Você está na página 1de 10

A Psicologia (e os Psicólogos)

Que Temos e a Psicologia


Que Queremos:
Reflexões a Partir das Propostas de Diretrizes Curriculares
(MEC/SESU)para os Cursos de Graduação em Psicologia.

Desde 1994, o corpo docente da Escola de Psicologia, da Universidade Católica


de Pelotas (RS), vem desenvolvendo sistemáticas discussões a fim de elaborar
o Projeto Político-pedagógico do curso.

Durante este processo, a partir da proposta da Comissão de Especialistas no Ensino da


Psicologia, testemunhamos e acompanhamos uma mobilização, sem precedentes, no
sentido de propor uma orientação generalista para a formação do psicólogo, a qual
converge com nossos anseios.

O presente artigo é fruto das reflexões suscitadas neste processo e representa uma
contribuição para esse debate, na medida em que, nele me insiro duplamente
implicada: enquanto psicóloga e docente da área da Psicologia.

Eliana Perez
Gonçalves de Moura
Psicóloga, Mestre em Psicologia
Social e Personalidade, Docente
da Escola de Pslcologia-UC Pel.
A Comissão de Especialistas no Ensino da tradicionalmente, a prática empreendida pe-
Psicologia, constituída pelo MEC/SESU a partir los psicólogos, têm privilegiado uma perspec-
do Edital 04/97, ao elaborar a sua proposta tiva de análise e de intervenção no âmbito
de diretrizes curriculares para os cursos de do estritamente individual. Nesta, buscam-
graduação, inadvertidamente, promoveu um se explicações individuais (intra psíquicas) para
amplo, produtivo e necessário debate tanto as mais diferentes facetas da existência
no âmbito dos cursos de formação em humana, diagnosticando-os "adaptadas" ou
Psicologia, quanto no âmbito das entidades desadaptadas", segundo o modelo
de representação dos psicólogos, em geral. estabelecido como "padrão normal". Chamo
a atenção para o caráter autoritário que se
Como resultado das mobilizações, destaca- encerra neste modelo, na medida em que
se a articulação e convergência em torno da acaba, de acordo com Fonseca (1998),
opção por uma formação generalista. Nesta, naturalizando:
o objetivo será formar psicólogos-cidadãos
comprometidos com a realidade social, "a realidade psicológica e social, mascarando
atuando enquanto agentes de transformação, o papel que desempenham certas práticas
na direção da construção de uma sociedade humanas na construção dessa realidade, su-
mais justa e democrática. Para tal, propugna- gerindo, por exemplo, a existência de certos
se uma formação que propicie e favoreça a padrões de normalidade psicológica marcados
preparação de profissionais que reflitam e pela própria natureza e aos quais devemos nos
critiquem, amplamente, suas práticas. conformar e adequar" (p. 45).

