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41047 – Problemas Sociais

Contemporâneos

Apontamentos de: Jorge Loureiro


E-mail: jorgel@sapo.pt
Data: 04.09.2008

Livro: Problemas Sociais Contemporâneos (Hermano Carmo – coord.)

Nota: Matéria referente ao ano lectivo 2007-2008 (Mestre Rosana Albuquerque)


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1. Estudar os problemas sociais


1.1. Dos problemas sociais aos problemas
sociológicos
O que são problemas sociais? Podemos apresentar desde já duas definições
possíveis: segundo Rubington e Weinberg (1995:4), um problema social é
“uma alegada situação incompatível com os valores de um significativo número
de pessoas, que concordam ser necessário agir para a alterar”. Para Spector e
Kitsuse (citado em Hester, Eglin 1996:1), um problema social é constituído
pelo conjunto das acções que indivíduos ou grupos levam a cabo ao
prosseguirem reivindicações relativamente a determinadas condições
putativas. As duas definições são muito diferentes nos seus pressupostos.
Enquanto que a primeira se centra na situação que é considerada problema, a
segunda definição privilegia o processo pelo qual uma situação é considerada
como problema.
É difícil chegar a uma definição consensual do que seja um problema social,
quer ao nível da realidade social, quer entre os sociólogos que se dedicam ao
seu estudo, porque a definição depende da perspectiva que se adopta.
Os problemas sociais, imbuídos de um significado social (porque se definem
em função de um conjunto de valores sociais), ao passarem pelo crivo do
método científico, adquirem um significado sociológico, isto é, reflectem
valores sociológicos relativos às perspectivas teóricas e metodológicas
seguidas (Pais 1996). Para que um problema social possa ser considerado
problema sociológico deve possuir as condições de regularidade,
uniformidade, impessoalidade e repetição (Gonçalves 1969:12).
A problematização sociológica dos problemas sociais implica mesmo a des-
construção destes, o desmantelar do significado social de maneira a criar um
significado de acordo com o discurso científico (Quivy, Campenhoudt 1992).
Ao nível do significado social, a juventude é problematizada relativamente a
aspectos tão variados como a inserção profissional, a emancipação adulta, a
toxicodependência, a crise dos valores tradicionais, entre muitos outros
aspectos. Mas, problematizar sociologicamente a juventude será questionar,
por exemplo, se os jovens sentem estes problemas como seus e de que forma
os percepcionam (Pais 1996). Será questionar a definição de jovem, quais as
soluções que a sociedade preconiza para os problemas da juventude e quais
as suas consequências.
A velhice enquanto problema social e sociológico é outro exemplo (Fernandes
1997). Foi com a industrialização, a urbanização e o envelhecimento
demográfico que começaram a criar-se as condições para a definição da
velhice enquanto problema social a ser solucionado. Problematizar a velhice
em termos sociológicos será questionar, por exemplo como o faz Fernandes
(1997: 62-63), “que transformações ocorreram nas famílias e na sociedade
portuguesa que possam explicar a emergência do problema social [...] velhice?
[...]”
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1.1.1. A questão do positivismo versus


relativismo
Pensamos ser fundamental fazer aqui uma primeira reflexão sobre as
condições epistemológicas do estudo dos problemas sociais. O
conhecimento sociológico pode ser situado num contínuo epistemológico
que vai do Positivismo ao Relativismo.
A sociologia positivista defende a procura de leis sociais (à
semelhança das leis do mundo natural) a partir de um método indutivo-
quantitativo, e advoga uma separação absoluta entre a Ciência e a
Moral, isto é, entre os factos e os valores (Lapassade, Lourau 1973).
Para a ciência positivista é possível conhecer objectivamente a realidade
social, uma vez que existem critérios universais do conhecimento e
da verdade. Ao abordar os problemas sociais, a sociologia positivista
estuda situações objectivas, que são definidas como problemas em
razão de características que lhe são próprias. Daí a necessidade de
se conhecerem as suas causas e de se chegar à elaboração das leis
que regem o fenómeno.
No outro extremo do contínuo está a posição relativista, segundo a
qual não existe nenhum critério universal para o conhecimento e
para a verdade. Todos os critérios utilizados serão sempre internos ao
sistema cogniscente e, como tal, serão relativos e não universais.
Consequentemente, a definição do que seja um problema social será
sempre relativa, será antes de mais um rótulo colocado a
determinadas situações, e não uma característica inerente à situação
em si mesma.
Como resultado desta argumentação, o estudo das causas ou da
etiologia da situação é deixado de lado ou secundarizado. O que importa
estudar é a definição subjectiva dos problemas sociais, conhecer os
processos pelos quais uma dada situação se torna problema social.

1.1.2. A aplicabilidade da ciência e o


desenvolvimento teórico
Um problema pressupõe uma solução. O nascimento e desenvolvimento
das ciências sociais, particularmente da sociologia, durante o século XIX
esteve intimamente ligado ao estudo das preocupações humanas para
as quais os actores sociais pensaram e desenvolveram soluções
humanas, isto é, sociais.
Desde o início, os sociólogos tentam equacionar o que Rubington e
Weinberg (1995:360) denominam de mandato duplo:
a) por um lado, dar atenção aos problemas existentes na
sociedade, numa perspectiva de correcção da realidade
social, através dos conhecimentos empíricos adquiridos;
b) por outro lado, desenvolver teórica e metodologicamente a
sociologia enquanto ciência.
Hester e Eglin, seguindo Matza (Hester, Eglin 1996:4) consideram que o
primeiro tipo de perspectiva pode ser denominado de sociologia
correctiva, que parte dos seguintes pressupostos:
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• Equivalência de problema social a problema sociológico


• As questões sociológicas derivam das preocupações sociais
• O grande objectivo do estudo sociológico é a melhoria dos
problemas sociais
• Preocupação central com as causas ou etiologia dos problemas
• Compromisso com os princípios positivistas da ciência
Ao concentrar-se em responder à questão porque é que os
comportamentos acontecem, não questiona porque é que as situações
são definidas como problema, aceitando as definições socialmente
estabelecidas.
O mandato duplo dos sociólogos não deve ser entendido como
mutuamente exclusivo, pois como já defendia Kurt Lewin, uma boa teoria
é sempre prática, e a prática empírica é sempre indispensável ao
desenvolvimento teórico. A separação entre os dois domínios é um falso
problema.
A questão da aplicabilidade da sociologia e doutras ciências sociais leva-
nos a referir a posição que muitos autores tomam denominada de
Sociologia de Intervenção (Carmo 1999; Hess 1983). A Sociologia de
Intervenção não é uma especialidade ou ramo sociológico, mas sim um
modo de ver o trabalho do cientista social que, em vez de isolar
assepticamente o investigador do seu objecto de estudo, o desafia a ser
“contaminado” por este, o leva a intervir activamente na realidade que
estuda e a não separar os papéis de investigador e de cidadão. A
investigação social deve ser utilizada para melhorar a sociedade,
segundo princípios humanistas de solidariedade e de libertação.
Na Sociologia de intervenção, a sociologia é um vírus que toca a toda a gente. Ela
deve ser feita pelos próprios grupos sociais, sendo o sociólogo antes de mais
aquele que propaga o vírus do que aquele que produz a sociologia como momento
particular do saber social.

Após esta breve introdução a dois aspectos que consideramos


fundamentais para se perceberem as diferentes aproximações
sociológicas ao estudo da realidade social, passamos a descrever
algumas perspectivas possíveis de estudo e compreensão dos
problemas sociais, para o que seguimos de perto as sete correntes
sociológicas propostas por Rubington e Weinberg (1995) na sua obra de
síntese sobre esta matéria, sendo apresentadas pela ordem cronológica
em que dominaram o pensamento sociológico norte-americano, como
defendem estes autores.
Dividimos as perspectivas em duas categorias, segundo a linha
positivista ou relativista que adoptam, de acordo com o que foi exposto
acima.
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1.2. As perspectivas de estudo dos


problemas sociais
1.2.1. As perspectivas da Sociologia
Positivista
1.2.1.1. Patologia Social
Os avanços e os sucessos de disciplinas já instaladas, como a
biologia e a medicina, influenciaram profundamente os sociólogos
a adoptarem a analogia do organismo ao seu objecto de estudo:
a sociedade. Adoptaram igualmente um modelo médico de
diagnóstico e de tratamento. Os problemas sociais são
entendidos como doenças ou patologias sociais.
O pensamento organicista, cujo autor mais consistente foi o
britânico Herbert Spencer, defende que a sociedade e os seus
elementos podem sofrer malformações, desajustamentos e
doenças, à semelhança dos organismos vivos. Este argumento
pressupõe um estado de saúde ou de normalidade do organismo,
sendo que as pessoas e as situações que interfiram com este
estado de normal funcionamento do organismo social são assim
considerados problemas sociais.
Para a corrente da Patologia Social, um problema social é uma
violação de expectativas morais (Rubington, Weinberg 1995:19).
A condição de saúde ou normalidade do organismo é definida por
valorações do Bem e do Mal.
A patologia pode ser encontrada no indivíduo ou no mau
funcionamento institucional. Foi a perspectiva do Homem
Delinquente da escola positiva italiana de criminologia, donde se
destacaram Cesare Lombroso, Ferri e Garófalo (Dias, Andrade
1984).
Uma vez que o problema está no indivíduo, é essencial que se
identifiquem as características que diferenciam o elemento doente
daqueles que são normais. Para Cesare Lombroso, era claro que a
explicação do comportamento criminal dos indivíduos estava em
características fisiológicas particulares, como o tamanho dos
maxilares, assimetria facial, orelhas grandes ou a existência de um
número anormal de dedos. Já no séc. XX, avançaram-se outras
explicações de base psicológica ou biológica, ao nível de
anormalidade cromossomática (um duplo cromossoma Y) ou
predisposição genética para a extroversão, que segundo Eysenck
está ligada a comportamentos de violação de normas (Aggleton
1991; Dias, Andrade 1984).
Esta corrente voltou a ganhar alguma importância na década de
1960, mas os novos patologistas sociais afastaram-se da procura
de deficiências nos indivíduos e centraram-se antes nas
deficiências na socialização. Segundo esta nova aproximação à
patologia social, os problemas sociais seriam o resultado da
incorporação de valores “errados” pelos indivíduos, fruto de uma
“sociedade doente”. Neste sentido, a solução para os problemas
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sociais passaria necessariamente pela educação moral da


sociedade e pela incorporação de valores moralmente correctos.
A grande crítica, e para muitos autores fatal, que se coloca a esta
perspectiva reporta-se à definição de patologia: como podemos
definir o que é patológico? Vytautas Kavolis (citado em Rubington,
Weinberg 1995:35-39) propôs a conceptualização de patologia
como sendo um comportamento destrutivo ou auto-destrutivo. Para
Kavolis a definição de comportamento destrutivo seria possível em
termos absolutos, isto é, igual em todas as sociedades humanas.
Mas, apesar desta tentativa de Kavolis, os autores relativistas,
como Carl Rosenquist (citado em Rubington, Weinberg
1995:45-50) defendem que é impossível chegarmos a uma
definição objectiva do que é patológico, até porque a “saúde” da
sociedade passa muitas vezes pela “doença” de algumas das suas
partes. Para Rosenquist, a única forma de se estudarem os
problemas sociais é passando ao lado do que constitui a sua
condição problemática e aceitar o julgamento social como um
dado.

1.2.1.2. Desorganização Social


Ainda segundo Rubington e Weinberg (1995), os quatro teóricos
mais importantes da desorganização social foram Charles Cooley,
Thomas, Znaniecki e William Ogburn.
Cooley teorizou a distinção entre grupos primários e
secundários, sendo que nos grupos primários os indivíduos vivem
relacionamentos face a face, mais intensos e duradouros,
enquanto que nos grupos secundários as relações sociais são
mais impessoais e menos frequentes. Na sua obra de 1909,
precisamente intitulada “Social Organization” (citado em Rubington,
Weinberg 1995), Cooley definiu a desorganização social como
sendo a desintegração das tradições.
De forma semelhante, Thomas e Znaniecki, no seu estudo
clássico sobre os imigrantes polacos, conceptualizaram a
desorganização social como a quebra de influência das regras
sociais sobre os indivíduos.
O contributo de Ogburn centrou-se no conceito de desfasamento
cultural (cultural lag) que este autor propôs. Para a perspectiva da
desorganização social, a sociedade não é um organismo mas
sim um sistema, composto por várias partes interdependentes.
Aos teóricos acima mencionados, gostaríamos de acrescentar os
nomes de Robert Park, Ernest Burgess e Roderick McKenzie,
os quais consideramos incontornáveis ao falarmos em
desorganização social, no seguimento dos estudos que levaram a
cabo sobre a organização espacial da cidade. Efectivamente, o
fenómeno da urbanização é central para a perspectiva da
desorganização social ao estar relacionado com o
enfraquecimento das relações face a face e das tradições
sociais.
Para os autores da Escola de Chicago a desorganização social, e
por conseguinte os problemas sociais, têm uma distribuição
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desigual pelas zonas da cidade, apresentando maior intensidade


na zona II1, precisamente uma zona de Transição, onde se
concentram os migrantes recentes (imigrantes e população vinda
das zonas rurais) e onde é maior a quebra do peso das tradições.
Embora o conceito de desorganização social se tenha revelado
inicialmente de grande utilidade para a compreensão de um mundo
onde a mudança começava a ser cada vez mais rápida,
começaram a ser postas em evidência as fraquezas desta
perspectiva.
Passamos a apresentar as críticas apontadas por Marshal Clinard
(citado em Rubington, Weinberg 1995:81-82) ao conceito de
desorganização social:
a) o seu poder explicativo para a sociedade em geral é
reduzido, por ser um conceito demasiado vago e
subjectivo.
b) confundiu-se desorganização social com mudança
social, o que desde já deixa por explicar porque é que nem
todas as mudanças originam desorganização, e implica que
se prove que a situação anterior era de organização.
c) é um conceito fortemente sujeito aos julgamentos de
valor do investigador, tal como o conceito de patologia.
Por um lado, tende-se a considerar desorganização numa
perspectiva negativa, como se todas as situações de
desorganização sejam por essência “más”.
d) por outro lado, aplicou-se o conceito de desorganização
social a situações que não são de desorganização, mas
que, pelo contrário, traduzem outros tipos de organização,
de que é um exemplo típico o que se passa nos bairros de
lata.
e) o sistema social pode acolher em si focos de
desorganização ou a existência de comportamentos
desviados sem que tal comprometa o seu
funcionamento, desde que outros objectivos do sistema
estejam a ser alcançados, contrabalançando as influências
desestabilizadoras que possam existir.
f) no seguimento da crítica anterior, ao constatarmos a
existência de diferentes formas de organização social, não
podemos inferir que tal situação seja desastrosa para a
sociedade podendo pelo contrário ser indispensável para a
manutenção da coesão social.
Outra crítica importante a apontar é que a perspectiva da
desorganização social utiliza frequentemente explicações circula-
________________________________
1
Relembrando o sistema das zonas concêntricas proposto por Burgess, Park e McKenzie, começamos
por uma zona I que corresponde à área central de negócios onde estão instalados grandes armazéns,
sedes de empresas, escritórios, pequena indústria, espaços de divertimento e outros serviços; a zona II
é a zona de Transição, área deteriorada e de guetos, habitada principalmente por trabalhadores não
especializados e imigrantes; segue-se a zona III onde habitam os trabalhadores mais especializados e
a segunda geração de imigrantes; as zonas IV e V são áreas de residência das classes mais elevadas,
respectivamente zona de apartamentos e zona de moradias dos trabalhadores pendulares
(commuters).
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res para os problemas de desorganização (Aggleton 1991), isto é,


o mesmo facto é considerado indicador e causa de desorganização
social (por ex. o desemprego).

1.2.1.3. Conflito de Valores


Um outro modo de ver os problemas sociais é considerá-los como
o reflexo de um conflito de valores na sociedade relativamente a
uma dada situação.
Esta perspectiva concebe a sociedade como um palco onde se
confrontam grupos sociais com interesses diferentes, fazendo
deste conflito permanente a dinâmica central da vida social. Os
problemas sociais daí resultantes só podem ser solucionados pela
resolução dos conflitos que estão na sua origem, pela negociação
e consenso, ou pela coerção e imposição.
A perspectiva do conflito de valores, ao definir os problemas
sociais em relação a valores ou interesses dos grupos sociais
envolvidos, coloca em evidência a importância da definição
subjectiva, sem a qual a condição objectiva de base não seria só
por si um problema social.
Os teóricos mais importantes desta corrente na sociologia norte-
americana foram Richard Fuller e Richard Myers. Segundo estes
autores, podem ser distinguidos três tipos de problemas que
afectam as sociedades (citados em Rubington, Weinberg
1995:93-98):
a) problemas físicos
b) problemas remediáveis (ameliorative)
c) problemas morais
Relativamente aos problemas físicos, que não são causados pela
acção humana (por ex. sismos ou furacões), existe consenso geral
de que a condição objectiva é indesejável e nada se pode fazer
para controlar as causas do problema2.
Os problemas remediáveis (por ex. delinquência juvenil),
apresentam consenso quanto à indesejabilidade da situação e
quanto à necessidade de agir para a corrigir, mas criam-se
conflitos no que diz respeito ao conteúdo da acção, ou seja, o que
fazer.
Por fim, os problemas morais (de que podem ser ex. o consumo
de marijuana ou a eutanásia) são os mais complexos, pois não
existe consenso quanto à própria indesejabilidade da situação.
Ainda segundo Fuller e Myers, os problemas sociais evoluem
segundo três fases (citados em Rubington, Weinberg
1995:98-108):
1ª) inicialmente processa-se a tomada de consciência do
problema, quando os grupos sociais começam a encarar
uma dada situação incompatível com os seus valores mais
importantes, reconhecendo a necessidade de agir,
________________________________
2 O que constitui um problema físico muda com o avanço científico e tecnológico, à medida que a
ciência domina o conhecimento das causas de certos fenómenos e concebe meios de os controlar.
10

2ª) segue-se uma fase de determinação política, isto é, um


processo de clarificação dos valores e das posições em
presença e definição de propostas de acção,
3ª) por fim, a fase das reformas, na qual são postas em
prática determinadas soluções para o problema, que podem
ser levadas a cabo por agentes públicos ou por
organizações privadas.
A fase da consciencialização dos problemas pode ser considerada
como estando sempre em aberto.

1.2.1.4. Comportamento Desviado


A intenção de integrar campos, que tantas vezes estavam em
oposição, está na base da perspectiva do comportamento
desviado. Observou-se uma clara tentativa de conciliar as duas
grandes escolas que dominavam o pensamento académico da
sociologia norte-americana:
a) a Escola de Harvard, de ênfase teórica,
b) e a Escola de Chicago, iminentemente empírica e
descritiva.
Na Universidade de Harvard, pontificava a figura de Talcott
Parsons e dos seus alunos, que iam desenvolvendo o pensamento
funcionalista-estrutural. Sendo uma escola com forte pendor
teórico, aí se discutia o pensamento de sociólogos clássicos
europeus, com especial destaque para Durkheim e Max Weber. É
precisamente com o conceito de anomia que Robert Merton, um
aluno de Parsons, irá dar um importante contributo para a
perspectiva do comportamento desviado.
Para Durkheim, o conceito de anomia significava uma ausência
de normas, um quebrar das regras (Aggleton 1991; Barata 1990;
Timasheff 1979).
O conceito de anomia em Merton é um tanto diferente: refere-se
antes a um desfasamento entre metas culturais a atingir e os
meios que a sociedade proporciona para o efeito. Se
determinadas metas culturais forem enfatizadas mas os indivíduos
não dispuserem dos meios sancionados pela estrutura social,
estaremos perante uma situação de anomia.
Daqui resulta que o comportamento desviado é entendido como
normal em relação a situações anormais, concepção que já
Durkheim tinha avançado3.
Segundo Merton, o desfasamento entre meios e metas dá origem a
quatro tipos de adaptação individual:
• a inovação, na qual as metas são mantidas mas são
utilizados novos meios para as alcançar (por ex: roubar ou
subornar),
o ritualismo, pelo qual se renuncia às metas, mas se

sobrevalorizam os meios,
________________________________
3
Os comportamentos desviados apresentam mesmo funções sociais, nomeadamente como definição
do contrário do comportamento aceitável na sociedade e catalizadora da coesão social.
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• a evasão, na qual tanto os meios como as metas são


renunciados (por ex: alcoolismo),
• e a rebelião, quando se pretende instaurar novas
estruturas de metas e de meios.
Como vimos acima, também a Universidade de Chicago influenciou
a perspectiva do Comportamento Desviado. É aí que Edwin
Sutherland desenvolve a teoria da associação diferencial,
apresentada pela primeira vez em 1938 (Aggleton 1991;
Rubington, Weinberg 1995).
Sutherland, mais tarde em parceria com Donald Cressey,
apresenta em nove pontos este processo de génese do
comportamento criminoso (citado em Rubington, Weinberg
1995:149-151):
1. o comportamento criminoso é apreendido, não é inato,
2. é aprendido pela interacção com outros indivíduos num
processo de comunicação,
3. a aprendizagem mais importante é feita em grupos
primários4,
4. a aprendizagem envolve, por um lado, as técnicas
necessárias ao crime e, por outro lado, os motivos, as
racionalizações e as atitudes a ele ligadas,
5. os motivos e os impulsos são aprendidos segundo a definição
favorável ou desfavorável aos códigos legais. Podemos estar
num meio no qual os códigos legais são definidos
favoravelmente e são para ser observados, ou, pelo contrário,
podemos estar rodeados de indivíduos que são favoráveis à
violação dos códigos legais,
6. um indivíduo torna-se delinquente pela razão de encontrar um
excesso de definições favoráveis à violação da lei em
detrimento das definições desfavoráveis à violação da lei,
7. a associação diferencial varia em termos de frequência,
duração, proximidade e intensidade,
8. o processo de aprendizagem dos comportamentos criminosos
e não criminosos integra todos os aspectos normalmente
envolvidos em qualquer tipo de aprendizagem,
9. as necessidades e os valores gerais (ex: segurança, riqueza
material) que são reflectidos pelo comportamento criminoso
não explicam este mesmo comportamento, uma vez que
outros comportamentos não criminosos também os reflectem.
10. Em meados dos anos 50, Albert Cohen, na sua teoria da
subcultura delinquente (Cohen, 1968), sustentou que os
jovens da classe trabalhadora enfrentavam uma situação de
anomia no sistema escolar, pensado segundo os valores da
classe média. Na escola eram ensinados a prosseguir estes
valores mas eram-lhes vedados os meios legítimos para os
________________________________
4
Esta proposição secundariza a importância dos mass media na aprendizagem dos comportamentos
desviados.
12

poderem atingir. Em resultado, estes jovens uniam-se e


formavam uma cultura própria que violava os códigos legais.
As novas normas eram socializadas através do processo da
associação diferencial.
Outra teoria de síntese foi proposta por Richard Cloward e Lloyd
Ohlin nos anos 60 (Cloward e Ohlin 1966). Na sua teoria da
oportunidade, estes autores sustentam que não basta
considerarmos a estrutura de oportunidades legítimas na génese
do comportamento delinquente: é igualmente essencial ter em
conta a estrutura de oportunidades ilegítimas.
A perspectiva do comportamento desviado entende que os
problemas sociais reflectem, de forma mais ou menos directa,
violações das expectativas normativas da sociedade, sendo
que todo o comportamento que viola essas expectativas é um
comportamento desviado. A solução para os problemas de
comportamento desviado deverá passar pela ressocialização dos
indivíduos e pela mudança da estrutura social de oportunidades,
de forma a que sejam aumentadas as oportunidades legítimas e
diminuídas as oportunidades ilegítimas.
Outros sociólogos não se interessaram pelo processo como
etiologia e revolucionaram o modo como os problemas sociais
estavam a ser estudados.

1.2.2. As perspectivas da Sociologia


Relativista
Neste ponto iremos abordar três perspectivas que seguem uma visão
relativista da ciência, de base interaccionista (o labeling e o
constructivismo social) e estruturalista (a perspectiva crítica). Nelas se
defende, em oposição ao positivismo, que o conhecimento é socialmente
construído. Se assim é, a questão central é saber como é que a
realidade faz sentido para as pessoas e através de que processos estas
dão e partilham significados sociais.

1.2.2.1. Labeling
Mead, que foi professor de filosofia na Universidade de Chicago,
concebeu a formação do Ego como o resultado das interacções
sociais com Outros Significativos (Aggleton 1991; Barata 1990a).
As pessoas interagem fundamentalmente através de símbolos
(sons, imagens, gestos, etc.) e os seus significados emergem da
interacção social.
Herbert Blumer desenvolveu a ideia de que os significados não
são dados, mas requerem uma interpretação activa por parte dos
actores sociais envolvidos (Aggleton 1991).
Erving Goffman introduziu o conceito de identidade social, para
se referir às qualidades pessoais que permanecem constantes em
diferentes situações (Aggleton 1991). Defendeu ainda que a
identidade social pode ser consolidada pelas reacções dos outros
ao comportamento dos indivíduos. Se as reacções forem
negativas, as pessoas podem ser forçadas a aceitar uma “spoiled
identity”, processo que Goffman define como de estigmatização.
13

Se é certo que os autores acima referidos foram fundamentais para


a teoria do labeling, os nomes pioneiros da perspectiva
propriamente dita são indiscutivelmente os de Edwin Lemert e
Howard Becker. Edwin Lemert defendeu, no início dos anos 50, a
teoria de que o desvio é definido pelas reacções sociais e
introduziu os conceitos de desvio primário e desvio secundário
(Aggleton 1991; Rubington, Weinberg 1995). Esta distinção de
conceitos baseia-se numa outra distinção que Lemert estabeleceu
entre comportamento desviado (deviant act) e papel social
desviado (deviant role). Existe uma multiplicidade de causas,
biológicas e sociais, para os comportamentos desviados, isto é,
para o desvio primário. Mas a causalidade dos papéis sociais
desviados, ou desvio secundário, reside na interacção social entre
o indivíduo que é definido como desviado e a sociedade onde se
insere. A reacção social ao desvio primário está assim na
origem do desvio secundário.
Segundo Lemert, a sequência de interacção que leva ao desvio
secundário pode ser esquematizada com a seguinte evolução
(Lemert citado em Rubington, Weinberg 1995:194):
1. ocorrência do desvio primário
2. sanções sociais
3. recorrência do desvio primário
4. sanções sociais mais pesadas e maior rejeição social
5. continuação do desvio, agora com possível hostilidade e
ressentimento por parte do indivíduo desviado para com
aqueles que o sancionam
6. o coeficiente de tolerância chega a um ponto crítico, que se
reflecte nas acções formais de estigmatização do indivíduo
levadas a cabo pela comunidade
7. fortalecimento do comportamento desviado como reacção à
estigmatização e às sanções
8. aceitação do estatuto de desviado por parte do indivíduo
estigmatizado e consequentes ajustamentos com base no
novo papel social
Esta perspectiva é reforçada por Howard Becker ao introduzir o
conceito de labeling, que deu o nome a esta corrente, e o conceito
de carreira desviante.
Becker defendeu que o comportamento desviado é aquele que a
sociedade define como desviado. Os problemas sociais, tal
como os comportamentos desviados, são definidos pelas reacções
sociais a uma alegada violação das normas ou expectativas
sociais, e podem ser ampliados por essas mesmas reacções.
Para que alguém seja rotulado de desviado é necessário percorrer
uma série de fases sequenciais, num processo de interacção
dinâmico, a que Becker apelidou de carreira desviante.
O que a perspectiva do labeling constatou é que nem todos os que
14

violam as normas são rotulados de desviados5, o que nos leva a


considerar que, em última instância, todo este processo traduz uma
certa equação do poder na sociedade: quem define as regras,
quem aplica os rótulos, quem é rotulado.
Este aspecto está relacionado com algumas das críticas feitas a
esta corrente: afirmar que o desvio é originado antes de mais pela
formulação das regras que são violadas e pelas reacções a esta
violação das normas, soa como uma desculpabilização e
desresponsabilização dos comportamentos em vez de uma
explicação dos mesmos.

1.2.2.2. Perspectiva Crítica


A perspectiva crítica, também denominada de perspectiva radical,
veio a centrar-se na questão da influência do poder na definição
dos comportamentos desviados e dos problemas sociais, e
numa concepção alargada da contextualização social do
desvio.
Partilham com a corrente interaccionista a posição de que os
problemas sociais são definições sociais, mas preocupam-se em
explicar em termos estruturais porque é que certas situações se
transformam mais facilmente em problemas sociais do que outras.
Assume, portanto, uma postura de conflito na génese dos
problemas sociais. Segundo a tradição marxista, os modos de
produção da infra-estrutura económica determinam relações
sociais distintas. No estádio capitalista de desenvolvimento, a
divisão social mais importante é a que separa os que possuem os
meios de produção, a classe capitalista, dos que têm unicamente a
sua força de trabalho para vender, e que constituem a classe
trabalhadora.
Os interesses da classe capitalista e os da classe trabalhadora são
irremediavelmente opostos. A vida social é consequentemente
caracterizada pelo conflito.
Todas as instituições sociais estão assim interligadas e dominadas
pela infra-estrutura económica. A abordagem à realidade social
deve ser holística e analisar cada fenómeno social em relação a
todo o sistema social.
Para a perspectiva crítica, os problemas sociais advêm das
relações sociais impostas pelo modo de produção, e traduzem
a necessidade de controle da classe capitalista e a
necessidade de resistência e acomodação das classes
exploradas.
A solução para os problemas sociais reside, em última instância,
na mudança (de preferência revolucionária) do sistema social de
classes para uma sociedade sem classes, isto é, sem
exploração humana, sem injustiças e sem desigualdades.
O surgimento da corrente crítica e a sua influência no pensamento
________________________________
5
Ver por exemplo o interessante estudo de William Chambliss, de 1973, The Saints and the
Roughnecks (citado em Rubington, Weinberg:205-219), que ilustra as diferenças na imposição do
rótulo de delinquente a jovens provenientes de classes sociais distintas.
15

sociológico datam dos anos 70, uma década de crise e de


profunda crítica social, no seguimento aliás da década anterior. Foi
um período de renascimento das grandes discussões teóricas.
Os autores mais significativos desta abordagem foram os
sociólogos britânicos Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young
(1975; 1981), responsáveis pela obra fundamental “The new
criminology”, que deu nome à corrente da nova criminologia ou
criminologia radical. Segundo Taylor, Walton e Young, o desvio
deve ser analisado de forma materialista e histórica:
materialista porque deve ser analisado o contexto material no qual
surge o desvio; histórica poque se deve relacionar o desvio com a
evolução histórica dos modos de produção.
Esta perspectiva tem sido fortemente criticada por autores
positivistas que argumentam ser este tipo de abordagem mais
uma ideologia do que uma teoria científica. Da mesma forma
que a teoria do labeling foi criticada por se limitar a explicar o
processo da rotulagem social e não os comportamentos desviados,
também se apontou à perspectiva crítica o facto de se ter centrado
na explicação da génese das leis e no funcionamento das
instituições de controle e ter negligenciado neste processo a
explicação dos comportamentos desviados.
Outro tipo de crítica é relativa à ênfase dada por esta corrente às
questões de classe e ao poder económico, quando existem outras
fontes de conflito social, com base no género, idade ou nas
diferenças étnicas (Marshall Clinard e Robert Meir citados em
Rubington, Weinberg 1995:279-280). Efectivamente, a perspectiva
crítica aborda estas questões, mas considera-as como sendo
dependentes da infra-estrutura económica.
Como perspectiva de conflito que é, torna-se mais plausível
quando na sociedade não há claramente um consenso quanto à
definição do que sejam comportamentos ou pessoas desviados.
Como notam Marshall Clinard e Robert Meir (citados em
Rubington, Weinberg 1995:280), existem leis que beneficiam
claramente toda a sociedade (como sejam as leis contra
homicídios), e algumas acabam por proteger mais as classes
trabalhadoras do que as classes capitalistas (segundo Clinard e
Meir, as leis que penalizam os roubos e os assaltos são disso
exemplo).

