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A Relação entre Ecologia Profunda, Natureza e Tecnologia

Aluno: Erick Sousa Charú


Número de Matrícula: 202105457

1. Princípios da Ecologia Profunda

A Ecologia Profunda, que tem como um dos seus principais representantes Arne
Naess, surge a partir de uma contraposição do que seria uma “Ecologia Rasa”. Ecologia
essa que, envolve o discurso ambientalista sem fundamentações filosóficas, e se designa
muito mais como um desejo egoíco de preservação da espécie humana para que
continuemos a explorar a natureza. Em virtude disso, Naess busca fundamentar uma
ecologia que leva em consideração aspectos ontológicos, epistemológicos, metafísicos e
histórico-sociais.
A priori, Naess tenta reformular e refundamentar a tradicional epistemologia
herdada dos grandes sistemas filosóficos, principalmente a cartesiana, no qual; se
baseava na separação bem determinada entre o sujeito e os objetos no mundo; buscava
uma primeira certeza; e estipulava uma monarquia/tirania da razão sob os outros modos
de conhecimento.
Contudo, na epistemologia que a Ecologia Profunda pretende formular, não
existe mais essa ruptura drástica entre sujeito-objeto ou entre ser vivo e meio ambiente,
há sempre um campo relacional que interliga ambos, não há mais aquela categoria de
pensar as coisas “em si mesmas” que os filósofos tanto buscaram. Por conta disso,
inegavelmente a teoria de Naess se assemelha bastante tanto ao perspectivismo
ameríndio quanto ao sistema rizomático de Deleuze e Guatarri.
O primeiro, por utilizar da lógica relacional na linguagem (em que não há uma
determinação rígida dos conceitos, mas sempre depende de quem pronuncia e capta o
mundo) e também na forma de pensar ontologicamente em que não existe uma
realidade, mundo ou natureza em si, como diz Eduardo Viveiro de Castro na 3º
Conferência Curt Nimuendajú e também neste artigo:

“Em sua etnografia da caça aos porcos, Lima mostra que aquilo
que os Yudjá apreendem como caça é apreendido pelos porcos como
guerra. Isto não quer dizer que o evento engendre uma mesma realidade
percebida de forma diferente por porcos e por humanos, mas que ele
produz dois acontecimentos paralelos mas que podem se cruzar, de
modo que um inclua o outro.” (MACIEL, 2019, p. 1-2)

“Portanto, tudo o que existe emerge para alguém: não há


realidade que independa do sujeito. […] Em outros termos, entre os
ameríndios a natureza não existe em si mesma como uma esfera
"objetiva", e sim como efeito de um ponto de vista. O modo em que os
mundos ameríndios estão regidos levam a pressupostos que são
irredutíveis à noção moderna-ocidental de relativismo cultural. A
unidade da alma e a multiplicidade dos corpos para as quais apontam
essas ontologias levariam não ao multiculturalismo moderno-ocidental,
mas a um multinaturalismo ameríndio, em que a cultura é o fundo
comum de uma multiplicidade de naturezas que se desdobram dos
corpos. Assim, a condição compartilhada por humanos e animais não é
a animalidade (como para a ciência moderna, segundo a qual os
humanos pertencem ao reino animal), mas a humanidade.” (MACIEL,
2019, p. 2)

Já o sistema Deleuze-Guatarriano se assemelha com essa epistemologia pois,


com uma sistematização rizomática e uma concepção de mundo completamente
imanente onde todas as coisas estão relacionadas (os chamados agenciamentos) e não se
reduzem ou repousam na forma de uma coisa singular e separada, não faz mais sentido
essa diferenciação brusca ou afastamento entre sujeito e objeto, cito Deleuze e Guatarri
e posteriormente um trecho de Naess que se relaciona com o tema:

“As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem


nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco
remetem a um sujeito.” (DELEUZE; GUATARRI, 2011, p. 10)