Em razão desse momento pretendo, neste


artigo, inicialmente, refletir sobre a Psicologia Evidencia-se, nesta perspectiva, a presença
e os psicólogos que temos produzido até da dicotomia "normal/patológico" a nortear
agora para, em seguida, discorrer a respeito tanto a análise e interpretação dos fatos
dos desafios que se impõem no quanto a forma de neles intervir. Sob esta
empreendimento de construir um novo modalidade teórico-metodológica, a prática
modelo de prática profissional. profissional do psicólogo consagrou-se como
uma importante ferramenta de adequação e
A Psicologia (e os Psicólogos) ajustamento do homem ao contexto,
conferindo-lhe um estatuto de neutralidade
Que Temos e estabilidade. Em práticas desta natureza,
subjaz uma concepção de homem a-histórico
É inegável que a psicologia, em pouco mais (regulado por leis "naturais", responsáveis por
de um século de existência, produziu um produzir homens mais ou menos
grande volume de "conhecimento científico" comprometidos, do ponto de vista
acerca da natureza humana. O alcance dessa psicopatológico) amparada no mito da
acumulação de conhecimentos, evidencia-se universalidade do psicológico, o qual
na ampliação dos espaços de inserção "significaria aceitar que todos os indivíduos
conquistados, nesse período. Em quase todas se afligem, se emocionam, reagem, etc., da
as situações da vida cotidiana este mesma forma em qualquer época e lugar"
conhecimento contribui (ou pode contribuir) (Silva, 1992, p. 33).
para a promoção de modos de vida mais
saudáveis. Não obstante, recentemente,
pode-se observar que a Psicologia vem Não cabe, no contexto deste artigo, buscar a
enfrentando uma séria crise, na qual, muitas gênese histórica desta tradição, no entanto,
de suas práticas e âmbitos de atuação vêm basta recordar a influência das ciências físicas
sendo severamente questionados. Por de trás e biológicas a fim de compreender a grande
desta crise, esconde-se uma questão (senão total) ausência da dimensão social na
fundamental: para que servem a Psicologia e concepção da Psicologia a respeito de seu
os psicólogos? objeto de estudo. A Psicologia, de acordo
com Fonseca (1998), ao esforçar-se para
A fim de compreender a crise pela qual a "colocar-se como ciência e não filosofia,
Psicologia atravessa, deve-se assinalar que, desvincula-se de sua longa história com a
filosofia" e acaba adotando uma postura sociedade - pela sua efetiva contribuição na
subsidiária "do modelo de racionalidade das solução de problemas e conflitos humanos,
ciências naturais" (p. 42). Tal herança principalmente, na escola e no trabalho.
("naturalista") revela-se presente até mesmo Inspiradas na vertente teórica da Psicologia
em um significativo setor da psicologia que Social oriunda dos Estados Unidos da América,
se denomina "Social". Para Bernardes (1998), deferentes técnicas de intervenção e manejo
trata-se de uma Psicologia Social cujos "psi" foram desenvolvidas - voltadas às
"princípios básicos nas explicações dos tradicionais "áreas de atuação": clínica,
fenómenos sociais são: tratá-los como escolar e organizacional - inaugurando as
fenómenos naturais através de métodos chamadas "especialidades" atreladas a um
experimentais, sendo que seus modelos "campo de atuação" específico. A divisão da
explicativos nos remetem sempre em última Psicologia em "campos de atuação
instância, a explicações centradas nos especializados" acentuou a fragmentação do
indivíduo" (p. 28). c o n h e c i m e n t o p s i c o l ó g i c o e, por
conseguinte, do seu objeto de estudo,
porque motivou o desenvolvimento de um
arcabouço teórico e técnico cada vez mais
específico e delimitado. Não obstante,
mesmo separados, distanciados e fixados nos
"campos de atuação específicos" os
psicólogos continuaram a desenvolver uma
prática adaptacionista e a-crítica por causa da
matriz individualizante que está subjacente a
qualquer um destes campos.

Entretanto, este modelo teórico e


metodológico começou a entrar em colapso,
a partir de aumento da pobreza e da miséria
da população brasileira, a qual não mais
oferecia um perfil de cliente do consultório
particular. Na medida em que os "clientes
modulares" tronaram-se escassos, os
Esta vertente da Psicologia Social, psicólogos viram-se obrigados a voltar sua
tradicionalmente, dedicou-se a estudos que atenção para um segmento da população
buscaram investigar os "processos psicológicos que, tradicionalmente, não frequentava o
individuais relacionados com estímulos e consultório particular. Desta forma, obrigaram-
situações sociais" através de análises se a " a t e n d e r " em espaços que
quantitativas (na sua maioria experimentais) desconheciam e, não tendo submetido suas
que problematizavam questões como: teorias a uma revisão crítica, acabaram por
agressividade, atração interpessoal, liderança, impor modelos teóricos construídos sob
cooperação, etc., a partir da "verificação de ideários que justificavam a desqualificação dos
correlações com traços de personalidade" modos de ser da própria população a qual
(Krügger, 1986). Em estudos desta natureza, atendiam (Silva, 1992). Instalou-se assim, a
o significado de conhecer confunde-se com crise na Psicologia. A partir dela, a prática
medir, quantificar, verificar, correlacionar, profissional do psicólogo passou a ser alvo de
sendo que, conforme Fonseca (1998), "o rigor severas críticas e revisões, questionando sua
científico é aferido pelo rigor nas medições, eficácia e adequação frente às questões de
passando a ser irrelevante tudo o que não é ordem social.
quantificável" (p. 41).
Ao indagar-nos sobre "para que serve a Psi-
Na medida em que se apostava na validade cologia?", colocamo-nos frente a questões
destes conhecimentos- porque levariam em cruciais relativas ao mundo concreto que não
conta a dimensão social - a Psicologia ampliou podem mais ser evitadas. A Psicologia, co-
seu campo de inserção e passou a ser meça a reconhecer a necessidade de revisar
valorizada - por alguns segmentos da sua prática e ampliar sua perspectiva de
análise, abastecendo-se em outras áreas do o ser humano em suas situações concretas,
conhecimento para subsidiar que ultrapasse nos âmbitos sócio-dinâmico, institucionais e
os limites restritos do consultório particular. comunitário (Silva, 1992), passa pela
Para tal impõe-se, de imediato, revisar-se e visibilidade e assunção da índole política de
romper com o modelo biomédico de suas teorias e práticas. Juntamente com
atuação, o qual privilegia a prática Benilton Bezerra Jr (Campos, 1992), entendo
psicoterápica de consultório, entendendo-a que:
como sinônimo exclusivo de prática clínica.
Conforme assinala Silva (1992), "esse fato
..."Ter uma teoria é possuir uma ferramenta,
tem sua explicação na confusão conceituai
que se presta a certos fins. É possuir um
sobre atuação clínica. A atuação psicoterápica
determinado vocabulário que permite fazer
que é apenas um dos braços da clínica é
descrições do mundo adequadas a certos
muitas vezes vivenciada, pelos profissionais
propósitos. O que significa dizer que toda
da área, como sinónimo dela" (p. 31). A
pretensão epistêmica é uma tomada de
origem desta confusão reside no modelo
teórico explicativo subjacente, o qual está
constituído por um sistema de teorias, de
postulados manifestamente biologicista,
centrado nos binómios "doença-cura",
"problema-solução" (Fischer, 1998).

