado dizer que a experiência da
falta é uma criação da vida social. Se a natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos
animais e aos humanos o espaço potencial de realização de seus desejos e necessidades, então a
falta não pode ser uma condição contínua de um desejo que está sempre a procura de novos
objetos. Essa ausência de falta se repete na concepção rousseauista de infância: “a criança para
Rousseau é o nome do que não deveria ter relação alguma com um significante separado”177.
De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e estes
que fazem parte da vida social, um traço que explica em larga medida como é possível que a
falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o humano pode ser “só,
despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem que isto seja fonte de ansiedade é porque
no estado de natureza não se conhece a propriedade. Não temos indivíduos vinculados a
propriedades, nem indivíduos vinculados a necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em
suas propriedades. Os humanos são sós, seus encontros são intermitentes, suas preocupações se
vinculam a auto-conservação em um espaço natural vasto no interior do qual eles estão em
contínua mobilidade. Mas para tanto eles podem contar com sua força e habilidade. Por isto, os
humanos aparecem inicialmente como nômades solitários.
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do estado de natureza, o
que significa a instauração da vida social. Rousseau se serve de dois fenômenos para descrever a
emergência da vida social e da corrupção desta relação imanente à natureza. O primeiro é aquilo
que ele chama de “faculdade de aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos
empurra a um aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se desenvolveriam apenas até os
limites de seus próprios instintos. No entanto, se na aurora do iluminismo a perfectibilidade era
vista como a fonte da criação e felicidade humana, em Rousseau ela é a causa de todos seus
males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do homem. É ela
que o tira, à força do tempo, desta condição originária na qual corriam dias tranquilos e
inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os séculos suas luzes e erros, seus vícios e
virtudes, o transforma ao fim e ao cabo em tirano de si mesmo e da natureza178.

176
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade, p. 139
177
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 291
178
Idem, p. 142
Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do progresso, pois
seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história da civilização como progresso
da negação do dado natural”179. O primeiro destes temas consiste em dizer que o
desenvolvimento não era apenas uma forma de conhecimento da natureza e de si, mas de uma
dominação técnica de si e do mundo que nos distancia, que marca com um véu, esta condição
originária que seria o espaço de afirmação da emergência do sentido. O advento da vida social é
algo como uma queda:

Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar suas invenções aos dons da
natureza. E desde então a história universal, embaraçada pelo peso continuamente
crescente de nossos artifícios e de nosso orgulho, adquire o andamento de uma queda
acelerada na corrupção: abrimos os olhos com horror para um mundo de máscaras e de
ilusões mortais, e nada assegura ao observador (ou ao acusador) de que ele próprio seja
poupado pela doença universal180.

Isto faz da história da técnica a história do afastamento do sentido, uma história da alienação no
sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro, estar preso ao olhar de um outro.
Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do estado de natureza,
um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de perfectibilidade, a saber, a emergência do
trabalho cooperativo. Em Rousseau, o trabalho cooperativo não é fonte de emancipação, mas
uma das principais fontes de alienação. Pois o trabalho cooperativo é expressão de relações de
dependência e com tais relações de dependência aparecem a necessidade do artifício, da
conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser realizadas por um e a
artes que não necessitavam do concurso de várias mãos eles viveram livres, saudáveis,
bons e felizes tanto quanto podia ser por sua própria natureza e continuaram a gozar entre
eles das doçuras de um comércio independente. Mas desde que um homem teve
necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu que seria útil a um ter provisões
para dois, a igualdade desapareceu, a propriedade foi introduzida, o trabalho adveio
necessário e as vastas florestas se transformaram em campos rudes que deveriam ser
arados com o suor dos homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão
germinar e crescer como musgos181.

A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na cooperação dos


esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta prévia contra situações
desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra a imanência à natureza, impondo uma
atividade que não é mais atividade imediata. Por outro lado, o estabelecimento de relações de
trabalho e produção se funda em tendências imanentes de exploração e dominação. Pois, com as
relações de produção, não estamos apenas a falar do advento da propriedade, mas principalmente
do reconhecimento da importância da sanção do outro, a necessidade de reconhecimento do
outro como condição para a justificação de minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau,
do avento de um ser-para-outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de
forma profunda problema moral e problema econômico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda de si já que o
advento da vida social é a alienação da potência normativa da origem, isto devido à
indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida social implica dependência e esta

179
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
180
Idem, p. 23
181
ROUSSEAU, Idem, p. 171
dependência leva os homens a garantir a estima dos outros, a cultivar a aparência e a sempre
preocupar-se com ela. Eles se tornam então: “enganadores e artificiais” 182 ao submeterem seus
desejos a demandas de reconhecimento. Abre-se assim o espaço à imitação, a uma potência
mimética que é também a perda de si.

Música e reconhecimento

Mas compreendamos o que é possível fazer após a saída do estado de natureza:

Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em estado de mudar,
por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada individuo que, por si mesmo, é
um todo perfeito e solitário em parte de um todo maior do qual os indivíduos receberão
de certa maneira sua vida e seu ser; de substituir uma existência física e independente que
todos nós recebemos da natureza por uma existência parcial e moral183.

O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda terá alguma força
de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos nos perguntar se esta transformação
produzida pelo legislador, se esta mudança da própria natureza humana não seria sem produzir
uma certa nostalgia social. A vida política parece não pode dar conta desta nostalgia. No
máximo, ela transmuta a experiência de auto-pertencimento própria ao estado de natureza em
desejo de igualdade (forma única de impedir a servidão) e de autonomia. Por isto, em algum
nível, ela ainda fala aos humanos como indivíduos marcados pela experiência do individualidade
possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz da natureza,
no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma linguagem de pura presença. A
política procura uma linguagem da pura presença, ela procura dar à voz sua força de direito. Tal
linguagem, Rousseau a encontra na música e no uso da música como paradigma para a
reinstauração da ordem social.
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau, lembremo-
nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele participou, a saber, a chamada
querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma contraposição entre, de um lado, uma noção
de modernidade musical vinculada ao primado da harmonia e das regras estritas de uma
progressão harmônica derivada da teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para
uma polifonia contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de
estruturação da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria extra-
musical (Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da
simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus caracterizou
bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um racionalismo que quer
programas, uma pintura musical na música instrumental e a nostalgia de uma antiguidade que
opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma simplicidade tocante da monofonia grega – eis
os compostos da estética musical de Rousseau”184.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia, sustentar a
estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo que não se refere aos modos de
imitação no interior da vida social, mas no vínculo exterior entre sociedade e natureza. Vínculo
que se faz sentir na relação entre música e a expressão natural da linguagem com suas
entonações e acentos. Isto o permitia vincular a música à uma pedagogia da arte capaz de servir

182
Idem, p.173
183
Idem, p. 381
184
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
de veículo de formação moral por recuperar o vínculo entre natureza e cultura. Lembremos do
que diz Rousseau :

Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma música e um
canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando esta mistura
agradável ; quando pensamos que o modo durou tantos séculos sem que, em todas as
nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido esta harmonia, que
nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu outro acorde que o
uníssono ou outra musical que a melodia ; que as línguas orientais, tão sonoras, tão
musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram estes povos voluptosos e apaixonados
em direção à nossa harmonia ; que sem ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ;
que com ela a nossa tenha efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do
norte, cujos órgãos duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes
do que pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta grande descoberta
e defini-la como princípio a todas regras da arte ; quando, digo eu, levamos tudo isto em
consideração, é muito difícil não desconfiar que toda nossa harmonia é uma invenção
gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos avisados se fôssemos mais sensíveis as
verdadeiras belezas da arte e à música realmente natural 185.

