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DE DESCARTES A SISTÊMICA: UM PERCURSO DA TERAPIA FAMILIAR

Nina Vasconcelos Guimarães1


Carol Evelyn Michel Streithorst2

RESUMO

A revolução científica do século XVII substituiu a visão de verdade a partir das Sagradas
Escrituras e da fé, pelos princípios racionais instaurados por René Descartes, que pretendiam
controlar, medir e quantificar a realidade. Com a física moderna de Heisenberg e Einstein, é
estabelecida a noção de mundo como um todo unificado e inseparável, marcado pela
imprevisibilidade, incontrolabilidade e irreversibilidade de diversos eventos da natureza.
Descobre-se que o observador influencia, inevitavelmente o fenômeno que observa e/ou descreve.
Na ciência novo-paradigmática o critério da simplicidade dá lugar ao da complexidade, o da
estabilidade é substituído pelo da instabilidade, e a noção de objetividade é destituída pela da
intersubjetividade. Bertallanffy introduz a visão de sistema como um conjunto de elementos
interdependentes em interação, onde as ações e comportamentos dos membros produzem
influências recíprocas. No contexto da terapia, a realidade passa a ser co-construída na linguagem,
na intersubjetividade do cliente e terapeuta.

Palavras-chave: Ciência tradicional, ciência novo-paradigmática, pensamento sistêmico.

ABSTRACT
The scientific evolution of the 17th century substitutes the vision of the truth starting from the
writihgs of Holy Scripture and faith, through the rational principles initiated by René Descartes,
which were intended to control, measure and quantify reality. With modern physics, the
conception of the world is estabilished as a unified and inseparable whole, caracterized by the
unforeseeableness, uncontrollability and reversibility of several of nature’s events. The observer is
found, inevitably, exerting influence over the phenomenom observed and/or described by him. In
the new-paradigmatic science, the criterion of simplicity gives place to that of complexity: that of
stability to that of instability. The notion of objectivity is done way by that of intersubjectivity.
Bertalanffy introduces the system vision as a combination of elements, interdependent in
interaction, where the actions and behaviors of its members produce reciprocal influences. In the
context of therapy, reality commences to be co-constructed in the language and intersubjectivity
of both the cient and the therapist.

1 Psicóloga, Terapeuta de Família, Mestra em Família na Sociedade Contemporânea. Professora e


Supervisora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade Ruy Barbosa (FRB – Salvador-BA) e
Diretora do Instituto Humanitas de pesquisa e intervenção em sistemas humanos (Salvador - BA).
2 Psicóloga, Especialista em Psicologia Conjugal e Familiar, Coordenadora do Projeto Casa Lar (pacientes
psiquiátricos), Professora da UNIFACS.
2

Key words: traditional science, new-paradigmatic science, systemic though.

A CONCEPÇÃO MECANICISTA DA VIDA

A visão de mundo e os valores que sustentamos em nossa cultura ocidental foram


fortemente influenciados pela revolução científica do séc. XVII, que se contrapunha ao
pensamento escolástico do Medievalismo, cuja leitura de mundo era feita a partir da
superposição das Sagradas Escrituras: acima das verdades racionais estavam os princípios
do pensamento teológico e a verdade da fé.
A perspectiva medieval mudou radicalmente nos séculos XVI e XVII. A noção de um
universo orgânico, vivo e espiritual foi substituída por uma visão de mundo associada à
máquina. Assim, a máquina de mundo tornou-se a metáfora dominante da Era Moderna.
Esse desenvolvimento foi ocasionado pela física e astronomia, culminando nas realizações
de Copérnico, Galileu e Newton. A ciência do século XVII baseou-se em novos métodos de
investigação: aquele defendido rigorosamente por Francis Bacon, que envolvia a descrição
da natureza através das leis matemáticas, e o método analítico de raciocínio, concebido pelo
gênio de Descartes.
René Descartes, pensador francês, físico e matemático, foi considerado o fundador da
filosofia moderna. Propôs a construção de um pensamento inteiramente novo, baseado nos
princípios das leis da matemática que permitisse controlar, medir, manipular e quantificar a
realidade. O funcionamento do organismo humano era análogo ao da máquina e a idéia de
homem saudável era a mesma de um relógio em perfeito estado, enquanto que o homem
doente era comparado a um relógio mal fabricado. O método científico proposto por ele era
a única maneira válida de compreender o universo, admitindo como verdadeiro apenas o
que pudesse ser deduzido com a clareza de uma demonstração matemática. Desta maneira,
desmoronou a visão de mundo orgânica, cálida e misteriosa e se estabeleceu a fria e estreita
visão racionalista-mecanicista-reducionista.
O método analítico utilizado por Descartes consistia em decompor pensamentos e
problemas em suas menores partes para estudá-los e verificá-los. Só era considerado objeto
da ciência aquilo que fosse experimentado e comprovado cientificamente. Santos (1987)
3