1.2.2.3. Constructivismo Social


A afirmação de que a realidade social é socialmente construída
pode ser subscrita, num sentido amplo, por todos os sociólogos,
independentemente do seu posicionamento teórico. Ao falarmos
aqui em constructivismo social estamos a referir-nos a correntes
teóricas cuja ideia central e geradora é a de que as pessoas
criam activamente a sociedade.
Os autores que introduziram formalmente esta perspectiva foram
Peter Berger e Thomas Luckmann, com a obra “The social
construction of reality”, publicada nos EUA em 1966 (Berger,
Luckmann 1999; Corcuff 1997). Ambos os sociólogos foram alunos
16

de Albert Schutz, considerado o pai da sociologia fenomenológica


e um dos mentores da teoria do labeling.
Berger e Luckmann (1999) defendem que a sociedade é uma
produção humana e o Homem é uma produção social. Para
estes sociólogos, a sociedade é ao mesmo tempo uma realidade
objectiva e subjectiva. É objectiva porque é exteriorizada,
relativamente aos actores sociais que a produzem, e é
objectivada, sendo constituída por objectos autónomos dos
sujeitos sociais. É uma realidade subjectiva porque é interiorizada
através da socialização.
Quando Berger e Luckmann publicaram “The social construction of
reality” a teoria do labeling estava em plena expansão. Mas em
razão do seu próprio desenvolvimento as vozes críticas cedo
começaram a surgir no interior da teoria. As de John Kitsuse e de
Malcolm Spector foram duas delas.
Embora a teoria do labeling tenha defendido que o desvio só é
desvio quando é assim reconhecido socialmente, acabou por não
pôr em causa essas mesmas definições, isto é, não questionou
porque é que certos comportamentos eram definidos como desvio
e outros não, e desenvolveu a sua construção teórica à volta das
definições de desvio socialmente estabelecidas. A perspectiva do
labeling preocupou-se fundamentalmente em explicar o processo
pelo qual o rótulo de desvio era afixado aos indivíduos. Para
Kitsuse e Spector a questão que deverá ser colocada é, antes de
mais, saber porque é que algumas situações são consideradas
problemas sociais e outras não. O que pretendem explicar é o
surgimento do próprio rótulo de problema social. Segundo estes
autores, somente através desta problematização sociológica será
possível chegarmos a uma teoria social dos problemas sociais.
A condição objectiva do problema social é, portanto, posta de
lado pela perspectiva constructivista, pois esta não é essencial
para a existência de um problema social.
É a definição subjectiva do problema social que se revela
essencial para a existência do mesmo e como tal só esta deve ser
investigada pelos sociólogos. Problemas como a violência
conjugal, o trabalho infantil, a discriminação das mulheres ou a
poluição ambiental são exemplos de situações que só se
converteram em problemas sociais quando se estabeleceu com
sucesso um movimento de reivindicação que definia estas
situações como problemas.
Um problema social só se constitui em razão de todo um
processo de reivindicação e reacção social. Daqui resulta que
para a perspectiva constructivista importa identificar quem
considera que existe uma situação inaceitável e exige acção
reparadora, ou seja,
• quem define uma dada situação, real ou virtual, como
problema social;
• quais as razões que apresenta;
• quem reaje a esta pretensão e
• que tipo de dinâmica se estabelece entre as duas partes
(Rubington, Weinberg 1995).
17

Somente após o estudo empírico do processo de definição de cada


problema social é que podem ser elaboradas possíveis soluções
para o mesmo.
Esta posição constructivista, que Rubington e Weinberg
consideram de posição subjectiva radical (1995:292) é fortemente
criticada, nomeadamente por aqueles que enfatizam a
aplicabilidade da investigação no melhoramento da sociedade e
que acusam esta perspectiva de menosprezar o sofrimento
causado pelas situações objectivas que secundarizam. Os
constructivistas sociais argumentam em resposta que o
conhecimento do processo de reivindicação de problemas sociais
pode ser produtivamente aplicado às mais variadas situações
sociais: para que se dê a devida atenção às condições objectivas
causadoras de sofrimento é necessário antes de mais que exista
quem reivindique eficazmente por elas (Joel Best citado em
Rubington, Weinberg 1995:341-351).
É igualmente importante reconhecer que nem todos os autores
constructivistas põem completamente de lado as condições
objectivas dos problemas sociais, nem esta corrente afirma que
não se devem estudar estas situações objectivas: o que afirmam é
que este não deve ser o tipo de problema sociológico a ser
respondido pelos sociólogos que pretendem estudar os problemas
sociais enquanto definição de fenómenos sociais.
Podemos exemplificar esta ideia com o fenómeno da delinquência
juvenil: segundo o constructivismo social, ou estudamos a
delinquência juvenil, investigando aspectos como as causas do
comportamento desviado dos jovens, a evolução dos casos de
delinquência, ou a sua distribuição pelos estratos sócio-
económicos, ou então estudamos o problema social da
delinquência juvenil, ou seja, como é que a sociedade veio a
reconhecer este fenómeno como problema social, e neste caso
não é essencial que se saibam as causas do comportamento
desviado em questão.
18

1.3. Síntese
Perspectivas de estudo dos problemas sociais

Perspectiva Definição de Problema Social Elemento Central

Patologia Social Violação de expectativas morais Pessoas

Desorganização
Falha no funcionamento das regras sociais Regras sociais
Social

Conflito de Situação incompatível com os valores de


Valores e Interesses
Valores um grupo social

Comportamento
Violação de expectativas normativas Papéis sociais
Desviado

Resultado da reacção social a alegada


Labeling Reacções sociais
violação de normas ou expectativas

Perspectiva Resultado da exploração da classe Relações de classes


Radical trabalhadora sociais

Processo pelo qual grupos sociais


Constructivismo Processo de
reivindicam que uma dada situação é um
social reivindicação
problema social
Fonte: Adaptado de Rubington e Weinberg (1995)
19

2. Perspectivas político-doutrinárias sobre


os problemas sociais
2.1. Os problemas sociais e a alteração do
papel do Estado
Os modos como os problemas sociais têm sido encarados pela sociedade,
bem como foram concebidos e implementados os sistemas para lhes dar
resposta, evoluíram significativamente ao longo da história humana. Nas
sociedades pré-industriais, em regra,
(...) a legitimação da intervenção (foi), quase exclusivamente, de ordem ético-religiosa,
não se considerando que o Estado (tivesse) o dever de ajudar, nem o cidadão o direito
de esperar ajuda. O modelo de intervenção (era) claramente assistencial (Carmo, 1999:
55).

2.1.1. O Estado protector


A progressiva centralização do poder nas mãos do soberano que se
registou concomitantemente com a desagregação da sociedade do
Ocidente medieval, deu origem a um modelo de Estado a que alguns
autores chamaram Estado Protector (Rosanvallon, 1984).
Partindo da ideia de que o poder não é uma simples capacidade de
obrigar, mas que traduz a resultante da tensão entre tal capacidade e a
vontade de obedecer (Moreira, 1997), poder-se-á afirmar que a
centralização registada resultou de duas tendências:
● um processo de concentração da capacidade de obrigar por
parte do poder político, de que foram expressão, entre outras, a
criação dos exércitos nacionais e a concentração progressiva do
poder tributário;
● a emergência de um consenso crescente sobre a vontade de
obedecer, do sector que mais tarde se viria a chamar sociedade
civil.
O modelo de Estado que daqui resultou, privilegiou os fins de segurança
e de justiça em detrimento do fim de bem estar social que, por regra,
foi remetido para a esfera da sociedade civil, ainda que por vezes se
tenham observado incursões orientadoras dessa actividade, por parte do
poder estatal, não tanto por via directa mas por intermédio de acções
das casas reais e da aristocracia6.

________________________________
6
Em Portugal, registam-se diversos exemplos desse tipo de intervenções, sobretudo a partir do século
XV, de que o exemplo mais significativo foi a criação de condições para a proliferação do movimento
das Misericórdias (Tavares, 1989: 267 e sgs).
20

Desagregação da sociedade feudal

Concentração da Maior consenso na


capacidade de obrigar vontade de obedecer por
pelo poder político parte da sociedade civil

Estado Protector

Objectivos:
. Produzir segurança
. Reduzir a incerteza

Fins dominantes do Estado:


. Segurança
. Justiça

Características dominantes do aparelho de Estado:


. Pequena dimensão
. Organização relativamente difusa
. Pilotagem centralizada

O Estado Protector

Para garantir a eficiência do Estado Protector, o príncipe recorreu a dois


tipos de pessoas:
● aos políticos profissionais e semi-profissionais que actuavam ao
seu serviço sendo elementos da sua confiança.
● aos funcionários profissionais que pouco a pouco foram
aumentando na Europa, em função da progressivamente maior
complexidade dos problemas que ao Estado competia resolver.
Assim se passou no campo da administração financeira, da técnica
guerreira e da actividade jurídica, em que o profissionalismo
especializado tomou o lugar do amadorismo polivalente. Iniciou-se
deste modo e simultaneamente, o predomínio do absolutismo do
príncipe sobre os feudos e a lenta abdicação que o mesmo príncipe
faz da sua autocracia, em favor dos funcionários profissionais, cujo
auxílio lhe era indispensável para vencer o poder feudal.
Apesar da complexificação crescente descrita por Max Weber, a verdade
é que o aparelho que serviu de suporte ao Estado Protector era de
pequena dimensão, com uma organização difusa e com um sistema de
decisão pouco profissionalizado, se o compararmos com as modernas
administrações públicas.

2.1.2. O Estado Providência


Com a revolução industrial e a emergência de problemas económicos e
sociais que daí resultaram, o Estado foi chamado a assumir funções
21

de regulação e de orientação progressivamente maiores, sobretudo


nas áreas da política económica e social, tendo emergido a consciência
crescente de que o Bem-Estar constituía um fim do Estado, a par dos
referidos anteriormente.
Para realizar tal finalidade, o seu aparelho administrativo teve de assumir
uma dimensão progressivamente maior, com uma organização cada
vez mais complexa7 e uma pilotagem progressivamente mais
profissionalizada8.
As tendências para a dimensão crescente da Administração Pública e
para a assunção de um papel cada vez mais intervencionista na
tentativa de resolução dos problemas económicos e sociais, tiveram
como resultado o aumento das despesas públicas e, naturalmente, da
carga fiscal para lhes fazer face.
É este o quadro geral em que se inscreve a polémica, permanente desde
há dois séculos, entre as correntes que advogam o dever do Estado em
intervir na resolução dos problemas sociais e económicos e as que
defendem que tais problemas seriam melhor resolvidos pela sociedade
civil.
Revolução industrial

Problemas económicos Problemas sociais

Crescimento e radicalização
das funções do Estado

Estado Providência
Objectivos:
. Produzir segurança
. Reduzir a incerteza
. Promover a regulação e a orientação sócio-económica
Fins dominantes do Estado:
. Segurança
. Justiça
. Bem estar
Características dominantes do aparelho de Estado:
. Dimensão progressivamente maior
. Organização progressivamente mais complexa
. Pilotagem progressivamente mais profissionalizada

O Estado Providência
________________________________
7
A complexidade da organização pode ser observada através de três indicadores: a instauração de
mais patamares hierárquicos, diferenciando crescentemente os papéis de mando e de obediência, a
divisão de trabalho, num processo de crescente especialização funcional, e o aumento de sistemas
de regulamentação.
8
Exemplos recentes desta tendência são, o aumento das qualificações formais pedidas nos concursos
de ingresso à função pública e o peso crescente da formação complementar como parâmetro de
avaliação nos concursos de acesso.
22

2.2. As perspectivas liberais


Duma forma simplificada pode dizer-se que a perspectiva liberal foi resultado
de uma lenta sedimentação de natureza económica, doutrinária e política que
ocorreu na Europa a partir do século XV.

Movimentos de
Génese económica legitimação Génese política
doutrinária

Expansão
(séculos XV e XVI)
Centralização do
(implica diversificação
poder real
de mercados;
acumulação de capital) . Mercantilismo

. Fisiocracia

. Movimentos
Guerras religiosas
Industrialização de reacção
(século XVII)
aos excessos
do Príncipe
que culminam
na Revolução
francesa Consolidação da
Nova ordem
nova ordem política
económica
(o Estado-Nação ao
(consolidação da
serviço da economia
burguesia)
subsidiada)

Liberalismo

Génese do liberalismo

2.2.1. Génese
Com a expansão europeia e a consequente diversificação de mercados
e acumulação de capital, a burguesia consolidou-se como classe social.
Paralelamente a este processo, a ordem política foi também ela
profundamente alterada, como atrás foi referido, apresentando como
traços dominantes, a centralização do Poder real e o consequente
enfraquecimento da velha aristocracia, apoiada na ascensão da
burguesia.
Acompanhando esta dupla tendência e escorando-a ideologicamente,
foram surgindo diversas doutrinas económicas e sociais, como o
mercantilismo, a fisiocracia e todo um corpo filosófico que procurou
23

limitar o despotismo do príncipe, que veio a criar condições para a


revolução francesa.
O liberalismo deve ser compreendido no seu sentido mais global (como
uma) doutrina baseada na denúncia de um papel pais activo do Estado e
na valorização das virtudes reguladoras do mercado (Rosanvallon, 1984:
49).

2.2.2. As teses
É esta a tese defendida por grande parte dos principais autores do
liberalismo positivista clássico, como Adam Smith, Jeremias
Bentham, Burke, Humbold, do liberalismo utópico como Paine e
Godwin e do neoliberalismo como Robert Nozick ou John Rawls. Em
todos estes autores encontramos uma forte crítica à excessiva
dimensão do Estado, variando, no entanto, nos critérios definidores das
suas funções e na definição do seu campo de actuação. É o caso, mais
recente, da corrente neoliberal, que deve ser entendida como uma
crítica, da crítica à economia de mercado.
Para discutir esta questão, Rosanvallon (1984) parte da teoria das
internalidades (Wolf, 1979). De acordo com esta teoria, a acção do
Estado tem, com frequência, efeitos imprevistos (internalidades), que
pervertem as intenções de justiça e de promoção do Bem-Estar das suas
políticas. Um exemplo deste tipo de efeitos perversos é o do ciclo
vicioso das despesas públicas descrito por este autor:
● O crescimento das necessidades dos cidadãos (económicas,
sociais, de segurança, etc.), implica uma pressão sobre o Estado
no sentido de as colmatar (aumento da procura de Estado).
● O aumento da procura de Estado, obriga este a concentrar
recursos e articulá-los para dar resposta às necessidades
(aumento da oferta de Estado).
● Para que a oferta de Estado cresça, este é obrigado a fazer mais
despesas públicas.
● O aumento das despesas públicas determina um aumento dos
impostos para lhes fazer face.
● O aumento da carga fiscal sobrecarrega os cidadãos o que,
naturalmente, lhes aumenta as necessidades e a procura de
Estado, e assim sucessivamente.
No que respeita aos problemas sociais e económicos, o pensamento
liberal tem evoluído, ainda que partilhe de uma ideia comum: o mercado
é melhor regulador que o Estado e, por consequência, os
problemas sócio-económicos devem ser atacados
predominantemente pela sociedade civil.
Em suma, a posição liberal face aos problemas sócio-económicos pode
resumir-se em dois aspectos:
● A maior parte dos problemas sociais e económicos resultam de
uma excessiva intervenção do Estado
● A resolução dos problemas sociais e económicos deveria ser
deixada aos mecanismos (naturais) de auto-regulação do mercado.
24

2.2.3. As limitações
Em traços gerais os críticos à perspectiva liberal apontam-lhes as
seguintes limitações (Rosanvallon, 1984):
● Os limites da acção do Estado são, em regra, insuficientemente
operacionalizados.
● Normalmente a crítica à acção do Estado é bem feita,
nomeadamente no que respeita aos efeitos perversos da
burocracia, baseada na teoria das internalidades. No entanto, os
efeitos imprevistos do funcionamento do mercado que
condicionam fortemente a emergência e o agravamento dos
problemas sócio-económicos não são convenientemente
equacionados.
De acordo com Suzanne de Brunhoff (1987), a conjuntura é vista como
um cenário de guerra económica o que implica, por parte dos
decisores políticos, uma atitude de nacionalismo económico. Neste
contexto, as funções económicas e sociais do Estado procuram atingir
dois objectivos:
● reforçar a frente de combate económica, apostando em políticas
de obtenção de encomendas no estrangeiro e em estratégias de
financiamento e de proteccionismo dos sectores sociais mais fortes,
como os segmentos que apostam no desenvolvimento tecnológico
e nas exportações;
● ajudar a tratar dos feridos da guerra económica (pobres e novos
pobres, grupos mais atingidos como os jovens, as mulheres, os
idosos, os imigrantes e os desempregados de regiões industriais
sinistradas).
Neste cenário, o reforço da frente de combate é normalmente mais
forte que a ajuda ao tratamento dos feridos da guerra económica,
criando-se um ambiente tendente a retirar os direitos sociais e
económicos aos cidadãos.

2.3. As perspectivas marxistas


2.3.1. Génese
O pensamento marxista enquadra-se historicamente na Europa do
século XIX, em plena revolução industrial, na tentativa de analisar a
sociedade coeva e de propor soluções para as disfunções sociais que
então se viviam.
A abundante obra de Marx (1818-1883) reflecte isto mesmo, não
devendo ser entendida como um sistema fechado mas, pelo contrário,
uma teoria em permanente evolução, por vezes mesmo
contraditória, contrariamente à imagem que as correntes ortodoxas
posteriores fizeram passar.
Para isso muito contribuiu o próprio percurso existencial de Karl Marx:
nascido e criado numa família de origem judia, cujo pai se viu na
contingência de se baptizar para não ser alvo de medidas
discriminatórias anti-semitas (Mclellan, 1974: 5), fez a sua formação
25

inicial na Alemanha, onde nasceu, tendo vivido sucessivamente exilado


em França, na Bélgica e no Reino Unido.
Na Alemanha onde viveu até 1843, analisou e criticou a filosofia alemã
do seu tempo, tendo sido profundamente influenciado pelo pensamento
de Hegel e pelo convívio com os Jovens Hegelianos, radicais seus
amigos na Universidade (Mclellan, 1974:10).
Em França, onde chegou exilado em Outubro de 1844, Marx continuou a
trabalhar nos seus escritos filosóficos e económicos – Correspondência
de 1843, Sobre a questão judaica (1843-44), Para uma crítica da filosifia
do Direito de Hegel: Introdução (1844), Manuscritos económicos e
filosóficos (1844), Comentários a “O rei da Prússia e a reforma social”
(1844), A sagrada família (1844-45) – tendo aprofundado o pensamento
de socialistas franceses e começado a estudar a economia política
britânica, nomeadamente a obra de Adam Smith e David Ricardo,
através de traduções francesas.
Em Bruxelas, para onde foi deportado em Janeiro de 1845 e
permaneceu durante três anos, continuou os seus estudos de
economia e começou uma colaboração permanente com Engels9, que
se manteve até ao fim da vida. São dessa época as Teses sobre
Feurbach (1845), A ideologia alemã, (1846) e A miséria da filosofia
(1847), este último em réplica ao livro de Proudhon intitulado A filosofia
da miséria, em que publicita pela primeira vez as suas teses sobre o
materialismo histórico10.
Regressado a Paris em 1848, onde soube da publicação em Londres do
Manifesto comunista, que havia escrito com Engels no ano anterior para
a Liga Comunista, lá residiu por uns meses a convite do governo
provisório formado após a abdicação do rei Luís Filipe, tendo voltado à
Alemanha devido à conjuntura de maior liberdade política que então se
vivia, onde ficou por pouco tempo, como jornalista, tendo sido de novo
expulso, sucessivamente para Paris e para Londres, em Agosto de 1848.
Em Londres, onde viveu até à sua morte (1883), escreveu, entre outros,
A luta de classes em França (1850), O 18 de Brumário de Luís
Bonaparte (1850), Crítica da Economia Política (1859) e Crítica do
Programa de Gotha (1875), continuando as suas investigações
económicas, que culminaram com a publicação da obra minumental em
três volumes, O capital (1865, 1867 e 1869/79).
A influência da gigantesca obra de Marx foi enorme na evolução do
pensamento filosófico11, económico, sociológico e político12 do século XX,
bem como no desenrolar dos acontecimentos que marcaram a sua
história, pelas forças que congregou13 e pelas reacções que suscitou14.
________________________________
9
A colaboração entre os dois amigos havia tido já um primeiro episódio, em Paris, com o trabalho A
sagrada família.
10
“Lassalle, o proeminente dirigente socialista alemão dos anos sessenta, disse a respeito do livro que,
na sua primeira metade, Marx mostrava-se um Ricardo tornado socialista, e na segunda parte um
Hegel tornado economista” (Mclellan, 1974:63).
11
Nomeadamente no desenvolvimento do materialismo dialéctico.
12
Cfr. Aron, 1994, op.cit. A sua principal contribuição foi o desenvolvimento da abordagem materialista
histórica e a sua aplicação à análise do capitalismo.
13
As tentativas de aplicar as concepções marxistas nas estratégias de conquista e exercício do Poder
foram muitas e diversificadas, como se sabe, podendo agrupar-se em dois grandes conjuntos:
aquelas que ocorreram em sociedades com alguma estrutura industrial, de que os exemplos mais
significativos foram o soviético e os regimes comunistas da Europa de Leste, e as que se observaram
em sociedades dominantemente pré-industriais, cujo modelo dominante foi o chinês.
14
As reacções vieram de todos os quadrantes políticos, tanto de regimes totalitários, como de regimes
demo-liberais.
26

2.3.2. As teses
O pensamento de Marx relativamente ao papel do Estado não é idêntico
ao longo da sua obra, nela se encontrando
● desde uma posição idealista defendida na Gazeta Renana, em
1843, em que descrevia a possibilidade da existência de “uma
associação de homens verdadeiramente livre num estado
idealizado, concebido, com base no modelo hegeliano, como uma
incarnação da razão (Mclellan, 1974: 293),
● passando pela afirmação de que o Estado era uma expressão da
alienação humana semelhante à religião, ao direito e à moralidade
(Manuscritos de 1844), um biombo que esconde as verdadeiras
lutas inter-classes, assumindo-se como instrumento da classe
dominante (Ideologia Alemã), uma mera comissão de gestão dos
assuntos da burguesia (Manifesto),
● até à afirmação de que poderia desempenhar, apesar de todas as
críticas, algum papel positivo em favor das classes oprimidas (A
guerra civil em França), ou mesmo que poderia ser, quando em
situação de ditadura do proletariado, instrumento de mudança para
a sociedade comunista (Crítica do Programa de Gotha).
Apesar desta aparente ambivalência, parece ser constante o
reconhecimento do importante papel que cabe ao Estado como
instrumento da classe dominante (seja ela a burguesia ou o
proletariado), nas funções de regulação e orientação da sociedade
global.
Se a esta constatação acrescentarmos que, na perspectiva marxista, os
problemas económicos e sociais são resultantes, em última análise,
da situação de exploração de uma classe em benefício de outra num
cenário de permanente luta de classes, poderemos entender as duas
estratégias defendidas por esta corrente, consoante detenha ou não o
controle do Estado:
● quando o Estado não é controlado pela classe trabalhadora15,
às organizações desta classe cabe fazer pressão16, no sentido de
que o poder político lhes faça concessões, em nome de uma paz
social ameaçada, no sentido de prevenir e atenuar os problemas
sociais; uma vez que a raiz dos problemas está no sistema de
dominação, qualquer reivindicação de solução para os problemas
referidos deve ter em atenção, ainda que a longo prazo, a conquista
do poder pela classe trabalhadora;
quando o Estado é controlado pela classe trabalhadora, deve

centralizar a definição de rumos e a articulação de meios para fazer
face aos problemas sociais e económicos; neste sentido, deve-lhe
competir um papel dominante no planeamento e organização da
economia e da protecção social17.
________________________________
15
À expressão inicial proletariado, foi sendo preferida a designação mais populista classe trabalhadora,
na qual poderiam sentir-se identificados vários grupos progressistas de origem burguesa como aqueles
que Gramsci designava intelectuais orgânicos.
16
Através dos grupos de interesse ou de partidos que a representem.
17
Mesmo no caso singular do sistema titista de socialismo jugoslavo, a concentração de poder foi um
facto, o que aliás, parece ter sido um sistema eficaz para evitar a balcanização do país que voltou a
verificar-se posteriormente.
27

2.3.3. As limitações
Correndo o risco de simplificar em demasia as críticas que têm sido
feitas à perspectiva marxista de ver os problemas sociais, podemos
agrupá-las em dois conjuntos:
● do ponto de vista doutrinário as que sublinham que, ao privilegiar
a luta de classes como instrumento de intervenção, o marxismo
provocou danos elevados na coesão social, lançando as classes
sociais umas contra as outras, gastando consideráveis energias
sociais necessárias ao crescimento económico e ao
desenvolvimento social, em nome da igualdade e em detrimento
da liberdade.
● Do ponto de vista político, as que o acusam de falta de eficácia
e de eficiência uma vez que, nos países em que foram aplicadas
as concepções marxistas de ataque aos problemas sociais e
económicos, os resultados obtidos foram muito inferiores aos
previstos (ineficácia) e, os avanços conseguidos, foram-no
frequentemente a custos económicos e sociais muito elevados
(ineficiência), uma vez que exigiram uma máquina estatal
excessivamente pesada.

2.4. As perspectivas conciliatórias


Se nos reportarmos aos três valores centrais da Revolução Francesa, a
Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade, observa-se que os dois primeiros
foram claramente apadrinhados pela perspectiva liberal (liberdade) e marxista
(igualdade), um em detrimento do outro. Quanto ao valor da Fraternidade, foi
remetido, em regra, para a esfera da sociedade civil, não sendo considerado
uma questão política tão relevante como a da Liberdade ou da Igualdade.

2.4.1. Os fundamentos
Os fundamentos da intervenção do Estado relativamente aos problemas
sociais e económicos podem encontrar-se na constatação de efeitos
imprevistos (positivos18 ou negativos19) do funcionamento do mercado
a que Pigou, em 1920, chamou externalidades (cit in Rosanvallon,
1984: 49).

2.4.2. Os pilares do Estado Intervencionista


A expressão Estado-Providência surge na França do segundo império,
criada por pensadores liberais hostis ao aumento das atribuições do
Estado, mas igualmente críticos em relação a uma filosofia individualista
demasiado radical (Rosanvallon, 1984: 111).
Procurava-se com esta designação fazer referência a um modelo de
Estado intervencionista, que na Alemanha da década de 1880 era
apelidado de Estado Social e no Reino Unido, já nos anos 40 do século
________________________________
18
Dois exemplos: o desenvolvimento de novos materiais de confecção a partir da investigação espacial
(Toffler, 1970) e o desenvolvimento da indústria de transportes navais a partir da criação do contentor
(Drucker, 1985).
19
Por exemplo: a diminuição da camada de ozono em virtude da produção de aerossóis, os estragos
ambientais causados pela energia nuclear, pela implantação de sistemas de monocultura ou pela
excessiva concentração urbana.
28

XX, passou a ser crismado de Estado de Bem-Estar.

2.4.2.1. O primeiro pilar: o seguro obrigatório de


Bismarck
O primeiro passo para a construção do modelo de Estado
intervencionista foi dado na Alemanha, nas décadas de 1870 e
1880, por iniciativa dos governos do chanceler Bismarck, em
resposta à pressão conjugada, do movimento trabalhista
alemão devida à situação de alto risco em que se encontravam os
trabalhadores da indústria e da acção de grupos de académicos20
e políticos21 que se juntaram, para denunciar os malefícios das
opções liberais e para defender uma intervenção do Estado no
combate aos problemas sociais.
A resposta política a tal conjuntura traduziu-se num conjunto de
leis que procuraram melhorar a protecção social dos trabalhadores
através de mecanismos de seguro obrigatório, numa altura em
que os sistemas de protecção eram meramente mutualistas. As
leis estruturantes de tal sistema foram as seguintes:
● Lei da responsabilidade limitada dos industriais em caso de
acidentes de trabalho (1871)
● Lei do seguro obrigatório (1881)
● Leis do seguro-doença (1883), dos acidentes de trabalho
(1884) e do seguro velhice-invalidez (1889), que aplicaram a
lei de 1881 a essas três áreas de risco social.

2.4.2.2. O segundo pilar: a teoria intervencionista


de Keynes
A segunda contribuição que permitiu legitimar e estruturar o
intervencionismo do Estado foi dada pelo economista John
Maynard Keynes que
não era um socialista, embora partilhasse de muitas das preocupações de
Marx e dos sociais democratas. Como Marx, Keynes pensava que o
capitalismo possuía elementos irracionais, mas acreditava que estes
podiam ser controlados de forma a defender o capitalismo de si próprio (...)
(Este autor) mostrou a forma como o capitalismo de mercado podia ser
estabilizado através da gestão da procura e da adopção de um sistema de
economia mista (Giddens, 1999: 19).

Os princípios defendidos por este autor, aplicados para combater a


crise de 1929 pelo Presidente americano Franklin Roosevelt na
política do New Deal, basearam-se numa vigorosa intervenção
estatal através de investimentos públicos que criaram muitos
empregos. Ao fazê-lo, aumentaram o poder de compra das
famílias o que provocou um crescimento da procura, revitalizou a
economia e, por consequência, reduziu os problemas sociais e
económicos.

________________________________
20
Ex: o grupo cujos participantes ficaram conhecidos por socialistas de cátedra (Wagner, Schaeffle e
Schmoller) que, em 1872, declaram guerra ao liberalismo num documento que ficou conhecido por
Manifesto de Eisenach (Rosanvallon, 1984:118).
21
Como Ferdinand Lassalle, uma das principais figuras do socialismo alemão.
29

2.4.2.3. O terceiro pilar: o relatório Beveridge


O intervencionismo estatal para dar resposta a problemas sociais
teve, no Reino Unido, raízes muito anteriores ao século XIX,
podendo-se situá-lo no século XVI, com a aprovação das Leis dos
pobres, no reinado de Isabel I.
Com esse conjunto de leis foram instituídas diversas medidas de
protecção aos indigentes de acordo com a sua condição face ao
trabalho (1601), proibindo as paróquias de se livrarem deles e
obrigando-as a dar-lhes trabalho (1662).
É, em plena segunda guerra mundial (1942), com o Relatório
Beveridge, que se lançam as bases recentes dos sistemas de
segurança social, de acordo com quatro princípios:
● O princípio da universalidade (de população-alvo), segundo
o qual a protecção social seria devida a toda a população,
qualquer que fosse a sua situação face ao emprego ou ao
rendimento.
● O princípio da unicidade (de inputs do sistema), pelo qual
uma única quotização cobriria todos os riscos de privação de
rendimento.
● O princípio da uniformidade (de outputs do sistema), que
preconizava a uniformidade das prestações,
independentemente do rendimento dos beneficiários.
● O princípio da centralização (organizacional), que obrigava à
criação de um sistema único de protecção social (saúde e
segurança social) para todo o país.
O relatório Beveridge constituiu um claro avanço relativamente ao
conjunto de medidas estipuladas por Bismarck, uma vez que
incluía, sob protecção do estado, diversos grupos que aquele
sistema não contemplara, como as mulheres domésticas, as
crianças e outros inactivos.

2.4.3. A situação actual


No período de vinte e cinco anos que se seguiu ao termo da segunda
guerra mundial o modelo intervencionista, resultante dos três tipos de
contribuições acabados de referir, foi aplicado com bastante êxito nos
países mais industrializados, auxiliado pela conjuntura propícia à
conjugação de esforços de reconstrução e de expansão económica.
Os ingredientes básicos que proporcionaram consistência política a este
modelo de Estado intervencionista, foram três:
1. o pleno emprego como objectivo estratégico,
2. a organização da protecção social em torno de um sistema de
serviços universais ou quase universais para satisfação das
necessidades básicas e
3. o empenho em manter um nível nacional mínimo de condições
de vida (Mishra, 1995: xi).
Com as duas crises do petróleo ocorridas nos anos setenta a situação
económica mundial alterou-se drasticamente, iniciando-se um período de
30

recessão que teve dois efeitos conjugados nos sistemas de protecção


social:
● por um lado, aumentou a procura de Estado, devido ao
crescimento do desemprego provocado pela recessão económica;
● por outro lado, a diminuição das contribuições para o sistema de
segurança social, em função da crise e do envelhecimento
demográfico dos países industrializados, condicionou a redução da
oferta de Estado, para fazer face às necessidades.
Esta situação fez perder pouco a pouco a confiança depositada no
modelo de Estado-Providência22, propiciando o estabelecimento de
políticas neoconservadoras em vários países, como se observou nos
Estados Unidos com Ronald Reagan e no Reino Unido com Margaret
Thatcher, fortemente alicerçadas nas doutrinas neoliberais.
Do ponto de vista do modelo neoconservador, sendo grande parte dos
problemas sociais decorrentes de uma excessiva despesa pública, a
sua solução passava pela redução da oferta de Estado,
operacionalizada numa política de privatizações, tanto da economia
como dos serviços sociais.
O excessivo custo social das medidas implementadas, e a sua
ineficácia23 conduziram a uma reacção por parte das sociais-
democracias, no sentido de adaptar o modelo de Estado Providência aos
novos desafios. Foi neste contexto que começaram a emergir novas
propostas políticas que colheram a aceitação da opinião pública
eleitoralmente manifestada24.

________________________________
22
A perda de confiança na acção do Estado (e não apenas do Estado-Providência) não se deveu
apenas às crises petrolíferas: teve a ver com a situação de anomia provocada pela mudança
acelerada que causou um autêntico choque do futuro (Toffler, 1970, 1980, 1991), que afectou a sua
credibilidade em dois aspectos: as tendências para a globalização e a localização (vide capítulo sobre
as questões económicas) puseram em causa o conceito tradicional de soberania; a crise do sistema
organizacional burocrático questionou as administrações públicas como principais instrumentos da
realização dos fins do Estado (Carmo, 1985, 1997; Bilhim, 2000; Sá, 1997).
23
“a administração Reagan chegou ao poder com a promessa de reduzir o défice orçamental. O que
aconteceu foi que, no tempo de Reagan, o défice orçamental elevou-se como nunca. No Reino Unido,
também o advento do governo Thatcher coincidiu com um crescimento, e não um decréscimo das
despesas públicas (...) A estrutura dos serviços sociais universais, nomeadamente a educação, a
saúde e a segurança social, também se manteve em grande parte intacta, quer nos Estados Unidos
quer no Reino Unido, apesar das proclamações neoconservadoras sobre privatização e retracção da
assistência social” (Mishra, 1995:7).
24
Foram exemplos desta tendência, a vitória de Clinton nos Estados Unidos, bem como a de Tony Blair
no Reino Unido, com a sua política de terceira via (Giddens, 1999).
31

2.5. Em Portugal
2.5.1. A perspectiva intervencionista na
evolução constitucional
Constituição Características
Constituição de 1822 • Pretende criar instituições liberais e democráticas
• Não passou de um projecto pois o seu suporte social era
débil (burguesia mercantil), os inimigos, muitos e, a
secessão do Brasil, uma questão urgente, que remeteu
a organização das FESE para segundo plano
Carta Constitucional • Sendo conservadora mantém as FESE numa
de 1826 perspectiva liberal
Constituição de 1838 • Mantém a concepção de uma monarquia liberal assente
na aliança do Rei com a burguesia (Jorge Miranda)
Constituição de 1911 • Não altera a perspectiva liberal das funções do Estado,
condimentando-as de laicismo, anti-clericalismo e
municipalismo.
• Dá grande realce à política de Educação.
Constituição de 1933 • Corporativista, apresenta um cariz muito mais
intervencionista, pretendendo ser a pedra de toque em
que as FESE são sensivelmente maiores e mais
complexas.
• Explicita princípios de protecção à família, incumbências
económicas do Estado, organização de interesses
sociais, da empresa e do direito ao trabalho.
Constituição de 1976 • É influenciada pelas doutrinas marxistas e do Estado-
Providência.
• Consolida medidas socializantes das FESE
• Identifica três sectores de propriedade (público,
cooperativo e privado)
• Consagra direitos, liberdades e garantias democráticas
• Explicita princípios de protecção aos cidadãos e aos
trabalhadores em particular, em diversos domínios das
FESE: Educação, Saúde, Segurança Social, Habitação,
Trabalho, etc.