A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se expressa sem
afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos da fala comum. O que explica
porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda fala) como fundamento da expressão musical.
Esta expressão musical próxima da fala instaura, por sua vez, um regime de presença garantido
pela partilha de um fundamento ancorado no seio da natureza, pensada aqui como polo positivo
doador de sentido, como transparência e proximidade. Proximidade que deve a todo momento
saber livrar-se de um “princípio corruptor, ligado ao espaçamento , a regularidade calculável e
analógica dos intervalos”186.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um espaço político
comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da disseminação da representação
devido ao ideal estético de clareza. Esse naturalismo musical, que submete a música ao “prazer
moral da imitação”187 enquanto sonha com o advento de uma comunidade política por vir (ou
seja, há uma submissão completa entre música e moral em Rousseau, tal como houvera antes em
Platão), faz da expressão do compositor o uso consciente de efeitos objetivamente determinados.
Ou seja, faz da expressão do compositor a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Ou
seja, a imitação é, em Rousseau, ao mesmo tempo, a vida e a morte da arte.
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música como horizonte de
reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e recuperação de dimensões sociais de
autenticidade. Rousseau é consciente de que a alienação social é indissociável da degradação da
linguagem no espaço político. Lembremos de como termina seu Ensaio sobre a origem das
línguas: “toda língua com a qual não nos fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma língua
servil; é impossível que o povo seja livre e fale uma língua destas” 188. Uma língua que o povo em
assembleia não escuta é aquela desprovida de eloquência, afastada da persuasão por separar o
povo, por ser apenas uma fala em nome próprio, reduzida a sua condição instrumental de
descrição de interesses. “A primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos
devem permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e
comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as necessidades ditaram os

185
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
186
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 304
187
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
188
Idem, Essai sur l’origine des langues,
primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras palavras” 189. Ou seja, a fala que expressa
apenas sistemas de necessidades é uma fala muda, mais próxima da pura gestualidade. Ela separa
os humanos pois os coloca em relação de concorrência e de defesa. Mas:

a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas, mas no poder
de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição que torne visível a ordem da
natureza. A linguagem imita a natureza quando colabora com a ordem, quando restitui,
no interior da humanidade, a ordem que seu nascimento tinha contribuído para apagar”190.

As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um, elas mudam o
outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela que realmente produz laços.
A língua do povo em assembleia é aquela mais próxima do canto, da poesia e da música. De
certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem música e poesia. Pois o estar em assembleia
não é apenas o ato de estar em um mesmo espaço e de procurar um consenso entre interesses
distintos. Estar em assembleia é o ato de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das
estratégias. Por isto, as verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o mais profundo
dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das paixões. Na verdade, ele sempre
irá procurar esvaziar a língua de sua força de expressão, fazer dela ou o mero espaço de
descrição desafetada ou o mero espaço de afirmação de minhas propriedades, daquilo que me
separa de outros sujeitos. Por isto, a primeira revolta sempre será uma revolta da linguagem
contra sua degradação, uma procura da linguagem em parar um processo descrito por Rousseau
da seguinte forma:

A medida que as necessidades crescem, que os negócios se confundem, que as luzem se


estendem a linguagem muda de caráter, ela se torna mais ajustada e menos apaixonada;
ela substitui os sentimentos por ideias, ela não fala mais ao coração, mas à razão. Por
isto, o acento se apaga, a articulação se estende, a língua se torna mais exata, mais clara,
mas mais surda e fria191.

A recuperação da força expressiva da linguagem é assim a condição para a política pois


ela permite a emergência da proximidade e o fim da separação. Neste sentido, podemos dizer que
a forma fundamental de sujeição é a eliminação da força expressiva da linguagem (o que nos
coloca uma questão importante e que não será de fácil resposta, a saber, o que significa
“expressão” neste contexto). Pois o progresso natural das “línguas letradas” consiste em perder a
força a fim de ganhar clareza, o que só pode significar para Rousseau uma forma de sujeição.

189
ROUSEEAU; Idem, p. 380
190
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
191
ROUSSEAU; Idem, p. 384
Falta a aula 10 que finalizava a leitura de Da gramatologia
Curso Derrida
Aula 12

Em uma entrevista de 1972, Derrida afirma: “nada do que tento seria possível sem a abertura das
questões heideggerianas”192. Tal afirmação não poderia ser diferente, já que sabemos como o
projeto mesmo de desconstrução da metafísica encontra suas raízes em Heidegger. No parágrafo
6 de Ser e tempo, Heidegger fala da necessidade de uma destruição (Destruktion) da ontologia
nos seguintes termos:

Deve-se obter para a própria questão do ser a transparência de sua própria história, então
é preciso dar fluidez à tradição empedernida e remover os encobrimentos que dela
resultaram. Nós entendemos esta tarefa como a destruição do conteúdo transmitido pela
antiga ontologia, tarefa a ser levada a cabo pelo fio condutor da questão do ser até chegar
às experiências originárias em que se obtiveram as primeiras e, a partir de então, diretoras
determinações do ser193.

Ou seja, a possibilidade do desvelamento da questão do ser passa por remover os


encobrimentos produzidos por uma tradição na qual encontramos a história da ontologia. Tal
tradição deve ser destruída para que experiências originárias possa ser recuperadas. Esta
destruição não se comporta de maneira simplesmente negativa em relação ao passado, mas visa o
“hoje”, o modo predominante de definir a história da ontologia. Isto significa que esta destruição
é forma de operar uma genealogia que possa revelar o que tal história comporta de obscuro. Uma
obscuridade que viria do fato de tal história ser fundada na produção de conceitos que marcam
com o selo do esquecimento o “sentido do ser”. Sentido este que exigiria a recuperação de uma
historicidade própria ao ser.
A este respeito, lembremos como Heidegger afirma: “O ente é em seu ser apreendido
como ‘presença’, ou seja, é entendido em referência a um modo temporal determinado, o
‘presente’”194. Se o ente apreende-se enquanto presença, o ser exige um modo temporal que seja
de uma ordem distinta daquilo que se concebe como presença para um sujeito. O que demonstra
como a destruição a qual alude Heidegger passa principalmente pelo conceito de tempo. Trata-se
de se perguntar pela mutação pela qual passou o conceito de tempo para que ele acabasse por
produzir o encobrimento da temporalidade originária do ser. Isto exige o reconhecimento de uma
diferença ontológica fundamental entre a temporalidade dos entes, própria ao presente, e este que
seria própria do ser.
A sua maneira, Derrida tentará mostrar como esta diferença ontológica ainda está
aprisionada no interior da metafísica. Daí a tarefa de: “abrir-se a uma diferança que não seja
ainda determinada, na língua do ocidente, como diferença entre o ser e o ente” 195. Isto implica
afirmar que a diferença entre ser e ente ainda não é diferença que animaria a própria procura de
Heidegger. O que exige que a desconstrução de Derrida volte-se, de forma privilegiada, contra o
conceito heideggeriano de ser. É esta crítica, como vemos uma crítica central ao projeto da
desconstrução, que encontraremos em um texto como Os fins do homem.

192
DERRIDA, Jacques; Positions, p. 18
193
HEIDEGGER, Martin; Ser e Tempo, p. 87
194
Idem, p. 95
195
DERRIDA, idem, p. 19
Mas antes de começarmos a discutir nosso texto, tentemos sistematizar aquilo que
Derrida compreende como a estratégia geral da desconstrução:

Deve-se pois avançar um duplo gesto, segundo uma unidade ao mesmo tempo sistemática
e como que separada dela mesma, uma escritura desdobrada, ou seja, ela mesmo
multiplicada, o que chamei em A dupla sessão de uma ‘dupla ciência’: de uma parte,
atravessar uma fase de inversão (renversement). Insisto muito e a todo momento na
necessidade desta fase de inversão que se procura rapidamente desqualificar.
Reconhecer esta necessidade, é reconhecer que, em uma oposição filosófica clássica, não
estamos nos referindo à coexistência pacífica de um face a face, mas a uma hierarquia
violenta. Um dos dois termos comanda outro (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa
o lugar acima. Desconstruir a oposição é inicialmente, em um dado momento, inverter a
hierarquia. Negligenciar esta fase de inversão é esquecer a estrutura conflitual e
subordinadora da oposição196.

Não se trata pois de simplesmente procurar suspender a estrutura binária que constitui a
história da ontologia (inteligível e sensível, forma e matéria, um e múltiplo, essência e aparência,
movimento e repouso, etc.). Tal oposição é sempre uma hierarquia, uma submissão e não haverá
nenhuma possibilidade de transformação de nossas formas de pensar sem que, antes, tal
hierarquia seja quebrada. No entanto, não se quebra uma hierarquia suspendendo-a por
procuração. Uma hierarquia é quebrada quando ela é inicialmente invertida, em um processo que
em muito lembra a tópica nietzscheana da transvaloração de valores. A inversão da hierarquia
quebra a aderência natural de certas posições ao poder, mostrando como os lugares de poder não
estão naturalmente vinculados a seus portadores, expondo assim a violência que sustentou a
perenidade de tal configuração. No entanto, Derrida reconhece:

Dito isto – e por outro lado – permanecer nesta fase é ainda operar sobre o terreno e no
interior do sistema desconstruído. Faz-se necessário também, através desta escritura
dupla, estratificada, defasada e defasante, marcar a distância entre a inversão que coloca a
baixo o que estava no alto, desconstruindo a genealogia sublimante ou idealisante, e a
emergência disruptiva de um novo ‘conceito’, conceito do que não se deixa mais, nunca
se deixou, compreender no regime anterior197.

