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Porcos-espinhos na pandemia ou

REFLEXÕES NA PANDEMIA
A angústia do contágio1
Maria Claudia Coelho
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

E
m seu ensaio Diante da dor dos outros, Susan Sontag (2003) sugeriu que o excesso de
notícias sobre sofrimento poderia produzir, em vez de solidariedade, indiferença. Parto
aqui de uma sugestão análoga: o excesso de informações, em particular de natureza
especializada, pode gerar uma paralisia intelectual, algo como um “sequestro do pensamento”.
Era essa a sensação de que estava acometida quando, no início de abril, os organizadores
desta seção excepcional de Dilemas me procuraram, propondo escrever sobre a pandemia.
Começo, assim, agradecendo o convite, que tomei como incitação para sair do torpor intelectual,
tanto mais angustiante porque associado a um sentimento de dívida moral. Por dívida moral me
refiro à angústia provocada pela convicção de que as pistas intelectuais que vinham neste
momento, meio que aos borbotões, de maneira quase intuitiva, precisavam ganhar uma forma
que lhes permitisse um alcance mais amplo do que a conversa com o círculo restrito de amigos,
familiares e colegas sobre o sofrimento imposto pelas medidas de isolamento/distanciamento (por
mais relevante que essa atuação minimalista possa ser também).
Escolhi para foco destas reflexões o tema das práticas de desinfecção, que vêm
consumindo boa parte de nosso tempo, e isso sob três pontos de vista: o prático — as
incontáveis vezes em que lavamos ou desinfetamos nossos corpos, roupas, objetos, casas,
alimentos e mesmo os próprios instrumentos de desinfecção; o cognitivo — as inúmeras
dúvidas sobre a necessidade de lavar/desinfetar algo e sobre as maneiras mais eficazes de
fazê-lo; e o emocional — a angústia suscitada por essas dúvidas, pelos esquecimentos, pelos
contatos involuntários e mesmo inevitáveis.
A angústia — muitos já o disseram — é o medo sem nomeação. Medos particulares, por
terem fontes e contornos precisos, podem ser mais bem enfrentados; talvez não pragmaticamente
(como diante de um leão faminto), mas cognitiva e emocionalmente. Mas o medo provocado pelo
coronavírus parece refratário à nomeação porque, apesar de ter nome, sua origem é especulativa,
sua duração temporal é desconhecida, sua forma de transmissão é etérea (com o perdão do
trocadilho), suas fontes de contágio podem ser todas ou quaisquer matérias (animadas ou
inanimadas). Isso faz com que a busca de informação se transforme em uma panaceia universal,
que nos invade em nosso confinamento sob a forma de uma avalanche de notícias de jornal, vídeos
explicativos, gráficos epidemiológicos, indicadores estatísticos ou memes, todos eles trazendo
alertas, mais ou menos confiáveis, mais ou menos apocalípticos.

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Fomos, assim, transformados em poucos dias em epidemiologistas amadores, discutindo


quais as medidas mais eficientes para “achatar a curva”. As informações cientificamente
embasadas dos especialistas nos chegam em versões diluídas para leigos, no mais das vezes
expostas para persuadir a todos a acatar medidas de ordem técnica: espirrem no braço, lavem as
mãos, passem álcool em tudo, cubram a boca e o nariz ao sair, mantenham distância de um metro
(ou dois, ou dois e meio) na rua.
Se sabemos — como muitos também já o disseram — que nomear e compreender pode ter
um efeito terapêutico, poderíamos esperar que o consumo desenfreado de informações bem
embasadas pela ciência poderia aplacar a angústia. Entretanto, não é isso o que percebo ao meu
redor. E é uma sugestão para compreender a dinâmica desse incremento da angústia pelo
consumo voraz de informações cientificamente bem fundamentadas que gostaria de esboçar aqui.
Para começar: o argumento que se segue parte do princípio de que o conhecimento médico
até agora disponível sobre a pandemia do coronavírus é bem embasado. A angústia de que quero
tratar aqui diz respeito única e exclusivamente ao consumo desse conhecimento pelo público leigo.
E por que o alerta? Para me precaver contra a possibilidade de que as considerações a seguir
sejam lidas, de forma apressada e equivocada, como uma desqualificação leviana e irresponsável
sobre o saber médico a nosso dispor. Repito: trata-se de discutir a angústia provocada pelo
consumo desse saber, sob a forma de noticiário, pelo público leigo.

