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Universidade Federal do Rio Grande do Norte- UFRN

Centro de Ensino Superior do Seridó- CERES


Departamento de Direito- DIR

Disciplina: Antropologia Jurídica

Sociedade Moderna e Antropologia Jurídica

Prof. Dr. Ubirathan R. Soares


O Conhecimento, a razão e a verdade antes da Razão
Moderna:

A Escolástica tem tanto um significado mais limitado, ao se referir às


disciplinas ministradas nas escolas medievais: gramática, retórica e
dialética; aritmética, geometria, astronomia e música, quanto uma
conotação mais ampla, ao se reportar à linha filosófica adotada pela
Igreja na Idade Média.
Esta modalidade de pensamento era essencialmente cristã e
procurava respostas que justificassem a fé na doutrina ensinada pelo
clero, guardião das verdades espirituais. Esta escola filosófica vigora
do princípio do século IX até o final do século XVI. No começo seus
ensinamentos eram disseminados nas catedrais e monastérios,
posteriormente eles se estenderam às Universidades.
Da tentativa de racionalização do pensamento cristão surgiram os
dogmas católicos, os quais procuraram na mentalidade clássica dos
gregos conceitos como ‘providência’, ‘revelação divina’, Criação
proveniente do nada’, entre outros.
A escolástica será permanentemente atravessada por dois universos
distintos – a fé herdada da mentalidade platônica (Decidida aversão à
filosofia que queria constituir-se unicamente com meios racionais;
identificação e preferência com a revelação cristã, quando esta não
concordava com a razão. Construção de uma filosofia distinta e
autônoma, mas em harmonia hierárquica com a fé) e a razão
aristotélica (Nossos pensamentos não surgem do contato de nossa
alma com o mundo das ideias, mas da experiência sensível. "Nada
está no intelecto sem antes ter passado pelos sentidos", dizia o
filósofo. Conhecimento misturado com o mundo da política e da ética).
Agostinho, mais tradicional, clama por um predomínio da
fé, em detrimento da razão, ao passo que Tomás de
Aquino acredita na independência da esfera racional no
momento de buscar as respostas mais apropriadas,
embora não rejeite a prioridade da fé com relação à razão.
A Escolástica foi profundamente influenciada pela Bíblia
Sagrada, pelos filósofos da Antiguidade e também pelos
Padres da Igreja, escritores do primeiro período do
Cristianismo oficial, que detinham o domínio da fé e da
santidade. Portanto e, sendo assim, a verdade é Deus ou
vem de Deus.
O Pensamento Humano Ocidental- O
Nascimento do Racionalismo Moderno nos
Séculos XVI e XVII

- Individualismo: processo de atomização;


- Início do século: conjuntura política e econômica
conturbada; limites deslocados constantemente
(guerras e colonialismo);
- Galileu Galilei (1564-1642) publica em 1638
“Diálogo sobre os dois máximos sistemas de
mundo: copernicano e ptolomaico”, onde afirma
verdadeiro o modelo heliostático de universo
(Copérnico): retirada do homem do centro do
universo.
- René Descartes ( 1596-1650): racionalismo: sistema segundo o qual
a realidade, absolutamente inteligível, só poderia ser idoneamente
apreendida através da razão. Na obra “Discurso do Método” descreve
como encontrar a verdade crível por si mesma, acessível a todo o
pensar, sempre que ele funcione de modo reto e se afaste de tudo o
que se interponha para desviá-lo ou entorpecê-lo. Método: é possível
conhecer a verdade reduzindo ordenada e progressivamente um
sistema composto à evidências simples, claras e distintas: Viabilidade
de apreender o todo através da sua decomposição em partes. Sistema
de pensamento com inclinação totalitária: redutor (a experiência
sensível é enganadora), matemático (o “resto” é “não-ciência”), a
verdade é única (negação da polissemia). Forneceu um critério
classificatório da espécie humana (a razão): fulcro na igualdade
(neutralização da diferença). Sistema fechado: estabilidade e
intemporalidade.
- Francis Bacon (1561-1626/Londres): A reforma do
conhecimento é justificada em uma crítica à filosofia anterior
(especialmente a Escolástica), considerada estéril por não
apresentar nenhum resultado prático para a vida do homem.
O conhecimento científico, para Bacon, tem por finalidade
servir o homem e dar-lhe poder sobre a natureza.
Empirismo: muito embora fosse o homem maleável,
estivesse em transformação constante (movimento), existia
uma espécie de estrutura universal das faculdades mentais
sobre as quais os condicionadores podiam trabalhar, ou
seja, admitiam uma natureza humana original, que não
mudava entre os integrantes da espécie (universal). Embora
sua lógica tendesse, através da observação, a constatação
do relativismo dos povos e indivíduos, os empiristas, em sua
grande maioria, não chegavam a levar ao extremo tal
verificação, contentando-se em procurar o que era comum
aos homens, pela via da observação e da experimentação
dos fatos (a posteriori).
- Issac Newton (1642-1727) publica em 1687 “Princípios
matemáticos da filosofia natural”, onde definiu os princípios
da gravitação universal (desvelando os movimentos dos
seis planetas conhecidos, das luas, cometas, marés e
equinócios, unindo a partir de uma única explicação o
planeta Terra a tudo o que podia ser visto no céu), e
enunciou as leis do movimento dos corpos ( a partir de
uma perspectiva de tempo linear, determinista e simétrica:
conhecendo as condições iniciais de um sistema, era
possível calcular todos os estados seguintes, bem como os
precedentes). Tempo absoluto (igual para qualquer
observador situado em qualquer lugar, desde que usasse
medidor preciso); espaço relativo (o movimento é um
conceito relacional. Newton nunca aceitou esta
consequência de suas teorias).
- No XVII o “devir” não desalojou o
“ser”, e nem o desafiou seriamente
(Baumer): o pensamento, inobstante as
inúmeras descobertas cientificas e as
profundas modificações, continuou
com ênfase no permanente, no fixo, no
absoluto, na estabilidade, no universal,
na perfeição das idéias “eternas”,
entendendo a mudança como sinal de
defeito ou irrealidade.
Século XVIII

