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AVALIAÇÃO E MÉTODO CLÍNICO NA PERSPECTIVA PRÁTICA DO PSICÓLOGO

Psicólogo Ms. Giovani Meinhardt

Sistemas psicológicos e unificações teóricas

A breve história da psicologia conheceu múltiplos sistemas que ainda hoje não cessam de
surgir. Os sistemas são caracteristicamente abrangentes e geram escolas de psicologias.
Entretanto, o termo ‘sistema’ não provê completude nos esforços teóricos das escolas de
psicologia. Qualquer sistema tem engendrado em seu âmago a impossibilidade de qualquer
unidade abrangente ou discursiva que poderia representar todos os sistemas psicológicas em
um sistema único. Uma teoria que representa o sistema de todos os sistemas conjetura uma
irreal pretensao. Os sistemas psicológicos, construídos por seres humanos limitados, refletem
o alcance de pesquisas de uma momento da história e representam o espírito da época. Como
exemplo, entre os sistemas mais exuberantes da constelação ‘psi’ está a psicanálise, incluída
publicamente como psicologia.

Como fractais, os frutos dos sistemas incluem muitas escolas psicológicas que suscitam outras
escolas psicológicas. O número de escolas de psicologia reflete a especialização do
conhecimento psicológico. A eclosão de muitas escolas psicológicas tornou-se um fato com
consequências pulverizadas. Se alguns teóricos apontassem o ser humano como unidade
extensiva da ciência psicológica, esqueceriam da psicologia voltada aos animais ou a metáfora
computacional como fonte de estudo, por exemplo. Sob tais circunstâncias, percebemos a
inviabilidade de uma metapsicologia sistemática1. De forma desafortunada, alguns
profissionais acreditam que um sistema de sistemas existe e tal conversão reside na sua eleita
teoria. Assim, a teoria da qual trabalham representaria o ápice sistemático definitivo de valor e
verdade psicológica. O filósofo da ciência Paul Feyerabend (2010, p. 18) aponta a existência de
componentes escusos enxertados na ciência, já que para ele a “premissa de que existem
padrões de conhecimento e de ação universalmente válidos e aglutinadores é um caso
especial de uma crença cuja influência vai muito além do domínio do debate intelectual”.
Destarte, subjacente ao desenvolvimento científico a crença tem o poder de orientar e reger
pesquisas, legitimando resultados travestidos de um pretenso rigor metodológico. A crença,
substituindo a ciência, “pode ser formulada dizendo que existe uma maneira certa de viver
que o mundo deve aceitar” (Feyerabend, 2010, p. 18). Ao receber o bem viver enquanto dever
a ciência estaria muito perto de um regime autoritário.

Seguindo outras vias de unificação, a busca de um operador modal dentro da ciência


psicológica não é tão simples como parece: cérebro, mente, animal, pessoa, comunidade são
focos variáveis nas escolas de psicologia. As psicologias enquanto explicações totais do ser não
passam de mera pretensão: os alcances são importantes, mas limitados. Feyerabend (2011, p.
303) reconhece que “a ampla divergência entre indivíduos, escolas, períodos históricos e
ciências inteiras torna extremamente difícil identificar princípios abrangentes, quer de

1
Não é apenas a psicologia que vive uma impossibilidade de unificação. “A meteorologia, a geologia, a
psicologia, vastas partes da biologia e das ciências sociais encontram-se ainda mais longe da unificação.
Portanto, em vez de multiplicidade de detalhes firmemente ligada a conjuntos de leis básicas
temporalmente invariáveis, temos uma variedade de abordagens com princípios unificadores
indistintamente aparecendo ao fundo” (Feyerabend, 2006, p. 191).

1
método, quer de fato”. Mesmo a psicologia em sua esfera clínica concebe o conjunto de
algumas características avaliativas que diferem de outra abordagem clínica.

Na sua curta tradição, a psicologia se dividiu várias vezes em caráter de especialização, cuja
demanda está na realidade enquanto exigência prática. A ciência psicológica não comporta
uma dualidade entre racionalismo e empirismo na psicologia, pois ela se forma a partir da
prática, teoria e pesquisa entrelaçadas. O estágio de especialização da disciplina psicológica foi
concebido devido a inúmeros objetivos: psicologia jurídica, do trânsito, militar, escolar,
ambiental, comunitária, hospitalar, social, esportiva, etc. A diversidade de performances das
muitas psicologias também aparentam práticas não articuladas entre si. Entretanto, a
fragmentação coexiste dentro das próprias especializações, nos levando a reconhecer, por
exemplo, várias psicologias clínicas com metodologias específicas. A tematização das
diferentes teorias clínicas são ingenuamente vistas por alguns catedráticos como escolas rivais.
Estas rivalidades, frutos de vaidade ou ignorância, comungam distância e por conseguinte são
avessas à comunicação. Diante da defesa de seus campos de ação e teoria o monólogo
frequentemente instaura-se.

