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Rascunho final

EPISTEMOLOGIA COMPLEXA E PSICANÁLISE:

TENSIONANDO AS FRONTEIRAS

Nize Maria Campos Pellanda 1

Luiz Ernesto Cabral Pellanda 2

Introdução

A Psicanálise marca um espaço importante na história da revolução

paradigmática que inaugura o processo de substituição do paradigma cartesiano-

newtoniano pelo da complexidade, processo esse atravessado por rupturas cada vez mais

profundas a partir do século XIX.

Aqui pretendemos refletir sobre o desenvolvimento desse processo de

construção de um novo paradigma e quais as relações desse movimento com a

Psicanálise em termos epistemológicos e ontológicos. Ao definir o inconsciente como o

objeto privilegiado da Psicanálise, Freud, interpretando os sonhos, já começa a provocar

uma reconfiguração epistemológica no campo científico pois esse objeto não se

adequava aos cânones da ciência moderna. A revolução epistemológica em curso vinha

se preparando há algum tempo em função dos novos objetos complexos que emergiam

no seio da ciência. A partir daí, pelas características topológicas e “não coisista” de um

novo paradigma, instaurou-se um processo sempre em aberto e “trans” no sentido do

atravessamento de fronteiras e de expansão permanente. Com essas reflexões nos

situamos no interior da temática desse Congresso: “Working at the frontiers”.

No centro de nossas reflexões colocaremos a questão do sujeito cognitivo nos

dois paradigmas científicos pois as concepções nesse sentido demarcam todo um

posicionamento em relação ao conhecimento e a realidade. Para isso, usaremos como

instrumental teórico os pressupostos do Paradigma da Complexidade a partir de uma

1
Doutora em Educação. Professora da Universidade de Santa Cruz do Sul: UNISC
2
Membro Efetivo da SPPA
2

matriz cibernética com seu desdobramento na Biocibernética (Heinz von Foerster)

incluindo nessa a Biologia do Conhecer de Humberto Maturana e Francisco Varela.

Tentaremos também mostrar que a Psicanálise é uma ciência complexa

devido a dois fatores fundamentais:

- por não fragmentar as várias dimensões do funcionamento dos seres

humanos. Este fato tem implicações epistemológicas e ontológicas

da maior importância uma vez que para nós, no processo

psicanalítico não há separação entre conhecer e transformar-se;

- por ser o psiquismo humano um sistema “longe do equilíbrio” e que

apresenta linguagens paradoxais.

Entendemos por pensamento complexo, apoiados na Epistemologia da

Complexidade de Edgar Morin, aquele que não separa as dimensões da realidade, que

procura juntar o que foi “desconjuntado” pela abordagem cartesiana. Para Morin:

“complexo” é aquilo que se tece junto. (1991) Isso nos remete às questões de rede que

marcam o advento de um novo paradigma cuja característica mais importante é a questão

das relações e não mais da substância.

A emergência de um novo paradigma

No século XIX o aparecimento das equações não-lineares (Matemática) e do

fator tempo como unidirecional (Teoria da Evolução e Termodinâmica) na ciência

começam a balançar as estruturas do paradigma tradicional, deslocando a ênfase da

“causa” para o “processo”. A geometria euclidiana, com sua arquitetura imutável e

axiomática, reinou autoritariamente por dois mil anos. Foi sobre ela que Kant ergueu a

arquitetônica da razão (Bachelard, 1985). Com esse arcabouço ficava muito difícil

atender-se necessidade apregoada por este autor de se construir uma “epistemologia não-

cartesiana” para responder aos fenômenos colocados pelos novos rumos da ciência agora

não mais privilegiando a ordem e a estabilidade mas confrontada com a desordem

(entropia) e a instabilidade. Quando, em torno de 1830, surgiu a geometria não-

euclidiana e, bem mais sarde, o conceito de homeóstase, novos caminhos se abrem para a
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ciência. São caminhos para contemplar a construção, o singular e o oculto. Na primeira

metade do século XX, dois novos campos do conhecimento emergem causando uma

grande comoção: a Física Quântica e a Psicanálise. Ambas têm em comum a

incorporação em seus campos de estudo as seguintes características:

- as características não-aparentes dos objetos;

- o pressuposto de que há uma lógica subjacente que é muito diferente da

lógica identitária, da não-contradição e do terceiro excluído (tanto no mundo do

infinitamente pequeno (subatômico) como no inconsciente);

- o funcionamento calcado em relações.