Os procedimentos de inversão não são feitos tendo em vista a preservação dos lugares.
Eles são uma estratégia de decomposição. Assim, as relações subalternas são tematizadas não
para garantir lugares de poder àquilo que até então fora excluído, recalcado e reprimido. Na
verdade, elas são recompostas para permitir a emergência do que nunca se deixou compreender
no regime anterior de determinação conceitual. Mas esta emergência não implica alguma forma
de superação dialética da oposição binária em direção a um terceiro termo.
Derrida lembrará, por exemplo, que a noção de pharmakon não é nem o remédio nem o
veneno, nem o bem nem o mal; o suplemento não é nem um mais nem um menos, nem o fora
nem o complemento de um dentro, nem o acidente nem a essência; o grama não é nem o
significante nem o significado, nem um signo nem uma coisa, nem uma presença nem uma
ausência. Esses são conceitos produzidos pela desconstrução que visam fazer emergir um
horizonte pós-metafísico.

Crítica da metafísica e antropologia

196
DERRIDA, Jacques; idem, p. 57
197
Idem, p. 57
Mas esta emergência de um horizonte pós-metafísico exige retomar a crítica daquilo que seria o
fundamento da metafísica. Neste caso, Derrida insistirá na seguinte equação: toda metafísica
encontra seu fundamento em uma antropologia. Ela sempre será solidária de um modo de ser do
humano, de uma imagem atual do humano. Há uma espécie de sono antropológico a marcar a
metafísica ocidental. Um sono do qual devemos acordar. Gostaria de dar alguns passos atrás a
fim de discutir de maneira mais adequada este ponto.
Comecemos por lembrar mais uma vez como, da gramatologia, Derrida diz que ela “ não
deve ser uma das ciências do homem, porque coloca de início, como sua questão própria, a
questão do nome do homem” (Derrida, 2008, p.104). Esta frase é altamente significativa, pois
anuncia a « questão própria » da gramatologia, aquilo que determina o seu campo. Se uma
reflexão do tipo gramatológico deve necessariamente colocar em questão o nome do homem, é
porque, até agora, todo esforço para conceber as condições de possibilidade de uma objetividade
em geral e de uma ciência capaz de satisfazer certas normas de validade, encontrou
necessariamente seu fundamento em uma certa antropologia.
Sabemos que a Gramatologia se esforça em mostrar que as noções estruturalistas de
signo e significante (entendido como imagem acústica) são profundamente ligadas a uma “época
histórico-metafísica” que se trata de ultrapassar. De fato, Derrida acredita que onde quer que seja
feito o uso da noção de signo, encontraremos sempre um elo fundamental com a metafísica.
Podemos dizer que para Derrida qualquer metafísica é uma metafísica do signo, sendo sempre
uma redução da linguagem à dimensão do signo, o que nos leva a afirmar que há uma
antropologia subjacente ao conceito de signo. Mas se é preciso responder brevemente à
complexa questão acerca do que Derrida entende por “signo”, talvez possamos simplesmente
antecipar: o signo é um modo de presença das coisas. Donde a tese: “A metafísica ocidental,
como limitação do sentido do ser no campo da presença, produz-se como a dominação de uma
forma linguística [ligada ao império do signo] ” (idem, p.28).
É conhecida a definição clássica que vê, no signo, aquilo que representa alguma coisa
para alguém. Tudo se passa como se Derrida nos lembrasse de que esta re-presentação é, na
verdade, a constituição do regime geral de visibilidade dos objetos, a constituição de uma forma
“de presença em geral” (Derrida, 1994, p.64) a partir das idealidades responsáveis pela produção
do sentido. Esta forma geral é, por outro lado, a maneira através da qual “alguém” pode aparecer
como fundamento para a determinação de “alguma coisa”. Isso nos explicaria a razão pela qual a
reflexão sobre o signo privilegia sempre a linguagem falada. Seja no estruturalismo, seja na
fenomenologia, o signo é fundamentalmente o signo falado. Pois falar das coisas é
necessariamente impor um domínio técnico sobre o objeto do qual eu falo. Falar das coisas
significa colocá-las diante de mim, pô-las em uma espécie de espaço virtual do qual eu sou o
fundamento. Neste sentido, a objetividade do objeto seria aquilo que, no objeto, submete-se a
meu discurso, como se o meu discurso (que não é apenas o discurso de uma consciência
empírica, mas o de um sujeito transcendental) fosse o meio de instituição da objetividade. Pois o
discurso tira as coisas do aqui e agora para colocá-las em um espaço ideal de pura presença, que
deixa de possuir a forma da mundaneidade. Neste espaço, eu descubro que “minhas palavras são
‘vivas’, porque parece que elas não me deixam: não caem fora de mim, para fora de minha
respiração, em um afastamento visível; não deixam de me pertencer, de estar à minha disposição,
‘sem acessório’” (idem, p.86) .
Neste sentido, o “nome do homem” que a gramatologia quer colocar em questão designa
este “alguém” capaz de fundar um modo de presença e de constituição da objetividade. Além dos
atributos que normalmente determinam a humanidade do homem (como autonomia,
autenticidade, unidade, etc.), o “homem” que fala essa linguagem dos signos, é, necessariamente,
o nome de um modo de ser, o nome de um regime que constitui a presença dos objetos e da auto-
afecção. Esse homem pode procurar incessantemente seu fim, ele pode incessantemente tentar
superar sua finitude ou fazer-se desaparecer, mas seus movimentos serão sempre dependentes
desta linguagem da qual ele é o suporte. Assim, para Derrida, nós não acordaríamos de um certo
“sono antropológico” que assombrou o pensamento francês dos anos sessenta, a não ser com a
condição de que se aprenda a criticar a linguagem que protege esse sono contra a aurora de um
para além do humanismo.
Podemos identificar aqui o que constitui a peculiaridade de Derrida. Por um lado, parece
que Derrida apenas retoma uma temática corriqueira ao pensamento francês dos anos sessenta.
Considerem-se, por exemplo, três livros publicados no decorrer dos anos de 1966-1967: As
palavras e as coisas de Michel Foucault, Escritos de Jacques Lacan e a Gramatologia. É
inegável que a problemática comum concernente às ciências do homem parece ter êxito, ainda
que essa problemática conduza a programas muito diferentes. Sendo assim Lacan dirá “não há
ciência do homem, porque o homem da ciência não existe, mas apenas seu sujeito” (Lacan, 1998,
p.873). Donde a ideia que “o objeto da psicanálise não é o homem; é aquilo que lhe falta”
(Lacan, 2003, p.218).
Em um artigo que não passou despercebido, Georges Canguilhem quanto a ele afirmava:
« É inevitável que, ao se propor como teoria geral da conduta, a psicologia tome para si alguma
ideia de homem. Deve-se então permitir à filosofia perguntar à psicologia de onde ela tira esta
ideia e se não seria, no fundo, de alguma filosofia »198. Tudo se passa como se Lacan tivesse
entendido que esta ideia de homem no coração da psicologia fosse o núcleo de uma
normatividade fundadora de uma “época histórico-metafísica”, para falar como Derrida. Época
nomeada por Lacan “era história do Eu”199, a qual a psicanálise desejaria superar.
De sua parte, Foucault se perguntava se não seria necessário “renunciar a pensar o
homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este desaparecimento do homem — e o
solo de possibilidade de todas as ciências do homem — na sua correlação com nossa
preocupação com a linguagem?” (Foucault, 2000, p. 535). Uma renúncia que para o Foucault
arqueólogo das ciências humanas já estaria em marcha na psicanálise e na etnologia. Pois a
psicanálise e a etnologia eram os modelos de uma episteme por vir que já se anunciava, uma
episteme liberada da figura normativa do homem, uma episteme das ciências do inconsciente
“não porque atingem no homem o que está por sob a sua consciência, mas porque se dirigem ao
que, fora do homem, permite que se saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua
consciência” (idem, p. 524-525). O inconsciente proveria assim o sistema estrutural das regras,
normas e leis que determinam a “constituição originária da objetividade”.
Ora, para Derrida, falta ao Lacan dos Escritos e ao Foucault das Palavras e as coisas uma
compreensão mais clara do regime de linguagem pressuposto pelo inconsciente freudiano. Pode-
se dizer que Derrida aceita a ideia lacaniana segundo a qual o inconsciente é estruturado como
linguagem. Mas ele quer mostrar de que maneira, em Freud, esta linguagem que estrutura o
inconsciente não se organiza segundo o modelo estruturalista, isto é, segundo o primado do
significante, do discurso e da voz. Ao contrário, Freud nos obrigaria a desenvolver um conceito
de linguagem próximo do que Derrida tenta pensar na Gramatologia: um conceito de linguagem
fundado na noção de “escritura psíquica”. Escritura presente nos sonhos e na memória, capaz de
“tornar enigmático o que se julga conhecer pelo nome de escritura” (Derrida, 2009, p.293);
escritura capaz de sustentar o fundamento crítico do regime de presença e de auto-afecção
arraigado em nossa época histórico-metafísica, fundamento crítico disto que nos aparece como
procedimento de “constituição originária da objetividade”.
Contudo, a fim de melhor compreender a aposta de Derrida, é antes necessário retornar às
intenções daqueles que, numerosos nos anos 60, viam no nome do homem o resultado mais
visível da metafísica oculta no coração das ciências humanas. Isso permitirá que a peculiaridade
de Derrida seja melhor compreendida.