destaca o lugar central ocupado pelas leis da matemática na era moderna, o que repercute
em duas conseqüências principais: primeira, conhecer significa quantificar através do rigor
das medições, pois “o que não é quantificável é cientificamente irrelevante” (p. 15);
segunda, “o método científico assenta na redução da complexidade... conhecer significa
dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se
separou.” (ibidem)
Segundo o mesmo autor, as leis da ciência moderna privilegiavam o funcionamento das
coisas em detrimento de qual o agente ou qual a finalidade delas. Foi a partir desta idéia
que houve um rompimento entre o conhecimento do senso comum e o conhecimento
científico. Assim afirma,
“um conhecimento baseado na formulação de leis tem como pressuposto
metateórico a idéia de ordem e de estabilidade do mundo, a idéia de que o
passado se repete no futuro [...] o determinismo mecanicista é o horizonte certo
de uma forma de conhecimento que se pretende utilitário e funcional,
reconhecido menos pela capacidade de compreender profundamente o real do
que pela capacidade de o dominar e transformar” (Santos, ibidem, p. 17).

As conseqüências da falácia reducionista influenciaram a medicina e a biologia,


negligenciando o tratamento do paciente como uma pessoa integrada, o que dificultou aos
médicos curarem muitas das doenças atuais, mesmo admitindo que inúmeras descobertas e
avanços na ciência foram conseqüências da visão cartesiana. Ao reduzirem um fenômeno a
seus elementos constituintes fundamentais (células, genes ou partículas elementares), os
cientistas não consideravam o entendimento das atividades coordenadoras do sistema como
um todo.
Esteves de Vasconcellos (2002), afirma que Descartes, assumindo sua posição dualista,
fracionou o mundo em material e espiritual, em corpo e mente, nos seres vivos, instalando
uma separação entre a filosofia (o domínio do sujeito, da meditação interior) e a ciência (o
domínio da coisa, da medida, da precisão). Daí surgem as raízes da disjunção entre cultura
humanista e cultura científica.
Praticamente todo o século XIX também foi caracterizado por uma eufórica crença no
determinismo racional que desvelaria todos os segredos da alma e do universo. Cientistas e
pesquisadores refinaram e utilizaram a cosmovisão mecanicista, ampliando as suas
4

perspectivas. A fé no racionalismo-científico, a confiança em seu poder explicativo e o


