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A TEORIA GERAL DOS SISTEMAS


Enrique Guang Tapia1

Como logo pode se perceber, a teoria geral dos sistemas, por sua linguagem e seus objetivos de
estudo é uma teoria que segue uma história paralela à da comunicação humana. Seu nascimento
e desenvolvimento seguem o passo do advento das ciências modernas e é um de seus
instrumentos. Para um ordenamento lógico, começaremos revisando os antecedentes históricos
dos sistemas gerais, a seguir a teoria dos sistemas humanos, as definições abstraídas e, por
último, se fará a análise dos conceitos e postulados mais relevantes, com vistas à sua utilidade
para o estudo da "higiogenia" da família.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS DA TEORIA GERAL DOS SISTEMAS:


Antes da Segunda Guerra Mundial, apenas podemos apontar alguns indícios do conceito dos
sistemas aplicados a disciplinas como a biologia e economia, entre outras. Varias coisas
ocorreram a partir de então, até chegar no presente com um corpo de teoria que segue em
desenvolvimento.

Bertalanffy, na época do pós-guerra, começou a perceber que em muitas disciplinas se dava um


denominador conceitual comum a respeito dos sistemas, que podia integrar em um isomorfismo
formal. Ele entendeu como o fato de que uma abstração geral se poderia aplicar a distintos
fenômenos e assim surgiu o que hoje se conhecem como a teoria geral dos sistemas, que não é
outra coisa que uma abstração de sistemas particulares com a convicção de que se pode aplicar
a toda disciplina. Quando Bertalanffy considerou as similitudes dos sistemas particulares, abriu
o caminho para uma teoria dos sistemas humanos, com aplicação ao estudo da conduta. A
denominação continua sendo dos sistemas gerais, mas entendendo-se que tem aplicação
particular.

A teoria dos sistemas gerais tem afetado a todo o realizar científico, sobre o que faremos
algumas breves alusões. Na ciência geral, a teoria dos sistemas começou a ocupar o lugar das
teorias baseadas na termodinâmica; na psicologia tomou o lugar dos modelos mecânicos.
Enquanto a dialética na ótica da física e da biologia separou o pensamento da substância,
qualidades e propriedades, a teoria dos sistemas reconquista este terreno. Laplace conduziu a
um pensamento atomista, a teoria dos sistemas chama atenção para a visão totalista, para a
organização complexa.

Seguindo a pesquisa do itinerário desta teoria encontra-se no caminho que, tanto a cibernética
como a teoria da informação (Wiener e Shannon, 1945) surgiram juntas com a teoria dos
sistemas gerais e em colaboração recíproca. Deve entender-se então que os objetivos dos
investigadores dos sistemas gerais era descobrir diferenças estruturais entre sistemas distintos,
mas, ao mesmo tempo, encontrar semelhanças. As abordagens que fizeram cada uma destas
áreas podemos resumir assim: a teoria da informação moveu a atenção do evento e o objeto
para a informação mesma; a cibernética fez uma revolução industrial, particularmente por haver
desenvolvido os sistemas digitais de calculo; a teoria dos sistemas provocou uma virada na
perspectiva científica (Buckley, 1977).

No que diz respeito em particular à psicologia e os avanços pós-guerra, as áreas da cibernética,

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Enrique Guang é pastor e psicólogo, com especialização em terapia familiar, membro fundador de EIRENE e
reside atualmente na Costa Rica.

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comunicação e teoria dos sistemas deram o golpe mortal nas velhas aspirações de equiparar a
psicologia com as ciências físicas e químicas tendo como base a energia. Naquele momento, a
energia parecia ser a ponte lógica entre a informação condutual e a física e a química.
Entretanto o erro estava em que a energia não era a ponte correta. A teoria dos sistemas, aplicada
aos sistemas humanos e o estudo da conduta, têm uma nova ponte que se chama comunicação
e que chegou a ser aceita em grau irreversível.

Neste mesmo intento de esclarecer as vertentes donde procede a teoria sistêmica temos que
fazer justiça à corrente estruturalista, que em outro momento, ao definir a família, fez referência
a Levi-Strauss. Para Levenson (1974), a palavra “globalidade”, “totalidade” são fundamentais
no estruturalismo, do qual seu sentido se reproduz na teoria dos sistemas. Por outro lado, este
mesmo autor concebe que o caminho da ciência atravessou três paradigmas:

a) Das máquinas de trabalho, que recebe o nome de “paradigma mecânico”, que


engloba todo o complexo sistema da mecânica manual, combustão e elétrica.
b) Das máquinas de informação, o qual chama de “paradigma comunicacional”
cuja origem remonta a Segunda Guerra Mundial e baseia-se na tecnologia
eletrônica (Shannon e Wiener), que atualmente encontram-se no seu auge.
c) Organísmico, que não é outra coisa que a conseqüência desta era saturada de
tantos avanços. Trata-se de haver criado um grande cérebro extrapessoal, uma
complexa rede cujo fundamento é a vida em si mesma, que não depende da
máquina, da tecnologia, mas de um mundo biológico, mundo enquanto
organização.

A abordagem que fez Levenson com esta análise nos mostra o grande valor que tem o estudo
da teoria dos sistemas, porque toma sentido somente se o faz sobre o marco de um todo; porque
provê o instrumental para a compreensão da conduta humana. O estudo da família, seu
complexo meio e o entendimento dos fatores que condicionam suas condutas, nada melhor que
investigá-lo como um sistema orgânico, capaz de agir e reagir. É aqui onde se cumpre a
definição de Abbate, no sentido que nenhum elemento do sistema pode ser modificado sem que
se modifique o resto.

A respeito das abordagens contemporâneas da teoria sistêmica, a primeira e mais produtiva no


que diz respeito a publicações é a do grupo integrado por Watzlawick, Haley, Beavin, Jackson
e Batenson. Somam-se a estes os nomes de Minuchin, Bowen, Montalvo e outros mais. Para
citar um exemplo da dificuldade que seria intentar uma revisão de todas as abordagens nesta
linha de teoria sistêmica, uma revisão da obra de Haley (1980), traz uma lista de 42
colaboradores, dos quais, mesmo que todos se digam sistêmicos no sentido pleno da palavra,
investigam a família a partir de alguma concepção implícita ou explícita da teoria sistêmica.
Por exemplo: Minuchin utiliza mais o termo “interpessoal”, mas com esta linguagem trabalha
sobre a base da teoria sistêmica, além do que no prólogo de seu livro define-se como Sistêmico.
Entre as investigações mais recentes, as quais são feitas no intuito de submeter à prova a teoria,
dispomos de vários experimentos e trabalhos de campo, correspondentes a três continentes e
que tem se fundamentado no conceito de família como um sistema, onde as pessoas interagem,
utilizando para isto a comunicação. Cada investigação consta de hipóteses, procedimentos,
esquemas, instrumentos utilizados e o nível de significação alcançado. Para fins do presente
tema somente selecionamos aqueles trabalhos que relacionam a higiogenia e a família. Por outro
lado, não existem autores “sistêmicos puros”, o que torna difícil relacionar seus trabalhos nesta
seção ou na seguinte. A razão é simples: assistimos a um evento de integração de teorias, e ao
redor da teoria da interação integram-se trabalhos que estão relacionados com a teoria da

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comunicação ou com a teoria sistêmica. Quando são trabalhos tipo artigos, estão documentados
nos representantes da teoria sistêmica.
DEFINIÇÃO DA TEORIA GERAL DOS SISTEMAS :
Os representantes da teoria geral dos sistemas, quando procuram elaborar definições da mesma,
geralmente referem-se a Hall e Fagen (1956) os quais definem como: “Um conjunto de
objetos, assim como de relações entre os objetos e entre seus atributos”. Uma definição
expressa nestes termos requer muita elaboração, o que intentaremos nos parágrafos seguintes.
Primeiro temos que esclarecer que a definição tal como a oferecem Hall e Fagen é aplicável a
uma disciplina como a economia ou a biologia, mas não a seres humanos. Este segundo passo
se consegue mediante uma elaboração com as abordagens de outros teóricos.