198
Canguilhem, Georges; Etudes d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la vie, Paris:
Vrin, 2002
199
Lacan, 1966, p. 283
Franceses, ainda um esforço se quiseres sair do psicologismo

Duas problemáticas mesclam-se intimamente no interior do debate francês da época: a do


transcendental e a do inconsciente. O pensamento francês dos anos sessenta resulta, na verdade,
de uma convergência de programas que têm em comum a vontade de liberar a reflexão
transcendental dos limites de uma filosofia da consciência através do questionamento sobre o
nome do homem. Isso exigiria, por um lado, a denúncia do psicologismo e do antropologismo
presentes nos projetos classicamente transcendentais ainda dependentes do âmbito das filosofias
da consciência. A reflexão transcendental teria sido contaminada por uma “confusão entre o
empírico e o transcendental” onde “a análise pré-crítica do que é o homem em sua essência
converte-se na analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem” (Foucault,
2000, p. 472).
A crítica dessa confusão pode surgir, em Derrida, como uma necessidade de
apagamento. Assim, ele escreve: “ é preciso talvez pensar que o que descrevemos aqui como
trabalho da escritura elimina a diferença transcendental entre origem do mundo e estar-no-
mundo. Elimina-a produzindo-a” (Derrida, 2009, p.312). Compreendemos que o trabalho da
escritura apaga a diferença transcendental na medida em que expõe a confusão genética entre o
ôntico e o ontológico. A escritura demonstra os pressupostos ônticos que determinam a forma da
ontologia.
Por outro lado, o esgotamento das filosofias da consciência conduz a uma reflexão
sistemática acerca do inconsciente. Esse esgotamento dar-se-ia, na verdade, devido à sua
incapacidade de levar em conta o caráter fundador de uma dimensão propriamente inconsciente
capaz de determinar a forma do pensamento ( há toda uma discussão à propósito do que devemos
compreender aqui por “determinar”).
Este contexto explica por que é encontrada, na antessala do projeto gramatológico, uma
renovação da interrogação transcendental através do recurso, dentre outros, a uma reconstrução
filosófica do conceito freudiano de inconsciente. Alguns leitores de Derrida talvez se
surpreendam com esta afirmação. Eles se recordarão da intenção de Derrida de “esgotar
seriamente a problemática ontológica e transcendental, atravessar paciente e rigorosamente a
questão do sentido do ser, do ser do ente e da origem transcendental do mundo” (Derrida, 2008,
p.61). Mas não se pode esquecer que esse esgotamento foi realizado em vista da abertura para o
que “comanda toda objetividade do objeto e toda relação de saber” (idem, p. 69), isto é, para a
“formação da forma” (idem, p. 77). Ocorre à Derrida falar da meditação da escritura como uma “
metarracionalidade” ou “metacientificidade” (idem, p. 109). Sendo assim, tudo se passa como se
o esgotamento de um determinado regime de questionamento transcendental pudesse e devesse
abrir a via em direção a uma região capaz de indicar, ao mesmo tempo, um fundamento para a
crítica da razão e de regimes de saber, e de fornecer um método de constituição dos objetos da
experiência que deixam de depender das estruturas formais de síntese, unidade e identidade,
inicialmente acessíveis através da auto-afecção da consciência de si. Região onde podemos
encontrar “um campo transcendental autônomo do qual todo sujeito atual pode abster-se”
( Derrida, 1999, p.84). Região em que podemos dizer:

“Transcendental seria a Diferença (...) Transcendental seria a certeza


pura de um Pensamento que, não podendo se colocar em direção a um
Telos que se anuncia já avançando sobre a Origem que indefinidamente
se reserva, não aprendeu jamais que ele seria sempre porvir ” (idem,
p.171)
Estamos, certamente, bastante longe da clássica definição do transcendental como o
conjunto de determinações formais das condições de possibilidade de toda objetividade possível,
isto é, das condições que permitem estabelecer o regime de validade de toda representação do
objeto por uma consciência ideal. Se o transcendental aparece como a “Diferença”, se ele
aparece como um campo do qual todo sujeito atual pode abster-se, é porque ele não mais permite
a categorização e a constituição dos objetos da experiência a partir das estruturas formais
presentes na auto-afecção da consciência de si. A auto-afecção da consciência de si não mais
provê o princípio que permite a ligação (Verbindung) do diverso da intuição sensível nas
representações do objeto. Este transcendental que podemos derivar do projeto da gramatologia
poderia apenas abrir um regime de disseminação sem retorno ou, se quisermos nos servir de um
termo de Derrida, um regime “de inquietude transcendental” (Derrida, 2003, p. 13) que fragiliza
a identidade dos sujeitos e dos objetos.
Dessa forma, Derrida pode defender que a vida psíquica é instaurada pela constituição de
uma cena além de qualquer divisão entre sujeito ( pois “o conceito de sujeito (consciente ou
inconsciente) remete necessariamente para o de substância – e portanto de presença” (Derrida,
2009, p. 336)) e objeto, entre proximidade e distância, entre significado e significante. Uma cena
“que não se deixa ler a partir de nenhum código” (idem, p. 307) pois ela é a manifestação
absoluta da irredutibilidade de uma diferença que não mais poderá ser controlada pelos métodos
de codificação.

Os fins do homem

Voltemos então nossos olhos a Os fins do homem. Mas nos voltemos lembrando desta afirmação
de Derrida: “Tenho muitas vezes o sentimento de que a problemática heideggeriana é a defesa a
mais ‘profunda’ e mais ‘potente’ do que tento colocar em questão sob o título de pensamento da
presença”200.
O texto de Derrida começa através da constatação de que o humanismo tornara-se, logo
após o pós-guerra, um eixo dominante do pensamento francês. Humanismo este que, sob a figura
principal de Sartre, insistia que a realidade humana fornecia uma certa unidade àquilo que seria o
fundamento do pensar. No entanto: “a história do conceito de homem nunca é interrogada. Tudo
se passa como se o signo ’homem’ não tivesse qualquer origem, qualquer limite histórico,
cultural, linguístico. Nem mesmo qualquer limite metafísico201.
Derrida insiste que esta vaga humanista se apoiava na leitura antropológica, e
equivocada, de três autores: Heidegger, Hegel e Husserl. No entanto, a desconstrução da
metafísica proposta por Heidegger visava, de forma explícita, o humanismo:

Todo humanismo se funda sobre uma metafísica ou torna-se ele próprio o fundamento
dela. Toda determinação da essência do homem que já pressupõe, quer ela o saiba ou não,
a interpretação do ente sem colocar a questão relativa à verdade do Ser é metafísica. É
por isso que, se se considera a maneira como é determinada a essência do homem, o
próprio de toda a metafísica revela-se no fato de ela ser ‘humanista’. De igual modo, todo
o humanismo permanece metafísico202.