A psicologia clínica, especificamente, está arquitetada através de muitas concessões:


terapêutica, sua intenção prática, psicologia como sabedoria, conscientização, técnica de
formação, conduta de vida, orientação para a vida, atividade diagnóstica, atividade
prognóstica, psicologia aplicada, etc. A primeira vista estas concessões parecem promover
uma incongruência. Na verdade, o aparente paradoxo entre concessões e escolas psicológicas
marca a psicologia enquanto unidade, isto é, sua coesão é a diferença. Os casos particulares
que a psicologia clínica se debruça revelam cada indivíduo como objeto de pesquisa e
compreensão. Em tal perspectiva, inicialmente todos os indivíduos em sua diversidade são
considerados candidatos à teoria. As psicologias têm como determinação fundamental teorias
confrontadas com a prática2. Assim, o indivíduo e o profissional refletem uma dimensão
teórica e prática do exercício profissional. A carga teórica adquire sentido através da
experiência. Neste ponto verificamos que a possível existência de um psicólogo
exclusivamente teórico cunharia uma psicologia ingênua. “A experiência surge com
pressupostos teóricos, e não antes deles, e uma experiência sem teoria é tão incompreensível
quanto o é (presumidamente) uma teoria sem experiência” (Feyerabend, 2011, p. 198). A
psicologia atinge compreensão de forma bidimensional através da intersecção de experiência
e teoria.

A psicologia rigorosamente concebida como empresa teórica e prática não pode ser
confundida com empreendimentos oriundos da autoajuda, magia, alquimia, terapia de pedras
ou qualquer outra atividade que deseja instaurar bem-estar recorrendo a métodos não
reconhecidos pela psicologia. A psicologia enquanto entidade linguística representa um
conjunto determinado de sentenças, preceitos e pesquisas. Introduzindo o exercício da
avaliação psicológica, o “que define a validade e a fidedignidade de uma avaliação psicológica
é a escolha adequada de instrumentos e técnicas psicológicas reconhecidas no âmbito da
profissão, bem como o domínio destes e preparo técnico do avaliador” (Entre linhas, 2016, n.

2
A prática enquanto fundamento científico é uma exigência de várias áreas do conhecimento. É
perceptível que “cientistas de diferentes áreas usam diferentes procedimentos e constroem de
maneiras diferentes as suas teorias; em outras palavras – eles também têm concepções diferentes de
realidade. No entanto, não especulam somente; também testam os seus conceitos e frequentemente
têm sucesso: as diferentes concepções de realidade que ocorrem nas ciências têm um fundamento
empírico. Esse é um fato histórico, e não uma posição filosófica” (Feyerabend, 2006, p. 256).

2
72, p. 27). Se há dificuldade de consenso entre as diversas escolas de psicologia, tampouco
haverá com outras práticas de origens e objetivos mais diversificados. A psicologia clínica não
admite espaços vazios no exercício profissional. Sua escuta e procedimentos, examinados em
si mesmos, estão adornados com componentes teóricos. São eles que justificam a condução
do tratamento psicoterápico. Uma condução de tratamento clínico sem arcabouço teórico é
totalmente insustentável.

Diante da diversidade de escolas, como os psicólogos poderiam pelo menos encontrar uma
linguagem comum? De modo superficial não haveria maneira das escolas se articularem. No
entanto, os psicólogos, como seres humanos concretos encontram-se com outras pessoas
dentro de um mundo que não é apenas psicológico. Os psicólogos e psicólogas dentro de sua
profissão comunicam sua prática para pessoas fora do ambiente psicológico. O valor da
comunicação extra psicológica é simples e objetivo e deve ser reconhecido enquanto valor
estratégico irrefutável de clareza na comunicação. Esta provavelmente é a chave também para
a comunicação entre escolas, ou seja, comunicar-se através de pressupostos básicos. Não se
trata de uma tentativa de combinação de teorias, mas de exposição das mesmas em
comunicação.

As diversas psicologias representam também a opinião de muitas pessoas, ou seja, de


subjetividades díspares por natureza. Não podemos acusar ouL julgar outra teoria em erro.
Ninguém representa critério de validade teórica. Existem muitos critérios e muitos absolutos.
O discurso que busca a escola verdadeira é apenas condicionado por convicções e não por
compreensões. Para Raimon Panikkar (1977, p. 96) a “relação entre a compreensão e a
convicção é tão íntima, que facilmente as duas coisas são confundidas entre si ou até mesmo
são falsamente consideradas como sinônimas”. As convicções são pessoais e de difícil
compartilhamento já que atestam crenças que resistem à mudanças. Por sua vez,
compreensões são construídas através de compromissos, ou seja, envolvimentos
fundamentados em diálogo. “Compreender é um processo prenhe de riscos e que demanda
coragem; e está bem longe de ser impessoal ou não exigir compromisso. O processo da
compreensão engaja a pessoa em sua totalidade. A inteligência humana não pode realmente
cumprir a sua função sem colocar amor e sem engajar a sua pessoa inteira” (Panikkar, 1977, p.
119). Algum nível de acordo é necessário para que as pessoas se ponham embaixo da mesma
coisa.

