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Volume 22 - Novembro de 2017

Editor: Giovanni Torello

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Maio de 2012 - Vol.17 - Nº 5

Psicologia Clínica

PROCESSOS REFLEXIVOS: CURIOSIDADE E IRREVERÊNCIA NO CONTEXTO CLÍNICO

Braz Dario Werneck Filho


Mestre em Psicologia (UFRJ)
Terapeuta Cognitivo
Terapeuta Familiar

Resumo

Este
trabalho tem como objetivo refletir sobre a prática da terapia
familiar norteada pelos processos reflexivos, que se
utiliza da
equipe reflexiva. Propomos uma breve apresentação
teórica deste instrumento clínico, para em seguida,
sugerir a curiosidade e a irreverência terapêuticas como
características relevantes do terapeuta. Apesar de ser uma
ideia
surgida no seio das reflexões construcionistas sociais,
propomos que a equipe reflexiva seja utilizável mesmo além
dos
limites desse referencial epistemológico. Consideramos que
os processos reflexivos sejam uma obra de relevância
teórica
e de potencial contribuição para a prática
clínica, seja na terapia familiar, individual ou de grupo.

Descritores:
Processos reflexivos, equipe reflexiva, terapia familiar.

Introdução

1
Uma das mais
contundentes mudanças que as ideias oriundas do
Construcionismo Social
acarretaram na clínica pode
ser observada na terapia familiar,
com o advento da Equipe Reflexiva, que emergiu dos trabalhos de Tom
Andersen
(1991). Na terapia Familiar, por ele conduzida, depois de um
longo tempo de germinação, segundo Andersen “a
própria ideia forçou seu nascimento” (ibidem;
p. 33). Após várias situações de
hipóteses e incômodos pessoais dos
terapeutas com o
processo paralisado, aconteceu de em determinado momento, a equipe
observadora da sessão
terapêutica propor um momento de
interação com a família, no mesmo ambiente.

O
contexto clínico do surgimento da Equipe Reflexiva foi marcado
por uma mudança paradigmática. Neste
caso, falamos da
inclusão do observador no sistema por ele observado. Uma nova
postura do terapeuta passou a ser
estimulada com base nesse momento
divisor de águas.

A
partir de então, surge a prática da Equipe Reflexiva
que, presente no consultório, num momento em que é
solicitada
pelo terapeuta de campo, faz uma reflexão sobre o
que ouviu até ali. Espera-se que esse momento seja uma
diferença
facilitadora da mudança.
Essa
crítica curiosa, proposta a partir do Construcionismo tem como
uma das bases a crença de que os
significados, as verdades
humanas sejam variáveis dependentes do discurso, das
conversações, enfim, da linguagem.
Tal posicionamento
possibilita ao terapeuta construcionista considerar em sua avaliação
e em todo o seu procedimento
num caso clínico, as variáveis
relacionadas ao ambiente construído a partir das práticas
discursivas.

Reflexão,
Curiosidade e Irreverência

Propõe-se,
neste trabalho, que os Processos Reflexivos devam ser contemplados em
alguns elementos importantes,
como a própria reflexão,
a curiosidade e a irreverência. Para o caso da reflexão,
trago uma discussão conceitual, a fim
de posicionar o termo
conceitualmente.

No
que se refere à curiosidade e à irreverência,
propõe-se uma visita às ideias de Cecchin e uma
discussão sobre
características da função
e do lugar de terapeuta, principalmente, mas não
exclusivamente, na Terapia Familiar

Sobre
a reflexão, podemos partir dos estudos sobre as ideias de Tom
Andersen, acerca da adoção de equipes reflexivas,
trabalhando sob a orientação dos Processos reflexivos.
Na terapia Familiar, por ele conduzida, depois de um longo
tempo de
germinação, segundo Andersen “a
própria ideia forçou seu nascimento”
(1991; p. 33). Após várias situações
de
hipóteses e incômodos pessoais dos terapeutas com o
processo paralisado, aconteceu de em determinado momento,
a equipe
observadora da sessão terapêutica propor um momento de
interação com a família, no mesmo ambiente.

      
A partir desse momento divisor de águas, a terapia familiar
conduzida por Andersen e seus discípulos vem
delineando novas
formas de tratamento e de concepção epistemológica
da Terapia Sistêmica, agregando, inclusive, o
estudo da
cibernética como fonte de analogias epistemológicas
(Rapizo, 2002).