Evolução das funções económicas e sociais do Estado nas


Constituições Portuguesas

A figura procura registar algumas características das constituições


portuguesas desde 1822, para daí se poder ter uma ideia sobre a
evolução doutrinária quanto ao entendimento das funções económicas e
sociais do Estado. A partir da sua leitura pode-se observar:
● As constituições do período monárquico foram todas elas
marcadas por concepções liberais, no modo como olhavam os
problemas sociais e económicos, considerando não ser dever do
Estado intervir na sua resolução.
● A primeira constituição republicana, de 1911, mantém a
tradição liberal. No entanto, o laicismo e o anti-clericalismo
dominante, tiveram como consequência a assunção da
educação como dever do Estado, sendo-lhe dado um realce que
as anteriores constituições não apresentavam.
32

● A constituição de 1933 é intervencionista, num quadro


doutrinário corporativista. Era permitido e incentivado o papel da
Igreja Católica na política social. O modelo de intervenção social
preconizado foi marcado pela visão bismarckiana, separando
claramente os subsistemas de previdência (de seguro obrigatório)
e de assistência (em que ao Estado competia uma função
supletiva em relação à intervenção da sociedade civil).
● A constituição de 1976 foi também intervencionista, mas
fortemente influenciada pela perspectiva marxista,
nomeadamente no que respeitava ao controlo da actividade
económica, social e política. O modelo beveridgeano de
prestações universais foi consagrado através da criação de um
sistema integrado de segurança social, de um serviço nacional de
saúde e da responsabilidade do Estado pelo sistema educativo,
ainda que em cooperação com a sociedade civil.

2.5.2. A perspectiva intervencionista na


evolução do planeamento
Outro indicador interessante, revelador do modo como evoluiu o
interesse político pelos problemas sociais e económicos é a sua
presença no planeamento. Isto porque a função planeamento está
presente em todos os sistemas políticos contemporâneos, expressando
um quadro normativo que pretende traduzir o querer comum dos
respectivos povos.
Assim, pela análise dos sucessivos planos, é possível inferir as
representações dos decisores políticos sobre o modo como concebem
as funções económicas e sociais do Estado e, em particular, como
concebem o seu papel relativamente à resolução dos problemas sociais
e económicos.
Em Portugal, a primeira experiência de planeamento, no sentido que
hoje lhe damos, parece ter surgido apenas em 1935, com a Lei 1914 de
24 de Maio, que ficou conhecida por Lei da Reconstituição
Económica. Um outro aspecto de sublinhar foi o facto de permitir
estruturar a realização de grandes obras de infra-estruturas, dado o seu
horizonte temporal ser de 15 anos.
O Primeiro Plano de Fomento (1953-58), manteve o intervencionismo
económico que, sendo uma novidade e um salto de qualidade no caso
português, preconizava uma intervenção económica do Estado bastante
modesta se a compararmos com o que se praticava na Europa de então.
O Segundo Plano de Fomento (1959-64), apresentou pela primeira vez
o conceito de Pólos de Desenvolvimento, regiões onde se iriam
concentrar recursos para promover a modernização do país. Para
suportar financeiramente esse esforço foi então criado o Banco de
Fomento Nacional.
Com o Plano Intercalar (1965-67), surgiu a necessidade de se proceder
à realização de estudos de conjuntura para calcular se o acréscimo de
despesas com a defesa obrigaria a recorrer a empréstimos externos
(estava-se em pleno esforço de guerra do Ultramar).
Observa-se pela primeira vez, neste documento, um conjunto de
preocupações de natureza social, nomeadamente no que respeita à
33

correcção dos desequilíbrios regionais e à definição de uma política de


repartição de rendimentos.
A intervenção social e económica do Estado português vista através
de alguns marcos do planeamento
Marcos Características
Lei 1914 da Apenas contempla política financeira
Reconstituição Base dos planos seguintes
nacional (24/5/35) Como tinha vigência de 15 anos permitiu a realização de gran-
des obras de infra-estruturas.
1º Plano de Total dos investimentos previstos: 13.5 milhões de contos, 6
Fomento dos quais destinados ao Ultramar, correspondendo a 2% do PNB.
(1953-58) Na mesma época: 5 a 10 % na Irlanda, 10 a 15 % em França; 15
a 20 % no Reino Unido; 20 a 25% na Alemanha; 25 a 30 % na
Suécia
2º Plano de Objectivos: Subida do PNB, subida do nível de vida, incremento
Fomento do emprego, melhoria da balança de pagamentos.
(1959-64) Conceito-chave: Pólo de desenvolvimento
Criação do Banco de Fomento Nacional para financiar progra-
mas de médio prazo (1959)
Plano Intercalar Lançamento de estudos de conjuntura para indagar se o acrés-
(1965-67) cimo de despesas militares obrigaria à contracção de emprésti-
mos externos
Progressos metodológicos na feitura do Plano.
Começam a registar-se, no próprio Plano, preocupações sociais.
3º Plano de Consolidação dos progressos metodológicos
Fomento Início do planeamento regional
(1968-73)
4º Plano de Maior preocupação com a promoção social
Fomento Preocupação com o ordenamento do território
(1974-79) Suspenso pela Revolução
Plano Económico Medidas estratégicas para execução dos três objectivos da
e Social (1975) Revolução (os três Dês): Descolonizar, Democratizar e
Desenvolver.
Três políticas básicas: planeamento regional, descentralização
administrativa e subordinação do poder económico ao poder
político.
Política de austeridade face ao 1º choque petrolífero (redução
das balanças comercial e de pagamentos).
Políticas de combate ao desemprego, de estabilização da
inflação e de redistribuição de rendimentos.
Suspenso em 11 de Março de 1975.
O Planeamento na Ideias-força (Título III, 2ª Parte):
Constituição da O plano é um instrumento básico para construir a sociedade
República (1976) socialista.
A sua orientação é, de facto, imperativa.
Legitimação das regiões Pano
O Planeamento na Instauração da orientação de planeamento indicativo
Constituição da
República
(Revisão de 1982)

As melhorias registadas no Plano Intercalar aparecem consolidadas no


Terceiro Plano de Fomento (1968-73), onde são explicitadas medidas
de Planeamento Regional.
No Quarto Plano de Fomento (1973-79), que foi suspenso pela
Revolução de 1974, já transparece uma maior preocupação com o
ordenamento do território e com a promoção social.
34

O primeiro esforço de planeamento após revolução regista-se no Plano


Económico e Social (1975) que, no entanto nunca entrou em vigor, em
virtude da radicalização política após os acontecimentos do 11 de
Março25.
Nesse plano eram contempladas diversas medidas de intervenção
económica e social, a curto e médio prazos, marcadas pelo combate ao
desemprego, à estabilização da inflação e à redistribuição dos
rendimentos, defendendo uma política de austeridade para fazer face
aos efeitos do choque petrolífero ocorrido em 1973. O planeamento
regional, a descentralização administrativa e a subordinação do poder
económico ao poder político eram defendidas como políticas
estruturantes do plano.
A Constituição de 1976, de acordo com a perspectiva marxista então
vigente, valorizou o Plano como instrumento básico para construir a
sociedade socialista (artigo 91º), apresentando-o com uma natureza
imperativa.
Do que se acaba de referir, pode sublinhar-se que as preocupações de
intervencionismo económico foram muito mais precoces que as
sociais, correspondendo aliás ao espírito do tempo em que os planos
foram concebidos. Com efeito, só com o Plano Intercalar e com os
Terceiro e Quarto Planos de Fomento é que começam a registar-se
timidamente, tendo sido uma preocupação efectiva só após a revolução
de 1974.

________________________________
25
Uma das razões da suspensão do Plano foi o facto dele ter um cariz considerado demasiado
reformista pelas forças políticas dominantes, ainda que respeitasse escrupulosamente os três Dês do
Programa do Movimento das Forças Armadas (descolonização, democratização e desenvolvimento).
Os seus principais autores foram Melo Antunes, Victor Alves, Maria de Lourdes Pintasilgo, Rui Vilar e
Victor Constâncio.
35

3. Grandes problemas ambientais


3.1. Gestão da Água
3.1.1. Introdução
A água é uma das principais necessidades para a existência de vida na
Terra, constituindo conjuntamente com o ar um dos bens essenciais ao
homem.
Refira-se que, de toda a água existente na Terra, apenas cerca de 3% é
doce e nem toda é directamente utilizável. Desta forma, considera-se
que, de toda a água existente na Terra, apenas 0,03% está facilmente
acessível ao consumo humano. Destes 0,03 % refira-se ainda que 52 %
encontra-se em lagos, 38 % retida no solo, 8 % está na atmosfera sob a
forma de vapor de água, 1 % está acumulada na biomassa dos
organismos e apenas 1 % está nos rios (Alves, 1998).
Além do facto da água disponível para consumo humano ser reduzida,
os resíduos resultantes das diferentes actividades do homem, ou seja, os
efluentes de origem antropogénica, são descarregados nos diferentes
meios receptores existentes na Terra, em especial no meio aquático.
Os diferentes contaminantes que se podem encontrar na água provêm
de diversos factores resultantes de,
• causas naturais (e.g. erupções vulcânicas),
• descargas pontuais de águas residuais e de resíduos sem
tratamento adequado ou
• poluição difusa, como por exemplo devido a escorrências agrícolas.
Esses contaminantes podem ser
• físicos (e.g. sólidos suspensos e temperatura),
• químicos (e.g. metais pesados, hidrocarbonetos halogenados ou
Bifenilos Policlorados – PCBs) ou
• biológicos (e.g. microrganismos patogénicos).

3.1.2. Disponibilidade de água


Segundo dados recentes, perto de 2 biliões de pessoas ainda não têm
acesso a água potável e a sistemas de redes de abastecimento e mais
de 1 bilião de pessoas não está servida com adequados sistemas de
tratamento de água (Gleick, 1996).
É provável que a evolução do consumo de água na Europa se mantenha
estável até à próxima década, embora no resto do mundo seja previsível
um aumento do consumo devido ao desenvolvimento económico,
crescimento da população e aumento dos processos de irrigação. O
aumento do consumo de água de 1990 para 2050 é projectado para um
factor de 2,12 relativamente ao uso doméstico, 2,37 relativamente ao uso
industrial e 1,06 relativamente ao uso agrícola.
A disponibilidade de água apresenta ainda o maior problema em áreas
de escassez de água onde rios e outros cursos de água atravessam
fronteiras de diferentes países. Este facto irá ocasionar conflitos entre
esses países, que só poderão ser evitados quando a distribuição da
água puder ser discutida em conjunto. Este problema é um dos desafios
que se colocam ao nível da gestão da água tendo em conta o
36

desenvolvimento sustentável (ver sub-capítulo Instrumentos de Política


de Ambiente). Portugal e Espanha são um bom exemplo onde esta
questão se coloca.
A quantidade de água disponível é afectada pela sobre-exploração de
aquíferos e/ou pelo desvio de cursos de água, originando a diminuição
do seu caudal e modificando por sua vez a quantidade de água
disponível.
Face a toda esta problemática é igualmente previsível um aumento na
utilização das fontes não convencionais de água como a dessalinização
e a reutilização da água, essencialmente em países com problemas de
escassez de água.

3.1.3. Qualidade da água


Segundo dados da EEA (1995), apenas cerca de 4 % das águas
residuais apresentam tratamento antes de serem descarregadas. É
previsível que a quantidade de esgotos contaminados aumente e que as
práticas de agricultura intensiva continuem, com a consequente
utilização excessiva de fertilizantes, originando a eutrofização das zonas
costeiras e a contaminação de aquíferos. Esta contaminação dos
aquíferos pode também dever-se à intrusão salina resultante da
exploração de águas subterrâneas ao longo da costa, onde estão
centralizadas áreas urbanas, industriais e de turismo (EEA, 1999).

3.2. Efeito de estufa e alterações climáticas


3.2.1. Introdução
O balanço térmico ideal para a manutenção da vida na Terra é
proporcionado principalmente pela presença de vapor de água e dióxido
de carbono (CO2) existente na atmosfera. Estes gases absorvem a
radiação solar infravermelha, emitida pela superfície terrestre impedindo
assim que a radiação seja perdida para o espaço. Este fenómeno natural
denomina-se efeito de estufa, uma vez que permite o aquecimento da
superfície terrestre e promove a subida da temperatura da troposfera
com consequente aumento da evaporação e precipitação.
No entanto, a libertação de CO2 resultante da conversão dos
combustíveis fósseis, tem sido responsável pela amplificação deste
fenómeno nos últimos séculos, em conjunto com outros gases como o
metano (CH4), os óxidos de azoto (NO2, NO), os Cloro-Fluor-Carbonetos
(CFCs), e o ozono troposférico26 (O3). O dióxido de carbono e o metano
têm sido responsáveis pelo incremento de cerca de 80 % da temperatura
global em consequência do aumento drástico das emissões de origem
antropogénica nos últimos 140 anos (IPCC, 1992). Não é apenas a
queima de combustíveis fósseis responsável pelo efeito de estufa.

________________________________
26
Não confundir o ozono troposférico existente na camada inferior da atmosfera (troposfera), com o
ozono estratosférico. Os hidrocarbonetos não queimados na combustão dos combustíveis fósseis nos
veículos de transporte e nas indústrias, por acção da radiação solar podem converter-se em ozono.
Este gás é um poluente, pois trata-se uma substância altamente reactiva que pode provocar efeitos
negativos na saúde pública e nos ecossistemas.
37

3.2.2. Alterações climáticas


Ainda que exista uma relação clara entre o aumento da temperatura e a
emissão de alguns gases que contribuem para o efeito de estufa, não é
possível afirmar com certeza que se trata de uma relação causa-efeito.
Os modelos de clima estimam que o aumento será de 2ºC no ano 2100,
comparativamente aos níveis de 1990. Dado que é previsível o
crescimento da economia, estima-se que as concentrações médias
globais dos três gases que mais contribuem para o efeito de estufa se
alterem. Assim, para o ano 2050, comparativamente ao ano de 1990,
está projectado o aumento em cerca de 45 % no caso do CO2, 80 % no
caso do CH4 e 22 % no caso do N2O.
Será necessária até o ano de 2100 uma redução de 50 – 70 %, em
relação ao verificado em 1990, das emissões globais de CO 2 para
estabilizar a concentração de CO2 (IPCC, 1996). No entanto, mesmo que
as emissões sejam imediatamente reduzidas algumas alterações
climáticas não poderão ser evitadas devido à dinâmica dos sistemas
climatéricos.

3.2.3. O protocolo de Quioto


O encontro mundial onde pela primeira vez se regulamentaram as
emissões dos gases com efeito de estufa foi a III Conferência das Partes
da Convenção – Quadro das Alterações Climáticas ocorrida em Quioto
em 1997, onde vários países assinaram um protocolo no sentido da
redução global de 5,2 % em relação aos níveis de 1990, das emissões
dos gases que contribuem para o efeito de estufa:
• dióxido de carbono (CO2),
• metano (CH4),
• óxido nitroso (N2O),
• hidrofluorcarbonetos (HFCs),
• perfluorcarbonetos (PFCs), e
• enxofre hexafluoreto (SF6)
entre os anos de 2008 e 2012 (IPCC, 1997).
No entanto, este protocolo tem algumas limitações, como o facto de não
incluir os países em desenvolvimento que para já estão sem obrigação
de redução ou limitação de crescimento de emissões e de não terem
sido criados mecanismos de punição para quem não cumprir o acordo.

3.2.4. O encontro em Buenos Aires


Na IV Conferência das Partes da Convenção – Quadro das Alterações
Climáticas ocorrida em Buenos Aires em 1998, mais alguns passos
foram dados, tendo sido acordado um plano de acção finalizado no ano
2000 e do qual se destacam (EEA, 1999):
● os mecanismos de financiamento para apoiar os países em
desenvolvimento relativamente aos efeitos adversos das
alterações climáticas, nomeadamente através de medidas de
adaptação;
● o desenvolvimento e transferência de tecnologias para os países
em desenvolvimento;
38

● as actividades implementadas conjuntamente;


● o programa de trabalhos dos Mecanismos de Quioto, com
prioridade no desenvolvimento de mecanismos de tecnologias
limpas.
A estratégia eficiente para a minimização deste problema passa pela
modificação da quantidade e tipo de combustíveis fósseis. Este facto
pode ser considerado como a próxima grande transição no sistema
energético mundial.
É igualmente importante evitar a perda e/ou fragmentação de habitats
visto ser uma das mais importantes causas de extinção de espécies.
Deverá igualmente ser efectuada a reflorestação tendo em conta que as
florestas são importantes sumidouros de CO2, embora se exija a
planificação cuidada deste processo de modo a não pôr em causa o
equilíbrio dos ecossistemas (ver sub-capítulo Desertificação e
Desflorestação).

3.3. Rarefacção da camada de ozono


3.3.1. Introdução
O ozono é um gás cuja molécula contém 3 átomos de oxigénio, formada
por acção da luz a partir do oxigénio molecular (O2). Na atmosfera, as
maiores concentrações de ozono apresentam-se na estratosfera (20 a 40
km da superfície da terra), formando o que se designa de camada de
ozono. Esta camada funciona como filtro às radiações solares ultra-
violeta B, que são prejudiciais à fauna, flora e saúde humana, sendo
responsáveis pelo desenvolvimento precoce do cancro de pele,
aparecimento de cataratas e diminuição da capacidade do sistema
imunitário.
Através das imagens de satélite (Nimbus 7), relativas às concentrações
do ozono obtidas, é possível observar a rarefacção da camada de ozono
na Antárctida, usualmente denominada como o “buraco do ozono”.
Refira-se que a concentração média de ozono é de cerca de 400
unidades de DOBSON, ou seja, mais do dobro das concentrações mais
baixas encontradas na Antárctida.

3.3.2. O protocolo de Montreal


No caso dos países em desenvolvimento este protocolo refere que a
eliminação de CFCs e Halons pode ser efectuada até 2010, e até 2015
no caso de metil-clorofórmio (UNEP, 1997).
Actualmente as concentrações totais de cloro na baixa atmosfera estão a
diminuir desde o seu máximo obtido em 1994, devido essencialmente à
redução de metil-clorofórmio, embora as concentrações de Halons
continuem a aumentar, contrariamente às expectativas anteriores.
No entanto, existem ainda muitos produtos antigos que contêm CFCs e
Halons, como extintores e refrigeradores que se não forem destruídos ou
recuperados libertarão estes compostos para a atmosfera. Além deste
facto, desde a proibição da produção de CFCs nos países
desenvolvidos, o comércio de CFCs tem-se tornado num negócio muito
lucrativo, dado que a utilização de CFCs ainda é permitida nos países
39

em desenvolvimento e nos países desenvolvidos desde que seja para a


utilização nos países em desenvolvimento.
Saliente-se ainda que a China é responsável por cerca de 90 % da
produção mundial de Halon-1211 e uma vez que apenas em 2010 tem
que parar a sua produção, este país pode contribuir para o atraso da
estabilização das concentrações de ozono na estratosfera (EEA, 1999).
A difusão dos CFCs desde a primeira camada da atmosfera até à
estratosfera pode levar décadas e provavelmente só nos meados do
próximo século se atingirá o valor máximo de cloro estratosférico,
partindo do princípio que será limitada a produção e consumo de CFCs
de acordo com o protocolo de Montreal.

3.4. Biodiversidade
3.4.1. Introdução
A tendência para a diversificação, é uma propriedade inerente à
progressão ecológica e à evolução biológica em geral. Apesar de não
haver um inventário de todas as espécies terrestres, estima-se que
existem entre 5 e 30 milhões de espécies. Destas, estão descritas 1,5
milhões, das quais, 90 % apenas se sabe o nome (Bellés, 1998).
Apesar do desconhecimento sobre a imensa diversidade biológica que
povoa a terra, é alarmante constatar que uma importante fracção desta
riqueza tem a sobrevivência ameaçada, registando-se anualmente a
extinção de aproximadamente 13 000 espécies. No âmbito do presente
sub-capítulo referiremos biodiversidade para designar a diversidade de
habitats e espécies existentes nos diferentes ecossistemas.
Ao longo de milhões de anos, verificaram-se na terra, episódios de
destruição massiva de espécies, resultado de fenómenos naturais, de
natureza vulcânica, geofísica e tectónica, unidos ou não a alterações
climáticas27. De uma forma geral, estas extinções foram lentas e
graduais, verificando-se o desaparecimento das espécies ao longo de
milhares de anos.
No entanto, o ritmo a que hoje se verifica o desaparecimento das
espécies é assustador, atribuindo-se ao homem a responsabilidade
desta destruição.
Com a descoberta do fogo o Homo sapiens idealizou e concebeu novos
utensílios domésticos e instrumentos que lhe permitiram caçar com
maior eficiência as suas presas. Aumentou a sua autonomia em relação
aos alimentos, passando a retirar da terra com alguma sabedoria
plantas, raízes e tubérculos. A pouco e pouco foi-se tornando sedentário.
A agricultura foi o ponto de partida para a escalada na exploração dos
recursos naturais. Foi através de uma exploração mais intensiva dos
solos que nos últimos séculos o homem modificou ecossistemas
naturais, incentivou a monocultura, aumentou a uniformidade genética da
exploração agrícola, contaminou o meio com excesso de fertilizantes e
pesticidas orgânicos, desbravou e queimou florestas para conquistar
solos para as práticas agrícolas.
________________________________
27
Recorde as extinções verificadas no Ordovício, Devónico, Pérmico ou Triásico.
40

A excessiva exploração dos solos e as alterações de comportamentos


hidrológicos, conduziram a desequilíbrios importantes que em alguns
ecossistemas demonstraram ser irreversíveis.

3.4.2. Diminuição da biodiversidade


Muitos são os exemplos que se podem apontar, conducentes à extinção
de espécies vegetais ou animais.
A contaminação que mais frequentemente se aponta, é a contaminação
de origem química.
A rarefacção da camada de ozono e o aquecimento global são também
fenómenos que poderão afectar o desenvolvimento e sobrevivência de
muitas espécies do planeta.
Existe legislação que regulamenta para cada época do ano, as espécies
e o número de indivíduos de cada uma que é legal capturar e
comercializar. No entanto, os interesses económicos das empresas
multinacionais que dominam este mercado são demasiado grandes para
que estas se preocupem em respeitá-la.
O comércio ilegal de fauna e flora selvagem dá elevados rendimentos às
empresas que o dominam, sendo um negócio cuja rentabilidade só é
superada pelo contrabando de armas e pelo tráfico de drogas.
Para lutar contra esta situação, foi assinado em Washington (1973) o
Convénio Internacional de Espécies Ameaçadas de Fauna e Flora
Silvestre (CITES) que incita a cada um dos 23 países signatários a criar
legislação que proteja os seus recursos selvagens.

3.4.3. Biodiversidade aplicada


A diversidade genética dos seres vivos, deve ser guardada, constituindo-
se bancos de genes para utilização futura.

3.4.4. Protecção da biodiversidade


A preservação da biodiversidade tem um grande impacte social.
Este facto foi abordado na Conferência do Rio em 1992. Sendo os
países pobres aqueles que dispõem de uma maior diversidade biológica,
a partir da ractificação deste acordo, passam a ter direito a benefícios
económicos pela transacção dos seus recursos biológicos com terceiros.
Surge o problema que as entidades compradoras são, regra geral,
grandes empresas multinacionais farmacêuticas, químicas ou agro-
alimentares, que preferem tirar partido de um recurso de outrem, do que
pagar direitos sobre eles. Neste caso, há que actuar, sendo obrigação da
sociedade civil ou das ONGs (Organizações Não Governamentais), fazer
valer os direitos e proteger este património genético.

3.5. Desertificação e desflorestação


3.5.1. Introdução
A relação do homem com o ambiente que o rodeia nem sempre é
inofensiva. Como Ser racional que é, procura sempre solucionar com
41

proveito próprio os entraves que se colocam à sua colonização da terra.


No passado, a melhoria das condições ambientais, as descobertas que
foi efectuando e a supremacia intelectual que demonstrou ter
relativamente aos outros seres que povoavam a terra, permitiram-lhe
fixar-se. A agricultura e o pastoreio exigiram novos e mais férteis campos
para o cultivo e pastagens, que se roubaram às florestas 28.
Consequentemente as áreas florestais foram diminuindo, os solos
perdendo fertilidade, e o homem teve que continuar a avançar floresta
dentro procurando meios de subsistência. É a este processo, natural ou
artificial, que leva à redução da área coberta com um sistema florestal
que se dá o nome de desflorestação.
Este quadro é o que ainda hoje se verifica em muitos países do
hemisfério Sul, onde a necessidade de encontrar meios de sobrevivência
leva as populações que lutam contra a fome à destruição maciça de
florestas. Mas esta não é a única razão que conduz os países,
principalmente os países pobres do Sul, a destruir as suas riquezas
florestais. Muitos são os interesses dos países que pactuam com esta
destruição em busca de madeiras exóticas, novos e variados destinos de
oferta turística, mão-de-obra barata para a produção agro-alimentar,
extracção de lenha e carvão, entre tantas outras razões que se podem
referir. Segundo a FAO (“Food and Agriculture Organization” das Nações
Unidas), na década de 80 foram destruídos 155 milhões de hectares de
floresta tropical, o que é no mínimo preocupante.

3.5.2. Floresta e protecção ambiental


Na América Central e do Sul, na Indonésia e na Ásia encontram-se ainda
luxuriantes florestas que têm que ser protegidas dos interesses
comerciais dos países desenvolvidos. Estas florestas, apesar de serem
hoje uma pequena percentagem do que foram no passado, são os
pulmões do planeta e sustento de uma imensa variedade biológica. A
queima de extensas áreas de floresta, qualquer que seja a justificação,
conduz a uma importante libertação de CO2 para a atmosfera. Deste
modo, em vez de absorver este gás, a floresta deixa de o poder utilizar,
contribuindo também para aumentar a quantidade que é libertada para a
atmosfera.
No ano imediatamente após a queima, a produtividade dos solos é
suficiente mas, ao fim de 2 ou 3 anos, o solo exposto às radiações
solares, ao aquecimento e à falta de protecção por uma camada de
folhagem, sofre mineralização e torna-se improdutivo. Como
consequência, é abandonado. Sofre a erosão, e sob a influência dos
factores climáticos, lentamente transforma-se num deserto. A este
processo regressivo em que os ecossistemas tendem para situações de
deserto, dá-se o nome de desertificação.
Deste modo, ano após ano, estamos a destruir as florestas e a acabar
com uma riqueza biológica que nunca mais poderemos reconstruir.

________________________________
28
Entende-se por floresta todo o ecossistema dominado por árvores de folha caduca ou perene, larga
ou em agulha, mais ou menos evoluído, no qual se incluem florestas aparentemente arbustivas como o
maquis mediterrânico, seja ele alto ou baixo (Alves, 1998). É um sistema pluri-estratificado que alberga
uma imensa biodiversidade numa grande variedade de nichos ecológicos.
42

3.5.3. Floresta e biodiversidade


Madagascar é um caso emblemático, onde a desflorestação tem
assumido proporções devastadoras.
A imensa riqueza biológica estava protegida numa vastíssima área de
floresta tropical. O estabelecimento de colonos, a expansão europeia, a
colonização francesa até à independência em 1958 trouxeram para esta
ilha milhares de habitantes que para nela sobreviverem e se instalarem,
tiveram de cortar e queimar florestas.
Os solos esgotados, pisoteados pelos animais, são abandonados,
deixados à mercê dos agentes climáticos, e onde antes existia
vegetação abundante, hoje encontra-se deserto.
Deste modo, em Madagascar como em tantos outros locais, o homem
está a contribuir para a saelização29 e desertificação de vastas áreas da
terra, esquecendo que as suas actuações a nível local se fazem sentir de
forma global, à escala planetária.
Actuando deste modo torna impossível a autorregulação do planeta
proposto nos anos 70, por Lovelock na Teoria Gaia30. Segundo este
autor, até há pouco tempo, as actividades humanas eram assimiladas
pela biosfera. No entanto, actualmente a biosfera já não consegue fazer
frente ao excesso de CO2 existente na atmosfera, notando-se o seu
aquecimento global.

3.5.4. Medidas futuras


Os impactes antropogénicos sobre a floresta são demasiado alarmantes
para que não se tome qualquer atitude. Muitas das soluções que se
propõem são político-económicas, mas o problema tem importância
social e ética. Propor que os países do Norte, que têm climas
temperados e solos de melhor qualidade, produzam bens para vender
aos países do Sul, a preços baixos, é uma hipótese que não é fácil de
aceitar por uns nem por outros.

3.6. Resíduos
3.6.1. Introdução
3.6.2. Resíduos sólidos urbanos31 (RSU)
Um dos indicadores financeiros de que dispomos para avaliar o
crescimento e conómico de uma sociedade é o rendimento disponível
das famílias. Quanto maior for o rendimento líquido per capita, maior se
considera o desenvolvimento de uma determinada sociedade. A
apetência para o consumo, característica das sociedades modernas, tem
consequências nem sempre previsíveis aos mais diversos níveis:
económico, social e ambiental. Aliciados por campanhas publicitárias e
estratégias de marketing agressivas, os indivíduos são levados a consu-
________________________________
29
Saelização: processo regressivo em que os ecossistemas tendem para situações de pré-deserto.
30
Segundo Lovelock (1983), “A biosfera é uma entidade autorreguladora com capacidade para manter
a saúde do nosso planeta mediante o controlo do equilíbrio químico e físico” (ide. Benito, 1999).
31
RSU é sinónimo de resíduos domésticos ou urbanos.
43

mir. Adquirem inúmeros produtos, dos quais não necessitam, que deitam
fora com facilidade, uma vez que, para além de apresentarem uma baixa
durabilidade são frequentemente substituídos por novos e mais
interessantes modelos constantemente lançados no mercado. Em Paris,
a quantidade de resíduos domésticos rejeitados/ano/habitante era em
1962 pouco mais de 184 kg, enquanto que em 1994 se aproximava dos
549 kg.
A taxa de tratamento e eliminação de resíduos, em 1991, era menor em
Portugal do que em qualquer outro país da U.E. Verificando-se nessa
altura a deposição em lixeiras preferencialmente à compostagem32,
incineração ou à deposição em aterro sanitário33.
Os governos, municípios, e os meios de comunicação social têm, nos
últimos anos, feito um esforço para sensibilizar os cidadãos e a
sociedade em geral, para a importância da valorização dos resíduos.
Neste sentido, têm surgido em algumas autarquias, ecopontos34,
recolhas porta-a-porta de materiais, como papel, vidro e cartão que
posteriormente são tratados em indústrias de reprocessamento destes
materiais.

3.6.3. Resíduos industriais


Estimativas de 1992 apontavam Portugal como o responsável pela
produção de 1 300 000 toneladas de resíduos industriais. Este valor é
relativamente baixo quando comparado com os produzidos por países
industrializados da Europa. Apesar da grande quantidade de resíduos
produzidos pelas indústrias químicas, de pasta de papel e extractivas o
mais alarmante deve-se ao facto de cerca de 2/3 destes resíduos serem
eliminados por descarga no solo e no sub-solo registando-se uma
pequena percentagem de tratamento por incineração (MARN, 1994).
As indústrias são responsáveis pela produção de resíduos perigosos e
emissão de produtos tóxicos ocasionando contaminações de lençois
freáticos, águas superficiais, solos, atmosfera e cadeias tróficas, seja
pela emissão de gases tóxicos ou pela deposição de resíduos no solo e
no subsolo conducentes à destruição de muitos ecossistemas.
Apesar deste panorama, a problemática dos resíduos industriais está
mais bem controlada em termos legislativos que a dos resíduos
domésticos. As indústrias estão sujeitas a pressões dos mais diversos
quadrantes: institucionais, políticos, económicos e sociais.
O tratamento de resíduos perigosos pode ser feito através de dois tipos
de tratamentos:
• físico-químicos (utilizado no tratamento de resíduos constituídos por
metais pesados e ácidos) e
• incineração (destina-se fundamentalmente a matérias orgânicas não
biodegradáveis).
________________________________
32
Processo de reciclagem dos resíduos que envolve a separação e conversão biológica dos resíduos
sólidos orgânicos. O produto final, o composto, pode ser utilizado posteriormente como correctivo
agrícola.
33
Destino final dos resíduos urbanos, industriais ou perigosos que consiste em depositá-los de forma
controlada de modo a produzir uma degradação natural e lenta por via biológica até à mineralização da
matéria biodegradável.
34
Ecoponto: centro equipado com baterias de contentores para produtos específicos: vidro, papel,
cartão, plástico ou metais.
44

Refira que, no caso dos resíduos urbanos, exige-se que, para não haver
perigo de emissões tóxicas e para o processo ser eficiente, haja uma
prévia separação dos materiais a incinerar, o que só poderá ser feito
com a contribuição das populações que fizerem a separação dos
resíduos domésticos. Na Dinamarca, país onde as populações estão
muito sensibilizadas para a triagem dos desperdícios domésticos, a
incineração é um processo usado com êxito para o tratamento dos
resíduos (Pichat, 1995).
Algumas indústrias grandes consumidoras de energia, como as
cimenteiras, podem co-incinerar alguns destes resíduos na forma de
combustível como é o caso de materiais plásticos não clorados, óleos,
gorduras e substratos celulósicos. Mesmo quando a cimenteira está
preparada para queimar resíduos, os poluentes ou ficam retidos nas
“poeiras” emitidas pela própria unidade industrial ou são incorporadas no
cimento, o que pode reflectir-se negativamente na saúde das
populações, já que estas estão em permanente contacto com estruturas
de betão.
Apesar de muitas indústrias terem desenvolvido grandes esforços para a
diminuição dos resíduos que produzem, há alguns resíduos que não
podem ser resolvidos no seu interior, sendo muitos destes produtos
recolhidos, armazenados e tratados por indústrias de recuperação.
Os custos de tratamento e valorização são variáveis, dependendo da
composição dos resíduos nomeadamente das suas propriedades físicas,
da quantidade e qualidade dos resíduos finos solidificados e
estabilizados e do custo do armazenamento.