- Início do século: ciências humanas eram desprestigiadas (método


cartesiano de constatações apriorísticas-dedutivas para as ciências
exatas e empirismo baconiano a posteriori para as ciências naturais).
Giambattista Vico (1668-1744) propõe o método da “imaginação
reconstrutiva” para as humanidades, através do qual se poderia
chegar à “realidade em transformação”, que para ele é a história dos
homens: partindo-se do estudo dos meios de expressão (mitos,
fábulas, monumentos, rituais, etc.), de como eram compreendidos e
interpretados por um agrupamento humano, permitir-se-ia uma
aproximação à realidade que eles pressupõe e articulam. Espanto:
isso não podia ser provado pelo método cartesiano!! Opositor do
cartesianismo: valorização da imaginação, crítica da necessidade da
certeza na ciência (verossimilhança), opera com probabilidades.
- Iluminismo: racionalidade; crença no progresso do
conhecimento e no controle do homem sobre a natureza,
individualismo, vontade de secularização e de afastamento
da “obscuridade” da Idade Média, igualdade.
- Continuava-se acreditando na universalidade do homem
(possibilitadora de uma igualdade), mas agora se pensava
que ele poderia aperfeiçoar-se através da educação
disciplinada pela razão (de modo que a perfeição era
possível e provável, pelo desenvolvimento da inteligência e
da moral). Se o homem podia se modificar para melhor,
era natural que também pensasse o mesmo do mundo:
crença num projeto de aprimoramento para o mundo,
efetivável pela ciência e pela técnica, ambos produtos do
logos. Crença no progresso linear em direção à ética, à
felicidade, à perfeição: éden na terra.
- sobretudo a partir da década de 80:
Romantismo: reação contra o que se julgava a
“estreiteza” da filosofia, das ciências, das artes,
derivada de um pensamento eminentemente
racional, mecanicista, redutor, que fabricava
modelos ideais com regras universais para todos
os planos da vida humana. Proclamava a
existência de um espírito (componente) irracional
ou inconsciente ( em um sentido mais metafísico
do que científico), uma parcela de forças ocultas e
obscuras, incontroláveis, perturbadoras mas
também criativas: recusa do homem transparente,
racional, ordenado e cognoscível, previsível
porque sujeito à regras universais.
Século XIX