Na definição original, os objetos são os componentes ou partes do sistema; os atributos são as


propriedades dos objetos; e as relações mantêm unido o sistema. Com este esclarecimento
necessário, onde se deixa estabelecido a que se refere cada termo, já é possível dar o passo em
direção aos sistemas humanos. Para uma perspectiva de integração com a teoria da comunicação
humana, faremos referência ao que afirmam Berenstein (1978) e Watzlawick (1976). Estes
autores entendem que originalmente, quando se elaborou a teoria dos sistemas; enquanto seus
componentes básicos operavam como denominadores comuns em outras ciências, a aplicação
aos sistemas humanos era um fato. Por esta razão afirmam: “Assim, embora os 'objetos' possam
ser seres humanos individuais, os atributos com que esta obra os identifica são suas condutas
comunicacionais”. Com clara intencionalidade afirmam o aspecto comunicacional para não ser
confundido com energia intrapsíquica. Em outro intento para que as teorias comunicacional e
sistêmica desempenhem um papel de integração conceitual, sugerem que a melhor maneira de
referir-se aos “objetos” da definição original, é denominar pessoas, já que como tais é mais fácil
ver sua interação comunicacional com outras pessoas. Notar-se-á que de forma natural as duas
teorias mencionadas até aqui, fazem integração com uma terceira, a teoria de interação, que
será a terceira escolhida para este trabalho. Outra conseqüência que se deriva da mudança de
objetos por pessoas, é que o termo “relação” perde sua ambigüidade e ganha sentido no
contexto de pessoas. Isto não elimina o fato que o conceito “relação” é legítimo na aplicação
da teoria a outros tipos de sistemas.

Por outro lado, Abbate (1978), interpretando a Hall e Fagen (1956), faz notar que um sistema é
um conjunto no qual nenhum dos elementos pode ser modificado sem provocar uma
modificação dos demais. Claramente se observa que Abbate enfatiza a natureza da integração
dos elementos de um sistema, algo que analisaremos mais adiante.

Seguindo na linha de definições de sistema, se este se tratar de uma indústria, afirma Abbate,
existe outro ângulo de análise, o qual será desde a perspectiva da produção: a entrada é a matéria
prima; o processo, todo o complexo trabalho de fabricação do produto; a saída é o produto
elaborado. Transportada esta analogia ao campo psicológico e particularmente ao âmbito
familiar, o itinerário se cumpre, mas, entrando mensagens, elaborando respostas e saindo
mensagens. Watzlawick (1976), por sua vez, enfatiza que o mais importante não está no
conteúdo da mensagem, antes no aspecto relacional, ao que denomina “o aspecto conativo da
mensagem” em seus axiomas.

Por corresponder mais à definição que aos conceitos (ainda que uma adequada definição baseia-
se em conceitos), temos que assinalar que o fator médio joga um papel fundamental na
definição. O problema está em delimitar quando um objeto é parte do sistema e quando é do
meio no qual o sistema subsiste. Parece que o único critério, todavia relativo, é aquele que
mediria a reação do objeto frente a um sistema, como indicador se é ou não parte do mesmo.
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Todavia, como se verá mais adiante, esta divisão entre sistema e meio não está de todo
esclarecida. Por um lado, tanto o sistema como o meio formam o universos de interesse de um
dado contexto, pelo que a subdivisão entre sistema e meio é mais de caráter arbitrário.
Entretanto o reconhecimento desta ambigüidade aborda um conceito valioso, que todo sistema
pode ser dividido em subsistemas, como se verá na exposição dos conceitos fundamentais da
teoria.

Utilizando os argumentos de Buckley (1977), quando intenta clarificar mais o que se deve
entender por um sistema na fase posterior a Hall e Fagen, se deduz que as diferenças
substanciais entre sistemas residem no modo como cada um se encontra organizado, nos
mecanismos e na dinâmica particular das inter-relações das partes entre si e com o meio; nos
componentes que devem fundamentar qualquer tipo de conduta que tende a consecução de
objetivos. Esta é a grande diferença entre um sistema cibernético e o ser humano ou o grupo.

Para concluir esta parte, cabe uma indicação a mais: a denominação “sistemas gerais” refere-se
à situação compartilhada de elementos comuns a todas as disciplinas, de modo que se pode
sintetizar a teoria dizendo com isto que seus princípios são aplicáveis universalmente. Todavia
ao referir-se à família, no âmbito da psicologia, pode-se falar simplesmente da teoria dos
sistemas, a família como um sistema, etc...

CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA TEORIA DOS SISTEMAS: ESTUDO DE SEUS


ATRIBUTOS
A teoria geral dos sistemas e dos sistemas humanos em particular, como qualquer outra teoria,
tem seu corpo de conceitos que a identifica e explica. Nesta parte faremos uma revisão daqueles
que são de maior relevância para o estudo da higiogenia da família. Por razões de metodologia,
faremos alguns agrupamentos de conceitos afins. Por conseguinte, difere a ordem do que é
classicamente apresentado pelos teóricos dos sistemas.

SISTEMAS E SUBSISTEMAS:
A teoria geral dos sistemas aplicada ao estudo da indústria qualifica o todo como um sistema
industrial; mas permite fazer subdivisões de tal complexo, de sorte que seu manejo torna-se
mais funcional. Os subsistemas seriam: departamento de pessoal, seção de matéria prima,
produtos elaborados, etc. Esta analogia aplicada aos sistemas humanos, particularmente à
família, permite considerar a existência de subsistemas humanos, sem romper a unidade do
sistema familiar. Este atributo do sistema evidencia a eficácia da teoria para a análise dos
sistemas mais complexos que se possam imaginar.

Concretamente o estudo do sistema familiar implica em dispor de um instrumento de análise


ágil. Cada pessoa pode ser um subsistemas; da mesma forma os pais, os filhos, agrupamentos
por sexo, por gerações, constituem os subsistemas (Minuchin, 1979). Do ponto de vista do
estudo da patologia da família, ao nível de teorias comunicacional, sistêmica ou interacionista,
tem-se observado a configuração de subsistemas patógenos, com claro caráter defensivo.
Minuchin, ao observar a existência de subsistemas, descreve três tipos de limites ou áreas de
relação entre eles: os rígidos, que resistem à influência dos outros subsistemas; os normais,
que mantêm a comunicação com os outros; e os confusos, cuja descrição é difícil de efetuar.
Para fins de estudo dos fatores que facilitam a saúde da família ou provocam a neurose da
mesma, o estudo dos subsistemas familiares, a natureza de suas áreas de relação com os outros
subsistemas, é sumamente relevante.

OS SISTEMAS: ABERTOS OU FECHADOS

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O atributo de abertura do sistema perante o meio onde subsiste é algo que compete a três teorias:
sistêmica, comunicacional e interacionista. Quando se procura definir um sistema humano, o
único qualificativo que lhe corresponde é o de sistema aberto. Os sistemas humanos, em
particular, e os orgânicos, em geral, são sistemas abertos, pelos simples fato que se nutrem da
matéria, informação, energia e outros elementos que o meio lhes provê.

Por definição, então, a família é um sistema aberto e o mesmo que se diz dos sistemas em
relação ao meio, temos que dizer de um subsistema em relação a outro subsistema e destes em
relação ao meio. Aqui se aplica adequadamente o primeiro axioma da comunicação humana:
“Não é possível não se comunicar”; e esta é a razão para a abertura natural dos sistemas
orgânicos. Por outro lado, por mais rígido que seja a borda de um subsistemas em relação aos
demais - e a comunicação de alguma maneira se empobrece - existe comunicação; existe um
intercâmbio de informação, ainda que não seja necessariamente do tipo digital, mas analógico
e, por conseguinte, modificam-se os subsistemas.

O atributo de sistema fechado não é compatível com os sistemas orgânicos nem sociais;
corresponde a determinados componentes químicos, os quais, por sua própria natureza, não
devem intercambiar nenhum tipo de elemento.

O CONCEITO DE TOTALIDADE E NÃO SOMAÇÃO


De certa forma este conceito, ainda que aborda novos elementos, complementa os anteriores.
Ao falarmos de sistemas e subsistemas, damos uma espécie de desagregação funcional para
efeito de análise, todavia sem a intenção de romper a unidade, nem contradizer a essência
unitária de um sistema. Por um lado existe a necessidade de entender a família em termos de
subsistemas, isto é, para a identificação própria das pessoas. Por outro lado, a funcionalidade
não deve atentar contra o sentido mais restrito de solidariedade, interação, inter-relação, que é
realmente o que faz com que o ser humano torne-se humano. Nesta perspectiva, os subsistemas
não são a contradição do sentido de totalidade.

Para esclarecer mais este sentido de totalidade, Watzlawick introduziu um conceito polarizante
para ilustrar. O contrário de totalidade é o "amontoado", e este é a soma das coisas. Então,
amontoado não é equivalente ao conceito sistêmico de totalidade. Um amontoado de maçãs,
que somadas dão 10.000, não forma um sistema. Transportando esta figura aos sistemas
humanos, um grupo de pessoas não constitui um sistema, a menos que ocorra previamente uma
serie de vivências. A analogia ao corpo humano esclarece ainda mais a idéia de um sistema. O
corpo humano não é um amontoado de órgãos, mas a interação, inter-relação, comunicação
perfeita entre os mesmos. Entre os conceitos de totalidade e somatividade existe tanta
semelhança quanto entre um organismo vivo e um amontoado de maçãs.