3.6.4. Medidas futuras


Num futuro, que já começou, é urgente não apenas sancionar, legislar e
aplicar taxas de tratamento mas educar, sensibilizar e formar
consciências. É fundamental dar conhecimentos aos cidadãos, aos
industriais, aos políticos sobre as consequências ambientais das atitudes
menos reflectidas ou mais oportunistas que cada um toma. É urgente
informar para que cada um seja responsabilizado preocupando-se em
reduzir a quantidade de resíduos que produz, reutilizar tanto quanto
puder os “desperdícios” que causa e por último reciclar e valorizar os
bens que possui.

3.7. Instrumentos de Política de Ambiente


3.7.1. Enquadramento
Em 1984 foi constituída pela Assembleia Geral das Nações Unidas, a
Comissão Mundial para o Ambiente e o Desenvolvimento (CMAD), como
um órgão independente e integrado por 21 países. Esta Comissão foi
criada com o objectivo de:
a) Reexaminar os problemas vitais do ambiente e do
desenvolvimento, e formular propostas de acção inovadoras,
concretas e realistas para tentar “remediá-los”;
b) Reforçar a cooperação internacional nos domínios do ambiente e
do desenvolvimento, bem como estudar e propor novas formas de
cooperação, que possam surgir a partir dos padrões existentes e
45

influenciar as políticas e os acontecimentos no sentido da mudança


necessária;
c) Aumentar o nível de compreensão e de compromisso dos
cidadãos, organizações voluntárias, empresas, instituições e
governos (MPAT, 1989).
A CMAD publicou então um relatório, em 1987, denominado “O Nosso
Futuro Comum”, também conhecido como “Relatório Bruntland”35. Deste
relatório resultou uma nova esperança com a introdução do conceito de
desenvolvimento sustentável. Tal como enunciado no relatório
Bruntland, define-se desenvolvimento sustentável como o
desenvolvimento que satisfaz as necessidades das gerações actuais,
sem com isso comprometer a possibilidade das gerações futuras
satisfazerem as suas próprias necessidades.
Mas tanto a tecnologia como a organização social podem ser geridas e
melhoradas por forma a abrir caminho para uma nova era do
crescimento económico. O processo não é fácil nem simples.
A implementação prática dos princípios expressos nos diplomas legais
resultantes do Relatório Bruntland, só se tornou mais intensa e clara
após a Conferência das Nações Unidas sobre Ambiente e
Desenvolvimento (CNUAD), realizada em Junho de 1992 no Rio de
Janeiro, também conhecida por Eco'92.
Foram objectivos pré-definidos pela organização da Conferência – a
elaboração de Documentos como a Carta da Terra36, as Convenções
sobre Alterações Climáticas, Biodiversidade e Florestas dotadas dos
necessários instrumentos de implementação (recursos financeiros,
mudanças institucionais e transferência de tecnologia). No entanto, o
conflito entre o Norte rico e o Sul pobre dominaram o assunto das
reuniões, e poucos acordos foram atingidos. Das três convenções
previstas, apenas a do Clima e a da Biodiversidade foram concretizadas,
embora sem metas nem prazos definidos.
Com o objectivo de serem cumpridas as medidas elaboradas na
Conferência do Rio e de se caminhar para um terceiro milénio mais
equitativo e sustentável, foi criada em 1993 a Comissão de
Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (CDS).
Passados 5 anos sobre a Conferência do Rio, teve lugar, em Junho de
1997, a Sessão Especial da Assembleia Geral das Nações Unidas
(UNGASS), também denominada “Cimeira Rio + 5”, com a missão de
fazer a avaliação dos compromissos da Eco'92 e, sobre ela criar um
novo plano de acção capaz de, na viragem do século, suster o ritmo da
degradação das condições de vida no planeta e impulsionar os factores
de mudança e de melhoria a todos os níveis: mundial, nacional e local.
No entanto, nesta Sessão caracterizada por intensas negociações, não
foram, uma vez mais, atingidos os objectivos pré-definidos. Na realidade,
até ao final dos trabalhos, o que era suposto vir a constituir a declaração
política e o programa para implementação da Agenda 21, foi objecto de
árduas negociações saldando-se o acordo em torno do Programa por
________________________________
35
Esta designação deve-se à sua apresentação ter sido efectuada pelo presidente da Comissão, G. H.
Bruntland.
36
Documento constituído por um conjunto de princípios e programas de acção com base no respeito
pela Terra e por todos os organismos vivos que dela fazem parte.
46

fracos compromissos.
Se os níveis de desigualdade dos rendimentos económicos forem
mantidos ao actual ritmo é de esperar que a pobreza local relacionada
com problemas ambientais, como a sobre-exploração local de recursos
naturais e a morbilidade e mortalidade relacionada com problemas
ambientais seja mantida ou agravada.
É assim necessário identificar prioridades políticas e estratégias
efectivas para a aplicação do desenvolvimento sustentável e para o
progresso na implementação da Agenda 21.

3.7.2. Estratégias para a implementação da


Agenda 21
De uma maneira geral a integração de políticas ambientais com as
económicas e as sociais é fundamental para a implementação da
Agenda 21. São também importantes para este fim estratégias como
• a promoção de tecnologias limpas,
• o aumento da eficiência através da transferência de tecnologia e
• as mudanças estruturais nos padrões de produção e consumo.
Conforme já referido estas modificações só podem ser realizadas se as
condições socio-económicas e institucionais se encontrarem tendo em
vista a melhoria dos sistemas ambientais.
Em termos práticos existem actualmente diversos instrumentos de
política ambiental para se efectuar a transição ambiental que integre o
ambiente e os processos de decisão económica.
Avaliação de Impacte Ambiental (AIA) – Procedimento administrativo que
garante que, antes da autorização de um projecto, os seus potenciais
impactes significativos sobre o ambiente sejam satisfatoriamente
avaliados e tidos em consideração. Este procedimento está actualmente
bem estabelecido, embora a eficiência da AIA dependa da sua
elaboração ser iniciada antes do projecto estar em curso de forma a
permitir a sua influência aquando da execução do projecto.
Avaliação Ambiental Estratégica – Procedimento que visa a aplicação da
Avaliação de Impacte Ambiental a políticas, planos e programas. Este
novo instrumento possibilita colmatar as lacunas dos AIA (apenas
direccionada por projectos), evitando que as medidas de protecção
ambiental sejam sugeridas já numa fase tardia de planeamento.
Legislação Ambiental – Processo para regulamentar e proteger por lei o
ambiente.
Gestão Ambiental e Auditorias Ambientais – Processo que consiste na
avaliação da qualidade ambiental de uma empresa em todos os níveis
da sua actividade, por exemplo, consumo de matérias primas, consumos
energéticos, produção de resíduos e emissão de efluentes, qualidade do
ambiente de trabalho, iniciativas para a promoção da qualidade do
ambiente, (e.g. retoma dos resíduos do consumo dos seus produtos). As
Normas Internacionais ISO 1400037 visam a aplicação de sistemas de
gestão ambiental e de outros instrumentos relacionados. Estas normas
foram concebidas de forma a serem aplicáveis a qualquer tipo de entida-
________________________________
37
ISO – Organização Internacional de Normalização.
47

de, pública ou privada, e determinam quais os requisitos de um sistema


de gestão ambiental e englobam um conjunto complexo de técnicas e
práticas ambientais. Existem já várias empresas que as aplicam e que
são reguladas por estas normas.
Análise do Ciclo de Vida de Produtos (ACV) – Técnica de avaliação dos
impactes ambientais associados a um produto ou serviço, onde são
compilados os fluxos de entradas e saídas e avaliados os impactes
ambientais associados a um produto ao longo do seu ciclo de vida
(desde a extracção de matérias primas ou transformação de recursos
naturais, até à deposição final do produto).
Rótulos Ecológicos – Processo de atribuição de rótulos ecológicos a
equipamentos que são submetidos a um licenciamento perante a análise
do ciclo de vida do produto, sendo necessário que as empresas
comprovem que na sua composição e fabrico foram seguidos
determinados critérios tendo em conta a preservação do ambiente.
Existem diversos rótulos como é o caso do Sistema Comunitário de
Atribuição do Rótulo Ecológico cujos critérios são definidos pela
comunidade europeia.
Acordos voluntários – Acordos com os governos de cada país no sentido
de motivar o tecido industrial a considerar critérios de natureza ambiental
nos seus processos produtivos, conduzindo à implementação de
medidas, tanto externas como internas às instalações, considerando a
integração de práticas ou equipamentos de redução da poluição. Existem
várias empresas que já efectuaram estes acordos com os respectivos
governos, sendo no entanto importante garantir a sua eficácia.
Tecnologias limpas – Processo de implementação de tecnologias menos
poluidoras nas industrias que tenham em conta a prevenção da poluição
e não a utilização de técnicas de despoluição apenas no final da linha do
processo produtivo convencional.
Subsídios – Procedimentos que tanto podem originar degradação
ambiental (e.g. apoio a agricultura intensiva ou industrial de carvão)
como beneficiar (e.g. apoio a medidas agro-ambientais).
Taxas Ambientais – Processo que consiste na incorporação dos custos
da poluição e outros custos ambientais nos preços, ou seja um processo
de correcção de preços e, simultaneamente, de aplicação do “Princípio
do Poluidor-Pagador”. Desta forma todos os custos sociais e ambientais
devem ser integrados nas actividades económicas, para que as
externalidades ambientais sejam consideradas. Existem essencialmente
três tipos de taxas:
• “taxa por serviço prestado”, como o tratamento da água,
• “taxas de incentivo” que visam mudar o comportamento dos
produtores e/ou consumidores, oferecendo, por exemplo benefícios
fiscais e
• “taxas fiscais ambientais” essencialmente destinadas a gerar
receitas.
Mais recentemente efectua-se a integração em “reformas fiscais verdes”
em que os impostos sobre problemas como a poluição substituem alguns
impostos sobre “bens” de trabalho, como é o caso do emprego (AEE,
1997).
Comércio ambiental e implementação conjunta – Instrumento económico
que se baseia na fixação total de uma quantidade de poluição permitida
48

(avaliada por emissão de poluentes) sendo permitido o comércio de


emissões entre diferentes países desde que o balanço total seja
mantido.
Segundo RIVM/UNEP (1997), numa análise global preliminar dos custos
adicionais das medidas políticas para incrementar as diversas
transições, os custos serão da ordem de pequenas percentagens do PIB.
Estes níveis são substanciais mas não proibitivos, e na maioria dos
casos, pagarão as estimativas dos níveis presentes e futuros de estragos
ambientais. No entanto, para os países em desenvolvimento, os custos
em percentagem dos seus PIB's serão substancialmente superiores.
49

4. Problemas demográficos
4.1. Explosão demográfica
4.1.1. Evolução da população mundial
Foi necessária toda a história humana até 1801, para que a população
mundial atingisse o primeiro bilião (milhar de milhões). Prevê-se que em
2050, a população seja de 8.9 mil milhões e em 2150 passe para 9.738.
Assim, foram necessários 130 anos para que se atingisse o 2º. milhar de
milhão, para o 3º. apenas 30 anos, o 4º. milhar de milhão foi alcançado
em 14 anos, 13 bastaram para que o 5º. milhar de milhão fosse atingido,
em 12 anos apenas o mundo atingiu o 6º. milhar de milhão de pessoas.

1.º Milhar de Milhão História Humana até 1800


2.º Milhar de Milhão 130 Anos (1930)
3.º Milhar de Milhão 30 Anos (1960)
4.º Milhar de Milhão 14 Anos (1974)
5.º Milhar de Milhão 13 Anos (1987)
6.º Milhar de Milhão 12 Anos (1999)
7.º Milhar de Milhão 14 Anos (2013)
8.º Milhar de Milhão 15 Anos (2028)
9.º Milhar de Milhão 26 Anos (2054)

De facto, o que torna o século XX único na história da Humanidade é o


comportamento da taxa de crescimento da população mundial, que
atinge um pico em 1976, para depois iniciar uma queda que, no
horizonte temporal do gráfico seguinte, é quase tão vertiginosa como
tinha sido o seu aumento anterior.
2,5
Taxa de Crescimento (%)

1,5
1

0,5
0
5000 4000 3000 2000 1000 0 1000 1776 1976 2176 3000 4000 5000
a.C. a.C. d.C. d.C.
Anos

________________________________
38
As projecções das Nações Unidas incluem 3 cenários, alto, médio e baixo com base no
comportamento da fecundidade (relação do número de nascimentos com a população feminina em
idade de procriar, assumindo-se o período fértil entre os 15 e os 49 anos). Os dados que se
mencionam para os anos 2050 e 2150, referem-se ao cenário médio, por ser considerado como o mais
provável, e assume-se que o número médio de filhos por mulher será de dois, ou seja assume-se que
haja renovação das gerações. Nações Unidas (1998) Long-Range World Population Projections:
Based on the 1998 Revisions, 1999.
50

4.1.1.1. Evolução da população mundial


● Até ao século XVIII
Até ao século XVIII, o crescimento da população foi lento, ainda
que a taxa da natalidade39 fosse alta a taxa da mortalidade40 era
também muito alta.
As elevadas taxas da mortalidade deviam-se sobretudo, à falta de
condições de higiene, desde a higiene pessoal que era muito
precária, às condições sanitárias que propiciavam o surgimento de
certas doenças contagiosas, como a peste, a cólera, a varíola e o
tifo, com consequências desastrosas.41
● De 1750 até 1950
• Melhores condições sanitárias;
• progressos na medicina preventiva e curativa;
• melhor alimentação (em variedade e quantidade);
• melhores condições de habitação;
• melhor higiene pessoal (por exemplo, com o uso do sabão e
de roupas de algodão, mais fáceis de lavar do que as de lã);
estes, entre outros factores, permitiram uma baixa da taxa da
mortalidade e um aumento da esperança média de vida42.
Consequentemente um grande aumento populacional que
incidiu, sobretudo, na Europa e América do Norte.
● De 1950 até 1999
A partir da II Grande Guerra Mundial, nos países menos
desenvolvidos verificou-se uma acentuada melhoria das condições
de vida, no acesso a cuidados médicos e a água potável
permitindo um decréscimo da mortalidade.
● 1999 – O ano dos seis biliões
A 12 de Outubro de 1999 o planeta atingiu 6 mil milhões de
habitantes.
Contudo, as assimetrias entre os países mais desenvolvidos e os
menos desenvolvidos são cada vez maiores.
● De 1999 até 2050
Prevê-se que a população mundial continue a crescer nos
próximos 50 anos. A diferença entre os cenários elaborados resulta
das variações da taxa de fecundidade, sendo o cenário médio o
mais provável, segundo a ONU.

________________________________
39
Taxa de Natalidade – número de nados-vivos ocorrido durante um certo período de tempo,
normalmente o ano, referido à população média desse período (habitualmente número de nados-vivos
por 1000 habitantes), (1999) Estatísticas Demográficas, Lisboa, INE, 1998.
40
Taxa de Mortalidade – Número de óbitos ocorridos durante um certo período de tempo, normalmente
o ano, referido à população média desse período (por regra o número de óbitos por cada 1000
habitantes), (1999) Estatísticas Demográficas, Lisboa, INE, 1998.
41
“O número de mortos devido à peste contou-se por vezes por milhões. Calcula-se que a grande peste
de 1348 terá provocado 25 milhões de mortos, ou seja, um quarto da população da Europa nesse
tempo.” Barata, 1968: 335.
42
Corresponde à duração média de vida de um indivíduo.
51

● Cenário Alto – Se o número médio de crianças por mulher


for de 2,5, a população mundial será de 10,7
mil milhões;
● Cenário Médio – Se o número médio de filhos por mulher for
de 2, a população mundial será de 8,9 mil
milhões;
● Cenário Baixo – Se o número médio de filhos por mulher for
de 1,6, a população mundial será de 7,3 mil
milhões.

4.1.1.2. Causas principais do crescimento


demográfico
Ainda que se tenham verificado alterações, no sentido de baixar a
natalidade, esta continua a ser elevada43, podendo apontar-se
como causas:
● Estatuto e papel da Mulher centrados na maternidade
A progenitura é considerada como o meio de se alcançar
muitos objectivos da vida quotidiana.44
● Valor da Criança
As crianças são vistas como garante do futuro dos mais
velhos, devido à inexistência de segurança social.
● Mortalidade infantil elevada
O número de crianças que conseguem sobreviver é reduzido,
o que origina a necessidade de famílias numerosas.
● Baixo nível educacional da mulher45
Tende a reduzir a idade média do primeiro casamento.
● Planeamento familiar reduzido e baixo uso de
contraceptivos46

________________________________
43
Nas regiões menos desenvolvidas, em 1950, o número médio de filhos por mulher era 6,2, passando
em 1999 para menos de 3. O decréscimo mais rápido da fecundidade verificou-se na América Latina e
na Ásia, foi menos rápido no Norte de África e Médio Oriente e muito lentamente na África sub-sariana
(entre 1950 e 1995, passou de 6,5 para 5,5).
44
Nas sociedades “(...) onde o parentesco forma a base principal da organização social, a reprodução é
um meio necessário para quase todos os principais objectivos de vida. A salvação da alma, a
segurança na velhice, a produção de bens, a protecção do lar, e a garantia de afecto podem depender
da presença, ajuda e apoio da prole. (...) Esta articulação do status parental com os restantes status de
um indivíduo é o supremo estímulo da fertilidade.” Davis 1949: 561, citado por Weeks, 1996: 134.
45
Nos países menos desenvolvidos a taxa de alfabetização das mulheres é de 61%, sendo nos países
africanos que se registam as taxas mais baixas com 46%, idem. “Os demógrafos e os sociólogos
verificaram que mais educação para as mulheres e as raparigas está relacionada com melhorias na
saúde e com a descida das taxas de fecundidade.” FNUAP, 1999: 20.
46
350 milhões de mulheres, quase um terço das mulheres de países menos desenvolvidos, não tem
ainda acesso aos diversos meios de planeamento familiar. FNUAP, 1999:2. A percentagem de
mulheres casadas que usam meios de contracepção modernos nos países menos desenvolvidos é de
37%, sendo na África a Sul do Sara onde a percentagem é menor com 18%. Idem.
52

4.1.1.3. Consequências principais do acelerado


crescimento demográfico
● Consequências sócio-económicas:
• Maior pressão demográfica;
• Maior urbanização;
• Aumento do desemprego e subemprego;
• Maior número de pobres;
• Fome e Subnutrição;
• Maiores tensões sociais;
• Recurso à emigração.
● Consequências políticas:
• Mudança na composição do eleitorado;
• Surgimento de novas ideologias e de novos partidos;
• Instabilidade política;
• Corrupção;
• Tendência para a formação de governos autocráticos;
• Intervenção das forças militares e de segurança, na
governação.
● Consequências ambientais:
• Escassez de água potável ou útil em determinadas regiões
(provocando desertificação, menor produção agrícola e
maior salinação das terras)47;
• Redução das florestas;
• Decréscimo da terra de cultivo per capita48;
• Aquecimento gradual da atmosfera;
• Mudanças climáticas mundiais em grande escala (subida
do nível do mar, aumento da pluviosidade em alguns
lugares ou ainda aumento das temperaturas em
determinadas zonas.
● Face a esta situação, que medidas tomar?
No quadro síntese, que se segue, são referidas estratégias
possíveis de intervenção. De modo geral, trata-se de:
• acelerar o desenvolvimento social e económico; e de
• aumentar o controlo das mulheres e dos homens sobre a
sua vida, nomeadamente sobre a sua vida reprodutiva e
permitir que gozem os seus direitos humanos
fundamentais.

________________________________
47
Entre 1940 e 1990, o uso da água quadruplicou. Population Reference Bureau (1999) More Than
Just Numbers.
48
O aumento da população reduziu a zona de cultivo de cereais por pessoa em 50%, desde 1950.
FNUAP, 1999: 27.
53

Explosão Demográfica - Síntese

Estatuto e papel da Melhores condições


mulher centrados na de vida
maternidade

Acesso a cuidados
de saúde modernos
Valorização da criança

Melhores condições
Baixas habilitações sanitárias e
literárias da Mulher higiénicas

Planeamento familiar Prevenção de certas


reduzido e baixo uso doenças
de contraceptivos infectocontagiosas

Mortalidade infantil Acesso a água


elevada potável

Elevada taxa de Maior esperança Baixa da taxa de


fecundidade média de vida mortalidade

EXPLOSÃO DEMOGRÁFICA

Principais Consequências Sociais Possíveis Estratégias de Intervenção


• Rápido crescimento populacional; — Aumento da escolaridade feminina
• Pressão sobre o ambiente e que permitirá:
serviços;
• Pobreza; • Maior participação na vida activa;
• Êxodo rural; • Maior participação na vida política
• Maior afluxo às cidades; e económica;
• Elevada taxa de desemprego; • Aumento da idade média à data
• Condições de vida precárias; do 1.º casamento;
• Recurso à imigração; • Recurso ao planeamento familiar
• Adopção de políticas e legislação e meios de contracepção;
anti-natalistas. • Maior capacidade de decisão
sobre o número de filhos
pretendidos e o intervalo entre
eles;
• Menor número de filhos;
• Campanhas anti-natalistas.
54
55

4.2. Envelhecimento demográfico ou


populacional
4.2.1. Envelhecimento da população
Assiste-se hoje, na generalidade das sociedades mais desenvolvidas, ao
fenómeno do envelhecimento demográfico ou populacional, ou seja, ao
aumento da percentagem relativa de indivíduos com 6549 e mais anos de
idade no conjunto da população total.
O reconhecimento da relevância e escala do fenómeno e dos seus
prementes reflexos nos sistemas sociais e de segurança social dos
países mais ricos do planeta tem justificado que o envelhecimento
mereça hoje mais atenção até do que a explosão demográfica50 nos
países em vias de desenvolvimento, embora o problema do
envelhecimento da população venha também a atingir estes últimos, a
curto prazo, com grande intensidade.

4.2.2. Evolução da população por grupos


etários nas grandes Regiões
4.2.2.1. Mundo
Desde a década de 50, que se tem verificado um aumento da
população com 60 e mais anos comparativamente à população
com menos de 15 anos.

4.2.2.2. Regiões mais desenvolvidas


A alteração tem maior significado nos países mais desenvolvidos.
Assim, em 1950, a proporção de jovens era de 27% e a dos com
60 e mais anos era de 12%. Em 1998, e pela primeira vez, a
proporção dos jovens foi mais baixa do que a proporção dos mais
idosos, 18,8% contra 19,1%.

4.2.2.3. Regiões menos desenvolvidas


Nos países menos desenvolvidos, o processo de envelhecimento
da população tem sido mais lento.

4.2.2.4. Evolução do número de indivíduos com


65 e mais anos no total da população
mundial
Existe uma tendência global para o envelhecimento da população
no Mundo, contudo será mais acentuada para os países mais
desenvolvidos.

________________________________
49
Considerou-se a idade de 65 anos para delimitar os indivíduos idosos por ser, na maioria dos países,
a idade de entrada para a reforma. Consideram-se jovens, os indivíduos que tenham idades entre os 0
e os 14 anos. A população activa compreende os indivíduos entre os 15 e os 64 anos de idade.
50
Por explosão demográfica, entende-se o acelerado crescimento da população que se tem verificado
nos países menos desenvolvidos a partir de 1945, mas com maior significado a partir da década de 80.
56

4.2.3. Causas do envelhecimento demográfico


O envelhecimento demográfico ou populacional deriva de uma de três
razões principais:
● A primeira consiste no envelhecimento natural do topo,
resultante do acréscimo da percentagem da população idosa, em
consequência de tendências demográficas endógenas
normais. O acréscimo do número de indivíduos com 65 e mais
anos resulta, da baixa taxa de mortalidade e da mortalidade
infantil51 com consequente aumento da esperança média de
vida52, resultado do avanço da medicina e de melhores condições
de vida (melhores condições sanitárias e higiénicas, melhor
alimentação, entre outras).
● Uma segunda razão, refere-se ao envelhecimento artificial do
topo, que acrescenta à primeira, a concentração de idosos em
regiões particularmente atraentes, devido, entre outras causas,
às boas condições climáticas e existência de serviços
especializados. A presença e intensidade destes e outros
factores exógenos às normais tendências demográficas, tem
por paradigma o caso da Florida – que, por isso mesmo, tem
constituído um verdadeiro laboratório de pesquisa, como
antevisão do que virá a ser, a curto prazo, a estrutura de idades
da população dos E.U.A. e as de outros países desenvolvidos 53,
ou ainda devido às migrações, quer internas quer
internacionais, dado serem os jovens que maior tendência têm
para migrar.
● Por fim, há a considerar o envelhecimento natural na base,
resultante da quebra da natalidade característica de sociedades
urbanas e industriais, com a consequente redução progressiva da
camada mais jovem, no total da população.

________________________________
51
Número de óbitos de crianças com menos de um ano ocorrido durante um certo período de tempo,
normalmente o ano, referido ao número de nados-vivos do mesmo período (habitualmente número de
óbitos de crianças com menos de um ano por 1000 nados-vivos). INE (1999) Estatísticas
Demográficas, Lisboa, 1999.
52
Na década de 50, a esperança média de vida era de 45,1 anos para os homens e de 47,8 anos para
as mulheres. Na década de 90, era de 62,4 e 66,5 respectivamente. Em 2020, será de 70,2 para os
homens e de 74,9 para as mulheres. Houve um acréscimo de, cerca de, 18 anos em 50 anos. No
entanto, a esperança média de vida não é igual em todas as regiões do planeta. Assim, nos países
mais desenvolvidos a esperança média de vida é de 71,1 para os homens e de 78,7 para as mulheres,
nas regiões menos desenvolvidas é de 61,8 para os homens e de 65 para as mulheres.
Os ganhos do aumento da longevidade, poderão vir a ser reduzidos devido ao número crescente de
indivíduos afectados com o HIV/SIDA, Síndrome da Imunodeficiência Adquirida.
53
Note-se que, segundo as projecções realizadas pelas Nações Unidas para 2050, com base no
cenário médio, a Espanha terá a população mais envelhecida do mundo, em que a idade média será
de 47,4 anos e África terá a população mais jovem, com idade média de 30,7 anos.
A Espanha será o país mais envelhecido do mundo, com a idade média de 54,3 anos, em que para
cada indivíduo com menos de 15 anos existirão 3,6 com mais de 60 anos. De todos os países mais
envelhecidos, Portugal será “o mais jovem” com idade média de 50 anos.
A área mais jovem do mundo será a Faixa de Gaza, com a idade média de 26,9 anos, seguindo-se o
Burkina Faso, com 27,6 anos.
57

4.2.4. Consequências do envelhecimento


populacional ou demográfico
4.2.4.1. Consequências Económicas e Sociais
A nível económico, o aumento da população idosa acarreta
maiores custos com a segurança social (com pensões e
reformas), com a saúde (hospitais e medicamentos), com a criação
de infra-estruturas (lares, centros de dia). Todos estes encargos
financeiros para com o Estado serão suportados por uma
população activa, cada vez mais reduzida, o que implicará uma
diminuição da sua qualidade de vida.

4.2.4.2. Consequências políticas


Uma sociedade com menor percentagem de população activa,
poderá apresentar certas características:
● Inflação baixa (os eleitores idosos vão dominar as eleições
e deverão ser particularmente hostis à ideia de verem as
suas poupanças diminuídas pela inflação);
● Taxa de desemprego baixa (devido à queda da proporção
de pessoas em idade normal para trabalhar);
● Criminalidade baixa (os jovens cometem mais crimes,
enquanto que os mais velhos têm tendência para tolerar
menos o crime);
● Baixa tolerância da desordem e do comportamento anti-
social, e com isto
● Maior aceitação da autoridade no controlo deste tipo de
comportamento.

4.2.4.3. Consequências individuais do


envelhecimento
● Consequências físicas
Com a idade o organismo fica mais debilitado, com menor
resistência às doenças e com menor capacidade para realizar
determinadas actividades.
● Consequências económicas e sociais
A entrada para a reforma ou a dependência de pensões ou
subsídios estatais, significa para a maioria da população idosa,
uma redução dos seus rendimentos. A perda de contacto com a
vida activa e produtiva leva a que muitos se sintam excluídos da
sociedade.
58

4.2.5. Tendências do envelhecimento


populacional
● A maioria da população com 60 e mais anos viverá em países
mais desenvolvidos (33%, em 2050, enquanto que nos países
menos desenvolvidos representarão 21%);
● O maior acréscimo da população com 60 e mais anos dar-se-á nos
países menos desenvolvidos, onde passará de 240 para 1.594
milhões;
● Feminização da população envelhecida;
● Estima-se que aumente o número de pessoas com 80, 90 e 100
anos relativamente ao total da população idosa;
● Redução do número de activos por cada idoso.

4.2.6. Possíveis estratégias de intervenção


Ciclo do Envelhecimento Demográfico - Síntese

Maiores habilitações Melhores condições


literárias da mulher de vida

Maior participação da Avanço da


mulher na vida activa medicina

Baixa taxa da
Planeamento familiar e
mortalidade infantil
uso de contraceptivos

Baixa da taxa da Maior Esperança Baixa da Taxa da


Fecundidade Média de Vida Mortalidade

ENVELHECIMENTO DEMOGRÁFICO

Principais Consequências Possíveis Estratégias de Intervenção


• Maior número de indivíduos com 65 • Fomentar a natalidade com recurso
e mais anos; a políticas natalistas;
• Desequilíbrio crescente entre • Aumentar a idade da reforma;
população inactiva e activa; • Redefinir o papel e imagem do
• Maiores custos com reformas e idoso;
pensões; • Educar para a vida na terceira idade;
• Maiores custos com a saúde; • Criar medidas para apoio de idosos
• Maiores custos com infraestruturas; na vida activa;
• Maiores encargos financeiros e • Promover acções de formação para
fiscais para os activos; os idosos;
• Redução da qualidade de vida da • Reintegrar os idosos na vida activa;
população activa; • Fomentar a participação de idosos
• Alterações nas estruturas sociais; em regime de cooperação com
• Alterações de valores; países em desenvolvimento.
• Alterações políticas.
59

4.3. Migrações
Foi a partir do século XVI que se deram os movimentos “(...) mais
espectaculares e aparentes, (...) as grandes migrações transoceânicas que
levaram ao povoamento por europeus da América, da África meridional, da
Austrália e da Nova Zelândia”.

4.3.1. Classificação das migrações54


As migrações podem ser classificadas em:
• Migrações Internas;
• Migrações Internacionais.

4.3.1.1. Migrações internas


Por migrações internas, entendem-se os movimentos definitivos ou
sazonais das populações dentro de um país, território ou área
restrita.
● Classificação das migrações internas:
● Definitivas, como o êxodo rural (saída dos campos para
as cidades)55;
● Sazonais56, constituídas por grupos organizados de
pessoas em resposta a ofertas de trabalho for a das suas
regiões habituais de residência durante determinados
períodos do ano.
● Causas das migrações internas, exemplos:
● Ordem económica – as que se referem
fundamentalmente, a questões de natureza laboral
(desemprego, subemprego, baixos salários).
● Ordem não económica – que podem ser de vária
natureza, por exemplo:
● Ecológicas (Infertilidade das terras, escassez de água
potável; maior rigor do clima;
● Sociais (conflitos, dificuldades de comunicação;
inexistência de infra-estruturas, como Centros de
Saúde, Escolas, Universidades, etc.)
Consequências das migrações internas

A principal consequência das migrações internas é a
crescente urbanização que trará problemas sérios a
vários níveis:
________________________________
54
Por migração, entende-se o movimento de uma população, temporário ou permanente, de um local
físico para outro. Contudo, não se poderá considerar migração a ida regular para o local de trabalho
mesmo que distante, ou a visita de familiares. A migração envolve necessariamente uma transição
social bem definida, implicando por regra uma mudança de estatuto ou uma alteração no
relacionamento com o meio envolvente, quer físico quer social.
55
Nos Estados Unidos da América está a surgir um novo processo migratório, a mudança das áreas
urbanas para as áreas rurais. Nos novos habitantes incluem-se reformados, profissionais liberais, entre
outros, na busca de uma vida que a cidade já não proporciona.
56
Designam-se por sazonais por terem uma duração inferior a um ano e repetem-se ciclicamente com
periodicidade annual.
60

● Ao nível demográfico – desertificação do interior e


zonas rurais que contribui para o envelhecimento destas
regiões e ao aumento da densidade populacional nas
áreas urbanas dando origem a mega cidades57;
● Ao nível familiar – o abandono de mulheres, crianças e
idosos, enquanto os homens vão para as cidades;
● Ao nível social – desemprego ou subemprego, baixos
salários, bairros com precárias condições de vida,
tensões sociais e pressão sobre os sistemas de
prestações de serviços.