Insisto na necessidade da ruptura com o


modelo biomédico, por entendê-lo
responsável por culpabilizar o próprio sujeito,
pelo sofrimento do qual padece; fazendo
acreditar que sua remissão, apenas depende
de esforço, determinação, competência,
inteligência, perspicácia, etc, isto é: de
atributos individuais. Evidentemente, este
modelo prima pela competência e habilidade
técnica, não se trata aqui de uma crítica
quanto a sua eficácia. O que se quer salientar
são os seus discutíveis efeitos éticos, na
medida em que, orientando e encaminhando
o sujeito, no sentido de retomar o "bom"
caminho que conduz à "normalidade", está
desrespeitando e desqualificando as formas
pelas quais os sujeitos constróem seus modos
posição ética. Não há conhecimento sem
peculiares de significar o mundo e suas
interesse. Não há exercício sem uso de poder.
experiências.
Não há prática sem pressupostos e
consequências políticas" (p. 09).
Ao apoiar-se no modelo biomédico, o
psicólogo fragmenta seu objeto (o sujeito
concreto), na medida em que orienta sua Para muitos psicólogos, no entanto, as teorias
análise para "ajudá-lo" a "lidar com seu psicológicas representam o único e
contexto e nunca com a análise do contexto "verdadeiro" instrumento de
em si" (Spink, 1992, p. 96) porque ignora a desvendamento da "natureza" do ser
dimensão da produção social dos distúrbios humano; elas são a chave para acessar os
mentais, das inter-relações saúde-doença, fenômenos que examinam e representam o
bem como dos sutis processos de produção parâmetro de referência fundamental através
de subjetividade contemporâneos. do qual "olham" seu objeto. Idealizando o
saber psicológico, muitos psicólogos aplicam-
A possibilidade da Psicologia vir a constituir no, com rigor conceituai e metodológico, para
um saber e uma prática capaz de apreender obter um conhecimento que será verificado,
quanto a sua pertinência, à luz de uma enquanto "conquista e reinvenção da
"teoria" pretensamente "neutra". No cidadania" (Fischer, 1998). Este
entanto, neste procedimento esquecem, ou aprimoramento do homem somente ocorre
desconhecem, que o verdadeiro sentido das quando, em um processo de intervenção
teorias é apenas construir um modelo psicológica - que não se reduz ao processo
explicativo que torne o mundo inteligível à psicoterápico mas o inclui -são incorporados
compreensão humana, a fim de permitir uma "ao domínio dos métodos e das técnicas
intervenção. Questionando o compromisso apropriadas, toda a contextualização social
de neutralidade das práticas "psi", Maria necessária" (Silva, 1992, p. 39).
Helena Patto (in, Azevedo & Menin, 1995)
considera "fundamental desiludir os Conseqüentemente, sob tal perspectiva, a
psicólogos a respeito da sociedade em que clínica não mais se refere à um campo de
atuam e da ciência nada isenta que praticam, atuação específico ou a uma modalidade da
sobretudo quando lidam com dimensões prática de psicoterapia. O uso do termo
aparentemente não-políticas da realidade "clínica", passará a designar a especificidade
psicossocial" (p. 12). do trabalho do psicólogo, referindo-se a uma
forma de olhar os fenómenos que ultrapassa
Entretanto, os psicólogos, fora do espaço do a obviedade dos fatos e vai buscar no oculto,
consultório particular, temendo perder a no não-dito, nas entre-linhas, a interpretação
referência da "especificidade", lidam com intersubjetivamente construída e
situações sociais concretas (na escola ou no compartilhada, que confere significado e
trabalho, por exemplo) adotando uma leitura pertinência à existência concreta.
"psicologizante" da realidade, reduzindo-as
a explicações individuais e tomando o sujeito A especificidade da prática clínica consiste em
- enquanto aparelho mental1- como centro analisar, nos fatos do cotidiano social, a
da análise, independente das relações que dimensão das trocas intersubjetivas,
estabelece com o contexto social (Bernardes, compreendendo como se constróem e se
1998). articulam os processos coletivos de
heteronomia, de lutas, disputas, jogos de
poder e processos coletivos de autonomia,
solidariedade e criatividade que produzem
modos de ser, pensar, sentir e agir, enfim,
sensibilidades que se entrelaçam como "um
nó em uma extensa rede de inter-relações"
(Bonin, 1998) em permanente movimento e
mutação.