- a lógica em questão refere-se a um sistema de relações e, portanto,

circular3 (rede) É uma lógica complexa que se apresenta de forma paradoxal e

desubstancializada, o que permitiu chegarmos a uma “epistemologia não-coisista”

fundamental para a Psicanálise como para qualquer ciência do complexo.

O desdobramento desse processo paradigmático passa pela Teoria dos

Sistemas na primeira metade do século XX e vai desembocar na Cibernética. Essa última

surge com o objetivo de estudar os problemas de comunicação e controle, colocando

numa mesma paisagem homens, coisas, natureza e máquinas. No interior desses sistemas

estudados o que emerge são os problemas de autonomia e, por isso, o conceito de auto-

organização situa-se no centro desses estudos.

Cibernética origina-se do vocábulo grego Kybernetes que significa timoneiro.

Norbert Wiener ao cunhar esse termo mostrava toda a sua preocupação com as

estratégias de controle como resposta às questões de autonomia. A analogia com o barco

ressalta o papel do timoneiro responsável pelo sistema/ser vivo respondendo os embates

dos ventos (perturbações externas) que não determinam externamente o desempenho

interno do sistema. Um exemplo: a mesma luz que produz uma imagem no olho de um

animal, produz fotossíntese em um vegetal verde – é a estrutura do ser vivo que

determina o efeito e não o fator externo. Há aí uma implicação cognitiva na medida em

que há uma circularidade entre sujeito e desempenho. Essa interface surge pelo

desdobramento da cibernética na Biologia - a Biocibernética - cujo responsável foi Heinz

3
Por “circular” entendemos sempre “realimentada” (feedback)
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von Foerster. Do funcionamento de um sistema circular nos sistemas não-orgânicos e

orgânicos com complexidade menor (cibernética de primeira ordem) passamos para os

sistemas orgânicos com cérebro superior (cibernética de segunda ordem) onde o

conhecedor trata de conhecer o seu próprio processo de pensamento. É exatamente aí a

interface com a teoria biológica de Maturana e Varela que, por isso mesmo, eles

chamaram de Biologia do Conhecer. O conceito-chave dessa teoria cibernética é o

conceito de Autopoiesis, cunhado por eles. Autopoiesis origina-se do vocábulo grego

poiesis, que quer dizer criação e auto, por si mesmo. O pressuposto mais significativo

dessa teoria é o da circularidade entre ser e conhecer, entre ser e viver, entre produtor e

produto. É precisamente essa lógica circular que junta sujeito cognitivo e ação no

processo de configurar a própria realidade de cada um que resgataremos mais adiante

para pensar a epistemologia psicanalítica.

Essa postura revolucionária que estamos tratando está em franca oposição ao

paradigma tradicional: uma visão da realidade e do conhecimento como um processo de

entradas e saídas que são processadas internamente pelo sistema do tipo “caixa preta”.

Ou seja, nessa ordem de entendimento, o que um cientista faz é captar informações

externas que são consideradas pré-existentes e processá-las de forma “objetiva”. Nessa

perspectiva sujeito e objeto estão separados. No entanto, num paradigma complexo,

informação não é algo que exista por si só, independente da ação do sujeito.

A partir dos anos 50, descobertas perturbadoras emergem com muita força e

abalam ainda mais os velhos alicerces e tensionam as fronteiras da ciência: instabilidade

das partículas elementares, os sistemas longe do equilíbrio e a expansão do universo.