A
abrangência dos estudos acerca dos Processos Reflexivos pode
ser verificada nas ramificações pedagógicas
ressaltadas por Schön (1988), num experimento que passou a
criticar a relação de poder/saber entre professor e
aluno: 

Um dia mostraram aos professores um vídeo


sobre dois rapazes separados um do outro por uma tela
opaca. Cada um
dos rapazes tinha diante de si um conjunto de sólidos
geométricos de diferentes
tamanhos, formas e cores. Em frente
de um dos rapazes estava um modelo fixo: defronte do outro,
encontrava-se uma miscelânea de sólidos geométricos,
que o segundo rapaz teria de transformar no
modelo fixo seguindo as
instruções do primeiro. À medida que os
professores viam o filme,
observavam que, embora as instruções
do primeiro rapaz parecessem bem formuladas, o segundo
estava cada
vez mais confuso. Os professores diziam coisas como: O segundo rapaz
parecia ser um
aluno de aprendizagem lenta, não consegue estar
atento durante muito tempo, não consegue seguir as
instruções.
Neste momento, uma das investigadoras salientou: Parece-me que o
primeiro rapaz deu
uma instrução errada, pois disse
“põe o quadrado verde”, mas não existem
quadrados verdes, só há
quadrados laranja e as únicas
coisas verdes são os triângulos.Uma das vantagens do
vídeo é que pode
ser revisto, e por isso os professores
puderam voltar atrás e observar o filme uma vez mais. Com
efeito, concluíram que as instruções do primeiro
rapaz se referiam a um quadrado verde quando não
havia
quadrado dessa cor. À medida que continuavam a observar o
filme, ficaram surpreendidos ao
notar que, de fato, o segundo rapaz
era exímio no cumprimento das instruções,
encontrando sentidos
em indicações sem nexo. Foi então
que um dos professores notou algo de surpreendente: Aquilo que
acabávamos de fazer, foi dar razão ao aluno. Essa
expressão – dar razão ao aluno – inspirou
os
professores durante os restantes dois anos do seminário.

Este
evento pode ser considerado de suma importância para as ideias
de que falamos aqui. É o exemplo claro de uma
mudança
paradigmática prática.

           O
autor acima citado fala na formação de professores como
profissionais reflexivos. A reflexão sugerida por
Andersen
aparece como “algo ouvido que é
internalizado e pensado antes de uma resposta a ser dada”
(1991; p. 35).

           
Na situação descrita acima, podemos encontrar
justificativas para reflexões políticas, clínicas,
filosóficas etc.
Entretanto, penso ser importante sublinhar
pelo menos uma dentre tantas analogias possíveis a partir do
texto de Schön.

           
Como pano de fundo, podemos estabelecer uma discussão sobre o
que uma postura reflexiva pode provocar nas
relações
tradicionais de poder. Digo tradicionais porque não venho
defender a erosão das relações de poder no
cotidiano. Todavia, penso que devam ser criticadas todas.

Dentro
de um modelo tradicional o que significaria a atuação
de um professor que reconstruísse a sua forma de ensinar
baseado na contribuição de um aluno? Como isto seria
possível se o aluno só tivesse a aprender? A analogia
que
proponho, ou à qual me rendo sem lutar, traz o exercício
de colocar os nossos pacientes no lugar de alunos. Que
repercussões
haverá quando nos dispusermos a rever toda a metodologia à
qual fomos apresentados e pela qual fomos
seduzidos, porque ela não
está adequada a um paciente? Como ficará o meio
acadêmico? Quais serão as consequências
disso nos
cursos de formação e especialização?
Poderemos dizer que terapeutas comportamentais, por exemplo,
poderão
utilizar técnicas psicanalíticas, quando isso se
adequar melhor a determinado paciente?

Falamos
aqui, inicialmente, de flexibilidade. Esta fatalmente estará
ligada ao trabalho conduzido à luz dos Processos
Reflexivos.
Não uma flexibilidade desordenada, desavisada, mas antes, a
condição de se beneficiar de outras ideias,
ideias
estranhas ao arcabouço teórico ao qual nos tenhamos
afeiçoado.