Para proceder a esta análise, o psicólogo


deverá necessariamente, ampliar seu
arcabouço teórico, revisar conceitos e,
principalmente, romper com a noção de
sujeito enquanto uma entidade liberal,
autônoma, imanente, independente da
cultura. A Psicologia não pode adiar esta
revisão, é imperiosa a necessidade de adotar
uma concepção de prática clínica que
1 - Concebido como um processador ultrapasse o "setting" psicoterapêutico
interno de pensamento, raciocínio,
A Psicologia somente deixará de ser criticada individual e invada o território das relações
afetos, emoções, sentimentos, etc. e questionada quando suas formas de sociais buscando visualizar e compreender,
que até pode ser afetado (defora intervenção forem, efetivamente, produtivas,
para dentro) peta cultura, em nas ações mais simples, toda a complexidade
sentido amplo, mas nunca por ela no sentido de fornecer recursos para que os que nelas se esconde. Trata-se de uma forma
sujeitos, ao se submeterem a um processo de olhar que não pretende "simplificar" o
de revisão e transformação, incluam-se no complexo mas, compreender a
contexto e assumam-se não apenas como "complexidade" que se oculta por detrás da
"sujeitos do desejo" mas, principalmente, vida comum e cotidiana (Morin, 1996).
A transformação da realidade social ocorre a estudantes, conhecer e ampliar as técnicas
partir do embate produzido na articulação do específicas de cada campo de atuação. Ou
sujeito com sua realidade concreta, nos seja: ensinar ao estudante de Psicologia como
espaços coletivos, através de trocas aplicar testes de inteligência, projetivos, etc,
intersubjetivas, na produção de significados para trabalhar em escolas ou no consultório
socialmente compartilhados, capazes de particular, voltados para orientação e
reinventar a existência do homem no mundo. tratamento de problemas de aprendizagem.
O psicólogo, ao desconhecer este processo, Além disso, propiciando que o estudante
não apenas adapta o sujeito, mas também aprenda como realizar um processo de
justifica os mecanismos sociais de exclusão recrutamento e seleção de pessoal; que
na medida em que "rotula" de "anormais", possa conhecer, reconhecer e exercitar
aqueles que se diferenciam e se afastam dos técnicas de entrevista individual e grupal,
parâmetros da norma estabelecida. Torna-se
um profissional cuja prática não contribui para
a transformação social, mas para a legitimação
das desigualdades em favor de uma ordem
social injusta e, muitas vezes, perversa.