***

Em 1904, Marcel Mauss e Henri Hubert publicaram o conhecido ensaio “Esboço de


uma teoria geral da magia”, no qual discutem os elementos e a lógica dos sistemas mágicos.
De maneira especialmente provocativa para nossos propósitos aqui, os autores partem da
afirmação de que a magia seria “a forma primeira do pensamento humano”, algo como
“uma ciência antes da ciência”. Sustentam essa afirmação na constatação de que os sistemas
mágicos seriam regidos por leis — “pois quem diz lei, diz ciência”. E ainda: “[A] magia faz
a função de ciência e ocupa o lugar das ciências por nascer” (p. 98).
A magia teria três elementos: os agentes (os mágicos), os atos (os ritos) e as representações
(ideias e crenças correspondentes aos ritos). Os ritos mágicos se distinguiriam das técnicas
comuns (não mágicas) porque, nestas, o entendimento é que a produção do efeito pretendido tem
causa mecânica. Assim, quando “uma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica
é a que escapa a essa definição” (p. 55). Voltaremos a essa passagem mais adiante.
Os ritos mágicos seriam também uma linguagem, ou seja, “traduziriam uma ideia”.
Esse seria o “mínimo de representação” presente em todo ato mágico: a representação de
seu efeito, o qual seria, sempre, uma mudança de estado: “Diremos de bom grado que todo
ato mágico é representado como tendo por efeito seja colocar seres vivos ou coisas num
estado tal que certos gestos, acidentes ou fenômenos devam suceder-se infalivelmente, seja
fazê-los sair de um estado prejudicial” (p. 95).

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Para Mauss e Hubert, as leis da magia fazem parte das representações e seriam três: contiguidade,
similaridade e contrariedade. De acordo com essas leis, “as coisas em contato estão ou permanecem
unidas, o semelhante produz o semelhante, o contrário age sobre o contrário” (p. 98). Essas leis
regeriam as associações de ideias, “com a única diferença de que aqui a associação subjetiva das ideias
conclui pela associação objetiva dos fatos; em outras palavras, as ligações fortuitas dos pensamentos
equivalem às ligações causais das coisas” (p. 98). Este ponto — a relação entre associação subjetiva de
ideias e associação objetiva dos fatos — também será retomado mais adiante.
A lei que nos interessa aqui é a contiguidade. Seu princípio fundamental é que a parte vale
pelo todo: “Os dentes, a saliva, o suor, as unhas, os cabelos representam integralmente a pessoa;
de tal modo que, por meio deles, pode-se agir diretamente sobre ela, seja para seduzi-la, seja para
enfeitiçá-la. A separação não interrompe a continuidade, pode-se mesmo reconstituir ou suscitar
um todo com o auxílio de uma de suas partes” (p. 98).
Os autores prosseguem:

Essa lei de contiguidade comporta, aliás, outros desdobramentos. Tudo o que está em contato imediato com
a pessoa, as roupas, a marca dos passos, a do corpo sobre a relva ou no leito, o leito, o assento, os objetos que
usa habitualmente, brinquedos e outros, são assimilados às partes destacadas do corpo. Não há necessidade
de que o contato seja habitual, ou frequente, ou efetivamente realizado, como no caso das roupas e dos objetos
usuais: encanta-se o caminho, os objetos tocados acidentalmente, a água do banho, o fruto mordido etc. A
magia que se exerce universalmente sobre restos de refeições procede da ideia de que há continuidade,
identidade absoluta entre as sobras, os alimentos ingeridos e quem come, este sendo substancialmente
idêntico àquilo que comeu. Uma relação de continuidade totalmente semelhante existe entre um homem e
sua família; age-se com certeza sobre ele ao agir sobre seus parentes; é útil nomeá-los nas fórmulas ou escrever
o nome deles nos objetos mágicos destinados a prejudicá-lo. Mesma relação entre um homem e seus animais
domésticos, sua casa, o telhado de sua casa, seu campo etc. (p. 99).