O
tema da reflexão percorre um caminho eminentemente filosófico
no que diz respeito à flexibilidade. Podemos
considerar uma
questão ética o pensamento crítico quanto à
postura adotada pelo profissional em relação às
suas
convicções. É possível encontrar
respaldo nas ideias de Feyerabend (2010), quando este identifica o
Relativismo
Prático. Para ilustrar essa proposta, o autor
apresenta a seguinte tese:

...
indivíduos, grupos e civilizações inteiras podem
lucrar ao estudar culturas, instituições e
ideias
estrangeiras, por mais fortes que sejam as tradições
que apoiam suas próprias ideias (por
mais fortes que sejam os
argumentos que servem de base a elas). Por exemplo, os católicos
podem se beneficiar ao estudar o budismo, médicos podem se
beneficiar com um estudo de Nei
Ching ou de um encontro com
feiticeiros africanos, psicólogos podem se beneficiar de um
estudo das maneiras como os romancistas e atores constroem um
personagem, cientistas de um
modo geral podem se beneficiar com um
estudo de métodos e pontos de vista não científicos
e
a civilização ocidental como um todo pode aprender
muito com as crenças, hábitos e
instituições
de povos “primitivos”. (2010; p. 29).

A
relação que aqui fazemos entre reflexão e
flexibilidade não é absoluta, nem pretende ser. É,
antes, a apresentação de
uma interpretação
possível para o que se pode entender por reflexão.

No
campo conceitual, podemos obter várias definições
e aplicações para o termo reflexão. É
muito comum que as
definições carreguem o sentido de
uma ação reflexiva diante de algo apresentado ou
vivenciado. Podemos visitar
alguns comentários de Abbagnano
(2007) sobre a definição feita por alguns grandes nomes
da história da Filosofia:

...
mesmo não empregando o termo [reflexão], Aristóteles
admite o fato óbvio de que o
intelecto ‘pode pensar-se’.
(...) Os escolásticos expressaram esta possibilidade com o
termo
reflexão. Tomás de Aquino diz: ‘uma vez que
reflete sobre si mesmo, o intelecto entende,
conforme essa reflexão,
tanto o seu entender quanto a espécie por meio da qual
entende. (2007;
p. 986).

Ainda
segundo Abbagnano, podemos observar aqui o caráter essencial
da reflexão, a partir da necessidade de refletir
sobre si
mesmo para então, entender o particular.

Um
trabalho focado na reflexão é menos simples do que
parece. Defendemos aqui a ideia de que a reflexão seja um
processo muito menos técnico do que afetivo. Pode ser encarada
como uma postura frente ao que se nos apresenta.

É
comum, em nossos atendimentos, depararmos com situações
que nos afetam e nos provocam. Cada uma dessas
situações
pode ser encarada como mais um momento em que o terapeuta deve
escutar, acessar sua abordagem teórica
de referência,
avaliar como deve proceder para fazer melhor o seu trabalho.

A
postura reflexiva vai além de uma postura autocrítica;
é ainda, uma postura cuidadosa e atenta aos afetos em nós
provocados pelo encontro com nossos pacientes. Segundo Leibniz, a
reflexão é a atenção dada àquilo
que está em nós,
enquanto os nossos sentidos não
conseguem acessar tal coisa. (Abbagnano, 2007).

Muito
interessante, também, é a versão de Kant para a
função da reflexão, afirmando que a reflexão
não visa aos
objetos em si para chegar aos conceitos. Antes
disso, segundo Kant (in
Abbagnano, 2007), a reflexão é um
estado de
espírito em que começamos a dispor-nos a
descobrir as condições subjetivas que nos possibilitam
chegar aos
conceitos (p; 986).
Um
caráter ressaltado ainda por Abbagnano e que consideramos
importante para este trabalho é o caráter de ação
criativa. Tal ideia, proposta por Hegel (ibid.)
está de acordo com os pressupostos do Construcionismo Social,
quando
afirma que tal ação
criativa traz à luz a verdadeira natureza daquilo que se
investiga e, portanto, de algum modo
produz tal natureza
(p; 986). Nas palavras de Hegel, segundo Abbagnano, podemos
identificar algo que pode ser
identificado como uma proposta de
construção da realidade pelo sujeito:

Uma
vez que, na reflexão, se obtém a verdadeira natureza, e
esse pensamento é minha
atividade, essa verdadeira natureza é
igualmente produto do meu espírito, do meu espírito
como
Sujeito pensante, de mim, na minha simples universalidade, como
Eu que é sem dúvida por si,
ou seja, da minha
liberdade. (ibid.
p. 987).

Ainda
temos, de acordo com o pensamento fenomenológico de Husserl, a
reflexão retratada como uma espécie de
percepção
imanente, que se conecta
imediatamente com o que é percebido (ibid.).