Outra ilustração que utilizam os autores mencionados é a que se deriva do conceito psicológico
de gestalt, para enfatizar o caráter da totalidade de um sistema. Na química existem figuras que
ilustram a diferença entre totalidade e somatividade. Os elementos químicos como carbono,
hidrogênio, analisados unitariamente, não tem mais curiosidade e relevância do que já se
conhece. Entretanto, analisados em forma de compostos químicos, ou seja, em conjunto, nos
ilustram o que significa alterar um de seus elementos e sua correspondente alteração do todo o
composto e do produto que tal fórmula representa.

Tudo isto transportado ao estudo dos fatores sócio-ambientais da família, operacionalizados


como fatores higiogênicos ou patogênicos, nos conduz às seguintes conclusões:
a) Que tanto a saúde como a enfermidade se produzem no sistema e não no

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indivíduo.
b) O indivíduo, emergente ou porta-voz de uma patologia, não o é de si mesmo,
mas do grupo. Dito em outros termos, não existe parte enferma e parte sã, mas
um sistema que acusa um problema, do qual alguém está sendo o porta-voz. Para
ilustrar esta última afirmação, tomaremos um exemplo de Berenstein (1978): um
membro familiar A não pode dizer que se sente enfermo por causa da conduta
de B. Se a família está composta de A, B, C, D e E, realmente A estará enfermo
por causa da conduta de B, C, D e E, incluindo também A. Isto significa que
segundo o conceito de totalidade da teoria dos sistemas, não é possível que A
apareça como a "vítima" e os demais como os "carrascos". Se perguntarmos a
B, C, D e E acerca da conduta de A e como isto lhes afeta, o mais provável é que
contarão seus sofrimentos decorrentes do comportamento de A.

RETROALIMENTAÇÃO E HOMEOSTASE
O primeiro conceito - retroalimentação ou feedback - é compartilhado pela teoria da
comunicação humana. Dentro do espectro de conceitos da teoria dos sistemas cumpre, entre
outras coisas, a função de responder a uma pergunta crucial. Por exemplo: se a soma das coisas
não constitui um sistema, o que então constitui um sistema? Em outras palavras, se as partes de
um sistema não estão relacionadas de forma somatória, no que se baseia sua unidade? Uma das
respostas dadas no passado foi que a energia unificava o sistema. Com o advento da cibernética
e seu conseqüente descobrimento da retroalimentação, o conceito de energia como elemento
unificador do sistema mudou para a comunicação, veiculada pelos elementos de
retroalimentação e da circulação da mesma. Estes dois princípios são os pilares das teorias
sistêmica e interacionista.

Em síntese, o que unifica um sistema é a comunicação, ao que se deve associar os conceitos


vistos anteriormente nos axiomas de Jackson, que toda conduta é uma mensagem. Assim
quando um sujeito muda de conduta e com tal mudança afeta aos demais do sistema, as
mensagens dos afetados, quer sejam elas positivas ou negativas, constituem o conceito de
retroalimentação. Este constante dar e receber mensagens é o que unifica ao grupo. Mais adiante
a este processo de entrega/recepção de mensagens se dará o nome de interação, cuja teoria se
desenvolverá amplamente. Lembremos também da ilustração de Jackson, do pontapé na pedra
e no cachorro: a pedra roda porque lhe é transferida energia; o cachorro morde, como reação,
porque lhe é transmitida uma mensagem.

Em relação ao conceito de homeostase, termo que significa duas coisas:


a) Manter o status quo, ou seja, uma constância frente à mudança, em cujo caso a
homeostase é um FIM.
b) Exercer retroalimentação negativa para manter o status quo, em cujo caso a
homeostase se converte em um MEIO.

Para tornar claro este conceito, devemos retornar ao conceito de retroalimentação: o membro
A de uma família muda sua conduta e esta mudança desestabiliza (afeta) aos outros elementos
do sistema familiar. Por exemplo: sentindo-se autônomo, decide voltar muito tarde todas as
noites para casa. Diante desta nova conduta de A, surgem as reações (retroalimentações) e
algumas podem ser positivas, são as que no caso irão apoiar a nova conduta de A, e o sistema
se desestabiliza ainda mais. Outras podem ser negativas, procurando opor-se à mudança de A,
a fim de manter a estabilidade do sistema. A este último esforço, denomina-se homeostase como
MEIO para manter o status quo. A este tipo de homeostase chamamos "pura" e tem sido
questionada se, apesar da retroalimentação negativa, produzem mudanças; e apesar das

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mudanças, a família não necessariamente perde a estabilidade - não desintegra-se - como
poderia supor-se. Desta forma o conceito de homeostase como um fim, isto é, manter a
constância, o status, o equilíbrio das forças internas e externas, é o que continua em vigência.
(Bowen, 1980; Hoffman, 1980).

Quando o termo homeostase é utilizado na perspectiva de MEIO para manter o status quo, por
um lado está a ameaça da enfermidade, que tem que ser eliminada de qualquer forma; por outro
lado surge o desenvolvimento, mas existe rigidez à mudança, pois a família prefere o status quo
e atua com retroalimentações negativas. Por último temos que destacar que a família está em
equilíbrio quando cada membro está em equilíbrio. Mas este equilíbrio pode ser são,
desenvolvido, como pode ser patológico, isto é, mantendo um status patógeno.

CALIBRAÇÃO
O termo foi introduzido por Batenson (1961), como um esforço para explicar o equilíbrio que
alcançava uma família diante de retroalimentações positivas, negativas e outros mecanismos.
O duplo uso do termo homeostase obscureceu uma capacidade fundamental do ser humano para
a variação sem desequilibrar-se. A esta capacidade denomina-se calibração. Suponhamos que
uma família está "regulada" para viver um X status quo, como o termostato calibrado para
manter 20 graus na temperatura ambiente. Ocorre então uma subida ou uma baixa na
temperatura externa. O termostato calibra até colocar-se de acordo com o nível "regulado". O
conflito aparece quando se necessita regulá-lo mais alto ou mais baixo que o grau de
temperatura habitual. Ali se coloca à prova a capacidade calibradora do sistema. Este
experimenta alterações; as retroalimentações continuam sendo as mesmas; existem razões que
impossibilitam colocar de novo o termostato a 20ºC. Somente permanece a capacidade
calibradora do sistema.

Aqui entra em função um procedimento escalonado, dando passos progressivos de ajuste até
obter o ajuste do sistema à nova regulação. Esta analogia serve para observar a família em um
constante calibrar-se às novas regulações. O crescimento de um filho, o casamento de outro,
entre outras coisas, são mudanças reais e inevitáveis. Uma calibração não escalonada, drástica,
desequilibra o sistema.

EQUIFINALIDADE
A proporção deste conceito é que as mudanças ou alterações do sistema não estão determinadas
pelas condições iniciais ou pretéritos, mas sim pela natureza do processo circular e
automodificador do sistema. O tema, por causa dos alcances da proposição, tem sido muito
debatido. Berenstein pensa que arrancar do todo o passado não é uma postura sólida, porque
equivale a um esvaziamento e que o conceito esgota-se somente na explicação da inter-relação
presente. Os defensores do conceito da equifinalidade explicam em termos de sistemas abertos,
que por serem tais como são, não estão sujeitos às condições iniciais como os sistemas fechados.
Uma adequada compreensão desta postura indica que não negam o efeito dos estados iniciais,
mas que dão predomínio aos parâmetros do sistema sobre as condições iniciais.

No fundo trata-se de um debate entre a postura genética e a histórica, por um lado e a sistêmica
por outro. Qual predomina sobre qual na configuração das condutas? O debate está de pé. Por
nossa parte temos optado por avaliar os efeitos do sistema familiar sobre a conduta, sem entrar
no debate, nem negar as variáveis genético-históricas.

SISTEMAS INTERACIONAIS ESTÁVEIS


Para uma melhor compreensão do conceito de família, segundo o enfoque da teoria dos

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sistemas, convêm ao menos revisar o conceito de sistemas estáveis. Nem todo sistema é estável,
pelo que podemos supor que no plano humano existem sistemas estáveis e não-estáveis.
A estabilidade de um sistema é definida em relação a determinadas variáveis: se estas tendem
a permanecer em limites definidos, considera-se estável o sistema. Pelo contrário, se as
variáveis mais representativas tendem a sair dos limites, qualifica-se o sistema como não-
estável. Pode-se, portanto, afirmar que a família, em relação a suas variáveis de espaço, tempo,
número de pessoas, sexos, etc. Tendem a manter-se dentro de certos limites definidos, é um
sistema estável.

