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A Ecologia Profunda, que tem como um dos seus principais representantes Arne
Naess, surge a partir de uma contraposição do que seria uma “Ecologia Rasa”. Ecologia
essa que, envolve o discurso ambientalista sem fundamentações filosóficas, e se designa
muito mais como um desejo egoíco de preservação da espécie humana para que
continuemos a explorar a natureza. Em virtude disso, Naess busca fundamentar uma
ecologia que leva em consideração aspectos ontológicos, epistemológicos, metafísicos e
histórico-sociais.
A priori, Naess tenta reformular e refundamentar a tradicional epistemologia
herdada dos grandes sistemas filosóficos, principalmente a cartesiana, no qual; se
baseava na separação bem determinada entre o sujeito e os objetos no mundo; buscava
uma primeira certeza; e estipulava uma monarquia/tirania da razão sob os outros modos
de conhecimento.
Contudo, na epistemologia que a Ecologia Profunda pretende formular, não
existe mais essa ruptura drástica entre sujeito-objeto ou entre ser vivo e meio ambiente,
há sempre um campo relacional que interliga ambos, não há mais aquela categoria de
pensar as coisas “em si mesmas” que os filósofos tanto buscaram. Por conta disso,
inegavelmente a teoria de Naess se assemelha bastante tanto ao perspectivismo
ameríndio quanto ao sistema rizomático de Deleuze e Guatarri.
O primeiro, por utilizar da lógica relacional na linguagem (em que não há uma
determinação rígida dos conceitos, mas sempre depende de quem pronuncia e capta o
mundo) e também na forma de pensar ontologicamente em que não existe uma
realidade, mundo ou natureza em si, como diz Eduardo Viveiro de Castro na 3º
Conferência Curt Nimuendajú e também neste artigo:
“Em sua etnografia da caça aos porcos, Lima mostra que aquilo
que os Yudjá apreendem como caça é apreendido pelos porcos como
guerra. Isto não quer dizer que o evento engendre uma mesma realidade
percebida de forma diferente por porcos e por humanos, mas que ele
produz dois acontecimentos paralelos mas que podem se cruzar, de
modo que um inclua o outro.” (MACIEL, 2019, p. 1-2)
Além disso, outro aspecto que Naess pretende superar é a fundamentação dessa
epistemologia cartesiana, em que o fundamento último era a razão e a principal busca
era pela objetividade, fundamentos esses que podem ser até colocados em cheque, como
mostra Bruno Latour:
“Como considerar realista um projeto de modernização que, há
dois séculos, teria "esquecido" de antecipar as reações do globo
terráqueo às ações humanas? Como tratar de "objetivas" as teorias
econômicas incapazes de incorporar em seus cálculos a escassez de
recursos que elas tinham como tarefa prever? Como falar da "eficácia"
de sistemas técnicos que não foram planejados para durar mais que
algumas décadas? Como chamar de "racionalista" um ideal de
civilização culpado por um erro de previsão tão absurdo que fez com
que pais deixassem para seus filhos um mundo muitíssimo menos
habitado?” (LATOUR, 2020, p. 63)
Além de uma mudança epistemológica, foi preciso também uma reforma nas
concepções metafísicas/ontológicas, dentre elas o conceito de Natureza. Sobretudo, o
filósofo norueguês carrega muita influência do pensador Espinosa. Desde elementos
epistemológicos, como o amor intelectual que nos une ao “objeto” e faz ele pertencer a
nossa própria essência particular (o que forma um sistema de relações proposto pelo
Gestalt). Até questões metafísicas, como a concepção de Natureza/Deus e sua
identificação com o infinito, a realização pessoal como correspondente do conatus e
etc.. Entretanto, diante da tradição houve diversas outras concepções de Natureza, que
influenciam diretamente na forma que as pessoas se relacionam com ela.
Começando por Aristóteles, no qual sua ontologia concebia as coisas no mundo
somente como sustentáculos de acidentes e características, e juntamente com seu
realismo ingênuo admitia somente uma natureza inerte, já que o movimento era visto
como uma imperfeição (ARISTÓTELES, 2002, p. 395-431). Ademais, por ser um
ontologia com várias substâncias, acaba por coisificar e separar cada vez mais os
elementos e seres da natureza.
Posteriormente temos Descartes, que sai da metafísica substância/acidente e vai
para um mecanicismo da Substância, mas que ainda concebe a natureza como inerte,
como se não pudesse obter movimento por si próprio, mas precisasse de um motor
externo à ela (Deus). Ademais, Descartes chega a colocar os animais como “máquinas
biológicas” (DESCARTES, 1979, p. 60) e incapazes de ter sentimentos, fruto de sua
busca incessante por objetivismo e mecanicismo que só separava cada vez mais os
constituintes da natureza.
Além disso, temos também no idealismo alemão o filósofo Fitche, que
constatava a natureza somente como um não-eu, por ser algo transcendente à
subjetividade/consciência, o que ele denomina de eu absoluto. Todas essas
conceitualizações perpetuam uma ideia de natureza transcendente, inerte e objetificada,
o que acaba contribuindo para a exploração e não politização da mesma.
No entanto, há outros tipos de formulações que contribuem muito mais pra uma
ética ambiental e mudanças ecológicas, exemplo do próprio Espinosa que colocava a
natureza como imanente, infinita e atuante (chega até dizer que tudo que existe na
natureza são ações). Ou até Leibniz, que é bem parecido com Espinosa, só que invés de
ir para o todo da natureza (Deus) vai para o singular (Mônadas), que são infinitas e
explicam todo o universo, como ele próprio diz “aquele que tudo vê poderia ler em cada
um o que se faz em toda parte e até o que foi ou será feito, observando no presente o
que está afastado tanto no tempo quanto no espaço, tudo converge” (LEIBNIZ, 2009,
§61).
Ademais, com Deleuze e Guatarri, não temos uma tentativa de excluir o devir da
Natureza, algo que os antigos tinham como pressuposto, mas sim uma aceitação do
movimento, devir e a pluralidade como a própria Natureza e constituintes do Ser. Isso
faz com que se crie noções ontológicas, metafísicas e ecológicas diferentes. Como a
própria noção de indivíduo, que não é mais uma subjetividade que se forma
isoladamente do mundo ou meio, como parece sugerir Ficthe ao colocar a Natureza
como não-eu, excluindo a possibilidade da Natureza propriamente ser a produtora ou
constituidora da consciência, cito Deleuze e Guatarri:
4. Bibliografia
ARISTÓTELES. Metafísica. São Paulo: Edições Loyola, 2002.
DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. Mil platôs, v.1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2011.
DELEUZE, Gilles. GUATARRI, Félix. Mil platôs, v.3. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2012.
ESPINOSA, B. Ética. In: Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
MAFFESOLI, M. Ecosofia: Uma ecologia para nosso tempo. São Paulo: Edições Sesc,
2021.