E ainda: “Em suma, os indivíduos e as coisas estão ligados a um número, que parece
teoricamente ilimitado, de associados simpáticos. A corrente deles é tão cerrada, é tal sua
continuidade que, para produzir um efeito buscado, é indiferente agir sobre um ou sobre outro
dos elos” (p. 99).
Creio que o leitor, a esta altura, já deve ter percebido aonde quero chegar. Mas Mauss e
Hubert, eles próprios, nos conduzem até lá:

A ideia da continuidade mágica, quer esta se realize por relação prévia do todo com a parte ou por
contato acidental, implica a ideia de contágio. As qualidades, as doenças, a vida, a sorte, toda espécie de
influxo mágico, são concebidos como transmissíveis ao longo dessas correntes simpáticas. (...) Mas o
contágio mágico não é apenas ideal e limitado ao mundo do invisível; ele é concreto, material, e em
todos os pontos semelhante ao contágio físico (p. 100).

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Mas, para que a magia seja eficaz, é preciso que o mágico seja capaz de identificar as
propriedades das coisas. Entretanto, as ideias mágicas são “essencialmente obscuras”:

Em magia, como em religião, o indivíduo não raciocina, ou seus raciocínios são inconscientes. Assim como ele não
tem necessidade de refletir sobre a estrutura de seu rito para praticá-lo, de compreender sua prece ou seu sacrifício,
assim como não tem necessidade de que seu rito seja lógico, assim também ele não se inquieta com o porquê das
propriedades que utiliza e não se preocupa em justificar racionalmente a escolha e o emprego das substâncias.
Podemos às vezes reconstituir, para nós mesmos, o caminho encoberto que suas ideias seguiram, mas ele geralmente
não é capaz disso. Não há em seu pensamento senão a vaga ideia de uma ação possível, para a qual a tradição lhe
fornece meios inteiramente prontos, diante da ideia, extraordinariamente precisa, do objetivo a atingir. (...) Mas não
se reconstitui a cadeia das associações de ideias pelas quais os fundadores dos ritos chegaram a essas noções (p. 109).

Mas e se o indivíduo tenta reconstituir essas associações? E se ele precisa reconstituí-las para
ser capaz de operar, com alguma autonomia, de modo eficiente para seus propósitos? E se ele
precisa reconstituir essas associações que embasam as técnicas para poder tomar microdecisões
em seu cotidiano, decisões essas que lhe parecem ser de vida ou morte?
Por exemplo, e se ele precisa saber qual é o princípio que diz que sabão com água mata o
coronavírus para, quando não dispõe de sabão, saber se detergente desempenha a mesma função?
E se ele precisa saber se o coronavírus vive em superfícies de papel para saber se é preciso lavar as
mãos após tocar em uma embalagem de pizza? Ou saber se o vírus se transmite de papel para
pedra para saber se é preciso desinfetar a bancada da cozinha após apoiar a embalagem? Ou se é
melhor apoiar a embalagem no chão? Ou se o vírus passa do papel para o piso? E do piso para a
sola das havaianas? E da sola das havaianas para o tapete do banheiro antes de entrar no banho
para brecar a contaminação pela embalagem? E de suas mãos, que tocaram a embalagem, para o
frasco de shampoo que (des) contaminará seus cabelos?
Ou, então, se optou por comprar alimentos congelados, o que fazer com as embalagens?
Como fica a higienização das embalagens? Ou não precisa higienizá-las? Colocá-las direto no
freezer e deixar que o frio mate “os bichinhos”? Mas e se congelar não matar? Limpar as
embalagens (mas com o quê?) ou as colocar em um saco previamente limpo dentro do freezer,
para depois matar “os bichinhos” com o calor do micro-ondas em vez de com o frio do freezer?
Dúvidas desse tipo vêm atormentando o cotidiano de todos aqueles que levam a sério a
ameaça da Covid-19, produzindo uma angústia que, dada a natureza da pandemia, é literalmente
de vida ou morte. A sugestão que quero apresentar aqui é: o público leigo, bombardeado pelo
conhecimento científico, mas sem dominá-lo minimamente para orientar suas incontáveis
pequenas decisões cotidianas de higienização – de si, dos outros, dos objetos, do mundo -, estaria
vivenciando as orientações cientificamente embasadas como uma forma de magia.
Assim, a contiguidade entre pessoas-objetos-pessoas produziria uma profunda angústia do
contágio, tanto mais acentuada pela impossibilidade de quebrar os elos da corrente, tendo em vista
que a plena higienização suporia um sujeito sem qualquer tipo de contato com qualquer coisa que