Para fins de estudo da comunicação humana, o estudo de um sistema estável é relevante. A


repetição de seqüências somente é possível perceber em um sistema estável, o que indica as
necessárias conseqüências em longo prazo. Por exemplo: a constante comunicação
complementar pode derivar na patologia da dependência; a constante e exclusiva forma de
comunicação simétrica indica competência patológica; mas uma alternativa entre simétrica e
complementária implica em maturidade. Isto não é possível observar em sistemas não estáveis.

O critério de sistema estável leva a uma conseqüência lógica: a relação estável. Esta relação
estável, duradoura, poderá ser sã ou enferma, o que dará relevância para a psicoterapia e
psiquiatria.

RUPTURA DO SISTEMA ESTÁVEL


Não obstante a consideração anterior, o sistema estável pode romper-se e, por conseguinte,
existem rupturas nas relações estáveis. Ainda que esta área dos sistemas pertence já ao campo
da psicopatologia da família, convêm fazer uma revisão sumaria das principais formas de
rupturas. Curry (1976) considera que as principais formas de rupturas do sistema familiar são
três:

a) A Coalizão, que significa a confrontação de um subsistema contra outro


subsistema ou o sistema total. Lembremos que um subsistema pode ser formado
de um ou vários membros familiares.
b) Coalescência. Isto significa que se forma um grupo, que atuará em coalizão,
mas que a causa de haver-se estruturado tal grupo obedece ao princípio que eles
vivem um problema comum (coalescência). Por exemplo, agrupam-se os que
pensam que são explorados pelos demais (coalescência) e atuam reclamando de
tal discriminação (coalizão).
c) A Coagulação, que significa que um subsistemas, em relação ao sistema total,
diante de uma ameaça comum, se coagula. Aparentemente se integra, mas
efetivamente o que ocorre é uma postergação da ruptura ou conflito até que passe
a emergência. É uma trégua que, em nenhum momento significa solução.

A FAMÍLIA COMO SISTEMA


Ao lado da exposição dos conceitos da teoria temos seguido o critério de fazer as
correspondentes referências à família. De modo que aqui se fará uma avaliação final da
utilidade da teoria dos sistemas humanos para o estudo da higiogenia da família.

Observamos que existem dois eixos principais para avaliar a abordagem desta teoria ao estudo
proposto. O primeiro eixo está composto pelos conceitos de totalidade/ sistema/ subsistemas.
Isto permitirá analisar a higiogenia e patogenia de uma totalidade, mas não despersonificada. O
segundo eixo compõe-se dos conceitos de sistema aberto/ retroalimentação/ homeostase/
calibração. Isto permitirá avaliar as interações de uma forma global, parcial (subsistemas),

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buscando os distintos graus de significância na medição nos grupos de famílias e intergrupos
de pessoas afins.

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O CONCEITO DE SISTEMA2
No início dos anos 50, um grupo de investigadores que trabalhava em um hospital psiquiátrico
observou que o comportamento de pacientes com diagnóstico de esquizofrenia, ou seja, fora de
contato com a realidade e com uma percepção distorcida do mundo, alterava-se após a visita
que recebiam de familiares, especialmente das mães.

Estes investigadores perguntaram-se então se tal mudança de conduta era fruto da fantasia do
paciente ou de algo que estaria acontecendo na interação do paciente com a mãe. Solicitaram
então que as mães viessem com mais freqüência ao hospital e passaram a observar a interação
entre mãe-paciente durante as visitas. Ficaram fascinados com as descobertas. Antes de estarem
"fora da realidade", os pacientes estavam totalmente envolvidos em uma intrincada e perturbada
forma comunicacional com a mãe. Uma das descobertas mais surpreendentes foi a de que a
comunicação parecia ocorrer simultaneamente em dois planos: o verbal e o não-verbal, que
estavam em conflito entre si.

Por exemplo: as manifestações verbais e não-verbais no encontro entre mãe e filho, numa
mistura de contentamento e afastamento por parte de ambos. O filho contente abraça a mãe,
esta permite que o filho a abrace, mas permanece com o corpo rígido, todavia dirige palavras
carinhosas ao filho. O filho sente a rejeição não-verbal da mãe e se retrai. A mãe cobra a retração
do filho. O filho fica confuso. Esta situação conflitiva foi inicialmente denominada de duplo
vínculo: ou seja, duas mensagens conflitivas entre si. Esta pesquisa converteu-se, com o tempo,
numa teoria de comunicação, muito utilizada pelos investigadores e terapeutas familiares.

Outras concepções teóricas desenvolveram-se simultaneamente. A descoberta que a mãe não


era, como postulavam os psiquiatras, a culpada pela geração da esquizofrenia, mas que, em
verdade, como diz Jay Halley: "o esquizofrênico tem mãe". Conceitos como os de "mãe
perversa", ou "mãe esquizofrenógena" (geradora de esquizofrenia) passam a ser questionados.

Os estudiosos descobriram que também havia importância a relação pai-filho, especialmente a


distância entre estes que imperava na família dos pacientes esquizofrênicos, possibilitando um
excessivo envolvimento da mãe com o filho. E porque os pais eram tão distantes e passivos?

Na medida em que os estudos com esquizofrênicos foram se aprofundando, descobriu-se que a


relação conjugal entre os pais dos mesmos possuía graves distorções de longa data. Além disso,
os surtos ou episódios psicóticos dos pacientes pareciam estar relacionados com os ciclos de
conflitos conjugais. Quando o filho era internado, parecia haver uma trégua entre o casal para
voltarem-se à enfermidade do filho, de forma que a psicose do filho parecia ter um sentido
muito prático: auxiliar o casal a "resolver" parcialmente seu conflito e manter a estabilidade da
família.
A partir de então os estudiosos passaram a observar a família sob uma nova ótica. Mais que um
conjunto de indivíduos, compreenderam que a mesma estava dotada de uma classe de
integridade organizada quase igual a um organismo biológico e que funcionava como uma
totalidade, com sua estrutura própria, regras e objetivos. Ou seja, começaram a ver a família
como um sistema.
O estudo da esquizofrenia, então, deixa de ser um estudo acerca do indivíduo e passa a ser um

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Resumo do capítulo com o mesmo título, do livro: El Crisol de la Família, Naiper e Whitaker, Amorrutu Editores,
Buenos Aires, 1980.

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estudo da família, ou do conjunto de relações nas quais tal indivíduo está envolvido e que
influem sobre ele. É uma mudança no foco de atenção, com a conseqüente descoberta que os
surtos e agravamentos dos estados dos pacientes esquizofrênicos tinham uma relação com as
flutuações no sistema nos quais os mesmos estavam envolvidos. Amplia-se o conceito,
percebendo-se que a família é um sistema muito mais complexo que o triângulo pai-mãe-filho,
e que existem outros fatores que interatuam com a mesma. O atrativo do conceito de sistema é
que o mesmo nos proporciona um método para conceituar constelações bastante complexas.
Em verdade, o universo inteiro pode ser concebido como uma integração de sistemas.

Basicamente podemos dividir os sistemas em dois tipos fundamentais: os viventes e os não-


viventes. Um sistema não-vivente (como um sistema planetário) não está "morto", pois tem
uma atividade e exibe um certo "comportamento". Todavia existem grandes diferenças entre
tais sistemas, cujos "comportamentos" são praticamente previsíveis a partir das leis da física, e
os sistemas viventes, cujo comportamento contém muitos processos não-previsíveis.

Todos os sistemas apresentam uma certa organização e mantêm um certo equilíbrio. Esta
organização, no caso dos sistemas viventes, é ativa e "trabalha" para manter sua estrutura.
Também os sistemas viventes introduzem mudanças em sua conduta em base das informações
que possuem acerca do ambiente no qual estão inseridos - tal mecanismo é denominado de
feedback ou realimentação. Os teóricos então afirmavam que um surto psicótico era uma
forma que a família teria de "adaptar-se" para manter sua estabilidade. Outro aspecto
interessante é que os sistemas estão organizados hierarquicamente. Por exemplo, se
considerarmos uma pessoa como um sistema, perceberemos uma serie de subsistemas, cujo
tamanho e complexidade seguem uma ordem decrescente:
PESSOA OU ORGANISMO

Sistemas de órgãos

órgãos

tecidos

células

moléculas

átomos

Partículas atômicas

Ou ainda poderíamos nos voltar para os sistemas que estão "sobre" o indivíduo e que exercem
influência nele. A cadeia de influências expande-se:

Comunidade mundial de nações



Nações do hemisfério

nação

estado
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cidade

Comunidade (trabalho, vizinhança, etc...)