Esta é uma forma de afirmar que não pode haver metafísica sem uma antropologia de
base, que a metafísica é na verdade a realização de uma forma de vida cujas coordenadas
encontram-se marcadas no interior de uma antropologia. Neste sentido, é evidente que Derrida
assume explicitamente o postulado de Heidegger. Seu projeto de desconstrução irá seguir as

200
DERRIDA, Jacques; Positions, p. 75
201
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 155
202
HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo, p. 47
coordenadas deste modelo de crítica da metafísica consolidadas por Heidegger. Mas Derrida
insistirá na tarefa de pensar o fim do homem para além da maneira hegeliana de superar a
finitude do homem em uma dialética do reconhecimento com sua “teleologia na primeira pessoa
do plural”203.
Isto implica criticar o próprio Heidegger por ele ter sido pretensamente incapaz de
desvincular o pensamento do próprio do homem da questão da verdade do ser. Ou seja, trata-se
de afirmar que uma certa antropologia insidiosa de fato permanece em Heidegger e que a
desconstrução deve ser capaz de nos levar para fora dela, como condição necessária para a
efetivação de um pensamento da diferença que não se reduza à diferença ontológica. Derrida
afirmará que o pensamento de Heidegger será guiado pelos motivos do ser como presença e da
proximidade do ser à essência do homem. Ou seja, o sono antropológico também embalaria a
filosofia do Dasein. Não é apenas o ente que é constituído à imagem do homem. Também o ser
em sua proximidade, em seu acesso ainda segue as coordenadas de uma antropologia que não
tem coragem de dizer seu nome.
O que é ameaçado na extensão da metafísica e da técnica, diz Heidegger, é a essência do
homem. Ou seja, para além do humanismo e de sua associação à metafísica, é a essência do
homem que acaba sendo marcada pelo selo do esquecimento. Trata-se de reinstaurar o homem
em sua essência. Por isto, Heidegger poderá afirmar:

Assim a humanitas permanece no coração deste pensamento, porque o humanismo


consiste nisto: refletir e velar (Sinnen und Sorgen) para que o homem seja humano e não
inumano (unmenschlich), isto é, fora da sua essência204.

Esta é uma maneira de dizer, ao menos segundo Derrida, que se pensamos contra o
humanismo, é porque o humanismo não situa suficientemente alto a humanitas do homem. Pois a
autenticidade do homem é o relacionar-se com o sentido do ser. Por isto, Derrida pode jogar com
o duplo sentido da palavra “fim” e dizer que o fim do homem era, na verdade, sua finalidade, sua
real destinação enquanto homem.
Esta é uma maneira de insistir na solidariedade entre a crítica heideggeriana e aquilo que
ela procura criticar. Sabemos que, contra a temporalidade decaída que marca a metafísica,
Heidegger acredita poder mobilizar a temporalidade originária: “Ora, oposição do original e do
derivado não é ainda metafísica? A reclamação da arquia em geral, quaisquer que sejam as
precauções de que rodeemos este conceito, não é a operação ‘essencial’ da metafísica?” 205. Pois
esta é a maneira que Derrida encontra de afirmar que a delimitação heideggeriana consiste a
elevar-se do presente a um pensamento mais original do ser como presença.

203
DERRIDA, Jacques; idem, p. 161
204
HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo
205
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 101
Curso Derrida
Aula 13

Na aula de hoje, gostaria de discutir o texto “Força de Lei : o fundamento místico da autoridade”.
Editado em 1994, o texto representa certamente a versão mais bem acabada das possibilidades
abertas pelo pensamento derridiano no campo do político. A sua maneira, ele dá início a uma
longa digressão de Derrida referente a temas ligados à ética e á política, como a hospitalidade, a
memória, o perdão, a soberania, entre outros. A estratégia derridiana para abordar tais temas só
pode ser bem compreendida se levarmos em conta a maneira que eles nascem das discussões
presentes em “Força de Lei”. Por isto, podemos dizer que este é um texto maior da experiência
intelectual de Jacques Derrida.
“Força de Lei” começa com uma questão maior: “Será que a desconstrução assegura,
permite, autoriza a possibilidade da justiça? Será que ela torna possível a justiça ou um discurso
consequente sobre a justiça e sobre as possibilidades da justiça?” 206. Para uma prática filosófica
acusada várias vezes de abrir as portas para o mais completo relativismo, perguntar-se sobre as
possibilidades da justiça equivale a discutir a solidez daquilo que deveria servir de fundamento
para a ação racional no campo da ética, da política e do direito. O que a desconstrução teria a
dizer a respeito disto que não pode ser desconstruído, a saber, a urgência da justiça?
Logo de início, Derrida coloca em circulação uma distinção que não poderia nos deixar
indiferentes, distinção que, como gostaria de mostrar, é uma das bases fundamentais para
pensarmos, de maneira adequada, o que afinal se insinua no interior deste conceito nebuloso mas
que não conseguimos abandonar, a saber, democracia. A distinção de que falo é entre direito e
justiça. Ela está claramente enunciada na afirmação: “Quero logo reservar a possibilidade de uma
justiça, ou de uma lei, que não apenas exceda ou contradiga o direito, mas que talvez não tenha
relação com o direito, ou mantenha com ele uma relação tão estranha que pode tanto exigir o
direito quanto excluí-lo”207.
Vale a pena, antes de continuarmos o comentário do texto, meditarmos demoradamente a
respeito desta possibilidade, de antemão reservada por Derrida. Possibilidade de uma justiça que
se coloca em um ponto de excesso em relação ao direito, um ponto de excesso tal que parece
instaurar a justiça em uma indiferença soberana para com o direito. Pois coloquemos a questão
em seus termos corretos: pode a justiça estar para além do Estado de direito? Colocar uma
questão desta natureza (e é ela afinal que Derrida coloca) nos leva a operações aparentemente
arriscadas como perguntar-se se a democracia pode não ter relações diretas e imediatas com o
ordenamento jurídico legal do Estado de direito. No fundo, ao colocar esta questão, Derrida abre
espaço para pensarmos uma frase maior de Claude Lefort, a saber: “Mas o Estado democrático
excede os limites tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito. Experimenta direitos que
ainda não lhe estão incorporados, é o teatro de uma contestação cujo objeto não se reduz à
conservação de um pacto tacitamente estabelecido mas que se forma a partir de focos que o
poder não pode dominar inteiramente”208.
Notem que quem diz estas frases não é um adepto da esquerda revolucionária que estaria
à procura do melhor momento para solapar as bases do Estado de direito. Estas são frases de
Claude Lefort em A invenção democrática : um livro largamente dedicado, ao contrario, à crítica
das sociedades burocráticas no antigo Leste europeu. Nessas frases, estão sintetizadas algumas
reflexões maiores sobre a relação intrincada entre justiça e direito. Relação que ultimamente
tendemos a ignorar, como se tudo aquilo que acontecesse à margem do Estado de direito fosse
necessariamente ilegal e profundamente animado de premissas anti-democráticas. Pois talvez