dogma da objetividade se fortaleceram com a obra de Darwin, na Biologia; de Marx, na
Sociologia e de Pavlov na Reflexologia, além do determinismo psíquico de Freud, na
Psicologia.
Augusto Comte (1798-1857), filósofo francês, fundou a Escola Positivista. Para ele, o
conhecimento e a explicação da natureza se dava através da observação e da experiência,
buscando as leis que regiam os fenômenos - conhecendo-as seria possível prever os
acontecimentos. Assim, o conhecimento estava na coisa e o sujeito deveria se anular para
que a coisa em si aparecesse, o que permitiu que se instalasse uma separação entre as
ciências da natureza e as ciências do homem, sem incluí-lo como parte da natureza. Esteves
de Vasconcellos (2002) se refere ao Positivismo como ao movimento que reintroduziu a
desconfiança ao fundar o conhecimento no homem e afirma que “o sujeito, o cientista, faz
tabula rasa de seus juízos e valores, para deixar as coisas falarem. Deve atuar como uma
câmera fotográfica, que dá a cópia fiel da coisa” (p. 64).
O paradigma tradicional, até então apresentado, pode ser resumido em três
pressupostos: o da simplicidade, da estabilidade e da objetividade.
O pressuposto da simplicidade visava separar as partes até chegar ao elemento simples,
à partícula essencial de onde poderia obter uma compreensão melhor do todo o complexo.
Através da operação de disjunção, estabeleceram-se as categorias e os fenômenos e as
pessoas poderiam ser classificadas. Assim, o biólogo classificava os seres vivos; o químico,
os elementos químicos e, os psicólogos, os tipos de personalidade. Porém, de acordo com
essa lógica disjuntiva e separatista, um objeto não podia pertencer a duas categorias ao
mesmo tempo. Para compreender um fenômeno o cientista tornou-se reducionista,
simplificando-o. A atitude de análise e a busca de relações causais lineares decorrem deste
pressuposto. Esteves de Vasconcellos (2002) afirma que é dessa atitude
“... simplificadora, analítica, fragmentadora, disjuntiva, reducionista, que
resultam a compartimentação do saber, a fragmentação do conhecimento
científico do universo em áreas ou disciplinas cientificas –
multidisciplinariedade ou pluridisciplinariedade - a fragmentação das
instituições científicas em departamentos estanques [...] em cada uma dessas
áreas trabalham os especialistas em conteúdos específicos [...] tendo grande
dificuldade para se comunicar com os especialistas de outras áreas, para
experimentarem a “interdisciplinariedade.” (p. 75-76)
5

O segundo pressuposto é o da estabilidade, ou seja, a crença de que o mundo é estável e


as coisas se repetem nele com regularidade. Deriva-se daí o determinismo e a
reversibilidade, pois se admite que a evolução de um dado fenômeno estudado em
laboratório, sem considerar seu contexto ou sua história, é determinada por suas condições
iniciais. Os cientistas, cada vez mais, aumentavam a capacidade de prever os fenômenos e,
ao interferir sobre eles, manipulando-os, produziam o retorno do sistema ao seu estado
inicial. Prigogine e Stengers (1979, citado por Esteves de Vasconcellos, 2002) se referem a
este período fazendo uma analogia entre conhecer e manipular. Alertam para o fato de que
“‘conhecer’, no decurso dos três últimos séculos, foi muitas vezes identificado com ‘saber
manipular’” (p. 37).
O terceiro pressuposto da ciência clássica é o da objetividade. Acreditava-se que o
mundo podia ser conhecido objetivamente tal como ele é na realidade, colocando entre
parênteses a subjetividade do cientista. Este, para descobrir e descrever os mecanismos de
funcionamento da natureza, precisava assumir uma posição externa (neutra). Daí decorre a
idéia de que o observador representava a realidade com uma única descrição sobre ela, um
uni-verso (única versão) onde apenas um expert teria capacidade de percebê-la.
A Física adotou com sucesso estes pressupostos, adquirindo o status do modelo de
cientificidade diante das demais disciplinas. Segundo Köche (1997), o paradigma
newtoniano, sustentado na certeza e exatidão dos resultados de seus experimentos,
proporcionou ao Homem um conhecimento comprovado, confirmado e inquestionável, já
que desprovido de interferências subjetivas. Assevera: “o paradigma newtoniano passou a
ser o método ideal que deveria ser copiado por todas as outras áreas de conhecimento.” (p.
57)
As ciências humanas, ao contrário, tiveram muita dificuldade em adotá-los,
especialmente o pressuposto da objetividade, o que as levou a construir um “estatuto
epistemológico próprio” (Esteves de Vasconcellos, 2002), que muitas vezes se aproxima
mais da filosofia do que daquilo que chamamos ciência. Popper (citado por Esteves de
Vasconcellos, 2002) situa esta questão, afirmando que “há pelo menos um problema
6

filosófico pelo qual todos os homens pensantes se interessam. É o problema de


compreender o mundo – incluindo a nós e nosso conhecimento, como parte desse
mundo” (p. 98).
O reducionismo distorcia os fatos, resultando em obstáculos para as ciências sociais, que
não se adequavam aos critérios de cientificidade das ciências naturais. Segundo Boaventura
(1987),
“as ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos
sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados... são de
natureza subjectiva e como tal não se deixam captar pela objectividade do
comportamento... o cientista social não pode libertar-se no ato de observação,
dos valores que informam a sua prática em geral e, portanto, também a sua
prática de cientista” (p. 20-21).