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lhe seja externa — incluídos aí o ar que se respira e o chão em que se pisa. Entretanto, os ditames
são para que esses contatos sejam incessantemente “quebrados” pela intermediação dos elementos
dotados das propriedades corretas — álcool, sabonete, detergente (para “matar” o vírus) ou panos,
acrílico, filtros (para “barrar” o vírus).
Não cedamos, contudo, às tentações e perigos da simples analogia. E retomo aqui o alerta
inicial: trata-se de discutir o modo como as tentativas de operacionalização do conhecimento
científico, tentativas feitas por leigos para seu uso cotidiano, esbarram em seu desconhecimento
dos princípios. Isso faria com que fossem vivenciadas como algo de ordem mágica, como cadeias
inquebrantáveis de contiguidade que somos, apesar de tudo, instados a tentar incessantemente
romper, exigindo assim que façamos um rompimento primordial, antes de mais nada, com sua
própria lógica. Pois, na magia, como dizem Mauss e Hubert, “o mundo é concebido (...) como um
animal único cujas partes, não importa a distância, estão ligadas entre si de uma maneira
necessária. Nele, tudo se assemelha e tudo se toca” (p. 107).
Os próprios elementos para romper a contiguidade, contudo, podem trazer novos perigos.
O álcool em gel, apontado no início da pandemia como principal elemento para desinfecção,
traria em si uma ameaça tão invisível quanto o vírus: segundo um vídeo amplamente circulado
por WhatsApp, pega fogo sem que isso seja visível, a não ser quando as chamas se propagam para
outros materiais, produzindo acidentes com queimaduras.
Outro vídeo narra um experimento científico que, utilizando uma câmera de alta
sensibilidade e equipamentos de raio laser, “mostra” gotículas de um micrômetro produzidas por
espirros ou conversas. Os cientistas levantam a hipótese de que essas microgotículas disseminam
o coronavírus (uma gotícula microscópica pode conter muitos vírus, ou seja, há algo invisível a
olho nu capaz de conter muitos outros invisíveis ainda menores, estes sim mortais). A experiência
avança, simulando o movimento das gotículas em uma sala fechada com dez pessoas. Uma pessoa
tosse uma vez e espalha 100 mil gotículas, mostradas no vídeo como uma nuvem tricolor. As
gotículas maiores caem ao chão, nos diz o narrador, em um minuto. Mas as gotículas menores
continuam a flutuar no ar. No vídeo, elas aparecem como um halo vermelho ao redor das pessoas,
à altura de suas cabeças, e o narrador nos informa que, 20min após a tosse, ainda não caíram no
chão. A própria ordem de grandeza da simulação — uma única tossida produzindo cem mil
gotículas que perduram no ar por 20min como um halo vermelho em torno das cabeças de todos,
cada gotícula contendo muitos vírus, dos quais basta um para contrair a doença — acirra
evidentemente a angústia, apesar de sua intenção preventiva.
Relembrando Mauss e Hubert: “[O]s indivíduos e as coisas estão ligados a um número, que
parece teoricamente ilimitado, de associados simpáticos. A corrente deles é tão cerrada, é tal sua
continuidade que, para produzir um efeito buscado, é indiferente agir sobre um ou sobre outro
dos elos”. É essa percepção mágica da relação pessoa-objeto-pessoa, essa continuidade cerrada e
ilimitada, aquilo que, em um contexto pandêmico, evoca a imagem de um contágio infinito,
impossível de ser rompido, mas que, entretanto, o sujeito confinado tenta seguidamente romper,
por uma questão que se lhe afigura como de vida ou morte.