Através da compreensão, nenhuma escola de psicologia pode ter a pretensão ou o desejo de


ser coextensiva com a realidade do mundo, a ponto de englobar tudo o que existe. Qualquer
escola psicológica é uma ótica, mas incompatível com a abrangência do mundo, pois ela não o
comporta. Um psicólogo pode assumir uma posição bem determinada, mas isso não decorre
em escolha teórica melhor que outras. Claro que uma posição concreta não significa uma
posição reducionista: um psicólogo pode atender muitos tipos de pessoas. Gostar de uma
teoria não significa a supressão de outras teorias. Causa estranheza quando psicólogos tentam
levar a sério outras teorias apenas através da superestima do que eles escolheram como
melhor. Razões justificadoras sobre a veracidade de teorias muitas vezes envolvem mais
emoções do que razões. Isso explica porque a atitude de julgamento depreciativo de alguns
psicólogos subsiste como fator determinante no ataque de outras teorias diferentes das suas.

Ao invés de procurarmos identidade entre teorias, seria muito mais razoável buscarmos
correspondências. A busca de identificações tornou-se uma expressão inflacionária. O objetivo
não é encontrar justificações ou amplos padrões de compartilhamento teórico. O importante é

3
o estabelecimento de diálogo entre os psicólogos de diferentes escolas. O diálogo pode iniciar
através de algo comum como possíveis equivalências teóricas.

Trata-se de um erro confundir uma escola psicológica enquanto formulação da realidade ou de


uma teoria da realidade. A especialização psicológica, qualquer que seja, é ela mesma uma
ínfima parte do mundo.

Rivalidades

As situações de reivindicação de protagonismo científico não são raras entre psicólogos. O


enaltecimento próprio muitas vezes passa pela objeção de não cientificidade de outras
escolas. Todavia, a ciência é um parâmetro de vida? De acordo com Feyerabend (2011, p. 8) “a
ciência deveria ser ensinada como uma concepção entre muitas e não como o único caminho
para a verdade da realidade”. Por vezes aprendemos mais de nossos clientes do que de outras
fontes reconhecidas meritoriamente como científicas. Dar assistência às pessoas e fazer
crescer o conhecimento são coisas diferentes. Porém, o avanço do conhecimento não
pressupõe a depreciação de outras escolas. A publicidade da escola melhor injeta artifícios tão
brutos quanto irreais. Dessa forma, “é possível usar os slogans mais insípidos e os “princípios”
mais vazios para vender ou impor uma visão de mundo coerente e significativa. Isso não
encoraja a liberdade, ao contrário, engendra escravidão, embora uma escravidão embalada
em frases libertárias ressoantes (Feyerabend, 2010, p. 20).

A psicoterapia é um trabalho conjunto. A comunicação entre escolas poderia usá-la como


exemplo comunicacional. Dentro de uma seita rígida a unanimidade de pensamento é o
método supremo de controle. Contudo, o estudo e a pesquisa em psicologia não é uma
espécie de tirania. “A variedade de opiniões é necessária para o conhecimento objetivo. E um
método e que estimula a variedade é também o único método compatível com uma
perspectiva humanitarista” (Feyerabend, 2011, p. 58). Infelizmente, formas de vida e ideias
algumas vezes são desrespeitadas em prol da reputação de uma teoria.

Ao invés de simples discussões ou debates científicos intercambiáveis, o que vemos são


protecionismos. “Todo passo que protege de crítica uma concepção, que a deixa segura ou
“bem fundamentada”, é um passo para longe da racionalidade” (Feyerabend, 2011, p. 200).
Mesmo a racionalidade não é critério único da construção de teorias psicológicas. Muitas
teorias e pesquisas psicopatológicas foram fundadas no caráter ilógico da doença mental. De
forma idêntica e muito civilizada, não podemos assumir que nossa escolha teórica seja o
centro do mundo.