O desconforto dessa visão mecanicista era evidente, não conseguindo mais responder
aos anseios das novas teorias da física e química, além de outras áreas de conhecimento. A
física moderna de Heisenberg e Einstein, dentre outros, estabelece a noção de mundo como
um todo unificado e inseparável; uma complexa teia de relações onde os fenômenos são
determinados por conexões com a totalidade. Essas conexões podem ser locais e não-locais,
instantâneas e imprevisíveis, conduzindo a uma nova noção de causalidade estatística, que
supera e transcende a concepção clássica e linear3 de causa e efeito.
Uma pluralidade de condições não apenas teóricas e sociais resultaram em uma crise de
paradigma. Quando Einstein admitiu a simultaneidade e a relatividade de acontecimentos,
provocou a primeira grande mudança no paradigma da ciência moderna, demonstrando que
a simultaneidade de acontecimentos distantes não poderia ser verificada, mas apenas
definida. O tempo e o espaço absolutos de Newton deixam de existir, o paradigma
mecanicista começou a abrir espaço para a mecânica quântica com Heisenberg & Bohr,
demonstrando que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele ou alterá-
lo e, conseqüentemente, somente alcançar resultados aproximados e probabilísticos. Outra
condição teórica para a crise do paradigma clássico foram os avanços do conhecimento nos
domínios da microfísica, da química e da biologia.

3 modelo linear: uma relação causal se denomina linear quando não intervém processos de retroalimentação,
ou seja, quando a seqüência de causa e efeito não retorna ao ponto de partida... o caráter linear de causa e
efeito é evidente.
7

A voz genial de Prigogine (1984), vinda da química, conquistou espaço nas ciências ao
ganhar o prêmio Nobel. Sua abordagem se aplica a todos os sistemas que trocam energia
com o ambiente. Denominou de estruturas dissipativas os sistemas abertos, assinalando
que, quanto mais complexo eles forem, mais energia dispenderão no funcionamento de suas
conexões. Introduziu uma nova concepção para o termo caos, considerando-o como
flutuações aparentemente desordenadas, mas que apresentam uma ordem dinâmica,
abandonando, assim, a antiga associação do termo à desordem ou a algo negativo. No
mundo vivo, ordem e desordem sempre são criadas simultaneamente, sem uma previsão do
que pode vir a acontecer. Na nova ciência da complexidade passou-se a admitir a
imprevisibilidade, a incontrolabilidade e a irreversibilidade de muitos eventos da natureza.
Um bom exemplo disso é que a física clássica entendia ser possível a observação objetiva
das partículas atômicas, determinando com precisão a velocidade e a localização do objeto
em um dado momento, o que se revelou impossível mediante o princípio da incerteza,
instaurado por Heinsenberg (1958), que percebeu mudança de localização no elétron,
quando sob observação.
Boaventura (1987) menciona as investigações de Prigogine afirmando que
“a teoria das estruturas dissipativas e o princípio da ‘ordem através de
flutuações’ estabelecem que em sistemas abertos, ou seja, em sistemas que
funcionam nas margens da estabilidade, a evolução explica-se por flutuações de
energia que em determinados momentos, nunca inteiramente previsíveis,
desencadeiam espontaneamente reações que, por via de mecanismos não
lineares, pressionam o sistema para além de um limite máximo de instabilidade e
o conduzem a um novo estado macroscópico [...] a situação de bifurcação, ou
seja, o ponto crítico em que a mínima flutuação de energia pode conduzir a um
novo estado, representa a potencialidade do sistema em ser atraído para um novo
estado de menor entropia. Deste modo, a irreversibilidade nos sistemas abertos
significa que estes são produto de sua história” (p. 28).