4.3.1.2. Migrações internacionais


Por migrações internacionais entendem-se os movimentos
populacionais que ocorrem entre países.
Considera-se emigrante o indivíduo que sai do seu país para ir
trabalhar para outro país. O mesmo indivíduo chegado a França é
aí considerado imigrante.
● Migrações internacionais. Alguns factores.
● Natureza das motivações de deslocação, em que se
enquadram
● as migrações políticas (guerras, revoluções,
perseguições étnicas ou religiosas) e
● as migrações económicas (desemprego, baixos
salários, más condições de vida);
● Distância percorrida que poderá envolver
● grandes distâncias (migrações longínquas ou
transoceânicas, p. ex. as que se desenvolveram da
Europa para outros continentes; ou
● curtas distâncias, como as principais migrações
contemporâneas desde o início da década de 90;
● Duração de permanência, que poderá ser
● definitiva (geralmente é o caso das migrações
transoceânicas, como, no passado, as de Portugal
para o Brasil) ou
● temporária (migrações sazonais, anuais ou
plurianuais, contratos por temporada, p. ex. na
construção civil ou na área da agricultura).
● Duração do fluxo, que está relacionado com a conjuntura
económica e/ou por decisões políticas dos países de
origem58 e de destino.
● A estrutura familiar dos grupos migrantes, que
tenderá a reflectir-se nos respectivos comportamentos,
consoante a emigração seja de curta ou longa distância
________________________________
57
Em 1960, as três maiores cidades do mundo situavam-se em países desenvolvidos. Nova Iorque
(com 14,2 milhões de habitantes), Tóquio (com 11 milhões) e Londres (com 9,1 milhões). Em 2015, as
maiores cidades serão Tóquio, Bombaim e Lagos, com 28,9, 26,2 e 24,6 milhões de habitantes
respectivamente, Population Reference Bureau (1999), International Migration.
58
Foi, por exemplo, o que aconteceu durante o regime de Mussolini, que durante 15 anos impediu a
emigração legal dos italianos, George:1977: 36.
61

(por exemplo, neste último caso, a emigração será


menos problemática para os solteiros e isolados).

● As qualificações dos migrantes, que, por regra, quanto


mais elevadas forem mais facilitarão a sua entrada e
integração sócio-profissional nos países de destino.
● Proximidade cultural entre os migrantes e a
população anfitriã (língua, etnia, cultura). Quanto maior
for essa proximidade, maiores as facilidades de
integração e maior preferência terão os migrantes nas
políticas de imigração.
● Causas das migrações internacionais
Podemos distinguir como principais causas dos fluxos migratórios
internacionais: causas de ordem económica e de ordem não
económica que levarão a que um número cada vez maior de
pessoas procure refúgio fora dos seus países de origem, quer legal
quer clandestinamente:
● As de ordem económica – as que se referem
fundamentalmente, a questões de natureza laboral
(desemprego, subemprego59, baixos salários, informação
sobre empregos através de recrutadores, dos media e de
compatriotas no estrangeiro, redes de transportes e
comunicações desenvolvidas).
● As de ordem não económica - que podem ser de vária
natureza, nomeadamente:
● Políticas (guerras, revoluções, perseguições);
● Demográficas (maior densidade populacional);
● Sociais (falta de infra-estruturas sociais, escolas,
hospitais, etc.);
● Religiosas/Culturais (proibição de professar outros
cultos, existência de certas práticas rituais como, por
exemplo, mutilação genital feminina)60;
● Familiar (reagrupamento familiar)61;
● Pessoal (realização profissional, gosto de viver no
estrangeiro).
● Consequências das Migrações Internacionais
● Consequências para o País de destino
As consequências são fundamentalmente de três ordens,
económica, demográfica e socio-política:
________________________________
59
Por exemplo, a China, em 1996, tinha 40% da sua população desempregada ou subempregada.
Population Reference Bureau, International Migration, 1999:4.
60
M.G.F. - Ablação parcial ou total dos órgãos genitais externos da mulher. No mundo inteiro, estima-se
que 130 milhões de raparigas e mulheres tenham, sido objecto de alguma forma de M.G.F., FNUAP:
1999: 33.
61
Processo designado pela reconstituição da família no estrangeiro, em fase subsequente à emigração
do primeiro dos seus membros. Rocha-Trindade, 1995:49.
62

● Ordem económica: por exemplo, o acréscimo da


população activa e o aumento da população menos
qualificada (para realizar tarefas que os naturais não
queiram desempenhar);
● Ordem demográfica: por exemplo, o
rejuvenescimento das suas populações (geralmente
com tendência para o envelhecimento populacional) e
o aumento do número de efectivos62;
● Ordem socio-política: por exemplo, o surgimento de
sentimentos de xenofobia e racismo por parte das
populações anfitriãs que poderão levar a que os
governos adoptem medidas restritivas de migrantes,
particularmente os oriundos de certas áreas culturais
ou geográficas.
● Consequências para os países de origem:
● Ordem económica: por exemplo, contribuição
financeira dos seus emigrantes através do envio de
remessas63, redução da população activa qualificada
(cuja integração no país de destino é tendencialmente
mais fácil);
● Ordem demográfica: por exemplo, envelhecimento
das suas populações (dado que a tendência é para
que emigrem mais os jovens do que os mais velhos);
● Ordem social: por exemplo, abandono de mulheres e
crianças, contacto com outras culturas e tradições
que poderão levar à extinção de determinadas
práticas tradicionais ou à adopção de práticas novas
como, por exemplo, maior recurso às técnicas de
planeamento familiar.
● Tendências das migrações internacionais para os próximos
20 anos:
● Globalização das Migrações64 – Tendência para que um
maior número de países seja afectado ao mesmo tempo por
movimentos migratórios, oriundos de uma maior
diversidade de áreas.
● Crescimento das Migrações65 – Tendência para que o
volume dos movimentos migratórios se torne cada vez
maior.

________________________________
62
É, por exemplo, o caso do Japão que face ao envelhecimento da sua população e escassez de mão-
de-obra, se tem socorrido de estrangeiros. Entre 1985 e 1995 a população estrangeira aumentou 60%,
FNUAP, 1999:4.
63
Os migrantes enviam mais de 70 milhões de dólares para o seu país natal, sob a forma de remessas,
FNUAP, 1999:4.
64
O número de países com uma população migrante de 300.000 pessoas ou mais aumentou mais de
50%, entre 1965 e 1990, FNUAP, 1999:26.
65
Em meados dos anos 90, cerca de 145 milhões de indivíduos viviam fora dos países de origem, e
prevê-se que este número aumente entre 2 a 4 milhões por ano. Population Reference Bureau (1999)
World Population: More Than Just Numbers.
63

● Indiferenciação das Migrações – Inicialmente os


movimentos migratórios eram de um só tipo; por exemplo,
ou só de trabalhadores ou só de refugiados66.
● Feminização das Migrações67 – No passado, os
movimentos de trabalhadores e refugiados eram
maioritariamente masculinos, e os movimentos das
mulheres eram, na maioria das vezes, justificados pelo
“reagrupamento familiar”. A partir da década de 60, as
mulheres têm assumido um papel cada vez mais importante
em todos os tipos de migração. É o que se verifica, por
exemplo, entre as mulheres turcas que em grande maioria
precedem os maridos na emigração para a Alemanha.
● Processo migratório internacional: o modelo das 4 fases
O processo de migração, na maioria dos casos, processa-se por
fases, passando-se de uma estada temporária à opção por uma
estada permanente. Por vezes, porém, a situação pode ser mais
complexa: por exemplo, após uma estada temporária no
estrangeiro, o migrante regressa ao país de origem, de onde,
confrontado com as mesmas dificuldades que o haviam levado a
emigrar, parte de novo para o país anfitrião.

________________________________
66
Por refugiados entendem-se os indivíduos que são forçados a mudar de país ou região devido a
factores como: guerra, genocídio ou perseguições (políticas, religiosas). Nos anos 90 os países com
maior número de refugiados foram, Ruanda (1994) com 1.700.000, Iraque (1991) com 1.500.000 e
Somália (1991) com 1.000.000 idem.
67
Em 1990, do total da população migrante, a percentagem das mulheres foi de 48%. A maioria das
mulheres migrantes em busca de trabalho tende a concentrar-se em empregos menores, idem, ibidem.
64

Modelo das 4 fases


Fases Tipo de estada Processo de ajustamento
1ª. FASE Inicialmente opta-se por uma estada Adaptação ou ajustamento ao novo
temporária, envolvendo um membro a- ambiente, no qual se ajustam ao novo
dulto ou jovem cujo objectivo é ganhar meio físico e social e aprendem as me-
dinheiro e enviá-lo aos familiares que fi- lhores maneiras de se integrarem na
caram. vida quotidiana do país anfitrião.
2ª. FASE Dá-se o prolongamento da estada ini- Aculturação – Nesta fase os migrantes
cial e desenvolvem-se redes sociais ba- adoptam a língua, alinham a sua dieta
seadas no parentesco e nas relações pela cultura local, ouvem música e lê-
de inter ajuda entre indivíduos da mes- em jornais, revistas e livros da cultu-
ma origem. ra anfitriã, e fazem amigos fora do seu
grupo migrante. Isto, tende a ser mais
3ª. FASE Dá-se o reagrupamento familiar. provável se o imigrante for proveniente
Cresce uma maior consciência de fi- de uma cultura idêntica e se tiver filhos,
xação permanente e a emergência de dado que estes estão mais intensamen-
comunidades étnicas com instituições te expostos à nova cultura do que os a-
próprias (associações, locais de culto, dultos. A adopção da língua é frequ-
lojas, cafés, agências, profissões, etc.) entemente usada como indicador de
aculturação.
4ª. FASE A fixação torna-se permanente, de- Assimilação – Para além da adopção
pendendo a sua forma da língua, os migrantes adoptam tam-
• das políticas governamentais e do bém o modo de vestir, comportamen-
comportamento e atitudes dos natu- tos e atitudes dos membros da cultu-
rais desses países de destino; ra anfitriã. O casamento com um
• da segurança legal e de uma even- membro do país de destino é frequ-
tual naturalização; ou entemente usado como indicador de
• de políticas de exclusão e margina- assimilação.
lização socio-económica, originando a
formação de minorias étnicas perma-
nentes.
65

Migrações-Síntese
Causas:
Ordem Económica:
• Desemprego;
• Baixos Salários;
• Subemprego;

Ordem Não Económica:


– Ecológicas
• Infertilidade e/ou insuficiência de
terras;
• Escassez de água potável;
• Maior rigor do clima;
– Demográficas
• Crescimento populacional;
– Sociais
• Fome;
• Guerras; Conflitos
• Perseguições;
• Ausência de infra estruturas

INTERNAS MIGRAÇÕES INTERNACIONAIS

CONSEQUÊNCIAS CONSEQUÊNCIAS

Ordem não Económica: País de destino

o A Principal consequência é a crescen- Ordem económica:


o Acréscimo da população activa;
te urbanização, que provocará:
o Populações com baixas qualificações:

o Desertificação das zonas rurais; salários mais baixos, menor protecção


social;
o Envelhecimento das populações das o População qualificada, menor investi-

zonas rurais; mento na qualificação de mão-de-obra


local;
o Abandono de mulheres, crianças e
idosos; Ordem Não Económica:
- Demográfica:
o Surgimento das mega cidades; o Aumento de efectivos;

o Rejuvenescimento da população;
o Pressão demográfica e pressão na
prestação dos serviços; - Socio-política:
o Sentimentos de xenofobia e racismo;
o Fome;
o Políticas restritivas à imigração;
o Desemprego;
País de origem
o Pobreza;
Ordem económica:
o Tensões sociais.
o Remessas dos emigrantes;

o Redução de mão-de-obra qualificada;

Ordem Não Económica:


o Envelhecimento das suas populações.
66
67

4.4 Políticas demográficas ou políticas da


população
4.4.1. Evolução da população mundial
Enquanto os países mais desenvolvidos, evidenciam uma tendência
para um decréscimo do seu efectivo populacional, nos países menos
desenvolvidos verifica-se uma situação inversa, ou seja, as suas
populações terão um peso cada vez maior no total mundial.
Nos países mais desenvolvidos, o número médio de filhos por
mulher(1,5) é menos de metade, dos que têm as mulheres nos países
menos desenvolvidos(3,2).

4.4.2. Políticas demográficas. O que são?


Entende-se por políticas demográficas, o conjunto de medidas tomadas
pelas entidades governamentais, que de forma directa ou indirecta,
visam alterar a evolução da população. Estas alterações do movimento
da população podem ser feitas com base nas áreas do processo
populacional, ou seja:
● da natalidade;
● da mortalidade;
● das migrações (internas ou internacionais).
● Área da natalidade
Para a alteração do crescimento da população, é na área da natalidade
que as políticas da população mais têm incidido e, onde os governos
mais tendem a intervir – mais ainda do que no campo das migrações.
● Área da mortalidade
Na área da mortalidade, as políticas são sempre evidentemente no
sentido da baixa incidindo fundamentalmente em medidas que permitam
melhores condições de vida, como melhor acesso a cuidados médicos, a
água potável e saneamento básico. Note-se que, enquanto nos países
mais desenvolvidos a principal causa de morte, são doenças do sistema
circulatório (46%), nos países menos desenvolvidos, as principais
causas de morte (43%) devem-se às doenças infecto-contagiosas e
parasitárias, como o sarampo, a diarreia, malária e cólera, o que
condiciona as diferenças das políticas adoptadas, num e noutro caso.
● Área das migrações
No que diz respeito às migrações, as políticas escolhidas também
variam de acordo com as características demográficas dos países e,
portanto, em função do seu grau de desenvolvimento.
68

4.4.2.1. Políticas demográficas ou da população


na área da natalidade
Temos assim, três tipos de políticas:
● Políticas Natalistas, que visam o aumento da taxa da
natalidade;
● Políticas Anti-natalistas, que visam a diminuição da taxa
da natalidade.
● Políticas de Neutralidade, cujos resultados variarão de
acordo com as circunstâncias de cada país.
Da análise geral dos dados, constata-se que, a nível mundial,
predominam as políticas anti-natalistas, de maneira geral embora
nas regiões mais desenvolvidas (com destaque para a Europa) se
privilegiem as políticas para aumentar a fecundidade, dado o seu
índice sintético de fecundidade ser baixo não permitindo a
renovação das gerações68 e ainda, provocando o envelhecimento
das populações. Inversamente, constata-se, também, que são os
governos dos países menos desenvolvidos onde a taxa de
fecundidade é mais elevada, (com realce para África) que tomam
medidas no sentido de reduzir o número de nascimentos por
mulher.
● Medidas natalistas e da família – Exemplos
As medidas adoptadas para o aumento da natalidade, podem ser
directas ou podem ser indirectas (como são as políticas da família
que incidem nas áreas dos abonos). Vejamos algumas áreas de
possível intervenção:
● Área dos benefícios fiscais (p.e., redução dos impostos às
famílias numerosas);
● Área das infra-estruturas sociais (p.e., a criação de
creches, infantários, jardins-escola, escolas, parques de
diversão);
● Área do apoio à maternidade (p.e., serviço gratuito de
assistência médica pré e pós parto; consultas gratuitas no
campo da medicina materna e infantil, abonos de
aleitamento e abonos de família);
● Área da legislação (p.e., proibição do aborto, da
esterilização masculina e feminina e de campanhas anti-
natalistas);
● Área laboral (facilitação de horários e condições especiais
para mulheres grávidas ou com filhos).

________________________________
68
Índice Sintético da Fecundidade ou índice conjuntural da fecundidade ou soma dos nascimentos
reduzidos indica o número médio de filhos por mulher de uma geração de uma dada idade num ano
determinado.
Para que a substituição da geração seja assegurada é preciso que o número médio de filhos por
mulher seja pelo menos de dois (uma vez que existem dois parentes a substituir), Géhanne, 1995, cit.
por Torres, 1996:153.
69

● Adopção de políticas natalistas – O exemplo francês


A França foi o primeiro país europeu a evidenciar uma
tendência para a baixa da natalidade69.

4.4.2.2. Políticas anti-natalistas ou


neomalthusianas70
As medidas adoptadas para a diminuição da natalidade, podem
como as anteriores, ser directas ou indirectas.
● Medidas anti-natalistas directas ou indirectas
Medidas anti-natalistas

Condições pré- Exemplos de Políticas


vias para a
obtenção dos e- Directas Indirectas
feitos desejados
Escolha • Alargar os direitos das mu- • Promover a educação;
Racional lheres; • Promover o diálogo entre
• Aumentar a idade legal à os cônjuges na tomada de
data do primeiro casamen- decisões sobre o número
to da mulher. de filhos pretendidos e o
intervalo entre eles.
Promoção das Medidas Incentivadoras Medidas Incentivadoras
famílias peque- • Subsidiar as famílias para • Aumento das oportunida-
nas que não tenham filhos; des educacionais para as
• Dar prioridade no empre- mulheres;
go, habitação e educação • Aumento das oportunida-
às famílias pequenas. des no mercado de traba-
lho para as mulheres.

Medidas Dissuasoras Medidas Dissuasoras


• Aumento dos impostos às • Adopção de legislação a
famílias por cada filho adi- proibir o trabalho infantil;
cional; • Educação obrigatória para
• Maiores custos com a ma- as crianças;
ternidade e educação por • Campanhas de estigmati-
cada filho adicional. zação social.
Meios disponí- • Legalização do aborto; • Realização de campanhas
veis para limitar • Legalização da esteriliza- públicas para divulgação e
o tamanho das ção feminina e masculina; promoção do planeamento
famílias • Legalização de outras for- familiar;
mas de controlo da fecun- • Políticos a favor do pla-
didade; neamento familiar.
• Distribuição gratuita de
meios de contracepção.

________________________________
69
Segundo Maisons Laffitte uma das causas da baixa da taxa da natalidade em França foi o novo valor
atribuído à família e à criança: “A família começa então a organizar-se em torno da criança, a dar-lhe
uma importância que a faz sair do seu antigo anonimato, não sendo já possível perdê-la e substituí-la
sem grande desgosto, nem “repeti-la” demasiadas vezes – passa a ser considerado conveniente limitar
o número dos filhos para melhor cuidar deles”, Ariès, 1988: 12-13.
70
Políticas que preconizam a utilização de métodos anti-concepcionais como meio de combate à
ameaça de um excessivo crescimento populacional. Estas políticas têm a sua génese na doutrina
defendida por Malthus. Para o aprofundar destas matérias confira-se, Malthus, op. cit.
70

● Adopção de políticas anti-natalistas – O exemplo chinês


Em 1949, altura em que Mao Tsé-Tung sobe ao poder na China, a
esperança média de vida dos chineses era de 40 anos, sendo em
1999, de 69 anos, teve em meio século um acréscimo de cerca de
trinta anos!
Em 1956, e face ao acelerado crescimento demográfico, as
autoridades chinesas prepararam um programa de limitação dos
nascimentos, essencialmente baseado no adiamento da idade
média à data do casamento (a idade fixada por lei era, de 18 anos
para as raparigas e de 20 para os rapazes). Em 1976, quando Mao
morre, a taxa de crescimento era de 2,6%, o que significava a
duplicação da população em 27 anos. Face ao acelerado
crescimento demográfico, a partir de 1971, foram tomadas
medidas, consideradas draconianas, no sentido de se alterar o
crescimento, sendo radicalizada a partir de 1979, com a política do
filho único (hoje, a taxa de crescimento é de 1%). Caso nasça mais
um filho, a família terá que reembolsar as mensalidades
correspondentes a 1/10 do salário e perderá todas as regalias,
além de serem socialmente estigmatizadas71.
Face ao esforço desenvolvido para reduzir o crescimento do
efectivo populacional, prevê-se que a China deixe de ser, em 2050,
com 1,478 milhões, o país mais populoso do mundo (situação que
mantém desde 1950) para passar ao segundo lugar, depois da
Índia.

4.4.2.3. Políticas sem intervenção específica na


área da natalidade. Políticas de
imigração
Face à baixa da taxa da natalidade e ao consequente
envelhecimento populacional, alguns países adoptam medidas
populacionistas. Estas medidas, inserem-se no âmbito das políticas
da imigração, como é por exemplo o caso do Canadá, da Austrália
e do Japão.
A adopção destas medidas permite o aumento do seu efectivo
populacional com o aumento da natalidade, acréscimo da
população activa e rejuvenescimento demográfico, uma vez que
quem imigra, maioritariamente, são os jovens.
● Políticas que podem influenciar as migrações, exemplos:
As medidas poderão ser adoptadas, por exemplo, com base em:
● Factores profissionais – limitando a entrada de indivíduos
estrangeiros consoante a qualificação que possuam.
Factores sanitários – recusando a entrada de indivíduos

com base no seu cadastro criminal ou ainda, com base em
controlos sanitários destinados a impedir a entrada de
indivíduos portadores ou potenciais portadores de
determinadas doenças.
________________________________
71
As famílias com três filhos são muito penalizadas, por exemplo, é-lhes retirado 1/10 do salário do
casal, não terão acesso à educação gratuita, podendo ser preteridos nas promoções no emprego.
71

● Factores étnicos e raciais – adoptando medidas


tendentes a beneficiar determinadas etnias em detrimento
de outras. Foi, por exemplo, o que aconteceu com o
sistema de quotas adoptado pelos Estados Unidos da
América, nos finais do séc. XIX, facilitando a entrada de
indivíduos provenientes da Europa em detrimento dos
provenientes da Ásia.

4.4.3. Conferências mundiais sobre a


população
Neste âmbito, foram organizadas, pela Organização das Nações Unidas
até hoje, três conferências mundiais sobre a população:
● Conferência Mundial de Bucareste (1974);
● Conferência Internacional do México sobre a População
(1984);
● Conferência Internacional do Cairo sobre a População e o
Desenvolvimento (1994).
As três conferências mundiais partem da premissa de que o crescimento
da população é um potencial obstáculo ao desenvolvimento económico e
que o bem estar das populações passa por uma estratégia de limitação
do crescimento populacional (nem todos os países estão de acordo com
esta estratégia, existindo mesmo duas posições contrárias sobre esta
temática, uma, em que se inserem os países mais desenvolvidos, que
defendem o crescimento da população como um factor de bloqueio, e
outra, a dos países menos desenvolvidos, que o consideram como um
motor). Nas três conferências, foi sempre defendida por consenso, a
prioridade a dar à redução da mortalidade, ainda que o seu decréscimo
provoque uma maior pressão demográfica. No que diz respeito às
migrações, defende-se que deverá ser controlada, embora não tenham
surgido medidas específicas neste domínio.
72

Políticas Demográficas - Síntese

Políticas Políticas Políticas


Anti-natalistas Demográficas Natalistas

Alta Natalidade Baixa

Explosão Envelhecimento
Demográfica Demográfica

Baixa Mortalidade Baixa

Internacionais Migrações Internas


73

5. Globalização económica
5.1. Introdução
Este capítulo apresenta os principais conceitos usados na análise dos
determinantes da globalização, assim como a moldura analítica básica
necessária para a compreensão das relações entre globalização,
desnacionalização e vulnerabilidade externa. O argumento central é que
o processo de globalização económica provoca relações mais complexas
e profundas de interdependência entre economias nacionais e, no caso
de alguns países, (Brasil e, basicamente, toda a América Latina) essas
relações levam à consolidação ou ao agravamento de uma situação de
vulnerabilidade externa.
A entrada de empresas de capital estrangeiro (ECE), com destaque para as
empresas transnacionais, representa uma menor capacidade de resistência a
factores desestabilizadores e choques externos, na medida em que a actuação
dessas empresas vem acompanhada de extraordinárias fontes internas de
poder e, principalmente, fontes externas de poder.
A globalização é, na realidade, um tema de múltiplas dimensões, que
dificultam significativamente a elaboração conceptual ou teórica (Baumann,
1995; Ianni, 1995).
Neste texto, um dos principais conceitos usado é o de investimento externo
directo (IED).
De um modo geral, o investimento externo directo refere-se a todo o fluxo
de capital estrangeiro destinado a uma empresa (residente) sobre a qual o
estrangeiro (não-residente) exerce controlo sobre a tomada de decisão.
A ECE é também referida, às vezes, como empresa internacional,
multinacional, transnacional ou, mais simplesmente, como empresa
estrangeira.

5.2. Da internacionalização à globalização


A globalização pode ser definida como a interacção de três processos
distintos que têm ocorrido ao longo dos últimos vinte anos e afectam as
dimensões financeira, produtiva, comercial e tecnológica das relações
económicas internacionais. Esses processos são:
● a expansão extraordinária dos fluxos internacionais de bens, serviços e
capitais;
● a concorrência desenfreada nos mercados internacionais;
● a maior integração entre os sistemas económicos nacionais (Gonçalves,
Baumann, Prado e Canuto, 1998).
a) O primeiro processo refere-se à expansão extraordinária dos fluxos
internacionais de bens, serviços e capitais (Chesnais, 1996; Hirst e
Thompson, 1996). No caso dos fluxos de capitais, os dados mostram
que os empréstimos internacionais mais o investimento de acções em
bolsa aumentaram de aproximadamente 400 biliões em 1987 para 1,6
triliões de dólares em 1996. Nesse período os empréstimos e os
investimentos em bolsa cresceram a uma taxa média annual de
aproximadamente 17%.
74

No que se refere ao processo de globalização na esfera produtiva,


deve-se ressaltar que a internacionalização da produção ocorre sempre
que residentes de um país têm acesso a bens e serviços com origem
noutros países. Esse acesso pode ocorrer por meio do comércio
internacional, investimento externo directo e relações contratuais
(Gonçalves, 1992). Entretanto, em termos da inserção produtiva dos
países no sistema económico internacional, os mecanismos relevantes
são o investimento externo directo e as relações contratuais. As
exportações e as importações são formas de inserção comercial no
sistema económico mundial.
Cabe ressaltar que o investimento externo directo significa que um
agente económico estrangeiro actua na economia nacional por meio de
subsidiárias ou filiais, enquanto as relações contratuais permitem que
agentes económicos nacionais produzam bens ou serviços que têm
origem no resto do mundo. Os contratos de transferência de know-how,
marcas, patentes, franquias, parcerias e alianças estratégicas são os
exemplos mais comuns.
A partir de meados dos anos 80 houve um aumento extraordinário
dos fluxos de investimento externo directo e das relações
contratuais, assim como da actuação das empresas
transnacionais.
Não obstante, no período mais recente (1991-97), o produto mundial
cresceu a uma taxa média annual de 4,9%, enquanto o fluxo de
investimento externo directo cresceu 12,1%, o pagamento de royalties
e taxas (usadas para as relações contratuais) cresceu 12,2%, e o
comércio mundial aumentou 7,2% anualmente.
b) O segundo processo característico da globalização é o acirramento/
agitação da concorrência internacional. Embora não seja possível
mensurar directamente essa agitação, a crescente importância da
questão da competitividade internacional na agenda da política
económica dos países sugere que, de facto, há uma rivalidade cada
vez maior no sistema económico mundial. Deve-se mencionar que o
maior banco de investimentos dos Estados Unidos, Merrill Lynch,
ocupou o primeiro lugar na emissão internacional de títulos, com 16,5%
do mercado mundial em 1994 (Dreifuss, 1996, p. 159).
Além disso, os investidores institucionais (fundos de pensões, fundos
mútuos e seguradoras) passaram a adoptar estratégias de
diversificação de investimentos em Bolsa em bases geográficas. Esses
investidores podem actuar por meio de instituições financeiras
internacionais ou, então, directamente nos mercados nos quais
têm interesse. Esses “mercados emergentes” passaram a ter centros
financeiros importantes para aplicação ou intermediação de recursos.
Esses centros estão em todos os continentes como, por exemplo,
Singapura e Hong Kong na Ásia; São Paulo e Cidade do México na
América Latina; Varsóvia e Budapeste, na Europa.
c) O terceiro processo refere-se à crescente integração dos sistemas
económicos nacionais. Esse processo manifesta-se quando, no caso
da globalização financeira, uma proporção crescente de activos
financeiros emitidos por residentes está nas mãos de não-residentes e
vice-versa. Nesse sentido, um indicador importante é o diferencial entre
as taxas de crescimento das transacções financeiras internacionais e
75

nacionais. Assim, por exemplo, nos cinco primeiros anos da década de


1990, o conjunto de “bónus” emitidos nos mercados de capitais dos
países desenvolvidos cresceu a uma taxa média anual de 9%,
enquanto o conjunto dos “bónus” emitidos no mercado internacional de
capitais por esses países cresceu 12% (IMF-WEO, 1996, p. 58).
Outro exemplo: a participação de títulos estrangeiros na carteira dos
fundos de pensões norte-americanos aumentou de 0,7% em 1980 para
10,3% em 1993, e no caso dos fundos de pensões britânicos esse
aumento foi de 10,1% em 1980 para 19,7% em 1993; já o aumento
correspondente para os fundos de pensões japoneses foi de 0,5% em
1980 para 9,0% em 1993.
A globalização económica corresponde, assim, à ocorrência simultânea
dos três processos já mencionados. Deve-se notar que em momentos
anteriores da História esses processos também se verificaram, em maior ou
menor grau, de forma mais ou menos distinta. O exemplo mais evidente é a
extraordinária expansão do movimento internacional de capitais e do comércio
mundial nas quatro ou cinco décadas que antecederam a Primeira Guerra
Mundial.
A especificidade da globalização económica no final do século XX
consistiu na simultaneidade dos processos de crescimento
extraordinário dos fluxos internacionais, “acirramento” da concorrência
no sistema internacional e integração crescente entre os sistemas
económicos nacionais. Essa especificidade é particularmente importante e,
portanto, merece um nome específico: globalização. É provável que esse
contramovimento se manifeste, de forma mais evidente, já no início do século
XXI, tendo em vista o acumular de problemas causados pelo neoliberalismo
nas últimas duas décadas do século XX.
O conceito de globalização económica, assim como outros principais conceitos
usados no texto, serão resumidos nos Anexos.
A questão central é, então, saber quais foram os factores determinantes do
fenómeno recente da globalização económica.