A Psicologia (e os Psicólogos)
Que Queremos

Quando defendemos uma orientação


generalista para a formação do psicólogo,
pode parecer que se está falando de uma
realidade já existente porque a grande maioria
dos cursos de formação, no Brasil, considera-
se generalista. Este fato constitui argumento
suficiente para aqueles que ao defenderem
uma orientação fundada no binômio
"especialismo"-"habilidades", acusam o
"generalismo" de responsável pela má métodos e técnicas de psicodiagnóstico e,
qualidade (técnica) dos profissionais recém- principalmente, aprenda a ser um
formados. As deficiências (técnicas) da "psicoterapeuta".
formação são atribuídas ao (suposto) "modelo
generalista" que (supostamente) tem Confusões à parte, penso que se faz
vigorado até hoje. A oposição a este (suposto) necessário neste momento de revisão e
modelo, costuma ser expressada, através de debate, reconhecer que, ao contrário do que
argumentos que o acusam de formar um parece, os cursos de graduação em Psicologia
profissional sem preparo técnico suficiente sempre foram "especialistas". Seguindo a
para atuar em nenhum dos três campos. orientação do modelo biomédico,
Evidencia-se, neste argumento, mais do que efetivamente, temos preparado profissionais
uma confusão conceituai, um grande especializados em uma prática de consultório
equívoco a respeito do que se entende por particular. Este, me parece ser o ponto central
modelo generalista em Psicologia. que deve ser examinado e debatido neste
processo de mobilização, para que possamos
efetivamente identificar e estabelecer nossas
Para muitos, generalista é a qualidade de
prioridades, enquanto agências de formação
um curso que oferece aos futuros psicólogos
de psicólogos.
uma ampla visão do mercado de trabalho de
forma que, ainda na graduação, possam
Neste condicionante reside a possibilidade
identificar os espaços socialmente instituídos de fazermos deste momento de indagações,
e legitimados para a atuação exclusiva do dúvidas, discussões, busca de caminhos, mais
psicólogo. Outros poderão, ainda, entender do que uma simples alteração de grade
que "generalista" diz respeito a uma curricular. Esta definição é a base para
organização curricular que permita aos decidirmos sobre conhecimentos relevantes
e irrelevantes, para estabelecermos os "verdade". Precisando estar calcadas em
parâmetros pelos quais nossas práticas serão objetividades, adotam dispositivos
orientadas. metodológicos para descrever, quantificar e
matematizar a existência humana. No
Se, desde a divulgação da carta de Serra entanto, tais dispositivos produzem
Negra, passando por diversos Congressos conhecimentos e informações que, na
Nacionais e Regionais de Psicologia, chegando prática, se revelam incapazes de promover
mudanças substantivas na realidade social e
na vida das pessoas.

Para que os futuros psicólogos tornem-se


competentes em reconhecer as necessidades
de intervenção, impõe-se que saibam
compreender como os homens constróem e
representam seu universo simbólico o qual
não constitui uma imanência, mas uma
construção histórico-social peculiar.