"Relacionismo tem um valor ecosófico, porque facilita derrubar


a crença sobre organismos ou pessoas como algo que pode ser isolado
de seus meios. Falar de interação entre organismos e o meio dá margem
a associações errôneas, pois um organismo é interação. Organismos e
meios não são duas coisas - se um rato fosse erguido até o absoluto
vácuo, ele não mais seria um rato. Organismos pressupões o
meio." (NAESS, 1989, p. 54-63)

Além disso, outro aspecto que Naess pretende superar é a fundamentação dessa
epistemologia cartesiana, em que o fundamento último era a razão e a principal busca
era pela objetividade, fundamentos esses que podem ser até colocados em cheque, como
mostra Bruno Latour:
“Como considerar realista um projeto de modernização que, há
dois séculos, teria "esquecido" de antecipar as reações do globo
terráqueo às ações humanas? Como tratar de "objetivas" as teorias
econômicas incapazes de incorporar em seus cálculos a escassez de
recursos que elas tinham como tarefa prever? Como falar da "eficácia"
de sistemas técnicos que não foram planejados para durar mais que
algumas décadas? Como chamar de "racionalista" um ideal de
civilização culpado por um erro de previsão tão absurdo que fez com
que pais deixassem para seus filhos um mundo muitíssimo menos
habitado?” (LATOUR, 2020, p. 63)

Sendo assim, com o passar do tempo, a filosofia e a ciência foram desprezando


os aspectos subjetivos de nossa percepção (exemplo das sensações ou imaginações)
como se fossem inferiores. Como diz Bruno Latour: “o subjetivo ficou cada vez mais
associado ao arcaico e ao ultrapassado; o objetivo, ao moderno e ao progressista. Ver as
coisas do interior passa a não ter outro valor a não ser o de remeter à tradição, ao íntimo,
ao arcaico. Ver as coisas do exterior, ao contrário, torna-se o único meio de apreender
aquilo que conta como realidade e, sobretudo, de se orientar em direção ao futuro”
(LATOUR, 2020, p. 67).
Entretanto, o que Naess propõe é justamente o contrário, voltar a um acesso
simples a natureza/realidade, uma “experiência espontânea” quase que fenomenológica,
pois não tem um caráter utilitário ou instrumental. Nem mesmo busca uma
universalidade do que é comum a todos, já que ele próprio diz: “that that which is
common is extremely abstract, completely intangible and in no way obvious The
attempt to create a description of the content of the world based upon such conceptions
is bound to fail. At best, one arrives at a spectral, wholly inhuman world ” (NAESS,
1989, p. 49).
Essa nova base epistemológica além de levar em consideração os aspectos
subjetivos, incentiva também o pensamento mítico e fabular, como o pensamento
ameríndio, que não tem como fundamento somente a razão mas também imaginações,
sonhos e etc. Esse tipo de pensamento há muito tempo atrás já concebia um certo
animismo na natureza (o que já não permitia uma objetificação e visão inerte da mesma)
e também fabulações sobre o fim e início do mundo que, se entendidas
metaforicamente, mostram bastante da nossa situação de apocalipse ecológico e
climático atual, como diz Eduardo Viveiro de Castro na mesma conferência já citada
acima.
Posto isso, há uma necessidade também de acabarmos com essa separação
radical entre o mito (imaginações, sonhos, fabulações) e o logos (raciocínios, deduções
etc) , como se o primeiro fosse arcaico e menos relevante e o segundo fosse de fato
objetivo por ser científico. Mas entender que na própria ciência (logos) há um pouco de
mito e fabulação, como as diversas abstrações dos sistemas filosóficos e científicos, e
até no mito há também razão, tal qual compreende Melliasoux com seu realismo
especulativo.
Logo, é necessário uma nova epistemologia para a Ecologia Profunda para que
se diferencie da epistemologia dos grandes sistemas filosóficos, que ao tentar
complexificar, objetificar e racionalizar a natureza na verdade nos afasta dela. É
necessário fazermos um retorno ao real (como diria Maffesoli) a partir de uma intuição
simples e até mítica que garante de fato um mundo, cheio de cores, cheiros, sabores e
atividade.
Ou seja, levar em consideração os aspectos singulares, subjetivos e simples da
nossa experiência, que são a nossa forma de perceber e conectar com o mundo, e não
mais tomar como base um sujeito ou razão universal que não tem determinação
nenhuma e é completamente abstrato. Também, sempre utilizar uma análise relacional
que admite várias descrições e perspectivas singulares, e que não concebe uma natureza
estática ou separada a partir dos Gestalts, que basicamente pode ser descrito como “a
methodology which can be suggested by the simple maxim 'all things hang together”
(NAESS, 1989, p. 36).