A espantosa constatação da física subatômica, que exige uma total revisão da teoria do
conhecimento tradicional, é a de que o observador influencia o fenômeno observado. Capra
(1996) afirma que não há realidade que possa ser observada independente da mente do
observador; sendo assim, a dualidade cartesiana, mente e matéria, desaparece. O ideal da
objetividade é demolido diante da evidência de que nossa singularidade subjetiva e nossos
valores são atuantes e decisivos na percepção da realidade: toda descrição do mundo é auto-
descrição; toda teoria científica é, ao mesmo tempo, auto-confissão.
8

INTRODUÇÃO AO PENSAMENTO SISTÊMICO

Levando em consideração a dificuldade das ciências biológicas em adotar os critérios da


simplicidade e da estabilidade e da particular dificuldade das ciências humanas em adotar
os três pressupostos da ciência, especialmente o da objetividade, a partir do século XX,
pôde-se observar alguns avanços nas três dimensões epistemológicas adotadas pela ciência
tradicional, começando a emergir uma ciência novo-paradigmática. Ao invés da noção de
simplicidade, surge a de complexidade. O pressuposto da estabilidade desenvolve-se para o
da instabilidade. O critério da objetividade dá lugar ao da intersubjetividade.
As limitações intrínsecas dos conceitos e métodos utilizados pela ciência tradicional
mecanicista exigiram a emergência de um novo paradigma, que explicasse a complexidade
dos fenômenos. Segundo Bertalanffy (1967), os conhecimentos a respeito da vida, da mente
e da sociedade foram prejudicados ao se submeterem à epistemologia4 clássica de um
modelo de ciência mecanicista. Delineou-se a necessidade de uma visão sistêmica
complexa e, através da Teoria Geral dos Sistemas deste autor, Esteves de Vasconcellos
(1995) afirma que “o surgimento do conceito de sistema e o reconhecimento da isomorfia
entre fenômenos de áreas diferentes – o que propicia modelos interdisciplinares – têm
conduzido a um novo conceito do mundo como organização” (p. 49).
Bertallanffy (1973) introduziu a noção de sistema (depois associada à família),
caracterizado como um conjunto de elementos interdependentes, em interação, que
constituem uma unidade ampla, inteira: ações e comportamentos influenciam e são
influenciados pelas ações e comportamentos dos outros.
Quando a filosofia bootstrap foi aplicada à ciência como um todo, a Física deixou de
prevalecer sobre outras disciplinas e os seus fenômenos deixaram de ser considerados mais

4 É o estudo de como os indivíduos conhecem, pensam e decidem; é o processo de reflexão sobre os modelos
que guiam as nossas ações, as quais são organizadas implícita ou explicitamente pela cultura na qual vivemos
e pela língua que utilizamos (Telfner, 1992).
9

fundamentais do que os da biologia ou psicologia. De acordo com Capra (1996), eles


passaram a pertencer a diferentes níveis sistêmicos, sem que, necessariamente, um se
sobrepusesse aos outros.
A abordagem sistêmica aproximou a biologia da psicologia, visto que as manifestações
biológicas e psicológicas do organismo humano na saúde e na doença encontram-se
intimamente conectadas: os médicos deviam ampliar seus conhecimentos nos aspectos
psicológicos da doença, bem como os psicoterapeutas buscariam aprofundar conhecimentos
sobre biologia humana.
Contrária à visão mecanicista que associava o organismo humano a uma máquina,
separando o corpo da mente e considerando a doença como o mau funcionamento de
mecanismos biológicos, a visão sistêmica passa a considerar a saúde como uma experiência
de bem-estar resultante de um equilíbrio dinâmico que envolve os aspectos físicos e
psicológicos do organismo, assim como suas interações com o meio ambiente natural e
social.
Segundo Capra (1993), a plasticidade e flexibilidade internas dos seres vivos, cujo
funcionamento é controlado mais por relações dinâmicas do que por rígidas estruturas
mecânicas, dão origem a numerosas propriedades características que podem ser vistas como
aspectos diferentes do mesmo princípio dinâmico – o princípio da auto-organização.
A nova visão sistêmica vê o organismo vivo como um sistema auto-organizador, o que
significa que sua ordem – em termos de estrutura e função – não é imposta pelo meio
ambiente, mas estabelecida pelo próprio sistema. Embora os sistemas vivos interajam
constantemente com o meio, este não determina a sua organização.
Consoante o mesmo autor (ibidem), os sistemas auto-organizadores apresentam uma
estabilidade dinâmica, ou seja, mantêm a mesma estrutura global apesar de mudanças e
substituições contínuas de seus componentes. Um exemplo disso é o que ocorre com os
organismos humanos – substituímos todas as nossas células, exceto as do cérebro, em
poucos anos e, no entanto, não temos dificuldades em reconhecer nossos amigos durante os
longos períodos de separação, tal é a estabilidade dinâmica dos sistemas auto-
organizadores.
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A evolução do organismo correlaciona-se ao meio ambiente. Trata-se de uma co-