Família extensa

Família nuclear

PESSOA OU ORGANISMO

Em geral os sistemas maiores e mais complexos tendem a exercer controle sobre os menores e
mais simples, mas as influências percorrem a cadeia de cima para baixo e de baixo para cima.
Dentro da problemática da influência do genético/hereditário versus meio/aprendizagem no
comportamento do indivíduo, poderíamos dizer que a teoria dos sistemas percebe o indivíduo
como uma integração destas duas forças que se locomovem dentro da escala hierárquica de
integração dos sistemas e subsistemas.

Em nossos dias, o maior sistema social que exerce pressão sobre a família é, talvez, a economia
mundial inflacionaria. Todavia outros sistemas também exercem sua influência: o sistema
profissional, a família extensa ou política, a dinâmica da família nuclear - incluindo os
subsistemas existentes dentro dela (mãe-filho; marido-esposa; etc.). Também os conflitos da
sociedade global influem sobre a família, como guerras, decisões políticas, conflitos
ideológicos como o papel do homem e da mulher, a censura, etc.

Caracterizando algumas destas tensões como problemas sistêmicos que operam em distintos
níveis, o observador pode parcelar e simplificar em parte a complexidade que se apresenta
diante dele e talvez assim estabelecer algumas prioridades para a solução de tais problemas.
Ocupando-se de um subsistema de cada vez é mais fácil abordar os problemas. Especialmente
começando com os mais acessíveis e de menor tamanho: o das relações da família nuclear.

Muitos terapeutas logo descobrem a complexidade de trabalhar com os sistemas, pois


trabalhavam com o indivíduo e em seguida eram derrotados pelo poder que a família exercia
sobre ele. Obter sucesso no tratamento de um filho que era considerado o "bode expiatório",
para constatar posteriormente que este sucesso era minimizado pela família, ou ver que outro
filho era colocado neste papel, ou confrontar-se com a ruptura da família por meio de um
divórcio, quando um de seus integrantes melhorava.

Por isso os clínicos começaram a operar com todos os elementos do sistema familiar, com a
expectativa de que pudessem obter resultados mais eficazes. Este processo não se deteve com
a família nuclear e hoje existem terapeutas que trabalham com redes familiares de 30 ou 40
pessoas e que incluem os parentes mais distantes, vizinhos, amigos, patrões, etc. Todavia foi
trabalhando com a família nuclear que os terapeutas descobriram uma nova energia que
adentrava o consultório e donde podiam aprender muito acerca das famílias.

Foram constatando que até os elementos aparentemente mais saudáveis no sistema familiar,
como o irmão "perfeito" do paciente perturbado ocultava debaixo de seus sucessos, um jovem
tenso e atormentado e que a esposa saudável do alcoolista não era o poço de virtudes que
aparentava ser. Enfim, descobriram que havia tensões em todas as direções. Pouco parecia
importar o motivo da consulta do indivíduo, ou o diagnóstico tradicional que se lhe havia
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feito. Aparentemente os transtornos não estavam no indivíduo e sim na família. Esta conclusão
em si mesma não significava muito, pois não dizia nada acerca da causa dos transtornos.

Um pouco mais de observação gerou a idéia de que o que estava mal era na verdade algo muito
patente. Não estava enterrado em profundos complexos, no inconsciente, no superego ou no
ego dos indivíduos, mas era visível à luz do dia para os terapeutas. Estava no sistema familiar,
no modo que este estava organizado, na forma pela qual se comunicavam seus membros e como
desenvolviam sua interação contínua. Os terapeutas entenderam que o que acontecia entre as
pessoas tinha muito valor e certos "mistérios" passaram a ter sentido.

Todavia quando o foco das investigações deixou de ser o indivíduo, surgiu a questão de "que
fazer com o paciente?" Bem o mais simples era dizer que ele era simplesmente a vítima
propiciatória, o bode expiatório, alguém que consentia carregar sobre si abertamente toda a
tensão para que a família conservasse sua estabilidade. O paciente então deixa de ser o indivíduo
e passa a ser toda a família. Para os profissionais treinados a pensar em termos de padecimentos
individuais, isto implicava uma reestruturação radical.

Imaginemos o psicanalista ortodoxo tendo que tratar a família toda, colocando-a, como pombas
enfileiradas no divã. Ou o psiquiatra tradicional tendo que receitar ansiolíticos para todos os
elementos da família. Ou os psiquiatras hospitalares que teriam que internar a família toda para
um tratamento mais adequado. Ou em um centro ambulatorial público descobrir-se que o
assistente social estava mais habilitado a tratar com a família que o psiquiatra responsável,
embora este recebesse três vezes o salário daquele. São mudanças radicais que começaram a
introduzir-se no meio científico e que continuam desenvolvendo-se até hoje.

Uma das dificuldades que originou o enfoque da terapia familiar foi a de colocar às claras a
falácia de conceber os problemas emocionais dos seres humanos como problemas médicos,
análogos aos de uma "enfermidade" ou relacionadas com esta. Também o terapeuta se via em
dificuldades ao deparar-se com uma batalha contra um poderosíssimo grupo socio-biológico e
suas equivocadas concepções e costumes, que se perguntava impacientemente porque estava
ali na sala do terapeuta se o “paciente” era o João e era ele que devia ser tratado, medicado e
colocado de volta ao convívio social.

O que fizeram os terapeutas foi procurar todos os métodos de auxílio disponíveis, inclusive em
colegas, donde surge a figura do co-terapeuta e da equipe de observadores, que muito vai
contribuir no desenvolvimento da terapia familiar.

Seja qual for o problema que uma família enfrenta, é muito difícil para ela descobrir que está
envolvida no assunto sua estrutura integral e que todos são, de alguma forma, responsáveis
por seus problemas. Compartilhar os bons momentos é fácil, mas não é tão fácil compartilhar
os maus momentos. Resta ainda solucionar alguns importantes problemas para a terapia
familiar. Para a população em geral ela é ainda bastante desconhecida e quando as pessoas
buscam um terapeuta, vão à procura de terapia individual. Existem poucas escolas de formação
qualificadas e quase todo estudo desenvolve-se ao nível de pós-graduação ou especialização,
não no currículo acadêmico. E é ainda possível que no futuro o terapeuta familiar transforme-
se em um "terapeuta de sistemas" e conte entre seus clientes com empresas ou escolas. Somos
da opinião que, de todas as unidades da vida humana, a mais eficazmente destinada ao
desenvolvimento da pessoa não é o indivíduo em si, nem seu grupo de trabalho, nem o grupo
social mais amplo ao que pertence, mas a família.

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O ENFOQUE SISTÊMICO INTEGRADOR DE SERVIÇOS
PARA A FAMÍLIA
Jorge E. Maldonado3

INTRODUÇÃO:
O modelo Sistêmico representa um novo paradigma no desenvolvimento das ciências. É uma
nova maneira de perceber o mundo e suas relações; uma nova forma de pensar, que significa
uma ruptura com as formas anteriores de fazer ciência. Nas palavras de Bertalanffy, "implica
numa fundamental reorientação do pensamento científico"1.

Ainda que seja possível encontrar vestígios do pensamento Sistêmico na história da filosofia,
da religião e da ciência, os aspectos específicos e os elementos concretos deste tipo de
pensamento são resultado das investigações e postulados expressos nas últimas décadas.
Atribui-se precisamente a Ludwig von Bertalanffy, biólogo vienense, emigrado aos Estados
Unidos no final da Segunda Guerra Mundial, o haver utilizado pela primeira vez, ao final da
década de trinta a frase "Teoria Geral dos Sistemas".