A crença em escolher a melhor escola de psicologia está invariavelmente influenciada pela


vaidade e controle. O psicoterapeuta José Lemmertz (2003, p. 13) de forma contundente
expõe sua experiência de quase vinte anos com grupos de profissionais ortodoxos: “tive a
oportunidade de observar neles uma forma de conduta muito semelhante àquela que se
observa nas organizações de tipo totalitário”. Todos os integrantes que questionavam a teoria
psicológica utilizada, isto é, “que ousaram discordar, deveriam ser relegados ao anonimato e
seus nomes nunca seriam pronunciados, já que era muito grande o perigo de que pudessem
“contaminar” as novas gerações” (Lemmertz, 2003, p. 13). Tais grupos extremamente fechados
e com intenções de cultivo teórico perpétuo valorizavam a técnica mais do que a possível
adaptação da mesma por profissionais e clientes. Lemmertz (2003, p. 34) na época
considerava-se um membro ativo deste grupo ‘totalitário’ e com coragem narra:

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“nós, psicanalistas, julgávamo-nos possuidores de um tipo de
conhecimento e experiência dos quais todas as demais pessoas
estavam excluídas. Todos aqueles que manifestassem dúvidas ou
críticas às nossas teorias, eram meramente pessoas perturbadas ou
neuróticas e que tinham “resistências” que as impediam de penetrar
nos “segredos do inconsciente”, que nós tão bem conhecíamos. Por
isso mesmo, nem sequer mereciam resposta. Sua única alternativa
era a de se psicanalisarem”.

A arrogância muito provavelmente descreveria bem um tipo de comportamento coletivo que


centrava a realidade psicoterápica em apenas uma escola e em nenhuma outra. O risco de
mencionar outra escola psicológica gerava ameaças. A submissão ao grupo ou escola
psicológica favorece o automatismo dos preceitos teóricos já existentes. Lemmertz (2003, p.
65-66) percebia que frequentemente nos deparávamos “com trabalho nos quais os autores
procuram se justificar, quase pedindo desculpas por manifestarem pontos de vista que não
estejam perfeitamente de acordo com as opiniões de Freud ou de algum líder do grupo
analítico ao qual pertencem”. A hostilidade do grupo apreciava a teoria como algo mais
importante que a realidade. Para aqueles que imaginam que tais atitudes são história ou
estória, basta lembrar do comportamento de alguns afilhados políticos, torcedores esportivos
ou qualquer pessoa inflexível. A superestima teórica leva à diversos problemas da condução
psicoterapêutica. Um das dificuldades geradas pela valorização excessiva da teoria escolhida é
a cegueira3. “Perde-se a objetividade, o critério científico e se perde mesmo a finalidade última
do tratamento, ou seja, a cura do paciente, contanto que se mantenham intocáveis as
hipóteses e teorias (...) que já são agora vividas como um credo religioso ou uma filosofia de
vida” (Lemmertz, 2003, p. 68). A uniformidade teórica diminui não só o campo e as fontes de
pesquisa, mas os recursos emocionais, agora também desprovidos de espontaneidade. A
ciência torna-se um reino cujos súditos comportam-se como mercadoria, isto é, corporações
teóricas tentam conter a mudança evitando o contato (com outras teorias ou corporações).

Avaliação psicológica

Uma avaliação psicológica nunca abarcará máxima força diagnóstica. A avaliação tem um
domínio de aplicações importantes, mas não representativas de uma totalidade. Nesta
humilde perspectiva, não podemos prometer resultados psicoterápicos. O cliente em
psicoterapia responde ou emite afirmações e não verdades. Da mesma forma, o psicólogo não
veste o papel da verdade. A ampliação do ângulo de visão ou horizonte psicológico enquanto
verdade é uma falácia. Não trabalhamos com verdades. As aplicações de qualquer avaliação
(psicométrica ou não) não cobrem todo o ser humano, mas atingem pequenas porções da
experiência humana daquele indivíduo avaliado. Isto significa que a avaliação psicológica é
ainda deficitária? Embora as pesquisas em psicologia tenham muito o que se expandir, as
avaliações e seus instrumentos são muito estudados. Simplesmente a “abundância do mundo
que habitamos excede nossa imaginação mais ousada. (...) A mais simples das ações humanas
varia de uma pessoa para outra e de uma ocasião para a próxima” (Feyerabend, 2006, p. 26).
Um escola ou tipo de avaliação psicológica é um ponto de referência muito importante, mas
não uma totalidade. Cabe aqui a definição do Conselho Federal de Psicologia:

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De acordo com Feyerabend (2006, p. 214) “não há uma ciência uniforme – exceto nas mentes dos
metafísicos, professores e cientistas cegos pelas realizações do seu campo especial”.

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“A avaliação psicológica é entendida como processo técnico-científico de coleta de dados,
estudos e interpretação de informações a respeito dos fenômenos psicológicos, que são
resultantes da relação do indivíduo com a sociedade, utilizando-se, para tanto, de estratégias
psicológicas – métodos, técnicas e instrumentos” (Entre linhas, 2016, n. 72, p. 27).