evolução que ocorre com o princípio da homeostase – um estado de equilíbrio dinâmico
caracterizado por flutuações múltiplas e interdependentes. A retroalimentação ou feedback é
a característica dos sistemas que garante o seu funcionamento circular. Os mecanismos de
feedback garantem a circulação da informação entre os componentes do sistema. Quando o
sistema é perturbado, tende a manter sua homeostase por meio de mecanismos de
retroalimentação negativa, os quais tendem a reduzir o desvio e fazer o sistema retornar ao
seu estado original. Porém, os desvios também podem ser corrigidos através da
retroalimentação positiva, respondendo pela mudança sistêmica ou morfogênese. Enquanto
os feedbacks negativos funcionam para manter a homeostase sistêmica, os feedbacks
positivos tendem à morfogênese.
O desenvolvimento de novas disciplinas, como a Antropologia e a Sociologia,
contribuiu significativamente para o conhecimento dos contextos onde vive o indivíduo e,
em particular, ao estudo das influências das relações e organizações familiares no
desenvolvimento da personalidade. A necessidade de considerar cada fenômeno como um
todo – e a impossibilidade de vê-lo como a soma das partes, analisado em termos do
modelo linear de causa-efeito – foi evidenciada por conceitos novos, tais como sistema5 ,
organização, causalidade circular6 e eqüifinalidade7 . O princípio da globalidade defende a
idéia de que as propriedades das partes só podem ser compreendidas dentro do contexto do
todo mais amplo.

5 Termo introduzido por Luduig Von Bertallanffy como o conjunto de elementos colocados em interação, não
sendo constituído, portanto, por partes independentes, mas sim interdependentes, o que constitui uma unidade
ampla, inteira. (In Interfaces Rev. de Psicologia, jan/jul 1999, vol. 2, n. 1)

6 Propriedade dos sistemas estabelecida por uma seqüência de eventos interconectados de modo que o
“último” ponto da cadeia age retornando ao ponto inicial... assim, cada ação de um dos participantes do
sistema constitui uma reação numa premissa de influência recíproca complexa. (In Silvia Bonino, Psicologia
per la Salute 1988)

7 Propriedade relacionada à lei da imprevisibilidade, já que através do comportamento atual do sistema não se
pode prever o futuro ou mesmo o histórico do mesmo. As condições iniciais de um sistema não determinam
rigidamente o seu estado final, ou seja, duas famílias com o mesmo estado inicial podem apresentar resultados
finais diferentes, bem como famílias com um funcionamento similar, podem ter tido condições iniciais muito
diversas (Watzlawick e cols., 1988).
11

A Psicologia, de modo particular, começou a pesquisar e voltar sua atenção aos


fenômenos interpessoais e aos contextos onde eles se apresentavam, deixando de se
preocupar unicamente com os fatores intrapsíquicos, que imperavam por meio da
Psicanálise. A nova abordagem começou a questionar a visão do indivíduo prisioneiro das
próprias dificuldades e de sua dinâmica interna, bem como o sintoma como uma
manifestação intrapsíquica, substituindo-a por uma imagem de ser social, cujo
comportamento é compreensível à luz das organizações e do funcionamento do sistema de
relações em que está inserido. Como afirma Minuchin (1988), “a vida psíquica do
indivíduo não é apenas um fenômeno interno, mas também um processo que se modifica na
interação com o mundo que o circunda” (p. 9).
O sintoma passou a ser visto, cada vez mais, como o resultado de uma disfunção
relacional8 de toda a família, que parece comunicar a existência de um conflito entre
continuidade e mudança, entre vínculos de pertencimento9 e necessidade de individuação10
dos seus componentes singulares.
Nasceu, assim, um movimento que se estruturou em torno de algumas idéias
compartilhadas. Entre estas se destacam: (1) a família, vista como um sistema onde os
comportamentos de seus membros são compreendidos em função das relações por eles
estabelecidas; (2) o paciente designado11, noção que substituiu o foco centrado no sintoma
per se; (3) a terapia deixa de ter como objetivo a mudança do indivíduo, em particular, mas
dos modelos de relação entre os indivíduos.