Este "novo modo de pensar" almeja ser aplicado tanto às ciências exatas como às ciências
naturais e, inclusive, às ciências sociais, parecendo, portanto, proporcionar um marco teórico
unificador para o conhecimento humano. Engloba no que Thomas Kuhn descreveu como uma
"revolução científica". Segundo Kuhn, quando os esquemas conhecidos já não são suficientes
para explicar a complexidade do mundo e suas relações, surge a necessidade de novos
paradigmas. Nos diz que: "Como muitos dos problemas das ciências biológicas, da conduta e
sociais são essencialmente multivariados, necessitam-se novos instrumentos conceituais."2

Diante do paradigma analítico, fragmentário, mecanicista e de causalidade linear das ciências


clássicas baseadas nas "leis cegas da natureza", o esquema Sistêmico implementou a
necessidade da exploração científica de totalidades, de organização, de relações, de dimensões
holísticas do mundo. Nos diz Bertalanffy:
"A ciência clássica procurava isolar os elementos do universo observado -
compostos químicos, enzimas, células, sensações elementares, indivíduos em
livre competência e tantas coisas mais, na esperança que, tornando a juntá-los,
conceitual ou experimentalmente, resultaria num sistema de totalidade - célula,
mente, sociedade - e seria inteligível. Agora aprendemos que para compreender
não se requer somente os elementos, mas sim as relações entre eles”. 3

Se tal proposição é verdadeira para as ciências em geral, muito mais o é para o estudo da
conduta, pois nela percebemos ordem, regulação, automanutenção e mudanças contínuas.
Acima de tudo observamos intencionalidade e busca de metas. Portanto, as dimensões
teleológicas e axiológicas da conduta humana, não podem ser descartadas. O enfoque Sistêmico
inclui também a preocupação pelos valores que até pouco tempo eram considerados noções
metafísicas fora dos parâmetros da ciência.
"... a filosofia dos sistemas se ocupará das relações entre homem e mundo ou do
que se chama de “valores” no linguajar filosófico. Se a realidade é uma

3
Jorge Maldonado é pastor, psicólogo e terapeuta familiar, membro fundador e presidente de EIRENE
Internacional. Texto extraído da palestra proferida no II SIMPÓSIO INTERNACIONAL SOBRE O MODELO
SISTÊMICO NA PSICOTERAPIA FAMILIAR, ACONSELHAMENTO E ASSESSORAMENTO PASTORAL
- Bogotá, Nov. /1984.

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hierarquia de totalidades organizadas (...) o mundo dos símbolos, valores,
entidades sociais e culturais é algo muito "real" e sua inclusão na ordem
cósmica de hierarquias poderia salvar a oposição entre... a ciência e as
humanidades, a tecnologia e a história, as ciências naturais e sociais, ou como
se queira formular a antítese".4

Este novo paradigma, ao requerer uma aproximação holística organizadora e relacional da


conduta, não pode admitir nada menos que um enfoque interdisciplinar do saber e realizar
humanos. Vale aclarar, entretanto, que o enfoque Sistêmico não é simplesmente uma teoria
nova da conduta humana, mas é uma nova concepção do mundo, uma nova ótica através da
qual observamos a conduta, uma nova forma de perceber a pessoa interatuando com o que a
rodeia.

ANTECEDENTES:
O paradigma sistêmico, verbalizado por Bertalanffy e outros pensadores quase de forma
simultânea, não nasceu no vazio. Outras abordagens teóricas antecederam significativamente o
entendimento Sistêmico do mundo. Entre eles podemos enumerar os seguintes:5
2.1 O Contextualismo (de Stephen Pepper), que sustenta que todas as experiências são
fragmentárias, limitadas, parciais e ocorrem dentro dos limites de um contexto mais
amplo daquele em que somente existe um universo infinito de indeterminação.
2.2 O Organicismo (de Spencer, Lawrence Henderson e outros), que percebe inclusive os
sistemas sociais em termos de organismos vivos. Segundo Henderson, o organismo
possui um mecanismo de auto-regulação cuja meta é manter o equilíbrio saúde. Num
sistema social, todos os fatores são mutuamente dependentes ou interativos na busca do
equilíbrio.
2.3 A Psicologia da Gestalt (de M. Wertheimer, K. Koffka, W. Kohler, F. Pearls e outros),
que ao se oporem ao atomismo das ciências, deram ênfase na totalidade da experiência
como a base de sua investigação. Existem autores que consideram explicitamente a
Psicologia da Gestalt como a maior precursora da filosofia dos sistemas.
2.4 O Conceito de Homeostase (de Walter B. Cannon), que parte de um entendimento
global do corpo humano para manter os níveis fixos de açúcar, proteínas, gorduras,
cálcio e oxigênio no sangue, a temperatura e a continuidade do organismo frente às
condições mutantes do ambiente. Seu conceito de homeostase foi amplamente aplicado
à família e à sociedade em geral por inúmeros teóricos.

OUTRAS ABORDAGENS SIMULTÂNEAS E POSTERIORES:


A partir de Bertalanffy, e às vezes de maneira simultânea a seu trabalho, surgiram outros que
enfocaram um novo entendimento das relações humanas. Vamos enumerar os mais destacados:
3.1 A Cibernética, termo utilizado por Norbert Wiener em 1948, e que se desenvolveu na
ciência que estuda os seres vivos e as máquinas nos processos de controle e transmissão
de informação. A cibernética trouxe para a ciência moderna os conceitos de "retro-
alimentação" (feedback) e "auto-regulação". Estes conceitos asseguram que os sinais de
saída de um sistema voltam a entrar no sistema modificando substancialmente os
resultados. Questionou-se assim a convicção já arraigada das explicações da conduta
humana em termos de causa-efeito ou estímulo-resposta.
"Os sistemas que se auto-regulam (os sistemas com retro-alimentação)
requerem uma filosofia própria na qual os conceitos de configuração e
informação são tão essenciais como os de matéria e energia o foram no começo
deste século”.6
3.2 Os estudos sobre a Comunicação Humana, especialmente da pragmática, ou seja, do

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efeito que a comunicação tem sobre a conduta, tanto do emissor como do receptor, tem
ajudado de forma singular para um entendimento sistêmico das relações humanas. Na
relação dos seres vivos, não se transmite simplesmente energia, mas informação. O
exemplo de Batenson, descrito por Watzlawick em seu clássico livro Pragmática da
Comunicação Humana, ilustra este particular:
“Se o pé de um andarilho se choca com uma pedra, a energia se transfere do pé
para a pedra; esta última reagirá amorfamente e se deslocará para uma posição
que será totalmente determinada por fatores tais como: a quantidade de energia
transferida, a forma e o peso da pedra e a natureza da superfície sobre a qual
rola. Se por outro lado, o homem golpeia a um cachorro em lugar da pedra,
aquele pode saltar e morde-lo. Em tal caso, a relação entre o pontapé e a
mordida é de índole bastante distinta. É óbvio que o cachorro obtém a energia
de seu próprio metabolismo e não do pontapé. A energia para sua reação. Então
o que se transfere com o pontapé não é mais energia e sim informação. Em
outras palavras, o pontapé é uma conduta que comunica algo ao cachorro e o
cachorro reage a esta comunicação com outro ato de conduta-comunicação.
Esta basicamente é a diferença entra a psicodinâmica freudiana e a teoria da
comunicação como princípios explicativos da conduta humana. Como se
observa, pertencem a distintas ordens de complexidade; o primeiro não pode
ampliar-se e converter-se no segundo e este não pode da mesma forma, derivar
do primeiro: encontram-se em uma relação de descontinuidade conceitual.”7
3.3 O espelho unidirecional ou Câmara de Gessel, que foi utilizado desde os anos 50 para
observar crianças, grupos e famílias e tem contribuído também para desenvolver uma
forma distinta de perceber a interação humana. Lynn Hofmann, uma terapeuta familiar
experimentada compara isto com o advento do telescópio. Nos diz:
"O fato de olhar de forma diferente tornou possível pensar de forma diferente.
E uma nova maneira de pensar tem conduzido a uma revolução epistemológica,
a que alcança a todas as ciências e que desafia a muitos conceitos tradicionais;
desde a crença na causalidade linear até as teorias da motivação individual.
Com este formato chegou a ser possível abandonar o que estava chegando a ser
para muitos um conceito fora de moda: o conceito de que o terapeuta é um
agente neutro e livre de influências, atuando sobre um sujeito autônomo."8
Desde então, o terapeuta, ou qualquer outro agente de mudança, não pode ser visto mais
como um ser externo, neutro ou objetivo que causa impacto a partir de fora sobre seus
clientes. Tanto terapeutas como consultantes formam parte de um número ilimitado de
elementos que agem e reagem entre si de maneira circular, intermitente e imprevisível.