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É nesse sentido que o ato de desinfetar é, ao mesmo tempo, uma técnica e um rito — Mauss e
Hubert novamente: “[U]ma técnica é ao mesmo tempo mágica e técnica, a parte mágica é a que
escapa a essa definição”. Aquilo que o leigo não compreende é então vivenciado como mágico e,
portanto, como causa daquela angústia produzida pelo que não é nomeado porque não é entendido.
Há mais. Esses princípios não entendidos são da mesma ordem dos sistemas de
classificação, que ordenam o mundo ao dividir tudo que existe em categorias, que se opõem,
se articulam, se hierarquizam. “Classificar” é, para a antropologia estruturalista, a operação
fundamental do pensamento humano, aquela que cria a cultura por meio da introdução de
uma ordenação no mundo.
Classifica-se tudo — perigoso/vulnerável, doméstico/selvagem, limpo/sujo, comestível/não-
comestível, saudável/doente. A antropologia estruturalista, francesa, inglesa e americana,
tributária dos estudos dos sistemas de classificação realizados pela escola sociológica francesa de
Émile Durkheim, foi pródiga em análises de uma infinidade de operações classificatórias, tanto
em sociedades tribais quanto nas sociedades contemporâneas, abrangendo sistemas de
parentesco, vestuário, alimentação, xingamentos, entre outras. Em um desses estudos, Marshall
Sahlins examinou a lógica do consumo de carne nos EUA, mostrando como esse sistema tinha
como “princípio classificatório” fundamental a associação entre domesticidade/comestibilidade,
criando uma hierarquia que iria do mais comestível porque menos doméstico — o boi — até o
menos comestível porque mais doméstico — o cão —, passando pelo porco e pelo cavalo.
As origens da pandemia vêm sendo traçadas até um “mercado vivo” em Wuhan (epicentro
original da epidemia), na China. Matérias jornalísticas e vídeos circulam em mensagens de
WhatsApp mostrando, de formas muitas vezes acentuadamente críticas, as condições de
manutenção, abate e venda dos animais aí comercializados. Dois pontos merecem destaque à luz
dessa argumentação que venho desenvolvendo2.
O primeiro é a convivência entre animais “domésticos” e animais “selvagens”, todos
reunidos, empírica e abstratamente, em uma mesma categoria: “comestíveis”. O segundo é a
descrição dessa convivência: em gaiolas empilhadas, sem que as espécies sejam separadas, com os
líquidos e as secreções de cada uma (urina, fezes, pus, sangue) respingando de umas em outras.
A descrição desses mercados se assemelha a um pesadelo estruturalista. A barreira
entre selvagem e domesticado é rompida, com tudo podendo ser comido, encharcado de
secreções que se misturam. José Carlos Rodrigues (1975), em trabalho de orientação
estruturalista, examinou o “princípio classificatório” do nojo, mostrando como sua
situação-síntese era a inversão do percurso das secreções: de fora para dentro do corpo, ao
invés do caminho “natural”, de dentro para fora do corpo.
Na descrição dos mercados vivos chineses (e enfatizo aqui que o que estou analisando é sua
descrição tal como veiculada na mídia e nas redes sociais no Ocidente), esses espaços surgem como
ignorando os três princípios classificatórios mencionados: o doméstico e o selvagem se misturam;
o homem consome a ambos indiscriminadamente; as secreções (ao menos no imaginário
suscitado por essa descrição) viram alimento.

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Retraçar o contato do homem com o coronavírus ao mercado vivo de Wuhan se parece


muito, assim, com um “mito de origem” da pandemia. Pois mitos e ritos, como se sabe,
compartilham uma dimensão de crença, de representação.
Pausa para novo alerta: a Covid-19 é descrita, pelos especialistas, como uma zoonose, uma
doença infecciosa capaz de ser transmitida entre animais e seres humanos, entre outros agentes
possíveis, por vírus. Uma hipótese muito discutida por esses especialistas é que o novo
coronavírus teria “migrado” dos morcegos para o ser humano, e que o encontro teria se dado no
citado mercado vivo de Wuhan, apontado como foco da contaminação original em razão de um
alto percentual das primeiras pessoas infectadas ter estado pouco tempo antes nesse mercado.
Quando, apesar dessas evidências, sugiro que contar dessa forma a história do “paciente zero”
pode ser entendido como um “mito de origem”, estou me referindo ao impacto desta narrativa
sobre o imaginário ocidental, capaz de provocar angústia em razão da ruptura de princípios
classificatórios que organizam uma percepção e uma experiência do mundo — como, de resto,
faz tudo aquilo que atravessa o lugar que lhe é atribuído em um sistema de classificação. Dizer,
assim, que essa narrativa é um mito não quer dizer colocar em xeque sua veracidade, mas sim
apontar para seus efeitos do ponto de vista do registro simbólico.