Quando
trazemos para discussão o termo irreverência,
trazemos também, inevitavelmente conectado a ele, a
curiosidade. A principal referência teórica e inspiração
para a proposta da irreverência e da curiosidade como
elementos
fundamentais para este trabalho está nas ideias do
psicoterapeuta italiano Gianfranco Cecchin (1932-2004).
Cecchin fez
emergir na Terapia Familiar os conceitos de curiosidade e de
irreverência.

Uma
ideia importante e básica de seus estudos fala sobre a crítica
ao saber apriorístico. Qualquer que seja, esse saber
concorre
para uma gama de preconceitos por parte do terapeuta, que na verdade,
acabará eventualmente bloqueando o
processo terapêutico,
se tentar adaptar a problemática do paciente a um arcabouço
teórico,,antes de procurar investigar
a situação
e se relacionar genuinamente com a família.

A
observação das ideias de Cecchin, que são tão
bem exploradas e difundidas por seus predecessores, nos faz
considerar a importância da crítica sobre o trabalho do
profissional que conduz qualquer processo terapêutico.

A
irreverência e a curiosidade se mostram elementos básicos
do conceito formulado por Cecchin, segundo Prati (2009),
de
irreverência teórica.
De acordo com este princípio, procura-se constantemente
criticar e investigar com curiosidade
as teorias e práticas
que surgem e são utilizadas na clínica. No trabalho de
Prati, observamos também as palavras de
McNamee (2004) que
fala sobre a chamada promiscuidade
teórica, que além de
se preocupar com o olhar crítico e
curioso, atenta para o modo
como os profissionais tomam decisões no processo terapêutico,
caminhando no sentido de
uma compreensão do que realmente
“significa ser um terapeuta” e fazer um trabalho clínico.
(p. 16).

Nessa
proposta, trazemos a necessidade de uma postura flexível e
criativa. Devemos estar prontos para que um novo
espaço se
crie dentro da relação estabelecida. Uma nova forma de
comunicação sempre terá vez caso estejamos
atuando com uma atitude irreverente, curiosa e flexível.

Na
terapia familiar, muitas vezes somos como que convidados a adotar uma
postura rígida e talvez mais acessível para
nós.
A facilidade inicial pode se transformar em problemas posteriores,
que serão observados quando o processo estiver
muito limitado.
Nas palavras de McNamee:

No
campo da terapia de família, nossa preocupação é
claramente ajudar as famílias a
encontrarem modos produtivos
de viver juntas, a inquestionável aceitação de
que o método
científico vai nos dizer qual teoria ou modelo é o certo
para ser utilizado é mais do que
limitante. Como observa
Larner (2004), ‘ser científico é manter uma
curiosidade investigativa
sobre como por que a terapia funciona, e
aceitar que a ciência pode não ser suficiente para
explicar o processo’ (p. 29). Uma ênfase dialógica
(em oposição ao cientificismo) gera o tipo
de
irreverência (e curiosidade) exigida por uma terapia efetiva.

A
irreverência pode ser encarada, simplesmente, como o ato de não
reverenciar. É uma recusa sem agressividade. Uma
recusa que
substitui o tom carrancudo de uma recusa comum por uma alternativa
mais produtiva que está curiosidade.
O
terapeuta irreverente surpreende a si mesmo, quando se vê
aceitando participar de um processo para o qual uma linha
teórica
rígida e determinista aconselharia veementemente que ele se
mantivesse distante.

Segundo
McNamee, se formos um pouco irreverentes, talvez possamos começar
a ver cada modelo de terapia como
uma forma potencialmente útil
de construção com nossos pacientes.

A
abertura às surpresas do encontro pode ser uma das mais
eficazes ferramentas de que o terapeuta dispõe. Cada
encontro
é novo, cada encontro é único, e não
somos capazes de prever as forças que irão emergir
dele. Entretanto,
podemos limitar essas forças, caso nos
mantenhamos firmemente olhando para um único lado do
horizonte, caso nos
detenhamos a pensar sobre a validação
de nossa abordagem teórica de afinidade.

Algumas
palavras não combinam com o que procuramos trazer como
objetivos de terapia: limitação é certamente uma
delas. Quando uma forma de ver ou de lidar parece limitar as
possibilidades de ação do sujeito em qualquer situação
em que se encontre, a ampliação pode ser uma boa saída.
É disso que falamos o tempo todo quando citamos a
expressão
mudança paradigmática.

Para
o caso deste trabalho não é diferente. A proposta de
uma aproximação entre Fenomenologia e Construcionismo
Social pode ser encarada como uma proposta de outra visão
sobre as coisas. Uma atitude irreverente frente às verdades
que nos transmitem na academia certamente levará a outras
estradas a percorrer.