3.4 A Filosofia Existencial, em sua insistência de que o ser humano é um ser-em-relação e


que o "EU" se define sempre diante de um "TU" significativo, tem trazido uma mudança
paradigmática na compreensão da conduta humana. Nas seguintes palavras de
Bertalanffy parece ressoar a influência de Martin Buber: “...a percepção não é uma
reflexão de 'coisas reais' (qualquer que seja sua condição metafísica) nem o
conhecimento uma aproximação à verdade ou à realidade. É uma integração entre
conhecedor e conhecido, dependente de múltiplos fatores de natureza biológica,
psicológica, cultural, lingüística, etc” 9

A FAMÍLIA COMO SISTEMA:


Decorreram apenas três décadas desde que surgiu uma nova maneira de fazer terapia; a que
enfoca sua atenção no grupo humano antes que no indivíduo, a que considera a família como o
espaço no qual se forjam as condições para a saúde ou a enfermidade, a que percebe ao ser
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humano como parte integrante de seu meio ambiente, a que resiste a trabalhar
intrapsiquicamente e insiste na dimensão relacional.
Durante este tempo a Terapia Familiar tem experimentado um crescimento formidável. Tem
ganhado espaços nas universidades, hospitais, na comunidade, na igreja, na clínica e na escola;
tem produzido literatura abundante; tem criado associações e métodos de treinamento. Trata-se
hoje de um movimento mundial. Ainda que se nutre de diversas posturas teóricas e distintos
panos de fundo filosóficos (e ideológicos) reúne-se ao redor a convicção de que o foco de
atenção são as relações familiares.

Este não é o lugar para expor em detalhe os postulados do pensamento sistêmico, seus
argumentos e contra-argumentos. Basta assinalar que o enfoque sistêmico é essencialmente
integrador. Estabelece que um sistema é uma totalidade. Um sistema não é uma coleção
aleatória de componentes, mas uma organização interdependente na qual cada elemento influi
e é influenciado pelos outros do sistema. O caráter do sistema transcende a soma de seus
componentes e seus atributos e pertence a um nível de abstração mais alto.

Segundo Jay Haley vários terapeutas, na década de 50, já ensaiavam, ainda que de forma isolada
uns dos outros, o enfoque sistêmico com famílias. Apesar de proceder de distintas origens
teóricas e diversas praticas clínicas, coincidiam na convicção crescente de que os problemas
que enfrentavam não eram tanto de natureza intrapsíquica como de caráter relacional. 10

A Terapia Familiar nasce no terreno da pratica clínica sem uma concepção teórica estruturada
de antemão. Não é para menos. A falta de um desenvolvimento harmônico da teoria e da prática
de Terapia Familiar baseia-se no que Kuhn descreve como o momento posterior na história das
ciências, após haver sido introduzido um novo paradigma. Todavia os avanços teóricos na
percepção sistêmica da família podem evidenciar-se pela abundante literatura produzida
simultaneamente em vários países e vários idiomas.

Por outro lado, a família - qualquer que seja o conceito que se de a este termo 11 - representa
uma entidade de natureza multifacial que requer uma aproximação multidisciplinar e
multifocal. Qualquer intento reducionista que pretenda ver a família somente como uma
unidade econômica, ou somente com a célula social, ou somente como a reprodutora da espécie,
ou somente como o reduto romântico, ou somente como uma entidade espiritual, estará
violentando sua natureza e passando por alto elementos indispensáveis em sua compreensão.
Hoje mais que nunca, em meio a uma sociedade cada vez mais complexa, a família requer um
enfoque holístico e interdisciplinar, que faça justiça a sua realidade. É precisamente o enfoque
sistêmico que melhor se presta ao entendimento global e pertinente da família. "Ao tratar a
família como uma totalidade, - nos diz uma destacada psicoterapeuta inglesa - não sobre lugar
para a fragmentação das ciências"12

O enfoque sistêmico da família diz NÃO! ao reducionismo. Resiste a perceber o ser humano
como uma máquina, ou como um estômago, ou como uma função econômica, ou como uma
alma desencarnada. É parte de uma busca universal de interpretações mais amplas da realidade.
"A Terapia Familiar pode ser considerada como a expressão clínica de um vasto movimento
que tem influenciado e tem sido influenciado por vários campos da filosofia, do pensamento
político, da literatura, da cibernética, da antropologia e da sociologia, assim como por
métodos psicoterápicos mais antigos".13

É a amplitude do enfoque sistêmico que inspirou este simpósio. Encontramo-nos aqui, pessoas
de diferentes formações teóricas, políticas, religiosas, de uma ampla gama de profissionais que

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em outros contextos não poderiam convergir, de distintos países, grupos étnicos e setores da
sociedade. Todos estamos aqui para reafirmar que a família, como entidade humana universal 14
não é patrimônio de uns poucos; que a saúde não é território exclusivo dos 'experts'; que todos
estamos envolvidos, de uma forma ou de outra, na tarefa de entender melhor a família e de
trabalhar por sua realização, seu desenvolvimento e o cumprimento de seu papel na história.

Neste simpósio não temos escondido nem dissimulado a dimensão da fé que, sem afãs sectários,
dogmáticos ou proselitistas, nos desafia a entender a família e sua missão no mundo desde
ângulo válido e legítimo. Frente à postura que sustenta que a família é apenas um acidente
histórico que surge com a propriedade privada e que vai desaparecer com o advento da
sociedade sem classes;15 e frente à corrente que sustenta que a família é uma "instituição
natural", que sempre existiu e que por isso vai continuar existindo, 16 a postura cristã, baseada
na Revelação Bíblica, afirma que a família é o fruto da livre e criadora intenção divina, que é
parte do grande "sistema cósmico" e, portanto, possui valores e responsabilidades que não se
esgotam em si mesma. A família, portanto, não pode ser reduzida a uma instituição que temos
que salvaguardar ou a um problema que temos que resolver, ou a um mero sistema que temos
que colocar em ótimo funcionamento. A família, desde a perspectiva da fé, é um dom a ser
desfrutado, uma promessa a ser conquistada, um mistério diante do qual toda análise palidece
e nos convida ao assombro.17

A partir desta perspectiva, a terapia familiar toma uma direção específica; a ruptura das relações
familiares e a dor que isto provoca, se explica em termos de uma ruptura (separação ou
alienação) sistêmica do ser humano com seu Criador, com seu próximo, consigo mesmo e com
o universo. Sem desconhecer outras explicações igualmente válidas (lembrando que a realidade
é muito mais que todas suas explicações juntas), e consciente dos perigos de um reducionismo
espiritualista, a dimensão da fé cristã, entretanto, tem palavras a pronunciar diante da multifacial
e complexa problemática do homem e mulher contemporâneos.
"O homem moderno que tem acesso ao conhecimento como nunca antes e que tem
recebido as diversas explicações para seus conflitos, problemas e angustias,
percebe de alguma maneira que, junto -e além- às dimensões médicas,
psicológicas, econômicas e sócio-culturais de seus males, deve haver também uma
dimensão espiritual e transcendente. Com mais e mais freqüência às pessoas hoje
recorrem -às vezes em primeiro lugar e às vezes como último recurso- a quem,
desde uma perspectiva pastoral, lhes pode oferecer um diagnóstico teológico"18

Junto a Ludwig Von Bertalanffy é possível encontrar outros autores contemporâneos que em
suas análises sistêmicas da família introduzem dimensões que antes se encontravam fechadas
às posturas que pretendiam manter-se na "linha científica". Os valores, o sentido da vida, a
busca de significado, etc..., são agora considerados com seriedade por uma concepção sistêmica
do mundo. Lilienfeld, por exemplo, nos diz:
"É de esperar-se que a teoria dos sistemas contribuirá para um marco de referência
mais adequado para a psicologia tanto normal como patológica, pois o homem não
somente vive em um mundo metafísico e fisiológico; também participa de um
universo simbólico. O mesmo fenômeno da enfermidade mental é tanto um
distúrbio das funções simbólicas como fisiológicas. A conduta humana não pode
reduzir-se a conceitos fisiológicos; agora devem compreender-se as desordens de
personalidade em termos de uma quebra dos sistemas de valores."19

E não é para menos, a saúde da família na América Latina está relacionada (e às vezes
condicionada) por sistemas de valores que estabelecem os aspectos mais decisivos do conviver

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humano. O trabalho, a educação, a produção de bens e serviços, o comércio (para nomear
algumas coisas) são aspectos que de nenhuma maneira se podem abstrair do sistema de valores
dominante. A mesma Psicologia (como qualquer ciência moderna) tem sido questionada em
seu caráter científico por pensadores articulados 20 que tem assinalado que por trás de seus
sucessos e seu desenvolvimento estão os interesses de todo um sistema sócio-econômico, seja
do Leste ou do Oeste, que procura perpetuar-se, apoiado por um sistema de valores.