206
DERRIDA, Jacques; Força de Lei, São Paulo, Martins Fontes, p. 4
207
Idem, p. 8
208
LEFORT, Claude; A invenção democrática, São paulo, Braziliense,
tenhamos perdido a capacidade de pensar qual o sentido desta democracia que “excede os limites
tradicionalmente atribuídos ao Estado de direito”. Um ponto de excesso que se mostrou, ao
longo da histórica contemporânea, como motor fundamental das dinâmicas do político.
Talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como ponto de excesso
em relação ao Estado de direito porque acreditamos que tudo o que se coloca fora do Estado de
direito só poderia ter parte com o mais claro totalitarismo. Quem está fora do Estado de direito
parece se colocar em uma posição soberana, posição destes que poderiam não se submeter à lei,
modificar continuamente a lei ao bel prazer dos casuísmos e circunstâncias. Vemos apenas dois
candidatos a ocupar esta posição soberana : o criminoso que viola abertamente a lei que garante a
segurança do Estado de direito ou (e aí as coisas começam a se complicar) o legislador que
afirma que, em situações de exceção, como em caso de guerra (mas sabemos hoje como é cada
vez mais complicado distinguir estado de guerra e estado de paz), de crise (mas sabemos hoje
como há sempre uma crise grave à espreita) certos dispositivos legais podem ser suspensos.
No entanto, é possível que exista um terceiro caso de excesso em relação ao Estado de
direito, um excesso onde encontramos a justiça. Mas o que Derrida quer exatamente dizer com
esta exceção da justiça? O que ele quer dizer ao reconhecer que à justiça cabe sempre uma força
que é sua própria realização, uma violência claramente presente na palavra alemã Gewalt que
significa, ao mesmo tempo, “a violência e o poder legìtimo, a autoridade justificada”? Em dado
momento de seu texto, Derrida reconhece que, em numerosos textos ditos desconstrucionistas, o
recurso à palavra “força” é frequente e decisivo. Vimos em alguns momentos Derrida insistir,
por exemplo, que a força produz o sentido. No entanto, Derrida precisa dizer se sentir “pouco à
vontade com a palavra “força”, mesmo que muitas vezes a julgasse indispensável” 209. Mas de
onde vem este desconforto com uma palavra que muitas vezes aparece como indispensável?
Coloquemos uma hipótese e digamos que o desconforto vem da necessidade de se confrontar
com uma força que se quer instauradora. Mas quem fala em nome desta instauração? Quem pode
falar em nome da justiça quando ela excede o Estado de direito?
Notemos que a questão de Derrida é mais complexa do que uma certa situação padrão na
qual a justiça se dissocia do direito. Tratam-se de situações onde nos deparamos com um “estado
ilegal”. Mesmo a tradição política liberal admite, ao menos desde John Locke, o direito que todo
cidadão tem de se contrapor ao tirano, de lutar de todas as formas contra aquele que usurpa o
poder e impõe um estado de terror, de censura, de suspensão das garantias de integridade social.
Nestas situações, a justiça reconhece o direito à violência, já que toda ação contra um governo
ilegal é uma ação legal.
Vale a pena insistir nesta questão. Podemos dizer que um dos princípios maiores que
constitui a tradição de modernização política da qual fazemos parte afirma que o direito
fundamental de todo cidadão é o direito à rebelião. Não creio ser necessário aqui fazer a gênese
da consciência da indissociabilidade entre defesa do Estado livre e direito à violência contra um
estado ilegal. No que diz respeito ao ocidente, é bem provável que sua consciência nasça da
reforma protestante com a noção de que os valores maiores presentes na vida social podem ser
objeto de problematização e crítica. Ela esta presente, por sua vez, no artigo 27 da Declaração
dos direitos do Homem e do Cidadão de 1793, documento fundador da modernidade política.
Artigo que afirma : “que todo indivíduo que usurpe a soberania seja assassinado imediatamente
pelos homens livres”. Ainda hoje, ela aparece no artigo 20, parágrafo 4 da Constituição alemã
como “direito à resistência” (Recht zum Widerstreit). Encontramos um direito similar enunciado
em várias constituições de estados norte-americanos (New Hampshire, Kentucky, Tennesse,
Carolina do Norte, entre outros). De maneira sintomática, e gostaria de aproveitar este momento
para dizer algo que me é bastante caro, isto demonstra como aqueles que procuram transformar
os que participaram da luta armada contra o regime militar brasileiro em “terroristas” colocam-se
aquém de um conceito substancial de democracia.
209
Idem, p. 11
No entanto, não devemos compreender a idéia fundamental deste direito à resistência
simplesmente como o núcleo de defesa contra a dissolução dos conjuntos liberais de valores
(direito à propriedade, afirmação do individualismo e da integridade individual que estaria em
cheque com o advento da tirania do estado ilegal). Dificilmente poderíamos compreender, por
exemplo, o artigo 27 da Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão como defesa dos
conjuntos liberais de valores. Na verdade, em seu interior encontramos a idéia fundamental de
que o bloqueio da soberania popular (e temos todo o direito de discutir o que devemos
compreender por “soberania popular”) deve ser respondido pela demonstração soberana da força.
Que a democracia deva, através deste problema, confrontar-se com aquilo que Giorgio Agamben
chama de “o problema do significado jurídico de uma esfera de ação em si extrajurídica”, ou
ainda, com a “existência de uma esfera da ação humana que escapa totalmente ao direito” 210, que
ela deva se confrontar com uma esfera extrajurídica, mas nem por isto ilegal, eis algo claro. Pois
devemos insistir aqui (e Derrida não cansa de pensar este problema) que, mesmo em situações
onde não estamos diante de um “estado ilegal” o problema da dissociação entre justiça e direito
se coloca. Pois o direito é essencialmente “descontrutível”, pois constituído sobre camadas
textuais interpretáveis e transformáveis. No entanto: “a justiça nela mesma, se algo como tal
existe, fora ou para além do direito, não é desconstrutível” 211. Ou ainda: “O direito não é a
justiça. O direito é o elemento do cálculo, é justo que haja um direito, mas a justiça é
incalculável”212.
Muitos gostam de dizer que, no interior da democracia, toda forma de violação contra o
Estado de direito é inaceitável. Mas e se, longe ser de um aparato monolítico, o direito em
sociedades democráticas for uma construção heteróclita, onde leis de várias matizes convivem
formando um conjunto profundamente instável e inseguro? Por exemplo, nossa constituição de
1988 não teve força para mudar vários dispositivos legais criados pela constituição totalitária de
1967. Ainda somos julgados por tais dispositivos. Neste sentido, não seriam certas “violações”
do Estado de direito condições para que exigências mais amplas de justiça se façam sentir? Foi
pensando em situações desta natureza que Derrida afirmava ser o direito objeto possível de uma
desconstrução que visa expor as superestruturas que: “ocultam e refletem, ao mesmo tempo, os
interesse econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade”. Quem pode dizer em sã
consciência que tais forças não agiram e agem para criar, reformar e suspender o direito? Quem
pode dizer em sã consciência que o embate social de forças na determinação do direito termina
necessariamente da maneira mais justa?
Por estas razões, a democracia admite o caráter “desconstrutivel” do direito, e ela o
admite através do reconhecimento daquilo que poderíamos chamar de legalidade da “violação
política”. Pacifistas que sentam na frente de bases militares a fim de impedir que armamentos
sejam deslocados (afrontando assim a liberdade de circulação), ecologistas que seguem navios
cheios de lixo radioativo a fim de impedir que ele seja despejado no mar, trabalhadores que
fazem piquetes em frente a fábricas para criar situações que lhes permitam negociar com mais
força exigências de melhoria de condições de trabalho, cidadãos que protegem imigrantes sem-
papéis, ocupações de prédios públicos feitas em nome de novas formas de atuação estatal,
Antígona que enterra seu irmão : em todos estes casos o Estado de direito é quebrado em nome
de um embate em torno da justiça. No entanto, é graças a ações como estas que direitos são
ampliados, que a noção de liberdade ganha novas matizes. Sem elas, certamente nossa situação
de exclusão social seria significativamente pior. Nestes momentos, encontramos o ponto de
excesso da democracia em relação ao direito. Uma sociedade que tem medo destes momentos,
que não é mais capaz de compreendê-los, é uma sociedade que procura reduzir a política a um
mero acordo referente às leis que atualmente temos e aos modos que atualmente temos para

210
AGAMBEN, Giorgio; Estado de exceção,
211
DERRIDA, ibidem, p. 27
212
Idem, p. 30
mudá-las (como se a forma atual da estrutura política fosse a melhor possível – levando em conta
o que é o sistema político brasileiro, pode-se claramente compreender o caráter absurdo da
colocação). No fundo, esta é uma sociedade que tem medo da política e que gostaria de substituir
a política pela polícia. Pois a violação política nada tem a ver com a tentativa de destruição física
ou simbólica do outro, do opositor, como vemos na violência estatal contra setores descontentes
da população ou em golpes de estado. Antes, ela é a força da urgência de exigências de justiça.

Força e justiça

Mas se retirarmos o quadro normativo do Estado de direito, se estivermos dispostos a


seguir Derrida e desconstruir o Estado de direito, então estaremos diante de uma situação
aparentemente explosiva todas as vezes que tentarmos responder a pergunta: “Que diferença
existe entre, por um lado, a força que pode ser justa, em todo o caso julgada legítima (não apenas
o instrumento a serviço do direito, mas a própria realização, a essência do direito), e, por outro
lado, a violência que julgamos injusta?”213. Pois é fato que, como dizia Pascal nesta afirmação
decisiva para compreendermos Força de Lei, não há justiça sem força :

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força
será contestada, porque há sempre maus; a força sem a justiça será acusada. É preciso,
pois, reunir a justiça e a força; e, dessa forma, fazer com que o que é justo seja forte, e o
que é forte seja justo”. No entanto: ”A justiça é sujeita a disputas; a força é muito
reconhecível e sem disputa. Assim, não se pôde dar a força à justiça, porque a força
contradisse a justiça, dizendo que esta era injusta, e que ela é que era justa; e assim, não
podendo fazer com o que é justo fosse forte, fez-se com o que é forte fosse justo”214.

O raciocínio de Pascal parte, na verdade, da constatação da impotência da justiça, da


dificuldade em reconhecê-la e em identificar quem, de fato, fala em nome dela. Daí esta
exigência moral, que não descreve uma situação de fato: “’É preciso reunir força e justiça”.
Temos que encontrar uma forma de reuni-las. No entanto, a força, predicado necessário da
justiça, embora seja reconhecível e sem disputa (ela se faz imediatamente sentir), tem esta
estranha capacidade de ser um predicado que se faz valer pelo seu sujeito, de se impor como
justiça, anulando assim aquilo que o termo “justiça” nos obrigaria a pensar.
Derrida lembra então que duas idéias parecem presentes nesta maneira pascaliana de
pensar as relações entre força e justiça. A primeira, mais clássica , nos levaria a uma: “crítica da
ideologia jurídica, uma dessedimentação das superestruturas do direito que ocultam e refletem, ao mesmo
tempo, os interesses econômicos e políticos das forças dominantes da sociedade” 215. Esta vertente nos
remete à crítica ao convencionalismo jurídico e sua sedimentação de interesses de grupos sociais
hegemônicos. Mas há outra idéia, esta sim mais inesperada. Ela consiste em dizer que a justiça,
em seu ato de surgimento, em sua origem, aparece como pura força. Vejamos esta afirmação
central:

A operação de fundar, inaugurar, justificar o direito, fazer a lei, consistiria num golpe de
força, numa violência performativa e portanto interpretativa que, nela mesma, não é nem
justa nem injusta, e que nenhuma justiça, nenhum direito prévio e anteriormente
fundador, nenhuma fundação preexistente, por definição, poderia nem garantir nem
contradizer ou invalidar216.