Essas descobertas trazem para o centro da pesquisa científica aquilo que Prigogine

chama da necessidade de não mais negar-se a questão da irreversibilidade e do tempo

construtivo. (Prigogine e Stengers, 1992)

Construção de sujeito/conhecimento na perspectiva do devir

De uma forma genérica poderíamos dizer que a Psicanálise fez uma

importante ruptura em relação ao próprio arcabouço positivista hegemônico no fazer


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científico. Para este, as questões científicas somente poderiam girar em torno do patente

e não do latente, do quantificável e não do qualificável, do verificável e não das

incertezas, do refutável em vez da coerência interna do sistema. Ora, a Psicanálise não

poderia responder a nenhum desses critérios hegemônicos. Freud, na sua genialidade

tentou criar uma ciência que prescindisse de alguns desse pressupostos. A complexidade

da problemática psicanalítica é muito bem caracterizados por Paul Ricoeur:

“O sonho e seus análogos se inscrevem, assim, numa


região da linguagem que se anuncia como lugar das significações
complexas, onde um outro sentido ao mesmo tempo se revela e se
oculta num sentido imediato.” (Ricoeur, 1977, p.18)

Freud, no entanto, não conseguiu dar conta dessa tarefa sozinho. Esse

processo de construção de critérios mais adequados a complexidade da Psicanálise foi

levado adiante por outros psicanalistas que foram reinventando a Psicanálise num

processo de complexificação crescente.

Vejamos agora as principais rupturas e como elas tocam a Psicanálise. A

primeira delas é a questão do devir. Na perspectiva complexa, observamos uma

passagem da atitude topográfica para a topológica. Ou seja, de uma paisagem estática,

topográfica, passamos para uma paisagem em transformação constante onde a forma é

dada pelos movimentos. É exatamente por esse motivo que a lógica aristotélica, que lida
com o objeto imóvel, não responde às necessidades de uma temática complexa. Além

disso, a lógica identitária é sempre igual a si mesma e por isso não dá conta da diferença

que se constitui permanentemente. A vida, em todos os níveis, é produção de novidades.

Se considerarmos essas rupturas sob o ponto de vista epistemológico,

podemos dizer que o sujeito cartesiano universal e alheio ao processo de construção do

conhecimento era um modelo epistemológico inadequado ao método psicanalítico, do

mesmo modo como falhava para qualquer objeto complexo. Freud construiu uma

epistemologia alternativa a esse modelo universalizante apelando para a autonomia e a

singularização. Com isso, ele apenas iniciava um processo muito complexo que viria

tomando forma à medida que se construíam novas maneiras de abordagem que

emergiam com o desenvolvimento do novo paradigma.

Falar em processo de complexificação crescente já significa uma adesão ao


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princípio da irreversibilidade como princípio construtivo no sentido de incorporar o

pressuposto da auto-organização no bojo do próprio processo de construção da

Psicanálise como ciência. Significa também falar num outro nível dessa mesma

realidade onde o processo psicanalítico torna inseparável analista e analisando que

formam um sistema cognitivo no qual o fluxo da interação vai constituindo

subjetividades numa dinâmica intersubjetiva.

Para uma maior aproximação com essa ideia de devir e de singularização

podemos abrir uma interface com a nova física do não-equilíbrio. Com isso, há um

abandono do paradigma clássico que ligava aumento de entropia com tendência da

evolução para a desordem. Prigogine nos mostra uma outra visão da realidade a partir da

irreversibilidade devido ao papel da auto-organização com consequências diretas para o

papel do sujeito cognitivo que não é mais visto como consequência automática de um

funcionamento universal mas comparece com um papel criador e singular. (Prigogine e

Stengers, 1992) O que aparece aqui de forma muito importante é a questão da

inseparabilidade entre as leis que regem o cosmos e as leis que regem os microcosmos

ou sistemas singulares.

Portanto, não se trata mais desse sujeito epistêmico universal, mas de um

sujeito que através das relações (acoplamento estrutural) está continuamente se

construindo e singularizando pelo papel de sua demanda autopoiética. “Acoplamento

estrutural” é um conceito de Maturana e Varela para explicar a relação entre seres vivos

e seu meio, numa dinâmica em que ambos se transformam na relação configurando

constantemente suas estruturas...