Dentro da diversidade de orientações psicoterápicas também vale destacar que muitas teorias
comportam princípios de outras. Um exemplo ilustrativo sucede da denominada psicologia
positiva. Esta abordagem preconiza, através da ideia de resiliência, a história dos indivíduos
particulares e sua descontinuidade. Para a psicologia positiva, por mais difícil que tenha sido a
vida de um indivíduo, a história pregressa não determina seu futuro. No entanto, qualquer
psicólogo de outra abordagem concordará com esta premissa quando o cliente buscar saúde
através da mudança. Apesar das possíveis evidências contrárias colhidas da história do cliente,
a relação terapêutica tenta responder aos desafios. Se a história prescrevesse um futuro
‘petrificado’ a psicoterapia representaria um viés improvável. Assim, a psicoterapia não seria
uma alternativa e sua concepção de promoção de saúde não seria necessária.

Mas o que é real em psicologia? Penso que seria melhor reformular tal questão. O que seria
real no psiquismo de cada um? Real em termos psicológicos tem um componente subjetivo-
existencial. Segundo Feyerabend (2006, p. 108 e 268) consideramos como reais as coisas que
desempenham um papel importante ou central na espécie ou tipo de vida que preferimos,
queremos, levamos ou nos identificamos. “A subjetividade do avaliado é, na grande maioria
das demandas de avaliação, um dos componentes requisitados a ser investigado. (...) A
subjetividade do/a avaliador/a não deve interferir na obtenção de dados em quaisquer etapas
da avaliação psicológica” (Entre linhas, 2016, n. 72, p. 27).

Instrumentos psicométricos e avaliação

Os instrumentos psicométricos, inventários fatoriais e baterias de personalidade vulgarmente


conhecidos como testes psicológicos sofrem uma série de preconceitos. Em sua totalidade, as
objeções negativas dirigidas à estes materiais de uso exclusivo do psicólogo são provenientes
de desconhecimento e projeções de insegurança. Algumas pessoas afirmam que a mente ou o
comportamento não pode ser medido de forma objetiva. Thomas Kuhn (2006, p. 135) assevera
que a “ciência provém de fatos dados pela observação. Esses fatos são objetivos no sentido de
que são interpessoais”. A subjetividade e singularidade pertencente a cada pessoa tem como
oportunidade técnica a aproximação mediada por instrumentos psicológicos. A objetividade
avaliativa torna interpessoal o que outrora era exclusivamente subjetivo. O psicólogo equipado
com instrumentos psicológicos está tecnicamente mais habilitado à acessibilidade de
sintomas, traços de personalidade e psicopatologias em grau técnico.

A avaliação psicológica indubitavelmente não é independente do cliente que é avaliado. O


psicólogo evita a superestimação dos dados levantados e modera as altas expectativas do seu
cliente. Importa explicar ao cliente que, embora seja usado alguns instrumentos psicométricos,
nossa análise esta plasmada mediante a interpretação profissional de informações das quais os
testes são apenas um subsídio. Caso contrário, a avaliação psicológica com apoio de
instrumentos psicológicos teria uma falaciosa identidade independente e o psicólogo seria um
mero aplicador destes instrumentos. “A avaliação psicológica é um processo de base técnica e
científica que não fica condicionado a uma interpretação arbitrária do/a psicólogo/a. Esse
processo deve ser imparcial e fidedigno em seus resultados, independentemente do/a
psicólogo/a que o realiza” (Entre linhas, 2016, n. 72, p. 27).

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Percebemos que diversas áreas do conhecimento possuem representantes que comodamente
trocam as pessoas pelos modelos abstratos aos quais trabalham. Com certeza a redução da
pessoa ao instrumento consiste em uma pseudoderivação sem valor de orientação. Na
seguinte citação, veremos um exemplo de pseudorivação e onde lemos ‘modelo’ podemos
substituir por ‘instrumento psicométrico’:
“Em vez de perguntar às pessoas que estão envolvidas em certa
situação problemática, os promotores de desenvolvimento,
educadores, tecnólogos e sociólogos obtêm sua informação sobre “o
que essas pessoas realmente querem e precisam” de estudos
teóricos executados por seus estimados colegas naquilo que eles
pensam serem os campos relevantes. Não se consultam seres
humanos, mas modelos abstratos; não é a população-alvo que
decide, mas os produtores dos modelos” (Feyerabend, 2011, p. 333).