Defendemos
aqui a irreverência como companheira da reflexão e da
curiosidade, no sentido de ser mais um elemento
que parece apontar
como uma seta contundente para a ampliação (de valores,
de concepções, de critérios etc).

No
trabalho de campo

Quando
tratamos dos Processos Reflexivos fazemos uma conexão imediata
com a noção de mudanças paradigmáticas
que permeia toda a produção de conhecimento nos dias
atuais. A própria ideia de produção passa a ser
questionada
2
num momento que costuma ser chamado por alguns
profissionais de pós-modernidade .

Trazemos
uma reflexão sobre os processos reflexivos no trabalho de
campo para que possamos situar com algum
critério a figura do
terapeuta nessa nova forma de trabalhar.

O
contexto clínico do surgimento do que hoje denominamos Equipe
Reflexiva foi marcado por uma mudança
paradigmática.
Neste caso, falamos da inclusão do observador no sistema por
ele observado. Uma nova postura do
terapeuta passou a ser estimulada
com base nesse momento divisor de águas.

No
trabalho desenvolvido por Guanaes (2006), encontra-se algo essencial
para este trabalho. Nas palavras da autora,
quando se refere a formas
determinadas de se ver o mundo e a explicações de como
as coisas são:

Apesar
disso, a perspectiva construcionista vem questionar a universalidade
destas e de outras
explicações de mundo, nos convidando
a entendê-las como construções sociais. Essa
perspectiva propõe que é por meio de nossa participação
em práticas discursivas, social,
histórica e
culturalmente situadas, que produzimos, conjuntamente, descrições
de realidade.
(2006, p. 19.)

Alguns
aspectos nos parecem de suma importância, quando tratamos dos
chamados Processos Reflexivos na prática
clínica.
Pretendemos neste capítulo, trazer uma discussão sobre
tais aspectos do ponto de vista do profissional que
comanda o
encontro terapêutico, que chamamos aqui de terapeuta de campo.

Em
primeiro lugar, a relação com o Conhecimento. Depois de
toda uma era em que se buscava atingir o Conhecimento
3
por meio de
métodos e análises criteriosas, tão próximas
quanto possível de verdades científicas ,
chega-se a um tempo
em que a ideia de que o conhecimento construído
ganha força. E é nesse tipo de ambiente que surge,
quase que
imperativamente, a concepção dos Processos
Reflexivos. A abordagem que lida com o conhecimento construído
trará
forçosamente uma nova forma de olhar para a
figura que em outros tempos lá estaria para oferecer respostas
e
orientações.

Quando
falamos sobre o conhecimento construído, e não dado ou
alcançado, estamos lidando com um ambiente onde o
observador
passa a ocupar um lugar diferente do que ocupava antes. Para este
trabalho, é fundamental a ideia de que o
conhecimento
construído esteja relacionado à inclusão do
observador no sistema por ele observado.
Quando
passa a fazer parte do sistema, o terapeuta de campo - neste caso, a
figura observadora - passa também a
relacionar-se com o
sistema de maneira diferente. Não está mais em um lugar
estável e inabalável de saber ou em
posição
de dar respostas e instruções. O novo lugar é um
lugar que oferece possibilidades de sensações novas e
hipóteses novas sobre o que esteja acontecendo.

O
novo lugar também traz novos desafios, como o incômodo
que serviu de mola propulsora para as modificações no
que se chamava de intervenção. A célebre
mudança, que passava a fazer com que o terapeuta de campo
consultasse a
equipe reflexiva na presença da família,
nos parece contribuir para a ideia do conhecimento construído.
Este nos parece
um detalhe crucial para uma aproximação
maior e para um conforto também diferenciado no caso da
família.
Pensamos que, se a família se sente amparada
durante todo o encontro, poderá sentir-se mais estimulada a
contribuir
com as ideias da equipe, que na verdade, serão
ideias sobre seu próprio funcionamento. E uma das principais
ideias
gira em torno da parceria que experimenta com a equipe
reflexiva.

Em
relação a terapeutas e pacientes, Tom Andersen e seus
colaboradores demonstravam corriqueiramente o incômodo
com tal
afastamento. Um detalhe importante é que as famílias
pareciam trazer um retorno importante para eles nesse
sentido. Nas
palavras de Castanho:

Desde
1981, Tom Andersen e Aina Sporken, enfermeira de saúde mental,
discutiam sobre suas
observações a respeito do que as
pessoas lhes diziam no primeiro contato; “Tipicamente, elas
diziam “nós não sabemos o que fazer! o que
devemos fazer?”McNamee e Gergen (1998, p.73).
Em suas
discussões passaram a questionar porque a equipe de terapeutas
mantinha-se afastada
das famílias nas

pausas
das sessões para suas conversações? (Castanho,
2005; p. 47).