5.3. Determinantes da globalização


Os determinantes da globalização podem ser agrupados em três conjuntos de
factores:
● tecnológicos,
● institucionais,
● sistémicos.
a) O primeiro conjunto de determinantes da globalização económica
refere-se aos desenvolvimentos tecnológicos associados à
revolução da informática e das telecomunicações. O resultado foi
uma extraordinária redução dos custos operacionais e dos custos de
transacção numa escala global.
b) O segundo conjunto de determinantes envolve os factores de ordem
política e institucional vinculados à ascensão das ideias liberais ao
longo dos anos 80, tendo como marco de referência os governos
Thatcher na Grã-Bretanha e Reagan nos Estados Unidos. O resultado
dessa ascensão foi uma onda de desregulamentação do sistema
76

económico à escala global. Entretanto, no que se refere à esfera


financeira, deve-se notar que a liberalização do movimento
internacional de capitais já se observava no início dos anos 70 em
alguns países desenvolvidos, talvez como resultado da própria pressão
no sentido de uma maior liberdade para o capital após a ruptura do
sistema de Bretton Woods. Essa ruptura foi acompanhada da
instabilidade de taxas de juros e câmbios, assim como pela crise
económica nos anos 70 (menores oportunidades de negócios). Nesse
caso a reorientação da estratégia e da política governamental – na
direcção da liberalização cambial e da desregulamentação do
movimento internacional de capitais – parece ser o resultado,
principalmente, de uma restrição imposta pela fragilidade das contas
externas (e da necessidade de atrair capital). A liberdade de escolha,
diante de opções políticas e ideológicas mais liberalizantes,
parece ter desempenhado um papel coadjuvante no processo de
liberalização, tendo em vista a força avassaladora e a gravidade da
realidade económica, bem como a própria fragilidade e a
incapacidade das elites nacionais de definirem projectos
alternativos de ajuste e desenvolvimento (Gonçalves, 1999, p.30).
Ainda no que se refere à determinação institucional, importa referir que,
no caso da globalização financeira, a criação do mercado de
euromoedas nos anos 50 e o seu desenvolvimento nas décadas de
1960 e 1970 foram fundamentais para a configuração do actual sistema
financeiro internacional. Nesse sentido, pode-se mencionar o
desenvolvimento de novos instrumentos financeiros de protecção
perante riscos e incertezas. O exemplo de maior destaque é o
desenvolvimento do mercado de produtos financeiros derivados de
moedas e taxas de juros, principalmente, a partir dos anos 80.
Ao longo dos anos 80, os fundos mútuos, as companhias de seguros e
os fundos de pensões dos países desenvolvidos defrontaram-se com a
instabilidade das taxas de juros e das taxas de câmbio, e com os
próprios limites de expansão dos mercados de capitais dos países
desenvolvidos. O resultado foi uma mudança de orientação na
estratégia de diversificação dos seus recursos, no sentido de uma
maior dispersão geográfica.
c) O terceiro e último conjunto de determinantes da globalização refere-se
a factores de ordem sistémica e estrutural. A questão central refere-
se ao menor potencial de crescimento dos mercados domésticos
dos países desenvolvidos, ricos em capital, isto é, trata-se do
problema clássico de realização do capital. Como resultado, há um
deslocamento de recursos da esfera produtiva para a esfera
financeira e, portanto, um efeito de expansão dos mercados de
capitais domésticos e internacional.
No caso dos EUA a taxa média annual do crescimento do produto
potencial reduziu-se de 3,8% na década de 1960 para 2,3% no período
1990-94. No caso da Alemanha, a queda correspondente foi de 4,1%
para 2,7%, enquanto no Japão a redução foi de 8,8% para 3,3%
(Unctad-WIR, 1995, pp. 171-3). Para ilustrar ainda mais o argumento,
pode-se mencionar que a taxa média anual de crescimento da
formação bruta de capital fixo nos EUA caiu de 5,0% no período
1960-68 para 2,5% no período 1979-90. No caso da Alemanha, a
queda correspondente foi de 3,1% para 1,9% e, no caso do Japão, a
77

redução foi 15,2% para 5,0% nos períodos mencionados. O resultado


foi um processo generalizado de desaceleração do crescimento
económico das economias capitalistas na chamada “era da
globalização”. De facto essas economias parecem estar a convergir
para um nível “medíocre” da ordem dos 2% para o crescimento annual
do PIB (Gonçalves, 1999, p.32).
No início dos anos 80, após o período de crise (estagnação e inflação) dos
anos 70, a situação das economias capitalistas “maduras” era particularmente
difícil.
As economias capitalistas desenvolvidas defrontavam-se com quatro
respostas básicas para sair da crise de acumulação.
● A primeira é a conhecida “saída keynesiana”, com políticas fiscais
expansionistas e défices públicos. A expansão dos investimentos
públicos é uma das principais formas de realizar essa saída da crise.
● A segunda resposta consiste na “saída schumpeteriana” de
indução do processo de destruição criadora, por meio do qual se
promove uma nova onda de inovações tecnológicas e organizacionais
capaz de aumentar os gastos (consumo e investimento). O problema
com esse processo é que ele tem, também um forte componente
aleatório (invenções, inovações e decisões de investimento), mesmo
no caso de países que têm uma severa institucionalidade articulando
governo e empresas, política industrial e tecnológica e investimento
privado (Gonçalves, 1999, p.33).
● A terceira saída centra-se na distribuição do produto e riqueza.
Ainda que essa resposta seja muito mais efectiva em economias
atrasadas, com populações pobres e enormes desigualdades, ela pode
ter algum impacto nas economias desenvolvidas. O problema central é
de natureza política.
● A quarta e última saída encontra-se no mercado externo e procura
transformar as exportações na “locomotiva” da economia nacional. O
maior obstáculo é a existência, no contexto internacional actual, da
crescente dificuldade para esse tipo de estratégia, pois a maioria dos
países procura explorá-la no limite. Restrições pelo lado da procura
externa também são cada vez maiores, considerando o lento
crescimento da economia mundial, as suas flutuações cíclicas e as
ondas de proteccionismo (Gonçalves, 1999, p.33).
No caso dos Estados Unidos os dados mostram uma queda dramática da taxa
média de lucro de 20% em 1947-69 para 12,4% em 1970-83. O processo de
globalização por meio da abertura e exploração dos mercados externos –
tem permitido uma recuperação das taxas de lucro.
Deve-se notar ainda que o período que precedeu o processo recente de
globalização foi marcado por uma redução extraordinária da taxa de
crescimento da produtividade. No caso dos Estados Unidos, a taxa mádia
anual de crescimento da produtividade total dos factores reduziu-se de 1,0%
em 1961-73 para 0,01% em 1973-81. Essa queda foi particularmente
importante no sector produtor de bens, que mostrou um crescimento negativo
da produtividade. Em serviços (non-tradeables, não directamente envolvidos
no processo de globalização) o que se observa é a manutenção da tendência
da queda da produtividade ao longo das últimas quatro décadas. Entretanto,
recentemente, houve uma forte recuperação das taxas médias de crescimento
78

da produtividade, liderada pelo sector produtor de bens. Nesse caso a taxa de


crescimento da produtividade de 2,1% no período 1981-92 é ainda maior do
que no período 1961-73 (1,4%), tendo sido negativa (-1,2%) no período
1973-81.
Na realidade, a saída preferencial usada pelas economias capitalistas
desenvolvidas desde o início dos anos 80 tem sido aquela que procura maior
acesso aos mercados internacionais de bens, serviços e capitais. Essa
estratégia surge como reacção à insuficiência de procura interna nos
países capitalistas desenvolvidos, sendo activamente promovida por
governos e empresas transnacionais. Portanto, a insuficiência da
procura colectiva nos países desenvolvidos constitui-se no mais
importante e determinante fenómeno da globalização económica deste
final de século.

5.4. Capital estrangeiro e poder


O conhecimento sistemático das fontes ou dos elementos da base de poder de
empresas de capital estrangeiro (ECE) é fundamental não somente para
uma melhor compreensão da distribuição dos benefícios entre as ECE e os
países, mas também nos ajuda a entender por que é que as ECE são capazes
de ter determinados efeitos sobre as economias nacionais.
Importa esclarecer que neste breve texto, o poder, e nas situações em que
conceptualmente é utilizado o termo poder ele é entendido como “a
probabilidade que um actor, dentro de uma relação social, estará em posição
de realizar a sua própria vontade, apesar da resistência de outro actor social e
independentemente da base sobre a qual essa probabilidade se apoia”
(Weber, 1947, p. 152).
A avaliação crítica a respeito dos conceitos de poder apresentados por autores
como Weber, Parsons, Dahl e outros é parte da Teoria Política. Pode-se
afirmar, inclusive, que poder é “um conceito parcialmente quantificável”, assim
como “um conceito obsessivo”. Neste último sentido, “quaisquer que sejam as
objecções lógicas ao seu uso, ainda desejamos ter um conhecimento sobre
ele” (Allison, 1974, p.141). Considerando que este capítulo do manual não
trata de Teoria Política, o conceito clássico de poder apresentado por Weber é
usado sem uma discussão mais aprofundada, ou seja, é usado de modo
estritamente funcional.
Há três diferentes formas de exercício de poder: coacção, autoridade e
influência.
● Coacção “existe quando o consentimento é baseado na privação física, ou
a ameaça de privação física;
● autoridade refere-se a consentimento legitimado;
● influência é um termo residual, referindo-se a um consentimento não-
legitimado e não coercivo” (Martin, 1977, p. 48; Dahl, 1968).
O objectivo é apontar as principais fontes de poder ou os elementos na base
do poder das ECE e, portanto, meramente descrever os elementos que
permitem a essas empresas realizar a sua própria vontade (de forma directa
ou indirecta) por meio da coacção, autoridade ou influência.
A não-decisão é “uma decisão que resulta na supressão ou impedimento de
um desafio latente ou manifesto para os valores ou interesses do tomador de
decisões”. Nesse sentido, uma tomada de não-decisão é “uma maneira pela
79

qual demandas por mudanças na alocação existente de benefícios e


privilégios na comunidade podem ser
• sufocados antes mesmo que sejam anunciadas; ou
• mantidas encobertas; ou
• eliminadas antes que ganhem acesso à arena relevante da tomada de
decisão; ou faltando todos esses procedimentos,
• mutilados ou destruídos no estágio de implementação de decisão do
processo político” (Gonçalves, 1999, p. 44).
Além disso, constata-se que poder existe quando qualquer agente social limita
de alguma forma o escopo do processo político por meio da definição da gama
de questões a serem tratadas, questões estas que são consideradas seguras
“do ponto de vista desse agente” (Lukes, 1974).
No que se refere às ECE, esse poder sobre a tomada da não-decisão parece
ser significativo quando se considera a capacidade dessas empresas de
influenciar ou moldar percepções e preferências por meio, até, dos tipos de
bens e serviços fornecidos, assim como pelo uso dos meios de
comunicação de massa. O “conflito é latente no sentido de que se supõe que
existirá um conflito de vontades de preferências entre aqueles exercendo
poder e aqueles sujeitos a este poder, caso este último se torne consciente
dos seus interesses” (Lukes, 1974, p. 25).
Dado o conjunto apresentado de conceitos básicos, o objectivo é examinar as
principais fontes ou elementos da base de poder de ECE. Essas fontes são
divididas em dois tipos: externas e internas.
● As fontes externas são derivadas de elementos for a do controlo dos
países receptores de IED (investimento externo directo), de modo que
o governo tem pouca, se alguma, probabilidade de mudar esses
elementos. Assim, estes podem ser vistos como “parâmetros” na
análise do papel político das ECE.
● As fontes internas de poder podem, até certo ponto e sob certas
circunstâncias, ser colocadas sob o controlo dos governos dos países
receptores e, consequentemente, vistas como variáveis a serem
usadas para reduzir o poder das ECE (Gonçalves, 1999, p.43).
Entretanto, deve-se assinalar que, nalguns casos, é difícil definir um
elemento da base de poder das ECE como externo ou interno. Além disso,
esses elementos nem sempre são independentes uns dos outros, já que
a própria existência de um elemento externo pode criar condições para o
aparecimento de um elemento interno. Um exemplo evidente nesse sentido
é o da estrutura de mercado, isto é, a influência da estrutura do mercado
internacional sobre a estrutura do mercado interno (as petrolíferas, o sector
automobilístico, as telecomunicações, a informática e as farmacêuticas).
No que se refere às fontes internas de poder das ECE pode-se mencionar:
● a estrutura do mercado interno,
● controlo de associações patronais,
● liderança de mercado,
● acesso aos decisores governamentais,
● efeito fiscal,
● padrões de associação com grupos industriais e financeiros
locais,
80

● interligação de administrações/direcções,
● conexões políticas locais,
● padrão ideológico hegemónico,
● influência do nacionalismo,
● conjuntura política,
● disponibilidade de formas alternativas de internacionalização da
produção,
● importância estratégica dos bens e serviços produzidos,
● potencialidade do mercado interno,
● controlo e uso dos meios de comunicação,
● níveis de alfabetização/educação/formação profissional do país
receptor,
● atitudes culturais,
● coerência da política governamental,
● natureza das políticas públicas (comercial, cambial, financeira),
● institucionalidade (aparelho repressivo/coercivo do Estado),
● grau de desnacionalização, e vulnerabilidade externa do país
(Gonçalves, 1999, p.44).
Uma parte substantiva das fontes internas mencionadas também se
aplica ao caso das empresas privadas nacionais, particularmente aos
grandes grupos económicos nacionais. Por exemplo, num país no qual a
corrupção é difundida e encontrada em alguns sectores governamentais
(sabemos que não é difícil mencionar), qualquer sector, departamento ou
grupo do aparelho do Estado que tenta realizar uma política mais séria (ou
restritiva) relacionada às ECE pode ver o resultado dos seus esforços
prejudicado por qualquer “vazamento” que ocorra nos sectores corrompidos.
Isso ocorre quanto mais não seja pelo facto de que iniciativas e estímulos
reduzem-se quando os resultados não são alcançados nos termos das regras
claras do jogo. Naturalmente, práticas comerciais questionáveis (quando não
proibidas legalmente) podem ser usadas tanto pelas ECE como por grandes
grupos económicos nacionais (Gonçalves, 1999, p.45).
Quanto mais importantes forem os recursos da propriedade das ECE,
maior tende a ser a sua capacidade de usar diferentes métodos para
controlar mercados, criar poder económico e, consequentemente, poder
político. O maior volume de recursos também permite às ECE financiar
programas que objectivam o uso de métodos, legais e ilegais, para influenciar
o processo da tomada de não-decisão e o processo de tomada de decisão por
meio, por exemplo, da propaganda. Naturalmente, grandes grupos
económicos nacionais também têm essa vantagem de usar grandes
volumes de recursos financeiros e, portanto, gerar um extraordinário
potencial de poder. A origem da propriedade não é relevante nesse caso.
A especificidade das ECE está, de facto, nas fontes externas de poder.
Nesse caso, a origem da propriedade é de importância fundamental na
determinação do poder político específico de um agente económico – a
empresa de capital estrangeiro.
81

5.5. Fontes externas de poder


As principais fontes externas de poder das ECE são:
● capacidade de mobilização de recursos à escala global,
● grau de integração do sistema matriz-filiais,
● assimetria da informação,
● estrutura do mercado internacional,
● interdependência do mercado à escala global,
● concentração segundo a origem,
● importância relativa do país receptor,
● dinâmica da inovação tecnológica,
● concentração do desenvolvimento tecnológico,
● política externa do governo do país de origem,
● marco jurídico e institucional no sistema internacional (Gonçalves,
1999, p.46).
a) Capacidade de mobilização de recursos
As ECE têm uma capacidade extraordinária de deslocar recursos de uma
subsidiária para outra, de um país para outro.
b) Grau de integração
O grau de integração do sistema matriz-subsidiárias permite às ECE uma
maior flexibilidade no uso do mecanismo dos preços de transferência (sub e
superfacturamento) por meio do comércio externo. Esse mecanismo deve ser
entendido como uma forma de exercer o poder quando os canais alternativos
da remessa de recursos estão parcial ou completamente fechados.
c) Assimetria da informação
A posse de um activo específico à propriedade é uma das condições básicas
que determinam a própria existência das ECE. Essas empresas possuem
informações sobre a situação e perspectivas a respeito de produtos e
mercados, que não estão disponíveis. Assim, quando estão a negociar com
essas empresas, os representantes governamentais, principalmente de países
menos desenvolvidos, podem ser levados a usar a informação monopolizada e
fornecida pelas ECE, informação à qual eles não têm acesso directo, nem
maneira de verificar a sua autenticidade. Esse aspecto está directamente
vinculado à questão da estrutura do mercado internacional.
d) Estrutura do mercado internacional
Mercados com um elevado grau de concentração à escala global tendem a
aumentar o poder de comercialização menos claro das ECE (Gonçalves, 1999,
p.47).
e) Interdependência do mercado
A natureza da concorrência – concorrência oligopolista ou monopolista – pode
restringir a rivalidade por meio da moderação ou cooperação, como uma
82

táctica para controlar mercados e também para criar solidariedade,


reciprocidade e, consequentemente, uma comunidade de interesses no plano
internacional.
f) Concentração segundo a origem
Deve-se esperar maior probabilidade de acordos formais ou informais quando
há um grau mais elevado de concentração do país de origem das ECE.
g) Importância relativa do país receptor
O poder das ECE num determinado país está inversamente relacionado com a
importância relativa do país receptor no cenário internacional, particularmente
no que se refere ao volume de investimento externo directo à escala global. As
ECE podem correr um risco maior quando têm activos e investimentos mais
diversificados entre os vários países do que quando estão concentradas
somente nalguns poucos países.
h) Dinâmica da inovação tecnológica
As ECE caracterizam-se por certo dinamismo tecnológico. Assim quanto mais
rapidamente se processar a inovação tecnológica num sector específico, maior
tende a ser o poder de intervenção económica das ECE num país
isoladamente. Isso ocorre na medida em que, sendo a tecnologia de ponta de
difícil obtenção no mercado, esse país teria alternativas limitadas e, portanto, o
governo tem menor poder de intervenção.
i) Concentração do desenvolvimento tecnológico
O poder de intervenção de proprietários de tecnologia é uma fonte evidente de
pressão.
j) O Governo do país de origem
As ECE tendem a influenciar a política externa dos governos dos seus países
de origem, a fim de obter algumas vantagens nos países receptores (Frankel,
1969, p. 153). Quando existe uma coincidência do “Interesse nacional” e dos
interesses privados no exterior, é provável que haja uma aliança tácita ou
explícita entre governo e ECE, de modo a tentar combinar considerações
político-estratégicas com interesses económicos.
k) Elementos institucionais
Num processo de resolução de situações de conflito entre as ECE e os países
receptores, essas empresas podem apelar de forma directa ou indirecta para
elementos externos de natureza institucional, que podem ampliar a sua base
de poder. Não é por outra razão, por exemplo, que desde 1995 há uma forte
resistência à criação do Acordo Multilateral de Investimentos (AMI) no
âmbito da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE) (Unctad-WIR, 1998, pp. 65-8). O objectivo central do AMI é definir um
conjunto de diereitos para as ECE e, por outro lado, restringir o grau de
manobra de governos na direcção da regulamentação dessas empresas.

5.6. Os Consumidores e a globalização


Os próximos parágrafos são uma tentativa de descrever/entender a forma
como as mudanças na maneira de consumir alteraram as possibilidades e as
formas de exercer a cidadania numa época de globalização. Estas sempre
estiveram associadas à capacidade de apropriação de bens de consumo e à
83

maneira de usá-los, mas supunha-se que essas diferenças eram


compensadas pela igualdade nos direitos abstractos que se concretizava ao
votar, ao sentir-se representado por um partido político ou um sindicato.
Num tempo em que as campanhas eleitorais se mudam dos comícios
para a televisão, das polémicas doutrinárias para o confronto de imagens
e da persuasão ideológica para as pesquisas de marketing, embora ainda
nos interpelem como cidadãos é mais fácil e coerente sentirmo-nos
convocados como consumidores.

5.6.1. Do nacional ao global


Pode-se perceber o carácter radical destas mudanças examinando a
maneira como o significado de certas expressões do senso comum foi
variando até não terem nenhum sentido. Em algumas sociedades mais
ruralizadas, até meados deste século, talvez fosse normal que uma
discussão entre pais e filhos sobre o que a família podia comprar ou
sobre a competição com os vizinhos terminasse com a seguinte máxima
paterna: “Ninguém está satisfeito com o que tem”. Quem pronunciava
essa frase estava a responder aos filhos que chegavam à educação de
nível médio ou superior e desafiavam os pais com novas exigências.
Respondiam à proliferação de aparelhos electrodomésticos, aos
novos signos de prestígio, às inovações da arte e da sensibilidade,
às aventuras das ideias e dos afectos aos quais lhes custava
incorporar-se.
Vamo-nos afastando da época em que as identidades se definiam
por essências a-históricas: actualmente configuram-se no
consumo, dependem daquilo que se possui, ou daquilo que se pode
chegar a possuir. Essa versão política de estar contente com o que se
tem, que foi o nacionalismo ainda de épocas bem recentes, é vista hoje
como o último esforço das elites desenvolvimentistas, das classes
médias e de alguns movimentos populares para conter dentro das
vacilantes fronteiras nacionais a explosão globalizada das identidades e
dos bens de consumo que as diferenciavam.
Como vamos poder estar felizes com o próprio se nem sequer
sabemos o que é? As culturas nacionais pareciam sistemas
razoáveis para preservar, dentro da homogeneidade industrial,
certas diferenças e certo enraizamento territorial, que mais ou
menos coincidiam com os espaços de produção e circulação dos
bens. Comer como um português (certamente o mesmo acontece para
um espanhol, brasileiro, etc.) significava não apenas guardar tradições
específicas, como também alimentar-se com os produtos da própria
sociedade, que estavam à mão e costumavam ser mais baratos que os
importados. Uma peça de roupa, um brinquedo, noutros casos um carro
ou um programa de televisão eram mais acessíveis se eram nacionais. O
valor simbólico de consumir “o nosso” era sustentado por uma
nacionalidade económica. Procurar bens e marcas estrangeiras era um
recurso de prestígio, se bem que às vezes era uma opção por qualidade.
Liga-se a televisão que pode ser japonesa e o que se vê é um filme-
mundo, produzido em Hollywood, dirigido por um cineasta alemão com
assistentes franceses, actores e actrizes de dez nacionalidades e cenas
filmadas nos quatro países que o financiaram. As grandes empresas que
nos fornecem alimentos e roupas fazem-nos viajar e engarrafarmo-nos
em auto-estradas idênticas em todo o planeta, fragmentam o processo
84

de produção fabricando cada parte dos bens nos países em que o custo
é menor. Os objectos perdem a relação de fidelidade com os
territórios de origem. A cultura é um processo de montagem
multinacional, uma articulação flexível de partes, uma colagem de
traços que qualquer cidadão de qualquer país, religião e ideologia
pode ler e utilizar (Clanclini: 1998).
O que diferencia a internacionalização da globalização é que no
tempo da internacionalização das culturas nacionais era possível não se
estar satisfeito com o que se possuía e ir procurá-lo noutro lugar. Mas a
maioria das mensagens e dos bens que consumíamos era gerada na
própria sociedade, e havia alfândegas estritas, leis que protegiam o que
se produzia em cada país. Agora o que se produz em todo o mundo está
aqui e é difícil saber o que é o próprio. A internacionalização foi uma
abertura das fronteiras geográficas de cada sociedade para
incorporar bens materiais e simbólicos das outras. A globalização
supõe uma interacção funcional de actividades económicas e
culturais dispersas, bens e serviços gerados por um sistema com
muitos centros, no qual é mais importante a velocidade com que se
percorre o mundo do que as posições geográficas a partir das quais
se está a agir.
Muito do que é feito actualmente nas artes é produzido e circula de
acordo com as regras das inovações e da obsolescência periódica, não
por causa do impulso experimentador, como no tempo das vanguardas,
mas sim por que as manifestações culturais foram submetidas aos
valores que “dinamizam” o mercado e a moda: o consumo
incessantemente renovado, a surpresa e o divertimento. Por razões
semelhantes a cultura política tornou-se errática: as decisões políticas
e económicas são tomadas em função das seduções imediatistas
do consumo, o livre comércio sem memória dos seus erros, a
importação desenfreada dos últimos modelos que nos faz cair, uma
e outra vez, como se cada uma fosse a primeira, nesse
consumismo.
A maneira neoliberal de fazer a globalização consiste em reduzir
empregos para reduzir custos, competindo entre empresas
transnacionais, cuja direcção tem origem a partir de um ponto
desconhecido, de modo que os interesses sindicais e nacionais
quse não podem ser exercidos. A consequência de tudo isto é que
mais de 40% da população das sociedades em “vias de
desenvolvimento” se encontra privada de trabalho estável e de
condições mínimas de segurança, que sobrevive nas aventuras também
globalizadas do comércio informal, da electrónica japonesa vendida junto
a roupas do sudeste asiático, junto a ervas esotéricas e artesanato local,
em volta dos sinais de trânsito: nesses vastos “subúrbios” que são os
centros históricos das grandes cidades, há poucas razões para se ficar
contente enquanto o que chega de toda a parte se oferece e se espalha
para que alguns possuam e imediatamente esqueçam.

5.6.2. A cidadania numa época de consumo


Quando admitimos a globalização como uma tendência irreversível,
também é necessário ter em atenção que partilhamos algumas suspeitas
quanto ao modelo:
85

● Primeiro, existem muitas dúvidas fundamentadas que o


global se apresente como sibstituto do local,
● Segundo, os últimos acontecimentos mundiais,
nomeadamente a reunião da OMC, fragilizou completamente
a ideia que o modo neoliberal de nos globalizarmos seja o
único possível.
Se considerarmos as maneiras diversas pelas quais a globalização
incorpora diferentes nações, e diferentes sectores dentro de cada nação,
a sua relação com as culturas locais e regionais não pode ser pensada
como se apenas procurasse homogeneizá-las. Surge, então, a pergunta:
qual será o modelo mais satisfatório para efectuar a reestruturação
transnacional das sociedades?
Mas também é preciso examinar o que a globalização, o mercado e
o consumo têm de cultura.
Para vincular o consumo com a cidadania, e vice-versa, é preciso
desconstruir as concepções que julgam os comportamentos dos
consumidores predominantemente irracionais e as que somente vêem os
cidadãos actuando em função da racionalidade dos princípios
ideológicos. Por outro lado, reduz-se a cidadania a uma questão
política, e acredita-se que as pessoas votam e actuam em relação
às questões públicas somente em função das suas convicções
individuais e pela maneira como raciocinam nos confrontos de
ideias (Dagnino: 1997).
Não foram tanto as revoluções sociais, nem o estudo das culturas
populares, nem a sensibilidade excepcional de alguns movimentos
alternativos na política e na arte, quanto o foi o crescimento
vertiginoso das tecnologias audiovisuais de comunicação, o que
tornou patente como vinha mudando desde o século passado o
desenvolvimento do público e o exercício da cidadania. Mas estes
meios electrónicos que fizeram irromper as massas populares na esfera
pública foram deslocando o desempenho da cidadania em direcção às
práticas de consumo. Foram estabelecidas outras maneiras de se
informar, de entender as comunidades a que se pertence, de conceber e
exercer os direitos. Desiludido com as burocracias estatais,
partidárias e sindicais, o público recorre à rádio e à televisão para
conseguir o que as instituições públicas não proporcionam:
serviços, justiça, reparações ou simples atenção. Não é possível
afirmar que os meios de comunicação de massa com ligação directa via
telefone, ou que recebem os espectadores nos seus estúdios, sejam
mais eficazes que os órgãos públicos, mas fascinam porque escutam e
as pessoas sentem que não é preciso estar à espera dos adiamentos,
prazos, procedimentos formais que adiam ou transferem as
necessidades. A cena de televisão é rápida e parece transparente; a
cena institucional é lenta e as suas formas (precisamente as formas que
tornam possível a existência de instituições) são complicadas até a
opacidade que gera o desespero (Barbero: 1997).
No entanto, não se trata apenas do facto de os velhos agentes –
partidos, sindicatos, intelectuais terem sido substituídos pelos meios de
comunicação.
A aparição destes meios põe em evidência uma reestruturação
geral das articulações entre o público e o privado que pode ser
86

percebida também no reordenamento da vida urbana, no declínio


das nações como entidades que comportam o social e na
reorganização das funções dos actores políticos tradicionais.

5.7. O novo cenário sociocultural perante a


Globalização
As mudanças socioculturais que estão a ocorrer em todos estes campos
podem ser sintetizadas em cinco processos:
a) um redimensionamento das instituições e dos circuitos de exercício do
público: perda de peso dos órgãos locais e nacionais em benefício
dos conglomerados empresariais de alcance transnacional;
b) reformulação dos padrões de ordenamento e convivência urbanos: do
bairro aos condomínios, das interacções próximas à disseminação
policêntrica da mancha urbana, sobretudo nas grandes cidades,
onde as actividades básicas (trabalhar, estudar, consumir) têm
lugar, frequentemente, longe do lugar de residência e onde o
tempo empregue para se deslocar por lugares desconhecidos da
cidade reduz o tempo disponível para habitar a própria;
c) a reelaboração do “próprio e do nosso”, devido ao predomínio dos
bens e mensagens provenientes de uma economia e uma cultura
globalizadas sobre aqueles gerados na cidade e na nação a que se
pertence;
d) a consequente redefinição do lugar de pertença e identidade,
organizado cada vez menos por lealdades locais ou nacionais e
mais pela participação em comunidades transnacionais ou
desterritorializadas de consumidores (os jovens em torno do rock,
os telespectadores que acompanham os programas da CNN, MTV e
outras redes transmitidas por satélite);
e) a passagem do cidadão como representante de uma opinião
pública ao cidadão interessado em desfrutar de uma certa
qualidade de vida. Uma das manifestações desta mudança é que as
formas argumentativas e críticas de participação dão lugar à fruição de
espectáculos nos meios electrónicos, em que a narração ou simples
acumulação de anedotas prevalece sobre a reflexão em torno dos
problemas, e a exibição fugaz dos acontecimentos sobre sua
abordagem estrutural e prolongada.
Muitas destas mudanças eram incipientes nos processos de industrialização
da cultura desde o século XIX. Isto é comprovado pelos estudos sobre as
raízes da telenovela no teatro de rua e no folhetim, os antecedentes da
massificação da rádio e da televisão naquilo que antes fizeram a escola e a
igreja (Barbero: 1997; Canclini: 1998), em suma, as bases culturais do que
agora se identifica como a “esfera pública plebeia”. O que é novidade na
segunda metade do século XX é que estas modalidades audiovisuais e
massivas de organização da cultura foram subordinadas a critérios
empresariais de lucro, assim como a um ordenamento global que
desterritorializa os seus conteúdos e as suas formas de consumo. Esta
reestruturação das práticas económicas e culturais leva a uma
concentração hermética das decisões nas elites tecnológico-económicas
e gera um novo regime de exclusão das maiorias incorporadas como
clientes. A perda de eficácia das formas tradicionais e ilustradas de
87

participação pública (partidos, sindicatos, associações de base) não é


compensada pela incorporação das massas como consumidoras ou
participantes ocasionais dos espectáculos que os poderes políticos,
tecnológicos e económicos oferecem através dos meios de comunicação de
massa.
Poderíamos dizer que no momento em que mal saímos do século XX as
sociedades se reorganizam para nos fazerem consumidores do século
XXI e, como cidadãos, levar-nos de volta para o século XVIII. A distribuição
global dos bens e da informação permite que o consumo dos países centrais e
periféricos se aproxime: compramos em super-mercados análogos os
produtos transnacionais, vemos na televisão os últimos filmes de
Spielberg ou Wim Wenders, o Campeonato Mundial de Futebol, a queda
de um presidente da Ásia ou da América Latina filmada ao vivo e os
destroços em Timor Leste. Nos países latino-americanos transmitem-se em
média mais de quinhentas mil horas anuais de televisão, enquanto na Europa
latina são apenas onze mil; na Colômbia, no Panamá, no Peru e na Venezuela
há mais de um aparelho de videocassete para cada três residências com
televisão, proporção maior que a da Bélgica (26,3%) ou da Itália (16,9%).
“Somos subdesenvolvidos na produção endógena para os meios electrónicos
mas não para o consumo” (Canclini: 1998).
Por que é que este acesso simultâneo aos bens materiais e simbólicos não
vem a par de um exercício global e pleno da cidadania? A contradição
explode, sobretudo, nos países periféricos e nas metrópoles aonde a
globalização selectiva exclui desocupados e migrantes dos direitos
humanos básicos: trabalho, saúde, educação, habitação. O projecto
iluminista de generalizar esses direitos levou a procurar, ao longo dos séculos
XIX e XX, que a modernidade fosse o lar de todos. Pela imposição da
concepção neoliberal da globalização, para a qual os direitos são desiguais, as
novidades modernas aparecem para a maioria apenas como objectos de
consumo, e para muitos apenas como espectáculo. O direito de ser cidadão,
ou seja, de decidir como são produzidos, distribuídos e utilizados esses
bens, restringe-se novamente às elites.
No entanto, quando se reconhece que ao consumir também se pensa, se
escolhe e se reelabora o sentido social, é preciso, também, analisar-se como
esta área de apropriação dos bens e signos intervém em formas mais activas
de participação do que aquelas que habitualmente recebem o rótulo de
consumo. Noutros tempos, devemos interrogarmo-nos se ao consumir não
estamos a fazer algo que sustenta, nutre e, até certo ponto, constitui uma
nova maneira de ser cidadãos.
Se a resposta for positiva, será preciso aceitar que o espaço público
transborda a esfera das interacções políticas clássicas. O público é o marco
'mediático' graças ao qual o dispositivo institucional e tecnológico
próprio das sociedades pós-industriais é capaz de apresentar a um
'público' os múltiplos aspectos da vida social.
88

Anexos
(Glossário)
A Globalização; a mundialização do capitalismo
Ocorrência simultânea de três processos, a saber: a expansão extraordinária dos
fluxos internacionais de bens, serviços e capitais; a competitividade e concorrência
nos mercados mundiais; e a maior integração entre os sistemas económicos.
Agregados Macroeconómicos
Grandezas económicas que quantificam as operações que todos os agentes de uma
economia efectuam durante um ano.
Neoliberalismo
Hegemonia nas esferas políticas e económica da maior liberdade para as forças de
mercado, menor intervenção do Estado, desregulamentação, privatização do
património público, preferência revelada pela propriedade privada, abertura para o
exterior, ênfase na competitividade internacional e menor compromisso com a
protecção social.
Exclusão Social
Grupos humanos que não têm acesso a bens, serviços e meios de produção (uso,
controlo e propriedade) que permitem a satisfação das necessidades básicas nas
dimensões económica, política, social, cultural e afectiva.
Política
Conjunto dos princípios e dos objectivos que servem de guia a tomadas de decisão
e que fornecem a base da planificação das actividades.
Estado
Instituição com o monopólio do uso legítimo da força física dentro de um
determinado território ou núcleo do exercício do poder político onde as distintas
forças políticas resolvem os seus conflitos.
Nação
Grupo humano consciente de formar uma comunidade e partilhar uma comunhão de
interesses, necessidades, aspirações, cultura e tradições (em que a identidade de
língua, de religião ou de raça são importantes, mas não imprescindíveis), ligado a
um território claramente demarcado, tendo um passado e um projecto comuns e a
exigência do direito de se governar.
Estado Nacional
Tipo de Estado que possui o monopólio do que afirma ser o uso legítimo da força
dentro de um território demarcado, e que procura unir o povo submetido ao seu
governo por meio da homogeneização, criando uma cultura, símbolos e valores
comuns, revivendo tradições e mitos de origem ou, às vezes, inventando-os.
Nacionalismo
Sentimento de pertencer a uma comunidade cujos membros se identificam com um
conjunto de símbolos, crenças e estilos de vida e têm vontade de decidir sobre o seu
destino político comum. Pode ser também um patriotismo intelectualizado e arvorado
em doutrina política que faz da Nação um absoluto.
89

Vulnerabilidade externa
Reduzida capacidade de resistência diante de pressões, choques ou factores
desestabilizadores.
Conferência de Bretton Woods
Conferência realizada na localidade norte-americana de Bretton Woods ainda no
decorrer da 2ª Guerra Mundial, entre os EUA e o Reino Unido, e que originou o
estabelecimento de um Sistema Monetário Internacional (FMI).
Fundo Monetário Internacional (FMI)
Fundo das Nações Unidas criado em 1944, na Conferência de Bretton Woods, e que
se tornou operacional a partir de 1947. Tem como objectivo promover a cooperação
monetária internacional e o crescimento do comércio internacional, e estabilizar a
variação cambial.
Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE)
Organização internacional fundada em 1961 com o objectivo de promover o
desenvolvimento económico e o comércio mundial. Carecendo de poder decisório, a
OCDE é sobretudo um organismo de acompanhamento da evolução económica.
GATT
Conjunto de acordos de comércio internacional que têm como fim a abolição das
tarifas e das taxas aduaneiras entre países signatários.
Banco Mundial
Instituição especializada da ONU que elabora projectos para financiar o
desenvolvimento económico dos estados membros.
90
91

6. A educação como problema social


6.1. A nova equação educativa
Nos primeiros anos do século XX, Durkheim definia educação como uma
acção exercida pelas gerações adultas sobre as que ainda se não encontram
amadurecidas para a vida social. Ela tem por objectivo suscitar e desenvolver na
criança um certo número de condições físicas, intelectuais e morais que dela
reclamam, seja a sociedade política, no seu conjunto, seja o meio especial a que
ela se destina particularmente.