8 Disfunção relacional familiar: uma família disfuncional é um sistema que respondeu às exigências internas e
externas de mudança estereotipando o seu funcionamento. (In Minuchin, 1980)

9Pertencimento: significa a garantia que o indivíduo tem de fazer parte de uma determinada família com
crenças, valores, mitos, preconceitos e regras próprias, que formam sua identidade familiar. (Bowen & Kerr,
1990)
10Individuação: o sentido de separação no processo de formação de identidade do ser humano a partir da
participação do mesmo em diferentes subsistemas familiares e grupos extra-familiares dando autonomia ao
indivíduo, o fazendo-o experenciar como separação. (In Minuchin, 1988)
11Denominação dada ao portador do sintoma, que exprime – em nome dos demais membros do sistema
familiar – as dificuldades relacionadas ao crescimento e à evolução.
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A TERAPIA FAMILIAR NA PÓS-MODERNIDADE

Se a ciência tradicional via o conhecimento como uma representação da realidade,


mediante uma postura de neutralidade e objetividade por parte do observador, a partir dos
anos 80 os sistemas observantes (observador) passaram a ser incluídos nos contextos dos
objetos de estudo, porque entendidos como dotados de subjetividades que interfere em sua
atuação como "uma lente sobre as lentes", como uma leitura de outras leituras de mundo.
Desta forma, os ideais de objetividade, de realidade representacional, são questionados.
Surge a noção de intersubjetividade e de construção de realidade. Não é mais a
subjetividade que deve ser posta entre parênteses, mas a objetividade. Entende-se que o
conhecimento completo e fiel ao real é impossível e que uma das vias para se alcançar a
complexidade é integrar os mais diferentes pontos de vista, não de forma estanque - como
se a soma de conhecimentos fosse dar conta do real, pois isso seria um retorno à
simplicidade - nem como uma síntese, que negaria as diferenças, mas como um princípio
dialógico, complexo, conforme propõe Morin (2003), que leve em consideração a
influência do observador sobre sua observação. Acredita-se que o espaço da
intersubjetividade não é o espaço da verdade, mas um espaço consensual, onde "mapas são
territórios". Não há apenas um mapa, nem apenas um território, assim como não existe um
uni-verso, mas sim um multiverso ou pluriverso, como sugere Esteves de Vasconcellos
(1995).
Wittgenstein, filósofo austríaco, em sua publicação de 1921, defendia a idéia de que as
proposições lingüísticas da ciência, baseadas em constatações empíricas, refletiam
especularmente o mundo, a realidade objetiva. Em 1953, em Investigações Filosóficas,
publicada após sua morte, ele afirma o contrário, que as tentativas científicas em refletir a
realidade são inúteis e que a linguagem é que constitui a realidade, na medida em que, por
meio dela, é que as coisas são vistas (Esteves de Vasconcellos, 2002).
Trazendo tais transformações para o âmbito da Terapia Familiar, pode-se dizer que esta
vem se legitimando como prática clínica e científica a partir do desenvolvimento de estudos
sobre os sistemas, das relações entre indivíduos e grupos humanos, da comunicação em
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relações estáveis e recorrentes (Schnitman, 1996). O movimento inicial do processo da