A outra ruptura e aquela relacionada com a questão central de um paradigma

relacional, ou seja, a questão do “entre-dois”, das intersecções. Maturana costuma dizer

que a linguagem não se dá no cérebro, mas num espaço relacional. Na constituição de

conceito de Autopoiesis Maturana elabora o pressuposto de que “tudo na realidade

acontece nas conversações” (1997) Com isso, ele está mostrando que é através do

funcionamento do modelo rede dos seres vivos com a inclusão da linguagem nos

humanos que ocorre a configuração da vida das pessoas num “acoplamento estrutural”

permanente. Esse processo, também se dá de forma autônoma numa lógica complexa na


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medida em que as perturbações externas não determinam, mas desencadeiam mudanças

estruturais nos seres humanos.

O correspondente disso em teoria psicanalítica encontramos em Flora Singer

que nos diz: "O "entre-dois" e a contradição parecem representar assim a força e o

estatuto ontológico da teoria psicanalítica”. (Singer, 1987.p. 74)

Por tudo isso, é preciso repensar o papel do psicanalista como um

organizador de um espaço relacional no qual seja possível a construção de autonomia

num “acoplamento estrutural” onde analista e analisando realizam suas autopoiesis num

processo de mútuas perturbações. Para Bion (1979), o conceito de perturbação era muito

importante: “Quando duas pessoas se encontram cria-se uma tempestade emocional.”

O lugar da Psicanálise na revolução paradigmática

Até que ponto a Psicanálise incorporou (ou antecipou?) no seu processo de

desenvolvimento os pressupostos cibernéticos, termodinâmicos e autopoiéticos?

Francisco Varela, falando de uma perspectiva autopoiética diz que: “A Psicanálise seja

talvez a disciplina mais familiar e próxima aos ocidentais que tende a uma visão

pragmática e sempre aberta em direção ao conhecimento.” (Varela et alii, 1991, p. 31) O

mais importante, porém, é que a Psicanálise lida com conflitos, portanto, com

turbulências o que a coloca em franca oposição com a preocupação com a “ordem” da

ciência cartesiana.

Tudo indica que os psicanalistas percorreram caminhos muito diversos.

Depois de Freud, um grupo majoritário optou pela formalização e deslizou novamente

para uma postura clássica, aparentemente sucumbindo ao chamamento do Círculo de

Viena que alertava para os riscos de atravessar o Rubicão epistemológico. Outros, numa

variante, trataram de pragmatizar suas relações com a sociedade local, adotando seus

valores indiscriminadamente. Jacques Lacan sacudiu a roseira com seu “retorno a Freud”

dando importantes contribuições, mas perdeu-se nos emaranhados estruturalistas,


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esquecendo o sujeito e, como consequência, dispersando-se em sua prática clínica. Aliás,

todos estes, formalistas, estruturalistas e pragmatistas, se caracterizam justamente por

perder o sujeito, “jogando fora o nenê com a água do banho”, como dizia Freud (1910),

pelo fato de escotomizar uma porção significativa da realidade. Ao “voltar a Freud”

Lacan perde o bebê-sujeito no caminho... Morin é mais explícito:

“…as ciências humanas retalharam e ocultaram o humano


enquanto tal, e os teóricos do estruturalismo chegam mesmo à
presunção de pensar que era preciso dissolver a noção de homem.”
(Morin, 1999, p. 22)

Um grupo de importantes pensadores psicanalíticos optou por seguir a Freud

de forma original, não apenas aprofundando conceitos do mestre, mas criando

pressupostos paradigmáticos no sentido da elaboração de dispositivos conceituais e

metodológicos para lidar com realidades complexas. Entre eles, Melanie Klein, Wilfred

Bion e Ignacio Matte Blanco.

Quando Melanie descreve a identificação projetiva está chegando ao

paradigma relacional, embora afirmando que apenas segue Freud às últimas

consequências. Apesar de que afirme e reafirme isso, na verdade ela está criando novos

conceitos que ultrapassam a fronteira do paradigma instintivo original de Freud.