Até há bem poucos anos, quando se discutia sobre educação quase todos os
interlocutores se referiam ao que hoje se chama formação inicial. Estava-se
numa época em que o ciclo de vida do conhecimento, isto é, o tempo que
mediava entre o momento da sua criação e o da sua morte, era longo,
podendo mesmo exceder o ciclo de vida humano.

6.1.1. A complexificação do conceito de


educação
Hoje a situação alterou-se drasticamente: o Futuro entra cada vez mais
depressa no Presente sem pedir licença (Toffler, 1970, 1980, 1990), daí
resultando um processo de mudança acelerada que, na expressão feliz
de Margaret Mead, nos confere o estatuto de migrantes no Tempo
(Mead, 1969) levando outros autores a considerar estarmos a entrar
numa espécie de Idade do Ferro Planetária (Morin, 1991).
Resultante da força conjugada do aumento da esperança média de
vida das populações e da redução drástica do ciclo de vida do
Conhecimento (Knowles, 1980: 40-41), a formação inicial perdeu
peso relativo, circunscrevendo-se à aprendizagem básica de
conhecimentos, técnicas e atitudes, susceptíveis de virem alicerçar a
aprendizagem ao longo do resto do ciclo de vida. Em contrapartida
regista-se o alargamento da formação contínua, à medida em que se
vai tomando consciência da degradabilidade do saber e do seu ciclo de
vida cada vez mais curto.
Deste modo, a educação no mundo contemporâneo assume-se como
um processo que acompanha o ciclo de vida humano configurando um
conjunto de vertentes muito diverso.
Em termos genéricos podem distinguir-se duas vertentes principais do
processo educativo, consoante a aprendizagem de papéis esteja
codificada e institucionalizada ou não: a educação formal e a educação
não formal.
Como atrás se referiu, as necessidades de educação formal, hoje, não
se circunscrevem à educação inicial – que integra o ensino básico (pré-
escolar e escolar), secundário, profissional e superior – mas abrangem a
chamada formação contínua, em múltiplas facetas de formação
profissional (actualização, reciclagem, extensão e reconversão) e de
formação contínua superior, esta última em contexto académico
(pósgraduação) ou mais direccionada para a investigação e
desenvolvimento de unidades produtivas (formação avançada).
92

Por seu turno, a consciência progressivamente maior de que a educação


institucionalizada não cobre todas as necessidades educativas, tem
vindo a desenhar um quadro de necessidades educativas, que podemos
agrupar em dois conjuntos que se interpenetram:
● em primeiro lugar uma educação que permita às gerações vivas,
não só adaptarem-se à mudança acelerada da sociedade
contemporânea, mas também aprenderem a geri-la em seu
proveito.
● um outro conjunto de necessidades de aprendizagem que
podemos englobar sob a designação de educação cívica e
comunitária, apela para diversas competências transversais,
tanto ligadas ao desempenho de papéis do foro privado como ao
exercício da cidadania.
O processo de complexificação do conceito de educação que se acabou
de esboçar resulta de três macrotendências da sociedade
contemporânea, a que se fará referência nos pontos seguintes:
• as tendências para a aceleração da mudança,
• as tendências para as assimetrias sociais e
• as tendências para a alteração dos sistemas de poder.

6.1.2. Efeitos da mudança na educação


Entre os diversos sinais que traduzem o desajustamento do sistema
educativo contemporâneo, vejamos alguns indicadores (Naisbitt, 1988:
45-46):
● no relatório da Comissão Nacional (EUA) para a Qualidade do
Ensino (1983), significativamente intitulado Uma Nação em Risco,
refere-se que “a presente geração de finalistas do liceu é a
primeira na história da América a concluir o curso com menos
conhecimentos do que os seus pais;
● em consequência do desajustamento do sistema educativo à
mudança, no princípio dos anos oitenta, as estimativas do
número de analfabetos funcionais nos Estados Unidos variava
entre 18 e 64 milhões.
● as taxas de absentismo e de abandono no ensino secundário
aumentaram dramaticamente a partir dos anos setenta, tendo
como consequência um afluxo crescente de jovens à procura de
primeiro emprego, impreparados para um correcto desempenho
de tarefas exigidas na vida activa;
● para agudizar a crise, à invasão dos postos de trabalho pelos
computadores, obrigando os titulares a uma familiarização
mínima com estas ferramentas da sociedade da informação, o
sistema educativo não conseguiu responder ao mesmo
ritmo, correndo-se sérios riscos de estar a criar uma geração
de analfabetos informáticos.
Podemos tipificar essas novas necessidades educativas em dois grupos
que mutuamente se interligam:
• necessidades relacionadas com a adaptação ao processo de
mudança e
• necessidades ligadas à gestão dos conteúdos dessa mudança.
93

6.1.2.1. Aprender a adaptar-se à mudança


Em primeiro lugar, o adulto contemporâneo (e não só a criança e o
jovem) tem necessidade de aprender estratégias adaptativas
face ao choque cultural provocado pelo ritmo acelerado do
processo de mudança que actualmente se verifica.
A compressão do Tempo, acelerando o metabolismo social, torna
imperiosa a aprendizagem da adaptação aos novos ritmos de vida,
através da racionalização de processos de decisão cada vez mais
rápidos. Isto implica, aprender a dominar o medo ao
desconhecido e a assumir o estatuto de imigrante no tempo,
interiorizando que o novo, o diverso e o transitório, não são maus
em si: são riscos que contêm ameaças mas também oportunidades
de melhorar a qualidade de vida. Neste sentido, torna-se
importante aprender a:
● adaptar-se a novos instrumentos e a novos processos
de trabalho para que deles possa extrair um desempenho
qualificado;
● a ser um consumidor crítico e não um mero objecto das
estratégias de venda do sistema massificador da sociedade
de consumo;
● a adaptar-se rapidamente a novos lugares e ambientes
sabendo deles tirar partido.
Ligado a este conjunto de aprendizagens, é cada vez mais
imperativo que se ganhem novas competências
comunicacionais de modo a poder, com maior rapidez e melhor
qualidade estabelecer, intensificar e gerir as efémeras relações
sociais nos níveis interpessoal, grupal, organizacional e
institucional.
Quanto à relação com o saber, o cidadão contemporâneo
necessita de aprender a (re)aprender, a partir da consciência de
que o saber e degradável e a ignorância uma constante. É
indispensável que aprenda a seleccionar, processar e difundir
informação pertinente para a sua própria vida. O fenómeno da
planetarização, por seu turno, torna urgente o investimento na
aprendizagem sobre a unidade e sobre a diversidade da
espécie humana, combatendo toda a espécie de etnocentrismos.

6.1.2.2. Aprender a gerir a mudança


Para terminar esta breve reflexão sobre os efeitos da mudança na
educação, vale a pena recorrer a Margaret Mead (1969), que
chama a atenção para o facto de, actualmente, em virtude da
mudança singular a que a sociedade contemporânea está sujeita, o
processo de socialização integrar três diferentes sentidos, por
vezes conflituais:
— uma socialização de tipo tradicional, das gerações mais
velhas para as mais novas;
— uma socialização semelhante à que os grupos migrantes
sofrem, em que as várias gerações em presença sofrem
94

uma (res)socialização em simultâneo, fruto do contacto com


as sociedades de acolhimento;
— uma socialização de sentido inverso, das gerações mais
novas para as mais velhas.
Este complexo fenómeno, a que aquela autora atribui a principal
causa do conflito de gerações, remete para uma questão
fundamental a que já se fez referência: a do alargamento das
necessidades educativas a todas as gerações o que,
naturalmente, tem vindo a criar uma sobrecarga de exigências
aos sistemas educativos contemporâneos.

6.1.3. A educação e as assimetrias sociais


Desta segunda característica do mundo contemporâneo, traduzida na
manutenção ou, em certos aspectos, no agravamento das desigualdades
da qualidade de vida das populações, emerge um conjunto de
necessidades educativas e de formação para toda a população (e não só
para as suas camadas mais jovens como tradicionalmente tem sido
considerado) que poderíamos englobar na expressão educação para o
desenvolvimento e para a solidariedade. Esta expressão, integra duas
vertentes indissociáveis:
— Por um lado, a necessidade de educar as gerações contemporâneas
para o Desenvolvimento, ou seja, ensiná-las a
● tirar partido, de forma sustentada, do meio ambiente e dos
recursos que dispõe;
● evitar mortes desnecessárias e prolongar a vida com qualidade;
● pôr a render as potencialidades humanas de produção,
distribuição e consumo de bens escassos no quadro de uma
efectiva cidadania económica;
— Por outro lado, a necessidade de educar para a solidariedade, novo
nome da fraternidade, o valor central da revolução francesa mais
esquecido durante a época industrial.
A própria questão ambiental, muitas vezes posta de forma meramente
tecnocrática, pode e deve ser posta em termos de solidariedade inter-
geracional, uma vez que as acções das gerações actuais irão
condicionar fortemente a qualidade de vida das gerações futuras.

6.1.4. A educação e a alteração dos sistemas


de Poder
Uma terceira tendência que se observa na sociedade contemporânea é
para uma substancial alteração dos sistemas de poder devido, entre
outras, a duas circunstâncias:
● em primeiro lugar, o avanço das novas tecnologias de informação
e comunicação (NTICs) e o desenvolvimento da sociedade de
informação fizeram com que a principal fonte de poder deixasse
de ser a riqueza e passasse a ser o conhecimento (Toffler,
1991).
95

● em segundo lugar, como expressão política do duplo processo de


planetarização e de localização registado na segunda metade do
século XX, observou-se um aumento dos protagonistas
políticos e uma diversificação das suas relações, de acordo
com uma tendência para complexidade crescente (Moreira,
2000).
Tais alterações traduzem-se, em termos mundiais, em três
macrotendências políticas:
• a participação crescente dos cidadãos,
• o fim do socialismo de economia centralizada e
• a privatização do Estado-Providência.

As novas formas de regulação e de orientação da sociedade que daqui


decorrem, exigem novas aprendizagens, por parte dos cidadãos, de
modo a poderem tirar partido dos novos sistemas de poder, quer através
de formas mais eficazes e mais eficientes de governação, quer pela
instauração de estratégias e práticas adequadas para se defenderem
contra os excessos dessa governação. De entre elas ressaltam:
● aprender a planear, ou seja, a definir rumos, (...)”adoptando a
atitude prospectiva: olhando o presente a partir de um futuro
desejável, a fim de seleccionar (...) os factos portadores de
futuro” (Rosnay, 1977: 249). Por outro lado, aprender a decidir
sozinho e em grupo, para o que precisa de ganhar
competências no domínio da identificação de problemas, do
confronto dialógico dos modos de os resolver e da escolha de
soluções assumindo riscos. Em suma, aprender a ser
autónomo, sem se insularizar no individualismo;
● aprender democracia, quer como meta a alcançar quer como
método a desenvolver no dia-a-dia.

6.1.5. Três níveis de análise


O contexto que se acaba de descrever configura a questão da educação,
em qualquer sociedade, como um problema social complexo, com
efeitos imediatos na sua coesão interna e na sua locomoção em
direcção a objectivos globais como o Desenvolvimento e a Democracia.
Uma prova clara da importância conferida à educação como variável
estratégica da sociedade contemporânea foi a escolha de dois
indicadores de educação entre os quatro seleccionados para integrarem
o índice de desenvolvimento humano (IDH) do Plano das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)72.
A fim de poder analisar brevemente algumas das suas dimensões mais
relevantes, organizaremos a informação seleccionada em três conjuntos,
correspondentes a outros tantos níveis de complexidade:
numa perspectiva macro-sociológica, a questão da educação

deve ser concebida como um problema económico e político,
tanto pela amplitude das necessidades e dos recursos envolvidos
como pelos efeitos globais do seu funcionamento.
________________________________
72
Os quatro indicadores que integram o IDH do PNUD são a esperança média de vida à nascença, a
taxa de alfabetização de adultos, a duração média da escolaridade da população maior que 25
anos e o rendimento per capita corrigido.
96

● Numa óptica meso-sociológica é indispensável entendê-la


como um problema organizacional, uma vez que a organização
dos recursos tem efeitos imediatos na eficácia e na eficiência do
processo educativo.
● Numa aproximação micro-sociológica interessa equacioná-la
como um problema psico-social, dado o processo educativo
resultar fundamentalmente de relações inter-pessoais,
estabelecidas entre os diversos protagonistas envolvidos no
processo.

6.2. A educação como problema económico


e político
A breve análise que se segue, será feita a partir da perspectivação do ensino
como indústria.
Uma outra razão para se observar o ensino nesta perspectiva, tem a ver com o
facto de ele constituir a maior «indústria» da nossa época, tanto pelos
recursos humanos e financeiros que absorve como pela importância da sua
«produção» dos quadros administrativos, científicos e técnicos, que
desempenham um papel motor no desenvolvimento das sociedades actuais
(Khôi, 1970: 10).
Como para qualquer indústria, a análise do ensino deverá incidir nos seus
factores de produção e nos seus produtos.

6.2.1. Os factores de produção


Os principais factores de produção em presença são
• os recursos humanos, entre os quais se encontram os aprendentes
(alunos e formandos), os ensinantes (professores e formadores) e os
outros protagonistas do processo educativo,
• os recursos materiais, que englobam verbas, instalações,
equipamentos e materiais de ensino, bem como bens e serviços
diversos, e
• os recursos ambientais, que integram as infraestruturas de
comunicações e telecomunicações, o ambiente social, económico e
político.
Quanto aos aprendentes, observa-se que nos últimos anos o seu
número e diversidade aumentaram significativamente, devido a
diversos factores:
● crescente consciência da importância que tem a melhoria do
nível de educação de um povo para o seu desenvolvimento
económico e social;
● aumento da população infantil e juvenil, em termos absolutos,
nos países menos desenvolvidos;
● aumento das necessidades de formação contínua da
população adulta, criando um enorme contingente adicional de
aprendentes.
Para fazer face à pressão da procura educativa muitos sistemas
educativos têm-se confrontado com um duplo problema político: os
97

recursos são escassos e frequentemente são desviados para fins


militares.
Para além de escassos, os recursos encontram-se assimetricamente
distribuidos.
Parece portanto que o investimento em educação tem sido
globalmente assimétrico, em detrimento dos países mais pobres.
Se, a esta assimetria, juntarmos as carências de outros recursos
materiais, como instalações, equipamentos, materiais de ensino,
abastecimento de água, electricidade e outros bens e serviços,
poderemos concluir que a indústria do ensino está claramente falha
de recursos materiais e que tal carência é mais grave nos países
que apresentam baixos índices de desenvolvimento humano.
Ligado a este problema está o da carência de ensinantes e o do seu
custo crescente.
Aparentemente em termos globais, a relação entre alunos e professores,
registou uma ligeira melhoria (menos um aluno por professor), no
intervalo de 1965 a 1989. Todavia, tal facto é desmentido pela análise
diferencial, da qual se chama a atenção para os seguintes aspectos:
— a situação dos países com baixos rendimentos deteriorou-
se, aumentando a relação alunos/professor, contrariamente ao
que se verificou com os restantes países que registaram
significativas melhorias;
— agravou-se o fosso entre o grupo dos países mais ricos e o dos
mais pobres, de uma diferença de apenas nove pontos
percentuais, em 1965, para uma distância de vinte, em 1989.
Perante esta situação e tendo em conta que os ensinantes (professores
e formadores) perderam o monopólio que detinham na distribuição do
saber em detrimento de outros agentes (rádio, cinema, televisão, etc)
têm-se vindo a desenvolver em muitos países programas alternativos ou
simplesmente metodologias complementares de ensino, que revelam
duas tendências distintas mas não antagónicas:
● por um lado, para uma maior captação de recursos ensinantes,
através da utilização de não profissionais de ensino em
programas de desenvolvimento comunitário virados para a
educação de adultos;
● por outro lado, uma tendência para dotar os sistemas ensinantes
de maior eficiência, introduzindo-lhes uma maior diversificação
de meios, nomeadamente no campo audio-visual e
informático.
O que acabamos de observar relativamente aos recursos humanos
repete-se quanto aos recursos ambientais: das fontes disponíveis pode
concluir-se que tanto o número de aparelhos de rádio como os de
televisão e os telefones sobe na razão directa do IDH.

6.2.2. Os produtos
A diferente situação em que os diversos sistemas de ensino se
encontram relativamente aos recursos disponíveis e às exigências a que
têm de fazer face, naturalmente afecta os seus produtos, que se
98

traduzem na qualidade das qualificações produzidas pelo sistema e no


número de pessoas qualificadas nos vários níveis de ensino.
A qualidade das qualificações, sendo difícil de medir, pode no entanto
ser revelada por alguns indicadores como o número médio de anos de
escolaridade da população adulta e o número de diplomados, de
cientistas e técnicos por mil habitantes.
No quadro pode comparar o número médio de anos de escolaridade
da população adulta, dos países em desenvolvimento com os
industrializados, por sexos. Da sua análise pode facilmente concluir-se
que
● em termos mundiais, existe um baixo número de anos de
estudos na população adulta, o que imediatamente chama a
atenção para a necessidade da sua formação complementar
de forma a fazer face às novas exigências profissionais.
Média de anos de estudos da população com idade superior a
25 anos (1990)
TIPO DE PAÍS HM H M
MUNDO 5.0 5.8 4.3
Países em desenvolvimento 3.7 4.6 2.7
Países industrializados 10.0 10.4 9.6

● a população adulta dos países em desenvolvimento tem um


número de anos de escolaridade média (3.7), equivalente a
37% da escolaridade dos industrializados (10);
● a situação do segmento feminino é bem pior que a do
masculino tanto em termos globais como diferenciados,
observando-se um fosso maior nos países em desenvolvimento.
Quanto ao número de diplomados, de cientistas e técnicos por mil
habitantes, as carências e assimetrias mantêm-se.
A primeira impressão com que se fica – comparando os indicadores
mundiais com os dos países industrializados – é a de uma grande
carência de diplomados, de cientistas e de técnicos, em termos
globais.
A partir dos dados apresentados, podem extrair-se três conclusões:
● a qualidade das qualificações produzidas pelos sistemas de
ensino contemporâneos é ainda insuficiente, quer porque a
quantidade de conhecimentos passível de transmissão é baixa
(dado o pequeno número de anos de escolaridade), quer pelo
número insuficiente de quadros superiores globalmente
produzidos;
● o fosso de qualidade entre os sistemas de ensino dos países
em desenvolvimento e dos países industriais é ainda muito alto,
com a agravante dos primeiros terem necessidades educativas
muito superiores às dos segundos;
● o segmento feminino ainda é particularmente discriminado no
acesso ao conhecimento.
Quanto ao número de pessoas qualificadas a situação pode ser
observada, antes de mais, através da taxa de alfabetização de adultos,
99

por indiciar as dificuldades globais de acesso ao conhecimento,


normalmente feito em suporte escrito73.
Em termos mundiais a taxa de analfabetismo reduziu-se de 45 % em
1965, para 35 % em 1989 (Steer, 1992), o que denota um ritmo muito
lento da sua redução: se esta evolução se mantivesse, a população
mundial, no seu conjunto, atingiria a taxa de 4% – existente em 1989
para os países de rendimento alto – só por volta do ano 2068.
A comparação destes e doutros indicadores disponíveis, mostra
claramente
• que se registou nos últimos decénios uma melhoria global da
alfabetização mas a um ritmo demasiado lento para as
necessidades;
• que o fosso entre países ricos e pobres, neste domínio, está a
reduzir-se;
• que a taxa de alfabetização está claramente relacionada com o
estádio de desenvolvimento, que, em função disso, são os países
mais carecidos que apresentam índices piores;
• que, finalmente, o segmento feminino se encontra claramente em
piores condições e que estas são agravadas com o estádio de
desenvolvimento.
Vejamos seguidamente as taxas de cobertura dos vários níveis de
ensino por níveis de rendimento per capita.
Nos últimos 25 anos registou-se um aumento da taxa de cobertura do
ensino primário, que atinge a quase totalidade da população da
respectiva faixa etária. O ensino secundário, sofreu também uma
evolução positiva (de 31 para 52%), tal como o terciário (de 9 para 16%).
Dois aspectos, no entanto, devem ser salientados: por um lado, as taxas
de cobertura diminuem substancialmente com o nível de ensino; por
outro, o ritmo da mudança ocorrida quer no secundário quer no
superior foi relativamente lento face às necessidades.
Comparando as diversas taxas de cobertura com o nível de rendimento
per capita (à excepção do primário, uma vez que atingiram o valor 100),
observa-se que elas aumentam com o rendimento, com pequenas
flutuações entre os países com rendimentos medianos o que seria de
esperar.
O fosso entre países ricos e pobres reduziu-se quer na cobertura do
ensino primário quer no secundário. No ensino terciário, não se
dispondo de dados sobre os países com menos rendimentos em 1989,
apenas se pode dizer, recorrendo às informações de 1965, que o fosso
era enorme, uma vez que a taxa de cobertura destes países
correspondia a 10% da taxa de cobertura dos países industrializados.
Em síntese, observando os sistemas de ensino contemporâneos como
indústrias, regista-se uma crise global, resultante de uma insuficiente
oferta de ensino perante uma crescente pressão da procura:
as necessidades do mercado aumentaram vertiginosamente

tanto pelo aumento numérico dos aprendentes, como pela
diversidade das exigências feitas;
________________________________
73
Este indicador, deve ser utilizado com alguma prudência, uma vez que o monopólio do suporte
scripto tende a acabar e que a simples alfabetização acrítica não é condição suficiente de acesso ao
conhecimento.
100

● os recursos materiais, humanos e ambientais, indispensáveis


para fazer face ao acréscimo de necessidades, são claramente
insuficientes, sendo muitas vezes desviados para outros fins;
● a falta de recursos é mais grave nos países menos
desenvolvidos, simultaneamente os mais carecidos de
investimentos em educação.
● as assimetrias observadas reflectem-se nos produtos dos
sistemas educativos, quer no que respeita à sua qualidade quer
no que concerne à quantidade, e são agravadas directamente
pela condição feminina e pelo nível de desenvolvimento.
No contexto que acaba de se descrever, podemos afirmar que a
educação se assume como um problema sócio-político por
excelência, uma vez que a adequação dos recursos às
necessidades educativas tem efeitos evidentes na sociedade global,
quer em termos da coesão dos grupos que a integram quer em matéria
da locomoção em direcção a objectivos colectivos como o
desenvolvimento ou a democracia.

6.3. A educação como problema


organizacional
Reduzindo a escala do nosso olhar, podemos afirmar que a educação também
se pode encarar como um problema organizacional uma vez que
independentemente da justeza das políticas aprovadas, a sua execução
depende do modo como os recursos são geridos no terreno, tornando o
processo educativo mais ou menos eficaz e mais ou menos eficiente.
Estes dois conceitos são extremamente importantes mas muitas vezes
confundidos:
• a eficácia do processo educativo tem a ver com a convergência entre
objectivos (resultados) previstos e alcançados;
• a eficiência, relaciona os objectivos alcançados com os recursos afectados
para os atingir.
Por exemplo, o objectivo de reduzir a taxa de insucesso escolar de uma dada
escola pode ser alcançado num dado momento, configurando uma acção
educativa eficaz. No entanto, se tais resultados foram alcançados a custos
muito elevados (pouca eficiência) é provável que não possam ser mantidos
durante muito tempo. Isto significa que muitas vezes a ineficiência
compromete a sustentabilidade da eficácia.
Encarando a escola como organização, para que se assuma como um
instrumento de solução dos problemas de educação e não um obstáculo
adicional, há diversos aspectos que devem ser bem geridos.

6.3.1. Gestão da dinâmica externa


Quanto às relações da escola com o exterior, é indispensável garantir
um desempenho adequado da organização em duas principais vertentes:
● Na relação da escola com a estrutura de tutela é fundamental
identificar os papéis específicos que cabem às várias agências
em presença, de modo a propiciar um efectivo espaço de
manobra à organização escola, no quadro da política educativa.
Definidos os papéis, a criação de regras de comunicação
101

(padrões, canais e suportes) é condição indispensável para que o


relacionamento se processe com qualidade e com rapidez.
● Na relação da escola com a comunidade envolvente é
indispensável o mesmo tipo de cuidados, tanto na definição dos
papéis que cabem aos protagonistas como na manutenção de
uma rede de comunicações adequada.

6.3.2. Gestão da dinâmica interna


A dinâmica interna da organização escola deve ser posta ao serviço de
um projecto educativo comum, que agregue as contribuições dos
vários protagonistas (estudantes, e pessoal docente e não docente).
Para que tal aconteça, a gestão da organização deve procurar coordenar
diversas áreas-chave, das quais podemos salientar as seguintes:
● Circuitos. Os circuitos de decisão devem ser bem definidos e
garantir a participação de quem deve tomar parte no processo.
● Estrutura formal. Os diversos orgãos da escola devem exercer
o papel atribuído pelo sistema normativo vigente num quadro de
cooperação institucional evitando situações de competição e de
conflito.
● Estrutura informal. A gestão da escola deve estar atenta à
estrutura informal, particularmente aos grupos de pares e aos
líderes informais, procurando tirar partido do seu potencial em
favor do projecto educativo.
● Rede comunicacional. Para que todo o processo educativo
decorra sem incidentes é indispensável que a rede de
comunicações no interior da organização funcione
adequadamente, tanto a vertical (descendente e ascendente)
como a horizontal.
● Cultura. A cultura de uma organização é o conjunto de
assunções básicas (valores, padrões de actuação), muitas vezes
não explicitados mas que orientam a sua dinâmica quotidiana. Os
orgãos gestores da organização escola devem ajudar a
sedimentar uma cultura orientada para os grandes objectivos
educativos atrás expressos74 através de uma liderança adequada.
Pelo que se acaba de referir, para que a organização escola funcione
com eficácia e eficiência é exigido que os seus decisores tenham uma
formação específica para o desempenho como gestores educativos.
Tal formação deve não só dotá-los das competências técnicas
necessárias ao desempenho da função de gestão – saber planear,
organizar e controlar – mas também treinar a sua inteligência
emocional de modo a poderem desempenhar as funções de liderança
organizacional – motivação, comunicação e desenvolvimento dos
recursos humanos em presença.

________________________________
74
Como atrás se fez referência, qualquer sistema educativo deve ter como finalidades, a educação
para a adaptação e gestão da mudança, para o desenvolvimento, para a solidariedade, para a
democracia e para a autonomia.
102

6.4. A educação como problema


psicossocial
Procedendo a uma terceira aproximação, de natureza micro-sociológica,
podemos equacionar a educação como um problema psico-social, dado o
processo educativo ocorrer sobretudo numa moldura de relações inter-
pessoais.
Neste contexto, e independentemente das singularidades dos protagonistas
envolvidos (bons ou maus professores e bons ou maus alunos), interessa
saber que aspectos é que condicionam o processo de ensino aprendizagem
independentemente das idiossincrasias dos agentes, a fim de equacionar o
problema com alguma objectividade.
Em qualquer acto educativo formal estão presentes três subsistemas que o
condicionam:
• um aprendente,
• um ensinante e
• um sistema de comunicação educacional.
Para que o acto educativo seja eficaz e eficiente é fundamental que os três
subsistemas desempenhem o seu papel adequadamente.

6.4.1. Condicionadores do aprendente


Os factores que condicionam o desempenho do aprendente podem
agrupar-se em dois conjuntos: os factores exógenos e os factores
endógenos.
São factores exógenos, por exemplo, o meio social donde provém o
aluno, e o sistema de recursos que ele dispõe, fora do meio familiar, para
poder gerir o seu processo de aprendizagem.
● Entre as variáveis decorrentes do meio social podem referir-se
como de grande relevância a situação sócio-económica da
família, o seu grau de instrução, a língua materna e a etnia.
● O sistema de recursos do meio (por exemplo, a existência ou
ausência de locais de estudo, de bibliotecas, de cantinas, de
outros significativos, etc.) pode compensar ou, pelo contrário,
agravar as dificuldades do meio familiar.
São factores endógenos, aqueles que o aprendente encontra em si
para gerir com êxito o processo de aprendizagem, como a sua ambição
pessoal, a capacidade de se auto-motivar, etc.

6.4.2. Condicionadores do ensinante


Os factores que condicionam o desempenho do ensinante podem
agrupar-se também em variáveis exógenas e endógenas.
São variáveis exógenas, a coerência curricular, os recursos disponíveis
na escola e na comunidade envolvente.
São variáveis endógenas do ensinante, a competência científica e
pedagógica adquirida através da formação inicial e contínua, e a
inteligência emocional.
103

6.4.3. Condicionadores da comunicação


educacional
Ainda que motivados é necessário que o sistema de comunicação
educacional seja adequado. Isto implica, entre outros aspectos:
● Materiais educativos de qualidade em suporte escrito, audio-
visual e informático.
● Espaços específicos como laboratórios, bibliotecas, ginásios e
salas para actividades expressivas bem como espaços
polivalentes, onde estudantes e professores possam trabalhar e
conviver em regime de cooperação educativa.
● Estratégias activas para melhorar a comunicação
educacional, como programas de educação intercultural,
formação e dotação de meios para fazer face aos alunos com
necessidades educativas especiais, etc.

6.5. Algumas políticas relevantes


Situação da educação e algumas estratégias necessárias
Situação POLÍTICAS E ESTRATÉGIAS
Escala macro Escala macro
• Maior procura educativa (qualificação e diversificação da oferta)
• Oferta educativa insuficiente • Coerência curricular (mudança, desenvolvimento,
solidariedade, autonomia, democracia)
• Controlo dos desvios de investimentos globais para
fins educativos e de bem-estar
• Autonomização do aprendente (Ex: Ensino aberto e a
distância)
• Uso de recursos fora do sistema educativo tradicional
– empresas comunidade, ONGs, NTICs, etc
• Alfabetização audiovisual e informática
• Discriminação positiva relativamente à educação do
género feminino e das crianças em idade escolar
Escala meso Escala meso
• Problemas de eficácia • Qualificação da gestão do relacionamento da
• Problemas de eficiência organização escola com o seu ambiente externo
(estrutura de tutela e comunidade envolvente):
definição de papéis e de regras de comunicação.
• Qualificação da gestão da dinâmica interna (circuitos,
estrutura formal e informal, rede comunicacional e
cultura)
• Formação de gestores escolares (competências
técnicas e inteligência emocional)
Escala micro Escala micro
• Factores condicionantes do • Estratégias compensatórias (aprendentes)
aprendente (classe social, • Formação contínua (ensinantes)
instrução, língua, etnia, recursos • Estratégias de empowerment (ambos)
do meio, aspectos endógenos) • Educação intercultural (ambos)
• Factores condicionantes do • Desenvolvimento comunitário (ambos)
ensinante (coerência curricular, • Fomento de grupos de auto-ajuda (ambos)
recursos disponíveis, competência • Programas de desenvolvimento da inteligência
profissional, inteligência emocional (ambos)
emocional)
• Factores condicionantes da
comunicação (materiais, espaços,
estratégias)
104

6.5.1. À escala “macro”


À escala macro-social, os sistemas educativos devem procurar
responder à sobrecarga da procura com uma política que privilegie a
qualificação e a diversificação da oferta. Isto implica diversas medidas
estratégicas, de que se apontam algumas das mais relevantes:
● Em primeiro lugar uma política de coerência curricular, uma
vez que como se sabe, não há ventos favoráveis quando não se
conhecem os rumos. Em termos genéricos parece que qualquer
sistema educativo se deverá orientar para as seis necessidades
educativas básicas atrás referidas: a adaptação e gestão da
mudança, o desenvolvimento, a solidariedade, a autonomia e
a democracia.
● Tal política exige, como corolário, o controlo sistemático da
ajuda internacional destinada ao desenvolvimento das
populações, de modo a que não seja desviada para fins militares
ou para benefício de poderosas oligarquias locais.
● Relativamente aos aprendentes todo o processo educativo deve
visar a sua autonomização progressiva. Tais políticas devem
visar o desenvolvimento de competências metacognitivas que
permitam a cada um, ser sujeito da sua própria história (Freire,
1967, 1972). Um modelo de ensino que se tem vindo a revelar de
grande eficácia para a autonomização do aprendente é o do
ensino a distância, hoje implantado em todo o planeta e em fase
de expansão explosiva, por vezes combinado com modelos de
ensino presencial (Carmo, 1997; Belloni, 1999; Trindade, Bidarra
e Carmo, 2000).
● Outra política de diversificação da oferta passa pelo uso de
recursos exteriores ao sistema educativo tradicional, através
de parcerias com agentes da comunidade envolvente – como
empresas, autarquias e organizações não governamentais – ou
tirando partido das novas tecnologias de informação e
comunicação – NTICs. Tal política exige a necessidade de
generalizar a alfabetização audio-visual e informática dos
cidadãos, sem a qual se criarão novos grupos de excluídos
(Toffler, 1991).
● Dois tipos de discriminação positiva têm sido recorrentemente
defendidos pelas agências internacionais a fim de compensar o
profundo fosso actualmente existente: a que respeita à educação
do género feminino e à das crianças e adolescentes em idade
escolar.