***

A magia é descrita por Mauss e Hubert como uma “confusão de imagens” (p. 97). Nela, a
“associação subjetiva das ideias conclui pela associação objetiva dos fatos” (p. 98). Mas as ideias
estão associadas também a sentimentos: “ “Mas essa transferência de ideias complica-se com uma
transferência de sentimentos. Pois, de uma ponta a outra de uma cerimônia mágica, verifica-se
um mesmo sentimento, que dá o sentido ou o tom da cerimônia, que na verdade dirige e comanda
todas as associações de ideias” (p. 100).
Duas ideias aparecem associadas, nessa malha discursiva sobre a pandemia que combina
discurso científico, discurso jornalístico e senso comum: contágio e contato. Essa associação é
apontada pelos próprios Mauss e Hubert, ao afirmarem que a continuidade mágica (a
contiguidade) implica a ideia de contágio. Mas, nessa profusão de textos sobre a pandemia, quero
destacar uma versão desta associação que me parece muito peculiar.
A primeira vez em que isto me chamou a atenção foi em uma matéria jornalística veiculada
nos primeiros dias da pandemia, na qual eram dadas diversas instruções sobre como desinfetar
objetos. Nela, havia um alerta especial para os cuidados necessários com o celular, descrito como
um objeto muito “sujo”, porque era carregado para todos os lugares e pousado sobre inúmeras
superfícies. Chamou-me a atenção a ambivalência discursiva sobre o celular, uma vez que em
outros discursos, longe de ser um vilão da contaminação, o celular é o mocinho da história, por
sua capacidade de minorar a solidão do confinamento por permitir a localização de pessoas
infectadas ou como dispositivo para manter os serviços necessários à vida cotidiana.

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Pouco depois, me foi recomendado assistir a um episódio da série Explaining, intitulado “The
Next Pandemics”. Nele, ao lado de especialistas da área médica, Bill Gates é entrevistado (e não
custa lembrar o furor das redes sociais em torno da palestra em que ele “previu” a pandemia). Em
que pese a lucidez ímpar de suas análises sobre a interconexão global e suas possíveis implicações,
sua própria presença entre os entrevistados me causou estranheza semelhante àquela provocada
pelos alertas para a “sujeira” e o “perigo” do celular: por que um expert em novas tecnologias era
chamado a falar sobre pandemias ao lado de epidemiologistas e infectologistas?
O quadro se completa, de forma quase caricatural, com uma notícia (WARREN, 04/04/2020)
a respeito de incêndios, possivelmente intencionais, de torres de tecnologia 5G, ocorridos na
Inglaterra, motivados por teorias conspiratórias que vinculam essa tecnologia à pandemia de Covid-
19. A título de exemplo, uma teoria citada na matéria sugere que a epidemia se originou em Wuhan
porque a cidade começara recentemente a utilizar a tecnologia de transmissão de dados sem fio em
rede. Técnicos e engenheiros responsáveis pela instalação e manutenção das torres foram agredidos
e o governo britânico considerou solicitar a Facebook, Twitter, WhatsApp, YouTube e outras redes
sociais que impedissem sua divulgação (THE GUARDIAN, 05/04/2020).
Na magia, associações subjetivas de ideias produzem associações objetivas de fatos. Se minha
hipótese procede — o público leigo vivencia o conhecimento científico como mágico —, então
essas três estranhezas deixam de ser estranhas e passam a fazer muito sentido: o expert em novas
tecnologias que entende de pandemias; o celular “sujo” que, ao conectar, contagia; e a tecnologia
que promete conexões mais velozes como culpada pela disseminação do vírus. É porque a magia
é “representação sintética, na qual se confundem as causas e os efeitos” (p. 97).
É como se a “mão” da metáfora se invertesse: do vírus como metáfora da conexão (as
mensagens que “viralizam”) para a conexão como metáfora da infecção. Se metáforas são, como
recuperou Susan Sontag da definição aristotélica (e, não por acaso, falando sobre doenças) a
substituição de uma coisa por outra em razão da existência de uma relação subjacente entre
ambas, essas três histórias podem ser então entendidas como expressão da intercambialidade
entre contágio e contato.
Mas as metáforas só são necessárias se a conexão é inconsciente. E o não saber, como
argumento aqui, produz angústia. Uma angústia tanto maior quanto nos remete ao âmago da
questão humana fundamental: a relação com o outro. Contato ou contágio?
Na conhecida imagem de Arthur Schopenhauer utilizada por Sigmund Freud para discutir a
ambivalência da relação com o outro na constituição da civilização, um grupo de porcos-espinhos
sente frio. Buscam o contato com os corpos uns dos outros, mas logo se retraem, feridos pelos
espinhos. Retraídos, sentem frio, e se aproximam novamente para se machucarem outra vez.
O outro me aquece, o outro me fere.
O outro me consola, o outro me contagia.
Porcos-espinhos na pandemia.