Atribuindo ao recém-nascido uma competência cognitiva, ainda que rudimentar, está

antecipando por décadas esta constatação corriqueira nos dias atuais de que um bebê de

poucos minutos de vida “sabe” que tem uma língua como a do pai que a mostra para ele e

imita o gesto, pondo para fora a sua língua também (Klaus & Klaus, 1985), o que implica

em presença, nesse nenê, de memória e volição, inadmissíveis na teoria clássica ortodoxa.

Matte-Blanco é um pensador que transita entre dois mundos: embora seja

extremamente formal como lógico, inaugura um novo olhar sobre essa mesma lógica ao

“inventar” sua bi-lógica, segundo ele, a forma natural do ser humano apreender a

realidade e lidar com ela. A lógica peculiar ao inconsciente, dita "simétrica", encontra-se
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muito além da formal, da lógica aristotélica, chamada por ele de "assimétrica". Com isso,

situamos esse pensador no paradigma da complexidade uma vez que ele está lidando com

duas lógicas aparentemente paradoxais.

O leitor desavisado encontra muitas dificuldades em suas primeiras

aproximações ao seu “Unconscious as infinite sets” (1975): seu estilo minucioso,

repetitivo, construindo tijolo por tijolo uma teoria extremamente complexa, afasta

aqueles menos ligados ao seu profundo sentir, parecendo devanear sobre futilidades

quando na verdade está mostrando o momento exato da construção do conhecimento ao

ocorrer a discriminação.

Talvez o especto mais revolucionário de sua contribuição, ainda pouco

valorizada, seja justamente essa percepção de que seres humanos somos máquinas de

catalogar, de generalizar, de perceber pelo conjunto e não pelo detalhe. Aprendendo a

discriminar eu de não-eu, vamos “sendo” novos sujeitos num devir evolutivo de

produção de diferença. Conhecer é ser, e vice-versa sendo que, nesse processo, o

pensamento lógico não é o fator mais importante para a construção do conhecimento.

Citando Matte-Blanco, diz Juan Francisco Jordan:

“O inconsciente conhece apenas classes: não pode conhecer


indivíduos. Na teoria de Matte-Blanco pensamentos, sejam
conscientes ou inconscientes, são vistos como uma atividade
proposicional da mente. Confrontada com um objeto, que se
apresenta a ela como um conjunto de sinais, a mente trata de
classificá-los dentro de um conjunto infinito, (o resultado) emergirá
como uma emoção. Por isto Matte-Blanco tão prontamente cita
Pascal: “O coração tem suas razões, que a razão não compreende”.
E adiante: (...) a emoção pode ser concebida como uma atividade
cognitiva que possui sua própria lógica” (Jordan, 1992)

Matte-Blanco resgata o papel da ação e da emoção mostrando que nós

somos constituídos e ao, mesmo tempo, constituímos realidade num processo de vir-a-ser

rumo ao infinito. Esse resgate se dá tanto sob o ponto de vista ontológico como

epistemológico.
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Nesse contexto de turbulência onde se situa a transição paradigmática,

encontramos Wilfred Bion dentro do cenário psicanalítico. Turbulência é uma palavra-

chave em Bion pois ele rompe com uma lógica linear afirmando ao longo de toda a sua

obra uma complexidade. Quando ele fala de mudança catastrófica não está somente

inserido num pressuposto caótico (“order from noise”) como também está ao mesmo

tempo articulando de forma profunda o conhecer com o ser. A presença de uma ideia

nova, por exemplo, que tem um potencial “disruptivo” muito grande, perturba todo o

conjunto da personalidade com implicações epistêmicas e ontológicas. Isso nos leva a

perceber a inseparabilidade do ser~conhecer sobre a qual temos insistido ao longo de

todo esse artigo. Bion fala sobre isso em “Transformações”: “A realidade tem que ser

“sendo”: deveria existir um verbo transitivo “ser” expressamente para uso com o termo

“realidade.” (Bion, 1965, p. 174)

Esse imbricamento sujeito-objeto pode ser inferido da metodologia

bioniana. Podemos ilustrar isso com suas próprias palavras: “Na metodologia

psicanalítica o critério [de validade] não pode ser se um procedimento particular está

certo ou errado, significativo ou verificável, mas antes pelo fato de ele promover ou não

desenvolvimento.” (Bion, 1977, Introduction). Aqui fizemos uma ponte com von

Foerster que pensa numa metodologia cibernética: “Não seria acaso recomendável

renunciar ao critério de Popper e buscar princípios que se confirmem na práxis?” (von

Foerster, 1996, p.130) Não é isso que Bion sugere?