6.5.2. À escala “meso”


A uma escala organizacional, as políticas educativas têm vindo a
direccionar-se frequentemente em três diferentes sentidos:
● Na clarificação dos papéis e das regras de comunicação entre a
escola e os organismos de tutela.
● No estabelecimento de parcerias entre a organização escola e a
comunidade envolvente, a fim de procurar potenciar os
105

recursos mútuos para o desenvolvimento de projectos educativos


em regime de co-responsabilização.
● Na qualificação da gestão interna da escola, registando-se uma
consciência crescente de que o desempenho da função de
gestão exige competências específicas, para além da simples
preparação profissional exigida a um docente.

6.5.3. À escala “micro”


Finalmente, a uma escala psicossocial, têm vindo a defender-se a
implementação de uma gama muito diversificada de políticas de
intervenção, das quais seleccionamos apenas algumas pela sua
relevância:
● Relativamente aos aprendentes, têm vindo a multiplicar-se
programas compensatórios, que procuram criar uma situação
de discriminação positiva relativamente aos diversos tipos de
handicaps (sócio-económicos, étnicos, linguísticos, relativos a
deficientes, etc.).
● No que respeita aos ensinantes, a formação contínua tem
vindo a assumir-se simultaneamente como um direito e um
dever, constituindo-se já não como uma excentricidade de alguns
mas como uma rotina de todos, valorizada em termos de
progressão na carreira docente.
● Finalmente têm vindo a desenhar-se políticas que visam dotar
ambos os principais protagonistas do processo educativo, de
empowerment para vencer as dificuldades quotidianas do
processo complexo que é ensinar e aprender em circunstâncias
por vezes muito difíceis.
106
107

7. Problemas de origem ideológica


Os fenómenos do racismo e do sexismo têm como denominador comum uma visão
essencialista dos seres humanos, que alimenta um projecto de sociedade onde o
tratamento desigual entre as pessoas é justificado pelas diferenças de
características físicas. É por esta via que se assiste constantemente ao desrespeito
dos Direitos Humanos, embora o mundo tenha assumido o compromisso de instituir
a sua universalidade. Os atentados aos Direitos Humanos devem, assim, ser
entendidos como sinais do projecto ideológico inacabado da Modernidade, cujos
alicerces são a igualdade, a fraternidade e a solidariedade entre os seres humanos.
A compreensão da emergência destes fenómenos nas sociedades contemporâneas
exige, então, que remontemos, ainda que brevemente, ao período do Renascimento
para que possamos analisar de que modo estes problemas foram emergindo e
acompanharam a evolução dos sistemas sociais e políticos das sociedades
europeias ocidentais. É no período renascentista que vamos encontrar a ruptura
com o pensamento tradicional e claramente teológico da Antiguidade e a abertura
das portas da Modernidade, que defende uma ideologia humanista e universalista.
E é neste quadro de valores e ideologias conflituais que iremos traçar a análise dos
fenómenos do racismo, da xenofobia, dos fundamentalismos e do sexismo, bem
como dos atentados aos Direitos Humanos, que, no seu conjunto, marcam a História
das sociedades contemporâneas.

7.1. Racismo
O conceito de racismo é uma construção recente. No entanto, o termo “raça”
começou a ser utilizado a partir de finais do século XV e a Europa assistiu ao
longo dos séculos XVIII e XIX ao impulso da produção científica e discussão
política em torno da “raça”. A diferenciação entre “raças superiores” e “raças
inferiores” e a legitimação da supremacia das primeiras face a estas designa-
se por racialismo. O racialismo designa, portanto, a vertente ideológica do
racismo.
O domínio que os colonizadores Europeus detinham sobre os países e povos
por eles colonizados, não só económico como também científico, conduziu a
explicações científicas marcadamente etno e eurocêntricas, traduzidas em
representações inferiorizantes dos “outros”, sendo a grande arma que
legitimava os abusos da colonização e a própria escravatura. É assim que o
projecto ideológico de construção de uma nação alemã, unificada sob a
pertença ancestral a uma “raça ariana”, era sustentado pela classificação
convergente de “raça” e nação, justificando assim a exclusão da “raça judia”.

7.1.1. O determinismo biológico


O pensamento social era, na Europa do século XIX, dominado pelo
determinismo biológico, em que se destacam três teorias
fundamentais para a legitimação científica do racismo:
1. a obra de Gobineau, “Essai sur l'inégalité des races humaines”
(1852), que alertava para a degenerescência das “raças” como
resultado da mistura entre si;
2. o darwinismo social, de Spencer (1862), teoria que vai aplicar às
sociedades humanas a tese selectiva que Darwin avançou quanto
aos organismos vivos, defendendo a rejeição dos elementos mais
108

fracos e menos adaptados da sociedade em prol da sobrevivência


e evolução desta75;
3. o eugenismo, de Francis Galton (1883), teoria que defendia a
melhoria da espécie humana através de um processo de selecção
semelhante àquele que se utilizava no reino animal – selecção dos
progenitores para assegurar uma melhor descendência – e que se
propunha identificar os genes “bons” e os genes “maus”, afirmando
que para acabar com a criminalidade e outros “vícios” bastava
eliminar os genes por eles responsáveis.

7.1.2. A evolução do racismo no século XX


A passagem para o século XX é feita com a herança do determinismo
biológico. Mas é apenas nos finais da década de 20 que nasce o
conceito de racismo, definido como uma ideologia que defende a
superioridade de determinadas “raças” e legitima a sua supremacia em
relação às “raças” identificadas como “inferiores”.
Por outro lado, é a partir de meados do século XX, e sobretudo a partir
da década de 60, que o conceito de “raça” vai desaparecendo, quer na
Europa quer nos EUA. Tal deve-se à demonstração científica de que o
conceito de “raça” é uma construção social sem fundamentação
biológica e, sobretudo, ao conhecimento dos horrores dos campos de
concentração e ao início da descolonização dos países africanos.

7.1.2.1. A emergência do “novo racismo”


A classificação das populações em “raças” foi substituída pela
definição de grupos étnicos ou culturais, substituindo-se a ênfase
na “raça” pela ênfase na cultura. Esta viragem é a característica
central do conceito de “novo racismo”, construído por oposição
ao “velho” racismo biológico. Assim, em períodos de recessão
económica, o imigrante ou o indivíduo pertencente a uma cultura
minoritária é o alvo mais fácil de acusação, o bode expiatório, o
objecto ameaçador.

7.1.2.2. O racismo institucional


A segunda metade do século XX viu também nascer uma nova
interpretação do racismo que não apela a uma componente
ideológica: trata-se da construção do conceito de “racismo
institucional”. Originalmente defendido pelo movimento “Black
Power” nos EUA, nos anos 60, a ideia de “racismo institucional”
assenta no pressuposto de que a sociedade está estruturada de
maneira a manter a exclusão de um grupo específico (naquele
caso os negros Afro-Americanos) e a evitar a sua progressão na
sociedade. A existência de políticas ou acções que tendiam à
marginalização dos negros, bem como a ausência de políticas ou
acções que promovessem a melhoria da sua situação, eram inter-
________________________________
75
A teoria de Darwin sobre a evolução das espécies tem sido frequentemente apelidada de racista e
promotora de uma ideologia que legitimava a desigualdade e a discriminação dos seres humanos. No
entanto, vários cientistas sociais têm vindo em sua defesa apontando ao darwinismo social, elaborado
por Spencer, a desvirtualização das ideias defendidas por Darwin, uma vez que este nunca aplicou a
teoria da selecção natural aos seres humanos, mas tão somente ao reino animal (cfr. Tort, 1996).
109

pretados como manifestações de racismo institucional. Como,


muitas das vezes, as práticas de exclusão estão inscritas no
normal funcionamento das instituições, nem sempre são
questionadas e, consequentemente, não têm necessidade de
serem legitimadas por uma ideologia.
A adesão ao Acto Único Europeu, em 1993, foi interpretada por
várias organizações anti-racistas europeias como um exemplo de
racismo institucional, pois um efeito directo da livre circulação entre
as fronteiras da União Europeia para os seus nacionais era a
exclusão do direito a essa liberdade para os não-nacionais e a
instituição de uma estrutura discriminatória no normal
funcionamento daqueles países.

7.1.3. As facetas da desigualdade e da


diferença
O racismo encerra em si três componentes (Wieviorka, 1995, p. 25):
1. a “naturalização” de um grupo, que consiste na identificação
desse grupo com base em características físicas naturais;
2. a percepção do “outro” como ameaça;
3. o apelo a medidas de protecção, discriminação ou segregação.
Nem sempre a discriminação de outrem é uma expressão de racismo,
mas tão só se incorporar estas três componentes. Por outro lado, o
racismo combina dois princípios de exclusão:
• a desigualdade e
• a diferença.

No entanto, apesar do racialismo não ser abertamente defendido, devido


à decadência do uso do conceito de “raça”, vamos encontrar no “novo
racismo” traços da velha diferenciação biológica.
A relação entre as dimensões da diferença e da desigualdade não é
consensual entre os autores que se dedicam à análise do racismo.
Assim, Taguieff (1988) defende que estas duas dimensões estão
separadas, resultando em dois tipos de racismo:
• a desigualdade está relacionada com a naturalização do “outro”
(sobretudo o “outro” enquanto colonizado ou sujeito à dominação por
parte de outrem) e com a sua inferiorização;
• a diferença está ligada à ideia de preservação da especificidade de
cada cultura.
Em contrapartida, Wieviorka define o racismo pela complementaridade
entre estas duas dimensões, afirmando que se o tema da desigualdade
está fortemente ligado à dominação colonial, o racismo só existe se a
consciência da inferioridade dos povos colonizados for acompanhada
pelo medo de invasão ou de perda da identidade do colonizador. Por
outro lado, a percepção da diferença cultural só produz racismo se a
cultura ou culturas minoritárias forem entendidas como ameaçadoras
pela cultura dominante. Hoje, o facto de existirem numerosas
comunidades migrantes nos vários países Europeus, havendo uma
menor distância entre as diferentes culturas e uma maior possibilidade
de trocas entre elas, faz aumentar o medo de perda da identidade
nacional por parte da cultura maioritária (embora as culturas minoritárias
110

sejam mais pressionadas a receber influências da cultura maioritária e a


submeterem-se a uma assimilação cultural, do que o contrário). Como
afirma Wieviorka, para que o racismo se manifeste é necessário que
«(...) haja o sentimento de que o superior está ameaçado pelo inferior, a
qualidade pela quantidade, a riqueza pela pobreza (...)», numa
associação da diferença e da inferioridade (Wieviorka, 1995, p. 27).

7.1.4. O racismo como uma doença da


Modernidade
Todorov define o racismo como uma doença de passagem para a
Modernidade.
A exclusão que afecta tão fortemente as comunidades imigrantes na
Europa Ocidental, e designadamente em Portugal, é o resultado do
falhanço do projecto ideológico universalista em tornar igualitárias as
relações sociais e o funcionamento das sociedades em si mesmas.
Um exemplo desta mescla de facetas do racismo actual é a situação das
jovens gerações de origem migrante residentes em vários países da
Europa Ocidental – tais como a Alemanha, a França, o Reino Unido e
Portugal. Hoje, grande parte dos jovens das comunidades imigrantes
constituem segundas ou terceiras gerações, mas continuam a ser
identificados como estrangeiros e a ser alvo de exclusão, apesar de
culturalmente estarem muito mais próximos dos “verdadeiros necionais”
do que as primeiras gerações de migrantes.
Duas manifestações ilustrativas da ideologia racista contemporânea:
quer o Front National quer os grupos de skin-heads Portugueses não
argumentam abertamente em termos rácicos, mas antes exacerbam a
diferença cultural e acusam os estrangeiros de ocuparem postos de
trabalho dos nacionais; em ambos os casos, estes argumentos justificam
a defesa do regresso dos imigrantes aos países de origem. O próprio
direito à diferença é absorvido pela ideologia racista contemporânea
como forma de justificar a incompatibilidade das culturas minoritárias
com a cultura dominante, facto que colocaria em risco a homogeneidade
cultural da nação (ideia que alicerçou os nacionalismos emergentes nos
finais do século XIX).

7.2. Xenofobia e fundamentalismos


A xenofobia e o racismo estão interrelacionados, pois ambos os conceitos se
referem a uma diferenciação entre grupos que resulta na exclusão de uns face
a outros. No entanto, a xenofobia diz respeito a um leque muito mais
abrangente de diferenciações, na medida em que traduz toda a rejeição de
outrem, identificado como dissemelhante do “eu” ou do “nós”, quer essa
diferença seja baseada em traços físicos, na cultura, na pertença nacional ou
em outros aspectos, ou resulte tão só da subjectividade implícita à atribuição
de uma identidade diferente a esse “outro”. Ao contrário do racismo, a
xenofobia não constitui por si só uma ideologia, apesar de ser um fenómeno
determinado culturalmente e influenciado pelos contextos político-ideológicos
fundadores das sociedades. Em termos etimológicos, xenofobia significa
medo do estrangeiro. Ora, é a conjugação destas duas características –
rejeição daquele que identificamos como diferente e medo face a ele – que
fazem associar frequentemente o fenómeno da xenofobia à questão dos
fundamentalismos.
111

O fundamentalismo reporta-se à crença e à defesa de um conjunto de


princípios religiosos (ou fundamentos), que são entendidos como verdades
fundamentais.
Os fundamentalismos emergentes nas últimas décadas do século XX são um
símbolo ímpar dos paradoxos da Modernidade, onde as sociedades evoluem
no sentido da abertura e da expansão de fronteiras, não só físicas como
mentais, e, simultaneamente, desenham novas restrições e limites a essas
mesmas fronteiras.

7.2.1. A origem dos fundamentalismos


modernos
A nova ordem económica influenciou as formas de interacção social e os
valores, traduzindo-se no enfraquecimento das solidariedades, no
aumento da competição entre os grupos e no reforço de valores
individualistas, por oposição ao colectivo.
A conjugação destes factores conduziu, por um lado, à procura de novos
espaços de solidariedade onde os indivíduos se sentissem protegidos,
sendo a religião e a pertença étnica espaços privilegiados para tal, e, por
outro lado, à construção de novos projectos de sociedade, fortemente
marcados pelo retorno ao religioso. No entanto, no mundo islâmico
existe uma mais forte base social de apoio do fundamentalismo religioso
do que no mundo judeu ou cristão, facto que determina a sua maior
extensão e a intensidade com que é defendido (Riera, 1996, p. 140).
A Europe Ocidental de finais do século XX vê precisamente no
fundamentalismo islâmico a grande ameaça do futuro, sendo esse
medo o motor de muitos sentimentos xenófobos contra as comunidades
imigrantes muçulmanas aí instaladas. Por vezes, o reforço do
fundamentalismo islâmico é uma reacção a essas manifestações de
rejeição. Tal é o caso da “re-islamização” das jovens gerações de origem
magrebina em França (Riera, 1996, p. 144). Neste caso, a persistência
das condições que tendem à exclusão social dessas comunidades e o
racismo e a xenofobia de que são alvo, não só pelo facto de serem
imigrantes como também por serem muçulmanas, têm atraído jovens, já
bastante assimilados à cultura francesa, para as tradições familiares. A
adopção dos princípios religiosos islâmicos por parte desses jovens é
uma forma de reforçarem o seu sentimento de pertença a uma
comunidade étnica que lhes proporciona segurança e bem-estar, por
oposição à comunidade francesa que muitos deles consideram como sua
sem que essa pertença lhes seja reconhecida.

7.2.2. A interligação entre xenofobia,


fundamentalismos e nacionalismos
A análise dos temas da xenofobia e do fundamentalismo deve, porém,
também ter em conta a sua estreita ligação com o nacionalismo, uma
vez que a identificação a uma nação integra, muitas das vezes, uma
quota parte de exclusão xenófoba e, por outro lado, a identificação
nacionalista levada ao extremo pode resultar em manifestações de
fundamentalismo, onde o motor político se confunde com o religioso.
Nesta perspectiva, a eclosão de manifestações xenófobas e de
fundamentalismos na segunda metade do século XX, pode ser
112

interpretada como uma reacção colectiva de medo face ao futuro,


provocada pelo enfraquecimento do poder dos Estados nacionais a favor
de formas de organização política e económica supra-nacionais, pela
atomização dos próprios Estados mediante a conquista de
independência por parte dos paízes colonizados ou da autonomia por
parte de outros, pelo aumento de conflitos internos às fronteiras
nacionais como consequência da rigidez de fronteiras desenhadas após
a 2ª Guerra Mundial.

7.2.3. A interligação entre xenofobia,


fundamentalismos e conflitos étnicos
Para alguns autores, o enfraquecimento de poder dos Estados e a sua
incapacidade em assegurar segurança e bem-estar para todos os grupos
é uma condição directa para a emergência de conflitos de cariz étnico,
pois faz com que os grupos se organizem com base numa identidade
comum (excluindo portanto os estrangeiros, os outros, aqueles a quem o
“nós” atribui uma identidade diferente) para zelarem pelos seus
interesses (Lake, Rotchild, 1998, p. 8). As manifestações xenófobas e
fundamentalistas são, por sua vez, manifestações colaterais dos conflitos
étnicos ou constituem mesmo factores coadjuvantes na eclosão destes
conflitos.
Se a avaliação que fazem da sua situação por oposição a outros grupos
é desfavorável, facilmente surge o desejo de autonomia como forma de
apropriação de mais poder, tanto económico como político, geralmente
acompanhado pela reivindicação do direito a uma identidade étnica
específica (que tinha sido diluída no conjunto da identidade nacional,
aquando da construção de Estados nacionais multiétnicos).
Encontramos um exemplo desta situação na guerra que eclodiu em 1991
na Jugoslávia: Eslovenos e Croatas ressentiram-se com o sistema de
redistribuição federal às regiões mais pobres do país, tendo surgido
manifestações de insatisfação por parte da população face à política
seguida e que motivaram os passos para as reivindicações de
autonomia; a questão da etnicidade foi aí utilizada para exacerbar a
oposição entre grupos religiosos diferentes, dando origem a uma guerra
pautada pela xenofobia, pelo fundamentalismo religioso e pela questão
nacionalista (Lake, Rothchild, 1998, p. 10). Também os conflitos no
Burundi e no Rwanda, entre Tutsis e Hutus, tiveram por base um conflito
económico provocado pela escassez de recursos, que foi absorvido pela
questão da etnicidade.

7.3. Sexismo
As consequências dos preconceitos sexistas são diferentes para os dois
sexos: as mulheres são as suas maiores vítimas pois dos estereótipos
resultam discriminações e uma posição de subordinação face aos homens. O
termo sexismo é, assim, utilizado mais frequentemente quando nos
reportamos às desigualdades sofridas pelas mulheres.
A análise da desigualdade e da discriminação das mulheres face aos homens
gira em torno de três grandes temas:
• a natureza;
• a família;
• o trabalho.
113

7.3.1. A questão da “natureza feminina”


Para alguns autores, a discriminação das mulheres reside
fundamentalmente nas diferenças físicas e de personalidade que
distinguem e opõem a feminilidade da masculinidade, estando
associadas à primeira traços como a emotividade, a intuição e a
submissão, enquanto que à masculinidade se associa a racionalidade, a
lógica e a dominação. À semelhança do que sucedeu com a discussão e
produção científica em torno da “raça”, a questão do sexo e a
interpretação do binómio masculino/feminino, homem/mulher, foi muito
dominada pelo determinismo biológico e pela sua visão essencialista das
diferenças entre os seres humanos. O próprio ciclo menstrual era
interpretado como um facto da natureza que não podia ser controlado e,
por essa mesma razão, concedia à mulher uma certa irracionalidade.
Assim, o mundo da “natureza feminina” era definido por oposição ao
mundo da lógica e da racionalidade masculinas. Sendo a Ciência obra
de homens – quer na Biologia, na Medicina ou na Filosofia – o universo
feminino vai ser analisado com base em perspectivas androcêntricas:
«(...) Se a experiência e a história masculinas, tal como são entendidas
pelos homens, são dominantes, tendem a transformar-se em experiência
e história universais e, por via da ciência moderna, em verdades
objectivas. (...) Por esta via, o masculino transforma-se numa abstracção
universal, fora da natureza, enquanto o feminino é tão só um ponto de
vista carregado de particularismos e de vinculações naturalistas (...)»
(Santos, 1991, p. 35).

7.3.2. A família como fonte de desigualdades


Outros autores argumentam que a interpretação da desigualdade entre
os sexos dada pela diferenciação biológica é muito incompleta,
argumentando que a origem da discriminação da mulher reside na
organização das sociedades patriarcais, assentes na lei paternal e
sendo a família a sua célula-base. Neste tipo de sociedade, a lei
concede ao homem, enquanto pai e marido, o direito à propriedade
privada, sendo o exercício do poder sobre a mulher e os filhos visto
como uma extensão do direito à propriedade.
A análise marxista dá particular realce à questão da família como fonte
de opressão da mulher, designadamente a família burguesa. Nesta
óptica, as relações pessoais nas famílias burguesas são relações
mercantis, denunciando o casamento como um contrato de propriedade
do homem face à mulher e aos filhos. No entanto, a tese marxista sobre
o capitalismo não permitiu ver que o desenvolvimento acelerado da
industrialização foi um factor de emancipação para a mulher, pois
libertou-a do espaço privado e deu-lhe a possibilidade de entrar na
esfera da produção, entrando também no espaço público da vida social.

7.3.3. As desigualdades na esfera do trabalho


O facto da revolução industrial ter permitido criar postos de trabalho
femininos, que não existiam anteriormente, retirando a exclusividade da
mulher ao espaço do lar, veio colocar a questão da compatibilidade ou
incompatibilidade da feminilidade com o trabalho assalariado. A divisão
entre espaço público e espaço privado que vigorava até aí, é agora
114

desequilibrada pela forte exigência de mão-de-obra por parte do sistema


económico então em desenvolvimento. A mulher trabalhadora tornou-se
assim, no século XIX, um problema: «(...) O “problema” da mulher
trabalhadora, então, era ela ser uma anomalia num mundo onde o
trabalho assalariado e responsabilidades familiares se tinham tornado
ocupações a tempo inteiro e espacialmente diferenciadas (...)» (Duby,
Perrot, op. cit., p. 444). Uma vez que socialmente a função dominante da
mulher é a maternidade, facto que a obriga a interromper a sua
actividade produtiva, os postos de trabalho que ela viria a ocupar não
são especializados e a eles correspondem menores salários.
Adam Smith, um proeminente economista do século XIX, avançou a
noção de que o salário do homem tinha de ser suficiente para a sua
própria subsistência e para a da sua família, enquanto que o salário da
mulher «(...) tendo em conta a atenção que necessariamente tinha de
dar aos filhos, não se esperava mais do que o suficiente para o seu
próprio sustento (...)» (in “The welfare of nations”, citado por Duby,
Perrot, op. cit., p. 456). Por um lado, o salário da mulher é visto apenas
como um complemento do orçamento familiar. Por outro, as profissões
que lhe são destinadas correspondem a funções que são vistas como
compatíveis com a “natureza feminina” e que implicam, na maior parte
das vezes, o cuidar dos outros (função que é entendida como específica
dessa “natureza feminina”), daí resultando o exercício de funções que
podemos designar por “maternidade social” (é o caso, entre outras,
das profissões de educadora, de professora e de enfermeira).
O modo de organização do trabalho no sistema capitalista recorria,
portanto, à visão essencialista das diferenças biológicas entre os sexos
para justificar as diferenças de tratamento entre homens e mulheres. É
esta a base para a justificação da diferença de valor e de remuneração
do trabalho da mulher e é por esta mesma razão que os movimentos
feministas tiveram, e têm, como uma das suas principais bandeiras a
exigência de “salário igual para trabalho igual”.

7.3.4. O novo rosto das desigualdades no


século XX
A 1ª Guerra Mundial permitiu a emancipação das mulheres uma vez que
a mobilização dos homens exigia a sua participação, sem concorrência,
na esfera da produção económica. No entanto, o pós-guerra
rapidamente exigiu o retorno das mulheres ao lar e à função da
maternidade, dada a urgência de restabelecer as taxas de natalidade e
de assegurar o emprego aos homens então desmobilizados.

7.3.4.1. Dois exemplos de sistemas político-


ideológicos sexistas
Encontramos, neste século, dois exemplos extremos da
discriminação das mulheres, fundamentada por sistemas político-
ideológicos:
• a política natalista do regime fascista italiano, comandado
por Mussolini; e
• a política sexual nacional-socialista da Alemanha de Hitler.
115

À mulher era-lhe exigido que procriasse e educasse os filhos da


pátria, contribuindo assim para a aplicação do programa político ao
nível da esfera mais privada da vida em sociedade.
Por seu lado, a política sexual levada a cabo pelo regime de Hitler
está fortemente associada à própria ideologia racista daquele
regime. A preocupação pela “pureza da raça” determinou políticas
antinatalistas baseadas na esterilização sistemática de pessoas
consideradas não válidas, aplicando-se as teorias eugénicas
surgidas no século XIX.

7.3.4.2. Os efeitos da democratização


É com a recuperação económica verificada após a 2ª Guerra
Mundial, concretamente entre 1945 e 1975, que se assiste a uma
cada vez maior democratização do mercado de trabalho, do
acesso à educação (não só para as mulheres como também para
as classes sociais mais pobres) e, consequentemente, a uma
democratização das relações sociais.
No campo da educação, apesar do acesso maciço das raparigas à
escola, rapazes e raparigas continuam a ser orientados para
carreiras específicas, reproduzindo a divisão sexual do trabalho: no
ano lectivo de 1994/5, a taxa de feminização nos ramos do ensino
superior (ao nível dos estudantes matriculados) foi de 79,8% para
as Ciências da Educação e a Formação de Professores e apenas
de 26,2% nas Ciências de Engenharia (CIDM, 1998).
No campo do trabalho, têm surgido nas últimas décadas novas
formas de trabalho que têm vindo a acentuar as desigualdades
entre os sexos. O trabalho a tempo parcial, instituído amplamente
em vários países europeus e com especial relevância nos países
escandinavos, é, na maior parte dos casos, um trabalho feminino,
conservando a diferença salarial entre os sexos bem como a
divisão das tarefas domésticas. A expansão do trabalho
domiciliário resultou num aumento da população feminina activa,
mas sempre numa situação de grande precariedade e em tarefas
vistas como “naturalmente” femininas. Por fim, o trabalho
temporário e os contratos a prazo são o resultado da mais recente
re-estruturação económica, afectando mais duramente as mulheres
e os jovens.
Hoje, as desigualdades são mais encobertas e reproduzidas mais
subtilmente, mas continuam a ser legitimadas por uma
diferenciação essencialista dos sexos. O sexismo
contemporâneo, à semelhança do novo racismo, revela-se com
um rosto multifacetado, onde argumentos naturalistas e
culturalistas se interpenetram para justificar a manutenção de uma
ordem social alicerçada no poder masculino – ao nível económico,
científico, político, jurídico.

7.3.5. As análises feministas e o conceito de


género
Actualmente, podemos encontrar nas análise feministas, que têm vindo a
surgir no mundo da ciência, contribuições pertinentes para a denúncia
116

dos preconceitos sexistas que enfermam o próprio pensamento social e


científico, como também análises inovadoras sobre as relações sociais
entre os sexos, pulverizando o binómio masculino/feminino. Daqui
resulta a construção do conceito de género. A análise das relações de
género insiste no carácter fundamentalmente social e não sexual das
diferenças entre homens e mulheres, rejeitando o determinismo biológico
e destacando, em simultâneo, o carácter relacional e assimétrico entre
os dois sexos – homens e mulheres são definidos em relação ao outro e
já não como dois grupos separados por diferenças imutáveis e atribuídas
naturalmente.

7.4. Atentados aos Direitos Humanos


A Declaração Universal dos Direitos Humanos (assinada a 10 de Dezembro
de 1948) nasce no rescaldo da 2ª Guerra Mundial, simbolizando a vontade dos
Estados com assento nas Nações Unidas de introduzirem um novo quadro
legal que regulasse as relações internacionais.

7.4.1. A ONU e a nova ordem mundial


A Declaração Universal surge como um primeiro passo tomado pela
Organização das Nações Unidas (ONU), constituída em Maio de 1945,
na construção dessa nova ordem mundial. Enquanto que a ONU tem
como princípio fundador a busca e a manutenção da paz mundial, a
Declaração torna claro que este objectivo só é alcançado mediante o
respeito dos direitos humanos.

7.4.2. A evolução dos Direitos Humanos


A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776)
e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) saída da
Revolução Francesa, marcam a “primeira geração” dos Direitos
Humanos, caracterizada pela fase da «proclamação jurídica», que
pretendia garantir no plano formal a dignidade dos cidadãos perante um
Estado de direito e donde resultou a instituição dos direitos civis e
políticos.
A “segunda geração” nasce em meados do século XIX, constituindo a
fase da «socialização», caracterizada pelo reconhecimento de que as
liberdades não estavam garantidas apenas pela sua inclusão na lei e de
que era necessário instituir novos direitos, tais como os direitos
económicos, sociais e culturais. Esta segunda geração dos direitos
humanos corresponde à visão marxista das liberdades e é parte
integrante das Constituições dos Estados socialistas já no século XX.
A Declaração Universal de 1948 nasce na “terceira geração” dos
direitos humanos, a qual corresponde à fase da «internacionalização».
Esta fase é marcada pelo reconhecimento de que a instituição dos
direitos humanos não pode dizer respeito apenas a cada Estado,
internamente, mas tem de constituir uma preocupação mundial e
assegurar os direitos mínimos a todos os povos. Esta nova visão
desenvolveu-se depois da Grande Guerra, mas é após a Segunda
Guerra Mundial que se assiste à sua verdadeira expansão. Esta mesma
geração de direitos humanos vê nascer os «direitos de solidariedade»
após a emergência de novos Estados que tinham alcançado a sua
independência. O subdesenvolvimento que enfrentavam e a exploração
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de que tinham sido alvo pelas antigas potências coloniais europeias


justificavam o seu direito à ajuda internacional.
Podemos resumir a importância da Declaração Universal dos Direitos
Humanos em cinco aspectos (aa.vv., 1998, p. 476):
1. restaurou e consolidou um processo de desenvolvimento legal
que emergiu em algumas sociedades nos séculos XVII e XVIII;
2. alargou e tornou mais consistentes os conceitos de liberdade e
de igualdade, bem como a reciprocidade entre eles;
3. expandiu o conteúdo dos direitos humanos relativamente às
noções tradicionais;
4. instituiu que os direitos são universais e que todos os seres
humanos deles beneficiam;
5. tornou os direitos humanos uma questão fundamental na lei e nas
relações internacionais.

7.4.3. O desrespeito pelos Direitos Humanos


Apesar de se ter evitado, na segunda metade do século XX, a eclosão
de guerras e de conflitos generalizados, não se conseguiu, mesmo nas
regiões onde o impacto foi mais positivo, como na Europa e nos EUA,
assegurar o respeito pelas liberdades e direitos fundamentais de todas
as pessoas.
Os fenómenos de racismo, xenofobia, fundamentalismos e sexismo, que
tratámos anteriormente, são manifestações actuais da incapacidade dos
Estados subscritores assegurarem o cumprimento dos princípios que
aprovaram.
O desrespeito pelos direitos dos povos autóctones constitui uma outra
constante na história da Humanidade, e especificamente na época
contemporânea, tendo resultado no extermínio quase completo de povos
ou na sua discriminação sistemática (por exemplo, nos EUA, e apesar da
proclamação das liberdades fundamentais se ter verificado já no século
XVIII, os Índios Americanos vivem como reféns nas suas reservas,
depois de lhes ter sido negado o direito às suas terras e à expressão
livre da sua cultura). O princípio da auto-determinação dos povos tem
sido permanentemente desrespeitado e é aliás um dos principais
desafios que se coloca à ONU no século XXI.
A situação de crise de poder que a ONU vive actualmente é um dos
sinais visíveis da crise da ordem internacional que o mundo procurou
instituir em 1945.

7.4.4. A tendência actual para o reforço dos


Direitos Humanos
A par dos atentados aos direitos humanos, assistimos, contudo, a uma
tendência para reforçar a defesa de determinados direitos – sobretudo
relativos a grupos minoritários e discriminados, como é o caso das
minorias étnicas e das mulheres – através da criação de novos
documentos legais, em complementaridade com a Declaração Universal.
Uma outra tendência é a da celebração de acordos regionais, como tem
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frequentemente acontecido no quadro do Conselho da Europa, de onde


destacamos três documentos: a Convenção europeia para a
salvaguarda dos direitos humanos e das liberdades fundamentais (1950),
a Carta social europeia (1961) e a Convenção para a prevenção da
tortura (1987).
É pois no sentido do reforço do poder de reivindicação dos cidadãos que
caminham os direitos humanos nas sociedades contemporâneas.

FIM

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