213
Idem, p. 9
214
PASCAL, Pensamentos, par. 298
215
DERRIDA, ibidem, p. 21
216
Idem, p. 24
Há uma performatividade da linguagem instituinte que não pode ser assegurada por
metalinguagem alguma. Derrida chega mesmo a falar que o discurso encontra ali o seu limite,
um limite que ele encontra em seu próprio poder performativo. Novamente, voltamos ao
problema da impossibilidade de fundar a partir do recurso à origem asseguradora. Problema que
encontramos desde os textos de Derrida sobre a fenomenologia de Husserl. Novamente
encontramos uma gênese que, longe de assegurar aquilo que ela gera, apenas o fragiliza e o
desconstrói. Essa impossibilidade de fundar, no caso da reflexão sobre o direito e a justiça, ganha
o nome de “fundamento místico da autoridade”. Pois se a origem da autoridade, o fundamento,
não podem por definição apoiar-se senão em si mesmos, eles mesmos seriam uma “violência
sem fundamento”.
Pode parecer com isto que Derrida faria alguma forma de apologia da violência
instauradora, um pouco como uma espécie de teoria do fato consumado que afirma algo como
dizia o chanceler Otto Von Bismarck: “Leis são como salsichas. Melhor não ver como são
feitas”. No entanto, notemos como esta violência sem fundamento não se volta contra aqueles
que se perguntam de onde vem as salsichas, ou seja, contra aqueles que questionam o direito. Ao
contrário, esta violência própria ao fundamento volta-se contra o fundado, contra o próprio
direito. Pois ela é o que nos lembra que : “não se pode falar diretamente da justiça, tematizar ou
objetivar a justiça, dizer “isto é justo” e, ainda menos, “eu sou justo”, sem trair imediatamente a
justiça, senão o direito”217. Ou ainda: “sei que sou justo? Eu gostaria de mostrar que tal certeza é
essencialmente impossível, fora da figura da boa consciência e da mistificação” 218. Podemos
lembrar, no entanto, que é exatamente isto que faz o direito. O direito procura falar diretamente
da justiça, objetivá-la, enunciar a lei a fim de mostrar o que é justo. Mas (e devemos meditar com
calma esta afirmação central): “A desconstrução é a justiça” 219. Como se o verdadeiro ato de
justiça só pudesse se manifestar como desconstrução do direito, como afirmação do caráter
essencialmente desconstrutivel do direito. Por isto, só podemos concordar com Simon Critchley
quando este afirma:

“É importante notar que esta noção de indesconstrutibilidade – a justiça, o a priori


messiânico – não funciona como seria o caso na tradição kantiana que inspira Habermas,
ou seja, como base, no interior da ética, para um procedimento de decisão, um
mecanismo de imperativo categórico a luz do qual é possível propor e testar máximas
específicas”220.

Este é um ponto fundamental. A justiça não funda um procedimento de decisão, como no


caso do imperativo categórico kantiano, com sua exigência de universalidade da forma geral da
ação. Ela não nos assegura no interior da ação, permitindo que eu sustente a crença de que, por
exemplo, a ação justa produz necessariamente conseqüências boas. Antes, a dimensão da justiça
inaugura uma certa insegurança ontológica no interior da ação. “Em política, não há garantias. A
política deve estar aberta à dimensão do “talvez”, que aparece como um leitmotiv nos dois
primeiros terços de Políticas da amizade. Para Derrida, nada seria mais irresponsável e totalitário
do que tentar excluir a priori o monstruoso e o terrível”221, excluir que a boa ação possa se
inverter em catástrofe. Por esta razão, ao nos confrontarmos com a estrutura aporética de
afirmações como: a justiça é a experiência daquilo que não podemos experimentar, a justiça é
uma experiência do impossível, devemos compreendê-las com maneiras de dizer que as

217
Idem, p. 17
218
Idem, p. 32
219
Idem, p. 27
220
CRITCHLEY, Simon; Déconstructions et communication,, p. 64
221
Idem, p. 64
experiências da justiça são: “momentos em que a decisão entre o justo e o injusto nunca é
garantida por uma regra”222.

Decisão como responsabilidade infinita

Aqui, entramos em um ponto central do texto. Pois trata-se, no fundo, de se perguntar se


as condições para a decisão justa ou, se quisermos, para a deliberação racional, podem ser postas
a partir da figura da regra, da norma, do princípio. Pode a decisão encontrar seu fundamento em
uma regra, em uma norma, em um princípio? Mas o que significa exatamente esta pergunta? Ao
menos para Derrida, ela é indissociável de um conceito “comunicacional” de racionalidade. Uma
decisão legítima e racional é aquela que pode garantir sua justificação no interior de uma
argumentação que respeite um conjunto de regras não-coercitivas. Uma decisão legítima pode
ser justificada em uma conversação.
No entanto, Derrida é extremamente sensível à idéia de que a primeira violência bruta
consiste em dizer que posso ouvir o que você tem a dizer, mas desde que seja em minha própria
língua, desde que seja respeitando as regras da minha gramática. Por isto, Derrida precisa dizer:
“é injusto julgar alguém que não compreende seus direitos nem a língua em que a lei está escrita
(...) a violência de uma injustiça começa quando todos os parceiros de uma comunidade não
compartilham totalmente o mesmo idioma”223. Mas não compartilhar o mesmo idioma não
significa falar uma língua estranha. Significa falar uma língua na qual valores que julgo
inquestionáveis, indesconstrutíveis em seu sentido (como liberdade, democracia, segurança,
identidade, entre tantos outros que circulam em nossa vida política), não podem mais ser objeto
por uma batalha em relação à seu sentido. Esta injustiça supõe que o outro seja capaz de uma
língua em geral, a saber, esta que eu falo.
Digamos que esta estratégia de eliminar a língua do outro é a essência maior de todo e
qualquer totalitarismo. Pois o totalitarismo não é apenas o aparato político fundado na operação
de uma violência estatal que visa a eliminação de todo e qualquer setor da população que
questiona a legalidade do poder, violência que visa criminalizar sistematicamente todo discurso
de questionamento. Na verdade, o totalitarismo é fundado nesta violência muito mais brutal do
que a eliminação física: a violência da eliminação simbólica. Neste sentido, ele é a violência da
imposição do desaparecimento do nome. No cerne de todo totalitarismo, haverá sempre a
operação sistemática de retirar o nome daquele que a mim se opõe, de transformá-lo em um
inominável cuja voz, cuja demanda encarnada em sua voz não será mais objeto de referencia
alguma. Este inominável pode, inclusive, receber, não um nome, mas uma designação que visa
isolá-lo: “subversivo”, “terrorista”. A partir da designação aceita, do designado nada falaremos,
porque simplesmente não é possível falar com ele, porque ele, no fundo, nada fala, há muito
“fanatismo” nestes simulacros de sons e argumentos que ele chama de “fala”, há muito
“ressentimento” em suas intenções, há muito “niilismo” em suas ações. Ou seja, há muito
“nada”. Claro está que este inominável nada tem a ver com as estratégias (tão presentes na
política do século XX) de recusar o nome atual, o regime atual de nomeação, isto a fim de abrir
espaço a um nome por vir224. Antes, ele é redução daquele que é colocado na exterioridade à
condição de um inominável sem recuperação ou retorno.
Mas colocar em cheque a universalidade de nosso aparelho conceitual, teórico ou
normativo em torno da justiça não seria um convite ao relativismo, à neutralização do interesse
pela justiça ou a um decisionismo primário ? Derrida coloca esta questão para insistir que, longe
de ser um apelo ao relativismo, a desconstrução do direito é uma abertura à uma renovação do
conceito de responsabilidade moral.