Bion propõe o uso de modelos para pensar a Psicanálise em busca do

“aparelho de pensar pensamentos”. Esses modelos são pensados de maneira intrincada.

Através deles podemos identificar todos esses pressupostos que estamos discutindo aqui,

inclusive a presença da autonomia sinalizando que esse estudioso se situa num paradigma

da auto-organização. Esse é o caso da “grade”, por exemplo, uma proposta de

instrumento metacognitivo que nos mostra uma autoria/autonomia, quando ele sugere que

cada um pode/deve construir sua própria grade. Ela também demonstra uma tendência a
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uma complexificação ascendente de crescimento rumo a O na medida em que aumenta,

pelo exercício da metacognição, o poder de autonomia/liberdade dos sujeitos. Muniz de

Rezende expressa muito bem essa dimensão da obra de Bion com as palavras: “A

expansão do universo dá-se a partir de um começo real que não é apenas físico-material,

mas inclui a própria inteligibilidade do processo.” (Muniz de Rezende, 1994, p.12) A

postura não cartesiana de Bion (Cogitations) é evidenciada em sua crítica à Descartes

quando mostra que o fracasso de Descartes está ligado à essa impossibilidade de duvidar

da dúvida , ou seja, de inserir-se na “cibernética de segunda ordem”.

Nesse sentido, “Second Thoughts”, obra na qual esse autor faz uma

reflexão sobre o caminho percorrido nos parece ser um exercício de metacognição. Por

isso ele diz, então, que a Psicanálise é pequena demais para conter o pensamento

psicanalítico, sempre em expansão.

A partir da teoria da Autopoiesis, podemos dizer que temos trabalhado com

uma concepção ampliada do conhecimento para muito além de um fenômeno centrado

num ego específico e considerado apenas na sua dimensão intelectual e substancializada,

indo em direção a um processo de constituição de realidade onde o ser é inseparável do

processo de conhecer-se e de fazer-se. Não há transmissão de conhecimento, mas


aprender é inevitável. Mudar isso como? Por refazer cada experiência, por “reinventar a

roda” a cada momento nessa interação só possível no “setting” psicanalítico, que imita a

vida sob condições peculiares. Tudo isso nos autoriza a reafirmar que entendemos o

processo psicanalítico como uma dupla auto-análise que se desenrola em espirais

intersectantes no melhor estilo cibernético. (Pellanda, 2001)

Considerações finais

Voltando ao começo, circularmente, queremos retomar as questões as quais

nos propusemos: o processo de constituição de um novo paradigma afetou a Psicanalise


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e foi por ela afetado na medida em essa ciência surgiu no bojo de um paradigma

complexo , com um objeto complexo . Para responder suas demandas epistemologicas

lançou e tem lançado mão de dispositivos teóricos e metodológicos que ultrapassam cada

vez mais as fronteiras da ciência psicanalítica.

E esse atravessamento de fronteiras vai ainda mais longe: tem a ver

também com o próprio paradigma de construção no sentido autopoiético de “criação de

realidade”. O universo, como mostram as novas teorias cosmológicas, está em expansão

para sempre. O ser humano, como um microcosmos que contém o cosmos, também esta

em expansão para sempre so sentido da complexificação crescente que vai criando com

seus “sistemas adaptativos complexos”. Poderíamos dizer então, que a aprendizagem, a

informática o próprio processo psicanalíticos são sistemas adaptativos complexos. O que

limita essa expansão? O papel engessador do formalismo que nega a interação como

dispositivo fundamental da constituição de sujeitos e de conhecimento. Nessa

perspectiva, poderíamos afirmar que seria a falta de amor que garantiria a manutenção

dos elos da rede vida. Para Maturana: “O amor não e uma questão trivial” .(Maturana,

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