Pensando então, sistemicamente, podemos afirmar que o bem-estar da família em nosso


continente não é parcela exclusiva dos profissionais da saúde ou da conduta. Não são os
médicos, psicólogos, enfermeiras e assistentes sociais os que vão garantir a saúde pública e
privada. Sem desconhecer sua base legítima e necessária, temos que reconhecer que existem
níveis sociológicos, políticos, econômicos, técnicos e inclusive religiosos, pode detrás de seus
sucessos. Ou seja, é ao nível do sistema global que se joga a sorte da saúde física e mental do
indivíduo, da família, da sociedade e do meio-ambiente.

As pressões que hoje afetam a nossas famílias são bastante distintas das que afetaram a nossos
pais ou a nossos avós. Os processos de industrialização e urbanização tem impregnado as
mudanças mais radicais na vida das famílias latino-americanas no decorrer do século. Ainda
que a industrialização e a urbanização são processos comuns a todas as nações, nos países de
economias menos privilegiadas, tomam características peculiares. A industrialização na
América Latina mantêm uma situação de dependência crescente diante dos centros
hegemônicos do mundo. A urbanização, que é alimentada por uma contínua migração do campo
para a cidade, obedece, diante disto, o deterioramento das relações de produção no meio rural
que expulsa os camponeses para as cidades.
"Grande parte da população urbana na América Latina, nos diz Juan Luis
Segundo, sofre o que os sociólogos chamam de desarraigo. Ou seja, tem perdido
suas próprias raízes culturais sem haver encontrado outras para substituí-las."21

As famílias que chegam diariamente às cidades não somente tem percorrido um longo caminho
em termos de espaço, ma também em termos de tempo. Freqüentemente, em somente uma
geração tem dado um salto qualitativo de séculos e até de milênios. Ao desarraigo soma-se o
sentimento de estar deslocado em uma sociedade manejada pelo documento, pela escolaridade
e pelo consumismo.

Os setores médios e altos da população também não são imunes às vertiginosas mudanças
sociais que se operam em nossos países. As famílias de todos os níveis dão evidências de
instabilidade e de dor, mas, ao mesmo tempo, de luta e de mudança, de frustração e crescimento.
Sim, hoje é mais difícil ser família que o foi para nossos pais e avós.22

O enfoque sistêmico pode ser a arena de convergência dos serviços à família hoje em dia. As
diversas profissões podem encontrar-se ali, sem temor de perder sua especificidade. As distintas
aproximações da realidade sócio-cultural podem ser enriquecidos pelo enfoque sistêmico para
servir à família. A fé evangélica e comprometida com o bem-estar do ser humano pode ali
proferir sua palavra e empreender sua ação sem ter que pedir desculpas.

ALGUNS SINAIS DE ALERTA :


Apesar das virtudes expostas acerca do enfoque sistêmico, é necessário assinalar algumas
palavras de alerta no caminho do realizar sistêmico.

O gênio Bertalanffy adiantou-se ao assinalar os perigos de um manejo irresponsável do modelo

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sistêmico na sociedade. Indicou que a Teoria Geral dos Sistemas ao ser entendida somente em
termos de matemáticas, retro-alimentação e tecnologia, pode dar um passo para a mecanização
e desvalorização do homem em uma sociedade eminentemente tecnocrática que o controla, o
estandardiza e o converte em um "idiota informado". 23

Nos podemos acrescentar outras preocupações. Em primeiro lugar, um enfoque que enfatiza a
homeostase com um valor que pode descrever as estruturas sociais e políticas como parte de
um sistema "natural" ao qual não é permitido questionar, é perigoso. Pode ser presa fácil de
interesses que querem perpetuar o status quo. Pode prestar-se ao jogo ideológico. 24 O enfoque
sistêmico, como qualquer outro, não está desprovido de sua própria carga de valores, sejam
estes reconhecidos ou não. A crença de Bertalanffy de que, tanto a física como a biologia, a
psicologia e a filosofia culminarão em uma teoria geral dos sistemas soa mais como uma
declaração de fé em linguagem poética. 25

Além disso, devemos ter o cuidado com promessas irrealizáveis. A Psicologia tem seu limite.
A Terapia Familiar Sistêmica, apesar de seus sucessos, não é a solução total para os males
modernos que atacam a família. Pelo menos desde o ponto de vista cristão não podemos ser
ingênuos. A partir dos valores do Reino de Deus (amor, paz e justiça -de Shalom e Eirene-) se
explica que o cosmos tem sido afetado e necessita de redenção, que existe uma confusão de
valores, isto só para citar o básico; que as forças da morte atentam contra as forças da vida e
que não pode haver homeostase ou paz a menos que haja justiça. 26 O específico da fé cristã
autenticamente concebida implica no compromisso com a vida, com a paz, com a saúde, com
a justiça, ainda que isto signifique alterar a ordem e romper os equilíbrios.

Por último, uma Terapia Familiar Sistêmica para a América Latina não pode permanecer
repetindo uma Terapia Familiar importada dos países desenvolvidos e provada em sua maioria
na classe média. Urge conhecer, em nosso continente, ao meio macro-social que rodeia a família
e nos referenciarmos historicamente em relação ao mesmo. Mais que isto, necessitamos
expressar um compromisso por uma transformação sistêmica e sistemática do mundo que
condiciona os estados de enfermidade ao invés dos de saúde, que encarna estruturas de morte e
não de vida, que manifesta os valores da guerra e não da paz. Se assim não o fizer, o modelo
sistêmico corre o risco de converter-se em um instrumento de domesticação a serviço de
interesses do sistema dominante.

CITAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS

1. BERTALANFFY, Ludwig von, Teoria Geral dos Sistemas, Fondo de Cultura Econômica,
México, 1976, p.3.

2. KUHN, Thomas, A Estrutura de las Revoluciones Científicas, Fondo de Cultura Econômica,


México.

3. ibid 1, pg. xii.

4. ibid 1, pg. xvii.

5. LILIENFELD, Robert, Teoría de Sistemas, orígenes e aplicaciones en Ciencias Sociales,


Editorial Trillas, México, 1984, p. 38.

6. WATZLAWICK, Paul e otros, Teoría de la Comunicación Humana, Editorial Herder,


Barcelona, 1981, p. 33
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7. Ibíd. 6, p. 30.

8. HOFMANN, Lynn, Foundations on Family Therapy, Basic Books Inc., New York, 1981,
p.3-4.

9. ibid 1, pg. xvi-xvii

10. HALLEY, Jay, Tratamiento de la Familia, Ediciones Toray, Barcelona, 1980, pg. 2.

11. Existe uma grande variedade de conceitos de "família", tanto sociológicos como
psicológicos. Alguns conceitos podem ser observados no curso nº 01 de EIRENE - A
Família na América Latina Hoje.

12. WALROND-SKINNER, Sue, Terapia Familiar, Editorial CREA, Buenos Aires, 1978,
pg.11.

13. ibid, 13.

14. MEAD, Margaret, citado por Leslie, Gerald R., The Family in Social Context, 2ª ed., Oxford
University Press, New York, 1973, pg.03.

15. Ver por exemplo: ENGELS, A origem da Família, a Propriedade Privada e o Estado; ou
DAVID COOPER, A Morte da Família; ou ainda NICOLAS CAPARROS, Crise da
Família.

16. LINTON, Ralph, La Historia Natural de la Familia, en La Familia de Erich Fromm y otros,
Ediciones Península, Barcelona, 1978.

17. BREPHOL, Margareth, A Família como Mistério, EIRENE, Curso nº 05 - Fundamentos


Bíblico Teológicos do Matrimônio e da Família.

18. MALDONADO, Jorge, La Psicologia Pastoral que surge en América Latina, Monografias
EIRENE, Quito, 1984.

19. Ibid. 5, pg. 47.

20. Ver por exemplo: Klaus F. Riegel, Psicologia: Mon Amour, ou Rollo May, Psychology and
the Human Dilemma.

21. SEGUNDO, Juan Luis, Acción Pastoral Latinoamericana, sus motivos ocultos, Ediciones
Búsqueda, Buenos Aires, 1972, pg.11.

22. BUCKLEY, Walter, La Sociología y la Teoría Moderna de los Sistemas, Tercera Impresión,
Amorrutu Editores, Buenos Aires, 1982.

23. ibid. 1, pg 9.

24. BERNAL, Guillermo, Family Therapy and Ideology, palestra apresentada en The American
Family Therapy Association Meeting, New York, Julho/1984.

25. Ibíd.. 5, pg 32.

26. PADILLA, C. René, "El Fruto de la Justicia será la Paz", palestra apresentada ante a
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Fraternidade Teológica Latinoamericana, Maio/1984.

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