terapia familiar é conhecido como Cibernética de Primeira Ordem, momento marcado pela
noção de sistema, que levou a ciência a não isolar os fenômenos de seus contextos,
examinando unidades cada vez maiores (Esteves de Vasconcellos, 1995).
A Cibernética é entendida por Couffignal (citado por Esteves de Vasconcellos, 1995) não
como uma ciência, nem como uma técnica, nem como uma filosofia, mas como uma
disciplina que tem um pouco de cada uma delas. Nesse primeiro momento o enfoque era
dado aos sistemas observados, ou seja, aos clientes em terapia. A estes clientes, entendidos
como sistema, foi atribuída a característica de autoregulação ou automanutenção, como
uma tendência desse sistema a se reorganizar, de forma a voltar ao seu ponto inicial de
"equilíbrio", assegurando a sua homeostase. Neste período, o observador, de uma posição
externa, revelava as modalidades organizativas do sistema observado. Este conceito,
transferido para a linguagem terapêutica, levava a uma investigação e descoberta de
disfunções e patologias, até o uso de intervenções que mudassem a organização patológica
do sistema.
A Cibernética de Segunda Ordem se configurou como uma revolução paradigmática,
onde a linguagem assume um papel fundamental, pois esta é criada na realidade ao mesmo
tempo em que constrói realidades (Schnitman & Fuks, 1996). Assim sendo, através do
diálogo é que novas alternativas poderão ser construídas no processo psicoterápico,
mediante a "narração de uma nova história e de um novo presente, que seja mais tolerável,
coerente e contínuo do que permitiam as narrações anteriores" (Goolishian & Anderson,
1996, p. 196). O terapeuta passou a ser encarado como um arquiteto do diálogo, numa
perspectiva em que consultantes e terapeuta têm papel ativo na construção do conhecimento
e da linguagem. Como afirma Cecchin (1996),
"o terapeuta assume a responsabilidade por suas convicções, situa-as num
contexto cultural, dá uma interpretação alternativa [...] e deixa claro que elas não
são uma verdade independente do observador, mas são o resultado de padrões
éticos originados em sua história pessoal, seu contexto cultural e sua orientação
teórica" (p. 221).

Importa ressaltar que as novas tendências incorporadas pela Cibernética de Segunda


Ordem são caracterizadas pela inclusão do observador no sistema, pela revisão da noção de
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autoridade, pelo abandono dos modelos de déficit, pelo reconhecimento de múltiplas


perspectivas, pelo aumento da sensibilidade para a construção social da realidade e pelo
papel reflexivo do terapeuta, mediante seus conteúdos auto-referenciais. Como afirma
Grandesso (2001), isso implica em entender o processo terapêutico como uma ação
conjunta de terapeuta e cliente, que estabelecem uma conversação que possibilita a reflexão
e a atribuição de novos significados "capazes de dar conta tanto do inédito do presente,
como das histórias passadas e possibilidades futuras [...] onde já não se segue sendo o que
se era." (p. 5)

CONCLUSÃO

A mudança do paradigma mecanicista para o paradigma sistêmico trouxe inúmeras


transformações na forma de pensar, de se relacionar com o mundo e de se conceber a
doença mental. A nova abordagem permite uma visão interdependente dos membros
familiares e um tipo de intervenção terapêutica mais centrada nas relações do que no
indivíduo, em particular. No entanto, “dançamos” o tempo todo entre o modelo linear-
causal e o sistêmico, desfrutando de cada um, a depender das necessidades do sistema sobre
o qual intervimos. Assumimos uma flexibilidade que nos garante experimentar novas
atuações clínicas, baseadas na igualdade do encontro terapêutico, diferente da hierarquia
imposta até então.
Muitas têm sido as revoluções científicas ocorridas no último século, mas ainda não
bem compreendidas ou não satisfatoriamente aplicadas nos diversos campos de
conhecimento. A idéia de que o observador faz parte do sistema que observa, muda
drasticamente a noção positivista de neutralidade e objetividade, trazendo o terapeuta para
um lugar (1) menos “divino”, no sentido de que ele não é mais o especialista onipotente
que, por meio de intervenções precisas, traz a mudança para o contexto da terapia; (2) mais
ético, na medida em que se inclui nesse sistema, afirmando-se como co-construtor da
realidade. A realidade deixa de ser descrita pelo terapeuta expert e passa a ser inventada,
co-construída na intersubjetividade do terapeuta e cliente.
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Após toda essa revolução paradigmática, não é mais possível distinguir ciências
humanas e ciências da natureza, pois toda ciência é ciência humana da natureza (Esteves de
Vasconcellos, 1995), uma vez que é o homem quem atribui significados à natureza e a si
mesmo, mediante a linguagem, construída em suas experiências e relações interindividuais.
O entendimento das noções de complexidade e instabilidade é fundamental para se
chegar a uma intersubjetividade capaz de respeitar as diferenças (não só de conhecimentos,
mas individuais, culturais, regionais, religiosas, etc.) e compreender que, como seres
humanos, temos um papel ativo na realidade que construímos, sendo, portanto,
responsáveis por ela.

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Endereço para correspondência:


E-mail: nina@institutohumanitas.com.br
carolmichel@frb.br

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