- Romantismo & Neo-Iluminismo (razão; crença na


humanidade (“humanização de Deus”); progresso
científico; culto à ciência (cientificismo); determinismo).
- Segunda metade do século: evolucionismo (vertente
Darwiniana), que acentuou o sentimento de fluxo, de
movimento, de impermanência. Acaso e espontaneidade
banidos da ciência: determinismo. Já se fazia sentir o
movimento, mas ainda havia bastante conservadorismo:
sistema fechado, completo, dotado de leis fixas.
- Final do século: o racionalismo cientificista Neo-Iluminista
continuava forte, porém em um número cada vez maior de
pessoas crescia um sentimento de crise e se aguça o
espírito crítico.
- Sigmund Freud: a teoria sobre o inconsciente corroeu a
idéia de racionalidade totalizadora. O cientista entendia
essencial abandonar a supervalorização da propriedade do
estar consciente para que se pudesse formar um juízo
correto do que é psíquico (última parte de “A interpretação
dos sonhos”- 1899). As mais complexas operações da
psique residiriam no inconsciente. Mas Freud era um
moderno...: ferocidade com que defende a ciência como
única forma de “encontrar a realidade” (rechaço à intuição,
à religiosidade, e ao imaginativo- Vide “o futuro de uma
ilusão”); crença no progresso da humanidade de uma
barbárie instintual para uma civilização racional, progresso
a ser conduzido pelos “mais capazes” (líderes); crença de
que nada poderia unir os homens de forma tão completa e
firme quanto a submissão dos instintos dos indivíduos aos
domínios da razão (“Por que a guerra?”).
- Sentimento de desorientação, condenação
à errância, angustia, absurdo, privação de
referências, decadência que solapava o
progresso, “o homem estava sentir-se
problemático” (Baumer). Vide Edvard Munch
(“O grito”, Sartre ( “A náusea = dor física e
psíquica, embrulho no estômago causado
pela percepção dessa gratuidade = todo
ente nasce sem razão, se prolonga por
fraqueza, e morre por acaso) e Kafka.
- Henri Bérgson: incorporou o movimento no
pensamento científico; rompeu com a
dualidade físico/psicológico, apregoando
que tais sistemas são solidários ( o cérebro
não é um lugar específico do corpo); o
conhecimento ocorre com a atividade
interpenetrada dos instintos e da
inteligência; papel da criatividade na
produção da vida: bifurcações, tendências,
cargas de imprevisibilidade e de desordem
inerentes ao sistema vital.
- Friedrich Nietzsche: atingiu os pilares da cultura moderna
( identidade fixa, sujeito, consciência, igualdade, moral,
racionalidade, possibilidade de domínio da realidade
através da ciência, estabilidade), bombardeando tais
cristalizações a ponto de tomar a forma de um complô: não
se limitando a diagnosticar a conjuntura da época, suas
ideias serviram como instrumento de intervenção, de
deslocamento de perspectivas (Klossowsky).
Século XX

- Albert Einstein: teoria da relatividade em 1905 ( o


tempo é relativo ao referencial – na velocidade da
luz o tempo pára); teoria geral da relatividade em
1916 (quatro dimensões; espaço-tempo
(conotação integrada)). Permaneceram, contudo,
o determinismo e a simetria temporal (apesar de
seus cálculos indicarem que o universo estava em
expansão, Einstein introduziu uma “constante
cosmológica” para que a sua teoria corroborasse a
sua crença em um universo estático).
- Werner Karl Heisenberg: princípio da incerteza
(1927): as entidades subatômicas não podem ter
sua posição e velocidade medidas
concomitantemente de forma absolutamente
precisa. Os resultados dos cálculos
velocidade/posição só poderiam ser expressos por
meio de probabilidade. E mais, a própria medição
altera o resultado obtido. Durante muitos anos a
física presumira o determinismo dos processos da
natureza e a precisão rigorosa de suas medições:
Heisenberg, através da mecânica quântica, inseriu
a probabilidade e a incerteza no âmago do mundo
natural.
- Primeira Guerra Mundial: (1914-1918): a
racionalidade por tanto tempo
compreendida como redentora, sustentáculo
de um processo de desenvolvimento rumo
ao éden, mostrou sua face destrutiva.
- Segunda Guerra Mundial (1939-1945): a
shoah não foi produto da irracionalidade
humana. Gestão burocrática da morte,
visando a máxima eficácia, sob o apelo e o
amparo científico: produção programada de
sofrimento.
- Bombas atômicas/ 1945: dois
Maracanãs de pessoas reduzidas a
nada um segundos.
Atualidade:

- Complexidade: coexistência de elementos antigos e recentes, e não,


tanto, a substituição (superação) gradual de uns pelos outros; Passar
para além das identidades originais e puras para perceber que o
humano se forma no entre-lugar, no interstício e no deslocamento dos
domínios da diferença: Homi Bhabha;
- O Tempo das Tribos: Mafessoli;
- Sociedade do Risco Global: Beck e Douglas;
- Homus Complexus: Morin;
- Aceleração e vertigem da velocidade: Virílio;
- O universo de possibilidades (termodinâmica do não-equilíbrio); o
caos que se auto-organiza: Prigogine;
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FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão. Rio
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KLOSSOWSKY, Pierre, Nietzsche e o círculo vicioso, Rio de Janeiro, Pazulin, 200.
MATTA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes,
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MORIN, Edgar, Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. São Paulo,
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NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Lisboa, Edições 70, 2000.
OLIVEN, Ruben. A antropologia de grupos urbanos. Petrópolis: Vozes, 1985.
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PEIRANO, Mariza. Rituais: ontem e hoje. Coleção Passo a Passo, 24. Rio de Janeiro:
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SARTRE, Jean-Paul. A Náusea. Rio de janeiro, Nova fronteira, 2000.
VELHO, Gilberto. Desvio e divergência: uma crítica social da patologia. Rio de
Janeiro: Zahar, 1979.
VIRILIO, Paul. Velocidade e Política. São Paulo, Estação Liberdade, 1996.

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