Algumas vezes o cliente ao superestimar inventários psicológicos projeta uma independência


existencial nos mesmos. Eles imaginam que o resultado avaliativo dirá algo como se fosse uma
pessoa proferindo sentenças. Esta atitude pode ser patrocinada pelo próprio profissional.
Alguns outros clientes, de forma radical, sentem-se sugestionados pelos resultados. Mas os
resultados não determinam o mundo interno do cliente. Os resultados, embora importantes,
não conferem nenhum caráter ou definição absoluta do avaliado. “Um processo de avaliação
psicológica bem feito é capaz de prover informações importantes para o desenvolvimento de
hipóteses que levem à compreensão das características psicológicas de uma pessoa ou de um
grupo” (Entre linhas, 2016, n. 72, p. 27). Todavia, perante a exigência de alguns estudantes,
esclarecemos que não há um instrumento psicológico que contemple todas as categorias do
psiquismo. Sequer sabemos qual a dimensão do psiquismo humano. As categorias avaliadas
são limitadas. Os resultados apresentam alguns padrões, formas de ser e de agir atuais que
servem de orientação. Em suma, os resultados são dialogais e eliminam qualquer característica
de abstração.

Se o psicólogo não deixar bem claro que ele interpretará os resultados, o veículo primordial da
avaliação psicológica será identificado com meia dúzia de papéis (folhas de resposta dos
testes), quando deveria estar ligada com a imagem do psicólogo em sua autonomia
profissional. Os gráficos produzidos através de baterias fatoriais de personalidade, por
exemplo, possuem um contexto: o cliente, suas relações históricas e seu ambiente. Existe uma
conexão rigorosa entre a vida do cliente e os dados psicométricos.

Alguns quesitos de uma avaliação psicométrica podem ter sido respondidos de forma errada.
O quesito ou categoria torna-se fidedigna quando há identificação com fatos. A fidedignidade
da categoria avaliada é indicação de uma porção da vida do indivíduo avaliado em seu mundo.
Aqui não se enquadra a forma mais verdadeira de vida da pessoa. Também não há uma
passagem entre os resultados de uma avaliação para interpretações de valores em categorias
como bem ou mal. A comprovação ou ausência de comprovação das escalas, quesitos ou
categorias avaliadas via psicometria advém das entrevistas que perfazemos com o cliente.
Através das entrevistas e do conhecimento que temos do cliente podemos validar ou perceber
escalas ou quesitos não fidedignos.

Os dados levantados nos instrumentos psicométricos representam somente um momento do


tratamento clínico, isto é, a avaliação jamais é definitiva. A avaliação é um sentido, em relação
ao qual o psicólogo está realizando uma investigação tal como um cientista. Todavia, não
trabalhamos com verdades absolutas. Avaliações absolutas e sentenças absolutas são

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incompreensíveis tanto quanto inaplicáveis em psicologia. O que isto quer dizer? Significa que
o cliente pode idealizar os fatos de sua vida se assim quiser, mas o psicólogo não encaminha a
devolução da avaliação dessa forma.

Falhar clamorosamente no empreendimento da avaliação psicológica é enfatizar que o


conteúdo do indivíduo avaliado é derivado dos resultados da avaliação psicométrica. Os
instrumentos são um ótimo acesso, mas não substituem a linguagem ativa do indivíduo. Não é
possível isolar o indivíduo de um lado e os resultados das avaliações psicológicas de outro. A
equivocada separação destas instâncias removeria as conexões do avaliado com sua avaliação,
criando um ambiente empobrecido. Desta forma, uma avaliação insular bloquearia o cliente
em relação à totalidade que o cerca. Entrevistas e instrumentos psicométricos forma um
necessário conjunto.

A avaliação psicológica não é um universal e tem sentido apenas quando se conecta aos
particulares (indivíduos avaliados). Explicando melhor, a avaliação psicológica não suplanta ou
compõe pessoas, ela as conecta (de forma auxiliar). A avaliação é uma estrutura universal-
relativa aplicável à um contexto, tornando-se auxílio das ricas perspectivas particulares de
cada pessoa avaliada. Desta forma, quero dizer que a avaliação é um caminho contínuo e
permanente no próprio tratamento. Avaliação e tratamento psicológico têm fronteiras em
grande medida fluídas. Neste interim, o cerne da pessoa não é a avaliação e muito menos o
tratamento, mas ela mesma. Devemos reconhece-la em cada entrevista.

O exercício de responder um instrumento psicométrico reivindica autorreflexão. As afirmações


ou perguntas do instrumento geram uma retroversão no avaliado, isto é, um dos resultados
desse processo é a consciência de alguns aspectos pouco refletidos. Não há um regressus in
infinitum no respondente, mas uma inicial autorreflexão sobre algumas áreas da vida da
pessoa que em geral ela não pensa ou sente. As perguntas ou afirmações dos inventários à
primeira vista parecem ser simples, mas estão embasados em amplas pesquisas de campo.

A primeira pessoa (eu) e suas relações são revistas e revisitadas do começo ao fim do
tratamento psicológico. A capacidade de falar na primeira pessoa torna o indivíduo-massa
(anônimo) uma pessoa, isto é, a avaliação é necessária mas não fala pela pessoa. A avaliação
psicológica, em um primeiro momento, é uma importante mediadora da pessoa com ela
mesma. Posteriormente, a mediação entre o psicólogo e seu cliente tem na avaliação a
possibilidade de trabalhar com o que parece inacessível.