222
DERRIDA, ibidem, p. 30
223
Idem, p. 33
224
Para esta discussão, ver BADIOU, Alain; Ethique, Paris:
Vemos, até agora, como calcular sem regras é a verdadeira situação daquele que se vê
diante da iminência de produzir uma decisão. Por isto, a falibilidade da decisão é traço essencial:
o ato moral é aquele que deve ser assumido enquanto falível, como se racional fosse saber agir
sem garantias de orientação na conduta. Mas este reconhecimento da opacidade de todo ato que
se queira moral não implica em aporia nem em niilismo. Trata-se, na verdade, de redimensionar
a noção de responsabilidade moral.
Retirada a garantia ontológica de alguma forma de identidade imediata no interior da
ação moral, de presença imanente no interior da intencionalidade moral, ou, se quisermos,
retirada a garantia de que a ação moral não se inverterá em catástrofe, em amoralidade, minha
responsabilidade em relação ao ato é uma responsabilidade infinita. Trata-se, na verdade, de um
“aumento hiperbólico na exigência de justiça”225. Mesmo que todas as conseqüências da ação não
dependam do meu controle, o engajamento em relação á ação exige que o cálculo seja
infinitamente refeito a partir do desdobrar de suas conseqüências, a partir da maneira com que o
Outro interpretará e reagirá à minha ação. Pois: “quem pretenderá ser justo poupando-se da
angústia?”226. Desta forma, nos confrontamos com uma ação que, por saber-se falível e
patológica, deve-se reorientar continuamente a partir do seu desdobramento em contextos que
nunca serão completamente legíveis.
No entanto, há um problema suplementar nesta estratégia. Pois não é claro quais são os
limites de um contexto. À verdadeira ação não cabe apenas interpretar infinitamente os contextos
aos quais ela se refere. Ela precisa determinar e limitar seus contextos. Tarefa particularmente
complicada. Pois poderíamos lembrar desta afirmação de Merleau-Ponty em um texto maior
sobre Machiavel: “na ação histórica, a bondade é por vezes catastrófica e a crueldade menos
cruel do que o temperamento bonachão” 227. No entanto, se a crueldade atual pode revelar-se
amanhã como bondade, se não é possível dissociar moral e história, de qual perspectiva posso
avaliar as reais consequências da crueldade e da bondade em ações que se desenrolam na história
a não ser á partir da perspectiva totalizante de um observador onisciente da história? E o que
acontece quando concluímos, como era o caso de Derrida, que esta perspectiva não nos é
dada228?
Talvez seja o caso de insistir que há uma modificação qualitativa na dimensão moral
quando os sujeitos admitem a opacidade constitutiva da decisão e do ato moral. O sujeito que
reconhece tal opacidade (sem se deixar levar à posição hegeliana da bela alma) é capaz de pensar
contra si mesmo e reconhecer que o engajamento significa não exatamente ser fiel a um
princípio, por mais claro que tal princípio possa lhe parecer, mas ser fiel ao esforço infinito de
pensar e rever as conseqüências que se seguem do que, em um dado momento, é claro para nós.
Isto pode parecer pouco. Mas talvez seja muito mais do imaginamos.

Três aporias

225
DERRIDA, ibidem, p. 37
226
Idem, p. 39
227
MERLEAU-PONTY, Maurice; “Notas sobre Machiavel”, In: Signos, op. cit., p. 242
228
Conhecemos todos este trecho maior de A decisão, de Bertolt Brecht: “O indivíduo tem dois olhos/ O Partido tem
milhares de olhos/ O Partido vê sete países/ O indivíduo vê uma cidade/ O indivíduo tem a sua hora/ Mas o Partido
tem muitas horas/ O indivíduo pode ser aniquilado/ Mas o Partido não pode ser aniquilado”. Este trecho causava
especial aversão a Adorno por esquecer que há sim situações nas quais os dois olhos do indivíduo vêem mais do que
os mil olhos do partido. Na verdade, no momento histórico que é o nosso, poderíamos mesmo dizer que o século XX
cansou de nos mostrar isto. Pois, se Brecht tivesse realmente seguido a dialética, ele teria compreendido que o
indivíduo nunca é apenas o indivíduo. Ele é o ponto a partir do qual os mil olhos do partido podem se voltar contra
si mesmo. Nestes casos, o indivíduo pode desvelar o ponto cego no interior da fascinação pela força de justificação
integral de processos que se colocam na perspectiva onisciente da realização da história. O indivíduo sabe que a
violência da justificação é a maneira mais segura de tais processos não se realizarem. Por isto, ele é a função que
nos lembra que não devemos (no sentido radicalmente moral) recorrer à perspectiva de um observador onisciente da
história.
Por fim, nosso texto termina lembrando como tudo seria simples se essa distinção entre justiça e
direito fosse uma verdadeira distinção intransponível. No entanto, o direito pretende exercer-se
em nome da justiça e a justiça exige ser instalada em um direito. Tais pretensões e exigências
acabam por configurarem três aporias.
A primeira delas diz respeito à regra. Diz Derrida: “Para ser justa, a decisão de um juiz
deve não apenas seguir uma regra de direito ou uma lei geral, mas deve assumi-la, aprová-la,
confirmar seu valor, por um ato de interpretação reinstaurador, como se a lei não existisse
anteriormente, como se o juiz a inventasse ele mesmo em cada caso” 229. Como se houvesse um
paradoxo na noção mesma de aplicar uma regra.
No entanto, poderíamos contra-argumentar afirmando que problemas de aplicação podem
ser normalmente resolvidos a partir de procedimentos similares à noção jurídica de “criar
jurisprudência”, ou seja, decisões anteriores aparecem como campo de constituição de um núcleo
de experiências que tendem a direcionar decisões posteriores, criando assim um processo, no
sentido forte do termo. Esta tendência não implica ignorar toda possibilidade posterior de
redirecionar, através do “uso público da razão”, tal processo de determinação dos modos de
indexação de critérios, valores e fatos.
Contra este modo de tentar resolver a questão, devemos mostrar que o campo pressuposto
por decisões passadas não tem estruturalmente a força de retirar a indeterminação de decisões
futuras porque as indeterminações não foram resolvidas sequer nas decisões passadas. Para que
tais indeterminações estivessem ausentes seria necessário aceitar que decisões passadas, além de
terem sido produzidas em contexto de partilha intersubjetiva, isto no sentido de terem sido vistas
como modos bem sucedidos de aplicação de regras, construíram procedimentos e critérios não-
problemáticos de inferência e universalização, a não ser que estejamos dispostos a “naturalizar”
tais critérios, como se tivéssemos uma gramática natural dos modos de relação. Ou seja, para que
a noção de “criar jurisprudência” seja operativa, é necessário afirmar que um caso é análogo a
um outro caso, paradigmático. Ficamos assim dependentes de raciocínios analógicos. No
entanto, tais raciocínios são marcados por fragilidades e inseguranças epistêmicas profundas
pois, de um certa perspectiva, qualquer coisa pode tecer relações de analogia com qualquer outra
coisa. No fundo, tais situações apenas servem para nos lembrar que tomar uma decisão
reconhecidamente legítima é um processo ligado a um princípio de soberania, e não a um
princípio de adequação normativa.
Aqui, entramos no segundo paradoxo levantado por Derrida. Um paradoxo que nos leva
diretamente ao problema do conceito de soberania (que será objeto de nossa próxima aula):
“Nenhuma justiça se exerce, nenhuma justiça é feita, nenhuma justiça se torna efetiva, sem uma
decisão indiscutível”230. No entanto, uma decisão, em seu caráter instaurador dá-se sempre no
interior de um espaço indecidível e “a memória da indecidibilidade deve conservar um rastro
vivo que marque, para sempre, uma decisão como tal” 231. Como vimos, toda decisão e um salto
(como dizia Kierkegaard), uma aposta (como dizia Pascal). Este indecidível é como um fantasma
a assombrar todo ato e toda decisão, um fantasma que visa desconstruir esta crença de que
podemos ter uma presença ideal do objeto da ação moral garantindo assim nossa idéia de
responsabilidade, de consciência moral, de intencionalidade moral, entre outros. Isto significa:
decidir sem apelar à metafísica da presença.
Por fim, Derrida insiste que sua posição não pode ser confundida com a tentativa de
transformar a justiça em um horizonte regulador do tipo kantiano. Pois a justiça obriga a
pensarmos a dimensão da imediaticidade. Embora ela possa se dar como alteridade absoluta em
229
DERRIDA, ibidem, p. 44
230
DERRIDA, ibidiem, p. 46
231
Idem, p. 47
relação ao presente, embora ela tenha que se dar desta forma, abrindo com isto a pressão para
uma democracia por vir, ela exige presentificar-se criando sempre um descompasso no interior
do próprio direito. Veremos melhor este ponto na aula que vem.

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