2. Diferentes Concepções de Natureza

Além de uma mudança epistemológica, foi preciso também uma reforma nas
concepções metafísicas/ontológicas, dentre elas o conceito de Natureza. Sobretudo, o
filósofo norueguês carrega muita influência do pensador Espinosa. Desde elementos
epistemológicos, como o amor intelectual que nos une ao “objeto” e faz ele pertencer a
nossa própria essência particular (o que forma um sistema de relações proposto pelo
Gestalt). Até questões metafísicas, como a concepção de Natureza/Deus e sua
identificação com o infinito, a realização pessoal como correspondente do conatus e
etc.. Entretanto, diante da tradição houve diversas outras concepções de Natureza, que
influenciam diretamente na forma que as pessoas se relacionam com ela.
Começando por Aristóteles, no qual sua ontologia concebia as coisas no mundo
somente como sustentáculos de acidentes e características, e juntamente com seu
realismo ingênuo admitia somente uma natureza inerte, já que o movimento era visto
como uma imperfeição (ARISTÓTELES, 2002, p. 395-431). Ademais, por ser um
ontologia com várias substâncias, acaba por coisificar e separar cada vez mais os
elementos e seres da natureza.
Posteriormente temos Descartes, que sai da metafísica substância/acidente e vai
para um mecanicismo da Substância, mas que ainda concebe a natureza como inerte,
como se não pudesse obter movimento por si próprio, mas precisasse de um motor
externo à ela (Deus). Ademais, Descartes chega a colocar os animais como “máquinas
biológicas” (DESCARTES, 1979, p. 60) e incapazes de ter sentimentos, fruto de sua
busca incessante por objetivismo e mecanicismo que só separava cada vez mais os
constituintes da natureza.
Além disso, temos também no idealismo alemão o filósofo Fitche, que
constatava a natureza somente como um não-eu, por ser algo transcendente à
subjetividade/consciência, o que ele denomina de eu absoluto. Todas essas
conceitualizações perpetuam uma ideia de natureza transcendente, inerte e objetificada,
o que acaba contribuindo para a exploração e não politização da mesma.
No entanto, há outros tipos de formulações que contribuem muito mais pra uma
ética ambiental e mudanças ecológicas, exemplo do próprio Espinosa que colocava a
natureza como imanente, infinita e atuante (chega até dizer que tudo que existe na
natureza são ações). Ou até Leibniz, que é bem parecido com Espinosa, só que invés de
ir para o todo da natureza (Deus) vai para o singular (Mônadas), que são infinitas e
explicam todo o universo, como ele próprio diz “aquele que tudo vê poderia ler em cada
um o que se faz em toda parte e até o que foi ou será feito, observando no presente o
que está afastado tanto no tempo quanto no espaço, tudo converge” (LEIBNIZ, 2009,
§61).
Ademais, com Deleuze e Guatarri, não temos uma tentativa de excluir o devir da
Natureza, algo que os antigos tinham como pressuposto, mas sim uma aceitação do
movimento, devir e a pluralidade como a própria Natureza e constituintes do Ser. Isso
faz com que se crie noções ontológicas, metafísicas e ecológicas diferentes. Como a
própria noção de indivíduo, que não é mais uma subjetividade que se forma
isoladamente do mundo ou meio, como parece sugerir Ficthe ao colocar a Natureza
como não-eu, excluindo a possibilidade da Natureza propriamente ser a produtora ou
constituidora da consciência, cito Deleuze e Guatarri:

“[..] O campo de imanência não é interior ao eu, mas também


não vem de um exterior ou de um não-eu. Ele é antes como o Fora
absoluto que não conhece mais os Eu, porque o interior e o exterior
fazem igualmente parte da imanência na qual eles se fundiram”
(DELEUZE e GUATARRI, 2012, p. 16-23)

“[...] Nunca, pois, um animal, uma coisa, é separável de suas


relações com o mundo: o interior é somente um exterior selecionado; o
exterior, um interior projetado; a velocidade ou a lentidão dos
metabolismos, das percepções, ações e reações entrelaçam-se para
constituir tal indivíduo no mundo.” (DELEUZE, 2002, p. 131).

Simultaneamente, essa individualidade, ou melhor, dividualidade como diz


Deleuze, não é mais o fundamento último (como acreditava Descartes) até porque ela
própria é perpassada e constituída por várias intensidades que provém de fora dela (da
natureza, dos processos históricos-sociais etc). Por consequência disso, ao admitir que o
fundamento “último” da natureza e da subjetividade é o devir e sua multiplicidade, ou
unicidade como diz Maffesoli (MAFFESOLI, 2021, p. 67), Deleuze coloca que a
identificação do sujeito se da sempre nas extremidades dele e a partir da experimentação
(já que agora não é mais um sujeito imóvel com uma essência objetificamente
determinada). E Guatarri prega (em seu livro As Três Ecologias) uma Ecologia que
garante a multiplicidade da natureza e do mundo, uma multiplicidade tanto material,
animal e biológica, quanto imaterial, subjetiva e virtual. Esse incentivo a uma
“Heterogênese” que produz a “Caosmose” da Natureza há ressonâncias na Ecologia
Profunda de Naess no que tange a preservação da pluralidade dos seres da natureza.
Por fim, temos também Schelling, pensador do idealismo alemão muito
influenciado por Espinosa também, que sai do realismo de Espinosa e vai pra um
idealismo que concebe a consciência como um fenômeno natural e a Natureza como
produção infinita e contínua. Assim como Espinosa e Leibniz, contribui para um
panpsiquismo em que até em matérias inorgânicas há vida e produção (SCHELLING
Apud GONÇALVES, 2015, p. 14-5) , o que também é fundamental para a Ecologia
Profunda de Naess para construir uma ética do valor intrínseco que todos os seres tem.

3. A Naturalidade da Tecnologia e a Artificialidade da Natureza


Por outro lado, é inseparável do debate ecológico a questão da técnica e da
tecnologia, já que para muitos seria ela a causadora de toda a crise ambiental que
vivemos. Porém, não é o que Naess especificamente propõe com a prática da Ecologia
profunda, como diz ele: “'To tread lightly on Earth' is a powerful slogan in the deep
ecological movement, and slogans such as 'soft technology' are obvious corollaries”
(NAESS, 1988, p. 98).
Ou seja, a Ecologia profunda não pretende um abandono total das técnicas ou
tecnologias, mas sim um aperfeiçoamento delas para que não sejam rígidas com a
natureza (hard technology). Atualmente, ainda há teorias que fomentam uma separação,
ou até mesmo rivalidade, entre Natureza e Tecnologia ou entre Natureza e Cultura,
diferentemente do filósofo Emanuele Coccia, que coloca a natureza como produtora de
cultura.