No
trabalho de campo, o terapeuta se dá conta de que não
pode exercer a função sem considerar a parceria. O
profissional reflexivo, em seu trabalho de campo, deve estar atento
ao que ouve e ao efeito que o que ouve lhe causa.
Podemos citar as
palavras de Andersen sobre a reflexão, aparecendo esta como
“algo
ouvido que é internalizado e
pensado antes de uma resposta a
ser dada”
(1991; p. 35).

Tendemos
a pensar que isso esteja relacionado com o que vem da família,
do casal etc. No entanto, devemos atentar
para o que diz e faz a
nossa parceria terapêutica. A conexão com o membro da
equipe reflexiva é essencial para que o
trabalho seja
vivenciado de forma eficaz por todos os elementos do sistema. Deve-se
evitar o afastamento que pode
ocorrer facilmente entre terapeutas e
entre terapeutas e pacientes.

Ressaltamos
que a função de terapeuta de campo tende a ser a mais
organizadora do encontro terapêutico. Nem por
isso, entretanto,
deve se deixar levar por tendências objetivistas e
deterministas. Muitas vezes é mais difícil ser
reflexivo na posição de terapeuta de campo.

Na
perspectiva da relação com o conhecimento, a função
de terapeuta de campo pode servir como guia por um
caminho
desconhecido. Se o terapeuta de campo, por meio de uma boa relação
com a família, consegue conduzir seus
membros por um caminho
que tende a abrir portas, o trabalho será mais bem tolerado;
as construções a serem feitas
terão mais o
sentimento de libertação do que de incerteza.

Além
da perspectiva sobre a relação com o Conhecimento,
temos a perspectiva ressaltada por Tom Andersen da
compreensão
no lugar da explicação.

Este
ponto traz a importância de ser mais uma forma de questionar a
validade do método científico para o campo da
terapia
familiar. A perspectiva sistêmica contribui de forma
incontestável para tal questionamento.

Mais
uma vez, podemos dizer que a mudança paradigmática em
relação ao lugar do observador guarda estreita relação
com o teor compreensivo do trabalho orientado pelos Processos
Reflexivos.

Devemos
ressaltar que uma postura compreensiva não parece ter sido
fácil de alcançar, mesmo para o próprio
Andersen. Na verdade, não é difícil pensar que
uma postura compreensiva seja alcançada depois que você
já deu
alguns tiros
n’água
com uma postura explicativa.

Compreender
sem explicar parece mesmo pouco natural; parece a metade do caminho.
Mas começamos a perceber a
utilidade compreensão quando
admitimos que o caminho não deva ser todo trilhado por nós,
quando falamos de
trabalho terapêutico.
A
ideia de uma postura compreensiva chega ao autor após uma
reflexão sobre a sua própria obra. No capítulo
em que
trata das reflexões feitas dois anos depois de seu
livro, Andersen nos traz estas palavras:

Definitivamente,
teria tirado as palavras explicar
e
explicação. Estas
palavras pertencem, como
percebo hoje, àquela parte do mundo
onde se situam a ciências físicas (d’Andrade,
1986).
Nessa parte do mundo, buscam-se descrições que,
esperemos, representem exatamente o
fenômeno fisco estudado.
Estudando e descrevendo o fenômeno sob diferentes influências,
é
possível explicar
o
que causa qual mudança. É até possível
predizer como o fenômeno será
mudado caso sofra a
influência disto ou daquilo. Com base nesses estudos, é
possível
desenvolver leis gerais de explicação e
predição para o próprio fenômeno e para
fenômenos
similares, as quais, por sua vez, podem ser
utilizadas para regular e controlar o mundo que nos
cerca - ou pelo
menos parte dele. (...) No entanto, apesar de estar arrependido por
ter usado a
palavra explicação
na primeira edição do livro, me consola um pouco notar
que seu conteúdo
tende para a palavra compreensão.
Todavia, se tivesse escrito o livro hoje, as palavras explicar
e explicação
teriam sido substituídas por compreender
e
compreensão
(1991;
p 145.).