Em contraposição, as avaliações inicias (feitas no começo do tratamento) são historicamente


importantes para o indivíduo justamente porque deixam em parte de existir “historicamente”
na evolução do tratamento. Assim, podemos realizar comparações e perceber mudanças,
quando porventura elas ocorrem através de novas avaliações (retestes).

A autoria do cliente

Além dos esforços do psicólogo para a mudança, elas também ocorrem por uma tríade do
cliente: vontade, autoconsciência e inteligência. São três características coextensivas com o
tratamento ao carregarem o mesmo com intenções, metas ou objetivos. Inteligência e vontade
denotam uma direção. A inteligência articula compreensões e a vontade a realização da
intenção (alvo). Já a autoconsciência é um traço do conhecimento e pode mudar, amplificar ou
diminuir as intenções. Os insights (consciência de algo) fazem clientes buscarem novos

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caminhos ou representarem seu cotidiano de formas inéditas. Dessa forma, a autoconsciência
modifica até a espontaneidade do eu que pode se tornar outra espontaneidade.

A dimensão da avaliação nunca é anônima. Há uma inseparabilidade fática entre o que é


respondido e o respondente.

Devido à sua liberdade e inteligência o ser humano não pode ser reduzido a um teste ou
avaliação psicológica. Logicamente, esta não é a proposta e quem pensa assim ou é
desinformado ou receoso demais. A avaliação enquanto ponto de referência é um pequeno
mapa ou raio X de parte da personalidade e por isso um guia útil. Não há degradação do
indivíduo em vê-lo através do auxílio de instrumentos avaliativos. A avaliação tem um valor
basal e configura-se, ao meu ver, como um poder profissional de começar (um tratamento, um
vínculo). Desta forma, a avaliação é uma concepção de realidade profissional que o psicólogo
adota.

Embora a pessoa viva também em um reino subjetivo (seu mundo interno), também há um
mundo objetivo. A realidade e objetividade aqui mencionadas estão encerradas na
particularidade da pessoa. Apenas os ignorantes percebem os instrumentos psicométricos
como entes ou sujeitos ‘quase’ perceptivos; isto é insustentável. As avaliações são necessárias,
mas o sujeito perceptivo é claramente insubstituível. Alguns catedráticos tendem a contornar
os instrumentos psicométricos depreciando-os. Eles não percebem que o levantamento de
dados fornecidos por avaliações representam um meio de comunicação do cliente. Na
psicologia infantil os desenhos ‘falam’ mais do que podemos imaginar. A avaliação
psicométrica enquanto recurso não encerra-se na infância.

Técnica

Devido à pouca experiência alguns profissionais não utilizam a técnica, mas se tornam a
técnica. A insegura e a ansiedade antepõem-se na relação terapêutica e a técnica torna-se
recurso maior que a humanidade do profissional (e do cliente também). As consequências
variam desde o comportamento artificial até a rigidez excessiva na condução da entrevista. Por
vezes a exigência tangencia o próprio cliente, causando desconforto. O psicoterapeuta José
Lemmertz (2003, p. 96) relata:
“Não tenho a menor dúvida de que o fato de me considerar científico
impediu que me desse conta de que a verdade que eu possuía era
apenas parcial e que minha adesão estrita à rotina e às normas
habituais fez com que eu me tornasse cego, por assim dizer, me
desumanizasse, tornando-me incapaz de perceber coisas facilmente
acessíveis a qualquer pessoa”

Padrões inflexíveis não traduzem um grande aparato técnico na entrevista e muito menos
recurso salutar na avaliação. A espontaneidade, a amabilidade, a assistência e a empatia são
aspectos sufocados quando a crítica exagerada do psicólogo é aplicada em si mesmo. A técnica
não é um ritual e não pode prevalecer em detrimento da humanidade do profissional. Além
disso, psicoterapia não é aula. Aqueles que procuram um psicólogo apresentam mazelas
pessoais e relacionais “e não estudiosos que desejam adquirir informações detalhadas sobre
uma nova teoria psicológica” (Lemmertz, 2003, p. 88). A técnica ‘vive’ subjacente na entrevista
e confere o poder do encontro por parte do profissional. No entanto, técnica e humanidade
caminham unidas na direção psicoterápica. Lemmertz (2003, p. 91-92) recorda:

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“quando era homem cheio de “fé” na perfeição do método que eu
adotava, tive a oportunidade de reencontrar um velho amigo e
colega, com o qual convivera intimamente e a quem admirava devido
a sua excepcional capacidade terapêutica” (...) “Sabia que este
colega, na ocasião, não tinha maiores conhecimentos teóricos ou
técnicos do que eu e por isso suas afirmações me perturbaram um
pouco. Fui forçado a concluir que se extraordinário sucesso se devia
não a uma habilidade especial no manejo de nossa técnica, senão a
algo muito pessoal, como que uma maior capacidade de “amar” aos
seus pacientes”

Ética

O status da ética profissional está entrelaçado com a normatividade. O âmbito do prático, ou


seja, do exercício profissional, abrange o normativo: regras, condutas e instrumentos que
podemos e devemos utilizar. Não há ambiguidade aqui ou justificações via relativismo.