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Notas

1
Agradeço a leitura crítica e os comentários de Cesar Ibrahim, Helena Bomeny, Jane Russo e Ronaldo Oliveira de Castro.
2
Em texto publicado nesta série Reflexões na Pandemia, Perrota (2020) analisou esses mercados a partir da perspectiva
de Mary Douglas e sua discussão sobre a dimensão moral da sujeira. A autora combina a perspectiva estruturalista, com
sua atenção para os sistemas classificatórios alimentares, com a análise das críticas a essa forma de produção/consumo
de animais como ligada a projetos civilizatórios ocidentais, chamando a atenção para a implicação dessas tensões para a
busca de soluções para problemas de saúde pública de ordem global.

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Referências

DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
DURKHEIM, Émile; MAUSS, Marcel. “Algumas formas primitivas de classificação”. In: MAUSS, Marcel.
Ensaios de sociologia. São Paulo: Perspectiva, 1981[1903], pp. 399-455.
FREUD, Sigmund. “Psicologia de grupo e análise do ego”. In: Edição standard brasileira das obras
completas, vol. 18. Rio de Janeiro: Imago, pp. 89-179, 1996[1921].
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. “Esboço de uma teoria geral da magia”. In: MAUSS, Marcel. Sociologia
e antropologia. São Paulo: CosacNaify, pp. 45-179, (2003 [1904]).
LÉVI-STRAUSS, Claude. “A eficácia simbólica”. In: Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, pp. 215-236, 1975.
PERROTA, Ana Paula. “Serpentes, morcegos, pangolins e ‘mercados úmidos’ chineses: Uma crítica da
construção de vilões epidêmicos no combate à Covid-19”. Dilemas: Revista de Estudos de Conflito
e Controle Social, Reflexões na Pandemia (seção excepcional), 2020, disponível (on-line) em:
https://www.reflexpandemia.org/texto-1
RODRIGUES, José Carlos. Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Achiamé, 1975.
SAHLINS, Marshall. Cultura e razão prática. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
SONTAG, Susan. Diante da dor dos outros. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
________. Doença como metáfora/Aids e suas metáforas. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

Fontes da imprensa

WARREN, Tom. “British 5G towers are being set on fire because of coronavirus conspiracy theories: 5G
is causing anarchy in the UK”. The Verge, Tech, 04 de abril de 2020. Disponível (on-line) em:
https://www.theverge.com/2020/4/4/21207927/5g-towers-burning-uk-coronavirus-conspiracy-
theory-link
THE GUARDIAN. “Call for social media platforms to act on 5G mast conspiracy theory: After a spate of
fires, the government is stepping in to halt the spread of linking coronavirus to the mobile network”.
The Guardian, News, 05 de abril de 2020. Disponível (on-line) em:
https://www.theguardian.com/technology/2020/apr/05/call-for-social-media-platforms-to-act-on-
5g-mast-conspiracy-theory?utm_source=meio&utm_medium=email

MARIA CLAUDIA COELHO (mccoelho@bighost.com.br) é


professora titular do Departamento de Antropologia e do
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPCIS) do
Instituto de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro (Uerj, Rio de Janeiro, Brasil). É doutora em
sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de
Janeiro (Iuperj, Rio de Janeiro, Brasil), mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da UFRJ e
graduada em história pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro (PUC-Rio, Rio de Janeiro, Brasil).

DILEMAS – Rio de Janeiro – Reflexões na Pandemia 2020 – pp. 1-10


Maria Claudia Coelho

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