Este
nos parece o cerne do caminho percorrido pelos Processos Reflexivos.
Uma trajetória que vai do extremo das
necessidades para o
espectro das possibilidades. Sai das necessidades de dar ao mundo uma
razão específica e única
para o lugar em que
podemos abrir espaço para a existência de versões
variadas sobre uma mesma história.

Em
minha experiência clínica, venho percebendo que a
verdade científica é algo altamente contestável,
pelo menos no
que se refere ao trabalho de nós, terapeutas.
Tendo me aproximado da perspectiva construcionista social, foi
possível
observar que a intuição poderia estar
entre as mais importantes ferramentas de que o terapeuta dispunha.

Como
terapeuta de campo, por muitas vezes, me encontrei na tentadora
posição de esperar que a minha parceria
resolvesse os
meus incômodos com o que havia ouvido, ou mesmo com que eu
havia falado. A partir de uma
participação da equipe
reflexiva que me fizesse conectar a questões direcionadas para
o benefício da incerteza, dos
caminhos em aberto, ia
experimentando uma possibilidade maior de propor novas formas de
compreensão para aqueles
que estavam ali buscando ajuda.
Muitas vezes eu acabava abrindo meus próprios caminhos, a
partir de palavras que
vinham de um ponto de vista completamente
diferente.

O
trabalho de campo é uma oportunidade ímpar para que
possamos nos desvencilhar das regras que conhecemos
quanto à
atitude correta de um terapeuta. Nesse momento, podemos acrescentar
às nossas intervenções clínicas
elementos
de metaforização baseados em nossa experiência de
vida e perceber como esses elementos podem ser
construtivos num
trabalho de compreensão.

Fenomenologia
e Construcionismo podem se encontrar no trabalho de campo quando o
terapeuta, por intuição, decide
ir por este ou por
aquele caminho, pois os caminhos oferecidos a nós continuam
existindo. Além disso, a proposta do
Construcionismo Social
parece ser compatível com a Fenomenologia no trabalho dos
terapeutas de campo, tomando
por base as ideias de Tom Andersen
acerca da postura compreensiva que o terapeuta deve almejar. Tanto o
Construcionismo Social quanto a Fenomenologia dão maior
importância à compreensão do que à
explicação. Isto fará
com que os profissionais
se tornem mais coadjuvantes no processo de reconstrução
de pontos da vida de famílias
atendidas, como pensamos que
deva ser.

Na
Equipe Reflexiva            

Diferente
do que vem acontecendo comigo no trabalho de campo, o trabalho na
equipe reflexiva tem-se mostrado solo
fértil para o surgimento
de ideias livres e associações pouco usuais acerca das
histórias que escuto. Muitas vezes me
surpreendo com imagens
de minha infância que me vêm à cabeça
quando de um relato familiar. Nesses momentos,
observo que as imagens
que me aparecem, muito têm a ver com uma possibilidade nova,
uma curiosidade minha sobre
a história que é contada
pela família.

Muitas
vezes, também, as imagens que encontro em meus pensamentos
estão relacionadas à postura que meu parceiro,
terapeuta de campo, assume no atendimento. Perguntas incendeiam a
mente e tenho que selecionar o que mais me
parece útil a cada
encontro.

Por
essas e outras razões, penso que uma discussão sobre a
equipe reflexiva venha forçosamente carregada de
subjetividade. O trabalho na equipe reflexiva acaba sendo um trabalho
de autoconhecimento instantâneo, pois
passamos a observar com
mais cuidado o que acontece com nós mesmos quando somos
tomados pela história de uma
outra pessoa. Naturalmente, as
perguntas serão um dos pontos mais importantes dessa função.

O
trabalho na equipe reflexiva é constantemente alvo de
perguntas internas sobre como se comportar e o que falar etc.
Penso
que tudo isso tenha um viés saudável que é o
viés do cuidado com o outro. No entanto, é uma das
armadilhas
que estão sempre prontas para nos fazer recuar ao
pensamento mecanicista e determinista, abandonando a visão de
mundo que critica as verdades universais.

Segundo
Tom Andersen (1991), as perguntas que se tornam saudáveis e
construtivas são as perguntas adequadamente
incomuns.
Perguntas óbvias não nos fariam sair do lugar,
perguntas agressivas e estranhas demais poderiam fazer com
que a
família se retesasse em um lugar de resistência à
mudança. As perguntas adequadamente
incomuns
são ao
mesmo tempo intrigantes e sedutoras, fazendo com que o
paciente se sinta motivado a responder e a sair do lugar onde
havia
fincado os pés.