Avaliação e faculdade de julgar

Avaliação não é juízo. O juízo isola o psicólogo e coloca-o em uma posição privilegiada e
inaceitável. Qual motivo? Julgar assemelha-se a atitude teorética onde elevamos o que
observamos em um padrão de universalidade. No entanto, trabalhamos com indivíduos
particulares e a permanência, mesmo que momentânea no universalismo, tornaria o cliente
supérfluo enquanto pessoa real (pessoa com erros, devaneios, dificuldades). O que a pessoa
poderia ser, no sentido de idealização, é uma forma maximal que causa mais estranheza do
que compreensão. A psicologia não é um exercício sobre o dever ser.

Tempo dentro do tempo

Outra faceta importante é o tempo. Existe o tempo dentro do tempo, ou seja, vários tempos
imaginários, subjetivos que transcorrem dentro do tempo. Se avançarmos no tempo do
cliente, estamos já em fraca sintonia com ele. Além do tempo há o contexto como outra
condição para entendermos a pessoa.

Pluralidade de eus

Em termos clínicos, o desenvolvimento de uma condução de tratamento constitui um


empreendimento complexo. A razão disso está na própria psicologia que clinicamente é
concebida em conformidade com um modelo de rede de redes. O cliente presenta um
aglomerado de pessoas. Ainda, existe uma dimensão de teoricidade do próprio cliente que
vive de acordo com vários sistemas que ele mesmo inventou ou sofre de acordo com impactos
emocionais, concepções subjetivas de saúde e também de doença. Se alguma vez o indivíduo
foi considerado um universo, agora o percebemos como um pluriverso.

Linguagem comunicacional

Por fim, a linguagem psicológica enquanto prática não é uma linguagem expositiva. Mesmo
quando a linguagem psicológica está apoiada em devolução de resultados psicométricos ela é
e suscita um diálogo. A psicologia é uma linguagem comunicacional. Nesse sentido, a
linguagem expositiva tem uma importância apenas marginal. A exposição enquanto tipo de

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comunicação não é interacionista. O valor da exposição concentra-se em nomear aquilo que o
cliente vive mas não sabe que vive. Por exemplo, algumas pessoas convivem desde a infância
com forte ansiedade, mas não sabem que são ansiosas ou que as características de sua
personalidade estão profundamente norteadas pela ansiedade. A consciência advém de uma
nomeação externa (a identificação dos sintomas com uma representação ou nome).

Como escolher uma teoria?

Somos pragmaticamente motivados a escolher. Não é a teoria que vai evidenciar-se razoável,
mas o psicólogo que se sentirá apto a atingir maior inteligibilidade possível com referência as
teorias que ele experimentou e estudou. O domínio de teorização aplicado à uma determinada
realidade já é uma ótica. O tipo de atividade profissional e o ambiente institucional ajudam a
alavancar a busca de teorias (por exemplo, trabalhar como psicólogo escolar). A inserção em
uma instituição já representa uma singularidade imensa de âmbitos, relações, objetos e
pessoas. A psicologia está atenta a expressabilidade da realidade, isto é, do mundo ao seu
redor. Posteriormente, a psicologia apreende a realidade institucional e serve-se dela para
comunicar. A demanda da realidade institucional também produz destinos. Por isso, uma visão
de mundo única é “uma fraude pedagógica” (Feyerabend, 2011, p. 310).

Referencial bibliográfico

Feyerabend, Paul (2006). A conquista da abundância: uma história da abstração versus a


riqueza do ser. São Leopoldo: Unisinos.

Feyerabend, Paul (2010). Adeus à razão. São Paulo: Unesp.

Feyerabend, Paul (2011). Contra o método. 2. ed. São Paulo: Unesp.

Kuhn, Thomas S. (2006). O caminho desde A Estrutura: ensaios filosóficos. São Paulo: Unesp.

Lemmertz, José (2003). Memórias de uma psicanalista. O problema da cura em psicanálise:


São Leopoldo: Unisinos.

Panikkar, Raimon (1977). Compreensão e convicção (pp. 94-120). In: GADAMER H.G. e VOGLER
P. (Orgs.). Nova Antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultural. v.7.
Antropologia filosófica. Segunda Parte. São Paulo: E.P.U.; EDUSP.

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