“As modificações que ‘essas criaturas tão pouco organizadas’


produzem nos estratos superiores do globo não se limitam a influir na
vida dos outros seres vivos (animais e plantas), mas também no estado
de seu próprio habitat, que é modificado de maneira vantajosa para as
gerações futuras. A teoria da construção dos nichos retoma as
constatações darwinianas para sublinhar como os seres vivos, mesmo os
mais elementares, não são simplesmente vítimas da seleção natural, e
como a adaptação ao meio não é seu único destino: também são capazes
de modificar o espaço que os rodeia e de transmitir o novo mundo às
gerações que os sucedem. Nesse sentido, produzindo modificações
permanentes e transmissíveis de geração em geração, os seres vivos
produzem cultura, que, portanto, não é uma prerrogativa humana e sim,
antes, uma espécie de herança não anatômica mas ecológica, uma
herança exossomática.” (COCCIA, 2010, p. 46)

Porém, o que quero demonstrar é que essa ruptura só é possível se ainda


adotarmos as concepções transcendentes, inertes ou objetificadas da natureza, como
Hegel fez ao separar o mundo do espírito e o mundo da natureza. Mas se tomarmos as
conceitualizações imanentes e não-inertes, tanto o ser humano quanto a tecnologia e a
Cultura se tornam partes dessa natureza.
Assim, seria necessário uma reformulação dessa divisão entre o que é natural e o
que é artificial, como o filósofo Simondon diz:

“A operação técnica não é arbitrária, curvada em todos os


sentidos ao capricho do sujeito, conforme o acaso da utilidade imediata;
a operação técnica é uma operação pura, que põe em jogo as leis
verdadeiras da realidade natural. O artificial é o natural suscitado, não o
falso ou o humano tomado por natural” (SIMONDON, 2020, p. 370).

Dessa forma, em paralelo com Schelling que colocava a consciência como


produto da natureza, agora com Simondon a tecnologia é posta como um fenômeno
natural. Logo, o problema não seria necessariamente a proposição de Descartes que
coloca os animais como máquinas biológicas, mas a problemática estaria na concepção
de “máquina” e associação da técnica ou tecnologia como algo objetificado, inerte e
separado do natural.
Pelo contrário, essa concepção já não seria possível dentro do panpsiquismo
Schelling-Leibniziano e no naturalismo Espinosano. No primeiro caso pois, ao colocar
toda a natureza como pensante, de certa forma concede uma maior autonomia, atividade
e interioridade à todos seus elementos (incluindo animais, máquinas, tecnologias e etc).
No segundo caso, ao caracterizar tudo como causa imanente e não transitiva de uma
única e mesma realidade, que ele chama de natureza, tanto a tecnologia quanto o ser
humano se tornam pertencentes ao domínio da natureza, como diz o próprio autor: “É
impossível que o homem não seja uma parte da seja uma parte da Natureza”
(ESPINOSA, 1983, p. 237).
Exemplo também de Deleuze e Guatarri, que contribuem para o debate sobre as
máquinas, que semelhante a Descartes, caracterizam não os animais, mas nós seres
humanos como máquinas desejantes em toda sua obra Anti-Édipo. O que permite isso
não é uma proximidade com Descartes, mas sua concepção ativa e quase orgânica de
máquina que se difere da noção de mecânica, cito Felix Guatarri e Suely Rolnik:

“A mecânica é relativamente fechada sobre si mesma: ela só


mantém com o exterior relações perfeitamente codificadas. As
máquinas consideradas em suas evoluções históricas, constituem, ao
contrário, um phylum comparável ao das espécies vivas. Elas
engendram-se umas às outras, selecionam-se, eliminam-se, fazendo
aparecer novas linhas de potencialidades. As máquinas, no sentido lato
(isto é, não só as máquinas técnicas, mas também máquinas teóricas,
sociais, estéticas, etc.), nunca funcionam isoladamente, mas por
agregação ou por agenciamento. Uma máquina técnica, por exemplo,
numa fábrica, está em interação com uma máquina social, uma máquina
de formação, uma máquina de pesquisa, uma máquina comercial, etc.”
(GUATARRI, 2010, p. 381-385)
Portanto, ao entender que a própria natureza produz técnicas e artifícios, que a
tecnologia não é rival ou separada da natureza, ou até que os objetos técnicos servem
como mediadores entre o homem e elementos da natureza, como diz Simondon:

“A oposição instituída entre cultura e técnica, entre homem e


máquina, é falsa e infundada. Encobre ignorância ou ressentimento. Por
trás de um humanismo fácil, mascara uma realidade rica em esforços
humanos e em forças naturais, a realidade que constitui o mundo dos
objetos técnicos, os mediadores entre a natureza e o homem.”
(SIMONDON, 2020, p. 9)

Dessa forma, é indispensável a conscientização e associação da tecnologia à


cultura até mesmo para que a natureza seja mais preservada, respeitada e unida à nós.
Pois sem isso se cria tanto as tecnocracias, sociedades onde existe um culto ao
tecnicismo e o domínio das técnicas se dá a um pequeno grupo, algo que até Naess vai
contra (NAESS, 1988, p. 102), quanto a tecnofobia, que também pode prejudicar a
preservação da pluralidade da natureza e a nossa união com ela, que muita das vezes é
estabelecida a partir de tecnologias.
Por fim, para se estabelecer alguns princípios da Ecologia Profunda de Naess, é
preciso fazer essa associação natureza-técnica e incentivar a criação de tecnologias que
não agridam seu meio associado (Natureza), o que Naess chama de “Soft Technology” e
que até pode ser correspondente do conceito de máquina aberta de Simondon:

“Na verdade, o automatismo é um grau de perfeição técnica


bastante baixo. Automatizar uma máquina exige sacrificar muitas
possibilidades de funcionamento, muitos usos possíveis. O
automatismo, com seu uso na organização industrial, que é chamado de
automação, apresenta uma significação econômica ou social, mais que
uma significação técnica. O verdadeiro aperfeiçoamento das máquinas,
aquele que eleva o grau de tecnicidade, não corresponde a um aumento
do automatismo e sim, ao contrário, ao fato de que o funcionamento de
uma máquina preserva certa margem de indeterminação. Essa margem
permite que a máquina seja sensível a uma informação externa. Por essa
sensibilidade das máquinas à informação, muito mais que por um
aumento do automatismo, um conjunto técnico pode se completar. Uma
máquina puramente automática, completamente fechada em si num
funcionamento predeterminado, só pode oferecer resultados sumários.
A máquina dotada de alta tecnicidade é uma máquina aberta”
(SIMONDON, 2020, p. 46).

4. Bibliografia
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

COCCIA, Emanuele. A vida das plantas. Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2010.

DELEUZE. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. Mil platôs, v.1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.

DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. Mil platôs, v.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012.

DESCARTES, R. O discurso do método. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

ESPINOSA, B. Ética. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

GOLÇALVES, M. Construção e Produção na filosofia da natureza de Schelling.


Curitiba: Doispontos, 2015.

GUATARRI, Félix. ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis:


Ed. Vozes, 2010.

LATOUR, B. Onde aterrar?. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

LEIBNIZ, F. A Monadologia e outros textos. São Paulo: Editora Hedra, 2009.

MACIEL, Lucas da Costa. 2019. "Perspectivismo ameríndio". In: Enciclopédia de


Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia.
Disponível em: https://ea.fflch.usp.br/conceito/perspectivismo-amerindio

MAFFESOLI, M. Ecosofia: Uma ecologia para nosso tempo. São Paulo: Edições Sesc,
2021.

NAESS, A. Ecology, community and lifestyle. Cambridge: Cambridge University


Press, 1989.
SIMONDON, G. Do modo de existência dos objetos técnicos. Rio de Janeiro:
Contraponto Editora, 2020.

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