Se
acreditarmos que não haja uma verdade universal, um modo de
ser e de estar antes de sabermos com quem estamos
lidando, poderemos,
ainda que com dificuldade, manter a postura de curiosidade e de
irreverência tratadas neste
trabalho. Além de
curiosidade e irreverência, considero essencial a postura
autêntica. Podemos não dizer tudo que
pensamos, mas é
funcional, saudável, terapêutico e justo que, quando
falarmos, falemos algo que pensemos
genuinamente.

Uma
das grandes armadilhas que temos que desarmar quando estamos na
equipe reflexiva é aquela montada por nós
mesmos, para
nos proteger sabe-se lá de quê. Podemos imaginar que nos
protejamos de fracassos, de sensações
desagradáveis
provocadas pela auto-exposição, de um olhar crítico
do colega, mas no fim das contas, a necessidade de
proteção
é sempre uma armadilha nossa para nós mesmos.

O
treinamento pelo qual passamos nos anos de cursos de especialização
não me parece ser suficiente para que paremos
de nos proteger.
Nem sei se devemos parar de nos proteger. Acontece que muitas vezes
pecamos por proteção.

Quando
estamos a ponto de fazer uma reflexão pela primeira vez, é
comum que sintamos algo de visceral e estranho,
como um desconforto
na barriga, ou um ligeiro descompassar em nossos batimentos
cardíacos. Se conseguirmos
aprender que esta etapa é
tão importante quanto a etapa da segurança, poderemos
passar por ela sem estragos.

É
imprescindível que olhemos para nós mesmos de uma outra
forma,para que consigamos fazer um bom trabalho que é
totalmente “outra forma”. Em meu curto tempo de trabalho
como membro de equipe reflexiva consegui assimilar a
ideia de que não
há como evitar uma palavra mal colocada em algum momento.
Curiosamente, quanto menos me
importo com as palavras bem colocadas,
menos me sinto errando. A procura do certo me parece uma
característica
saudável, apesar de nos levar a
enrijecimentos que apenas prejudicam.

O
trabalho na equipe reflexiva pode servir para uma nova forma de ver
tudo o que acontece à nossa volta, num
encontro terapêutico.
Estamos em outro lugar, não precisamos conduzir o atendimento.
Não precisamos fazer primeiro
contato com as famílias.
Podemos, simplesmente, estar ali, sem estar ali.

Referências
Bibliográficas

Andersen,
T. Processos
Reflexivos.
Rio de janeiro: NOOS; (1991).

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H e Goolishian, H. Sistemas
humanos como sistemas linguísticos: ideias preliminares e em
evolução sobre
as implicações para a
teoria clínica; (1988).

Gergen,
K., Hofman, L. e Anderson, H. o
diagnostico é um desastre?: um triálogo
construcionista; rascunho do
capítulo para Kaslow
(org.) Diagnóstico
Relacional, Wiley
(1996).

Gergen,
K. e Warhuus, L. Terapia
como construção social: características,
reflexões e evoluções;
in
Gonçalves,
M. e
Gonçalves, O. (orgs.) Psicoterapia,
Discurso e Narrativa: a construção conversacional da
mudança. Coimbra:
Quarteto (2001).

Grandesso,
M. A. Sobre
e Reconstrução do Significado: uma análise
epistemológica e hermenêutica da prática
clínica.
São
Paulo: Casa do Psicólogo (2011).
Guanaes,
C. A Construção da Mudança em Terapia de
Grupo: um enfoque construcionista social. São Paulo,
VETOR. (2006).

Rasera,
E. e Japur, M. Grupo
como Construção Social: aproximações
entre construcionismo social e terapia de
grupo. São
Paulo: VETOR (2007).

1
Perspectiva teórica que lança seu foco sobre processos
relacionais e discursivos a partir dos quais as pessoas
constroem a
si mesmas e o mundo em que vivem (Guanaes, 2006).

2
Esta denominação provavelmente se dá por causa
das mudanças em relação ao pensamento
científico característico
da era Moderna. O fato de
não utilizarmos o termo pós-modernidade neste trabalho
com frequência refere-se apenas a
um cuidado para não
fazer um uso excessivo da palavra.

3
Procuramos aqui, revisitar a ideia de que as verdades eram
alcançadas por meio de métodos de controle de
variáveis.
Uma vez controladas as variáveis, os
experimentos eram também controlados e poderiam ser repetidos
à exaustão,
produzindo o mesmo resultado. Assim,
então, seria obtida uma verdade científica.

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