Neste empreendimento impõe-se, entre


outras tantas condições, aceitar que esta
compreensão somente será alcançada,
mediante a adoção de procedimentos
metodológicos que não os dissociem da
intervenção. Ou seja: para compreender
ao recente Fórum Nacional de Formação, deve-se intervir e, ao intervir produzimos
promovido pelo Conselho Federal de compreensão. Esta prática, inevitavelmente,
Psicologia, em 1997 (Bock, 1998); enquanto exigirá a descontrução do ideal de
categoria, temos defendido a revisão e distanciamento e neutralidade como requisito
ampliação de nossa perspectiva de análise e de validade do conhecimento produzido;
intervenção, incluindo a dimensão histórico- bem como introduz a necessidade de auto-
social no universo dos processos psicológicos; inclusão do investigador no processo alvo da
devemos encaminhar esta tarefa cumprindo investigação.
certos requisitos fundamentais para a
concretização do "ideal" de produzirmos um De acordo com Tittoni & Jacques (1998),
profissional crítico e construtor de novas "assim a pesquisa será pensada como uma
práticas instauradas, a partir da reflexão lúcida estratégia para a produção do conhecimento
a respeito de nossa realidade sócio-cultural. científico, possuindo um aspecto técnico (...)
e outro aspecto ético, que aponta para a
relação dos pesquisadores com a sociedade"
Para tal, teremos que nos submeter, de (p. 74). Assumindo este pressuposto, a
imediato, a um processo de atividade de pesquisa será incorporada ao
"descontaminação" de certos "tabus" que se "que-fazer" cotidiano do psicólogo e alterará
expressam nas tradicionais prescrições quanto a sua forma de conceber e praticar a profissão.
ao "papel" e "perfil" profissional do psicólogo, Este estará fundada tanto em uma nova
construídos através de uma prática profissional concepção de natureza humana quanto da
clássica, sustentadora de atitudes de rechaço relação indivíduo-sociedade.
a outras "leituras" (e metodologias) por
considerá-las "não científicas". Nesta relação, o sujeito passará a ser
concebido enquanto um ser sensível a
Quanto ao aspecto metodológico, por surpresa, ao inusitado, percebendo as coisas
2 - Concebida como lugar de
exemplo, a visão (reduzida e reducionista) de e os seres sob outro ângulo, criador de
"ações" significativas e novidades irredutíveis, ativador do movimento
significantes. ciência e método científico que,
da história, participante da dinâmica da
tradicionalmente, inspirou nossa prática; sociedade enquanto psiqué2 e enquanto ser
conduz à posturas rígidas e estereotipadas que em interação contínua com outros, em grupos
não abdicam das "certezas" na busca da e organizações (Enriquez, 1994).
Nesta nova concepção, o sujeito assume um considerar a sociedade. Nesta, a sociedade
caráter dinâmico e plástico - considerado será concebida como uma rede de significados
inerente à existência humana - que nasce simbólicos que se produz a partir da ações
no interior de uma cultura (que lhe é anterior), dos homens e se transforma na mesma
sofre a ação de imputação de "desígnios" dos velocidade que estes produzem novos
quais não pode evitar. Tal sujeito "só existe e significados ou re-interpretam os já existentes.
só pode funcionar no interior de um social Entendendo a sociedade como produto da
dado, de uma cultura particular que ação histórica e da atividade dos homens,
desenvolve suas significações imaginárias poderemos nela intervir em um duplo
específicas e que lhe dita, em parte, sua movimento: de transformação do homem e,
conduta" (Enriquez, 1994, p. 25). Deste ao mesmo tempo, da própria sociedade.
processo de produção cultural (e social) de Conforme Enriquez (1994):
sujeitos3, emerge o objeto de estudo da
psicologia: um ser concreto, histórico,
trazendo em sua bagagem imprecisões,
flutuações, indefinições, contradições e
paradoxos que passarão a ser considerados
não mais como doença, mas como
contingência inseparável da existência. A
adoção desta concepção de sujeito,
imediatamente, impõe a revisão dos
conceitos normal-patológico a qual, por sua
vez, remete à uma nova concepção de saúde
mental. Opondo-se ao caráter reducionista
presente na concepção de saúde mental,
tradicionalmente adotada pela Psicologia4,
nesta perspectiva, o conceito de normalidade
-enquanto indivíduos perfeitamente normais
- será substituída por um conceito de saúde
que contempla uma aptidão à transgressão,
uma confiança no "imaginário radical"
(Castoriadis, 1982), enfim, que contém "uma
certa anormalidade" (MacDougall apud
"Embora exista em toda sociedade, um
Enriquez, 1994).
discurso dominante, esse discurso é modulado
diferentemente pelos diversosgrupos e classes
Outro ponto importante na tarefa de que compõem essa sociedade e, às vezes, até
redimensionamento da prática do psicólogo, mesmo se choca, não a um contradiscurso
diz respeito ao modelo de sociedade. Se, organizado mas, a condutas que se referem a
enquanto psicólogos, continuarmos: 3 - Distingüindo sujeito de
outros valores e hábitos, ignorando indivíduo entendo, juntamente
soberbamente a ideologia dominante." com Enriquez (1994), o
"fazendo nossa aposta em que o mundo indivíduo como alguém
(p. 26) conformado que deve funcionar
humano é regido por leis idênticas àquelas que seguindo comportamentos que
movem o universo físico, se acreditarmos que agradem a sociedade, preso na
Com isto quero ressaltar que, nesta massificação das identificações
a sociedade tem estatuto de coisa e, se coletivas.
aceitamos que o futuro não passa por dentro concepção de sociedade, o foco privilegiado
do que pensamos, do que dizemos (e do que da análise e intervenção do psicólogo passa 4 - Conceito elaborado pela OMS
a ser o espaço da contradição, da emergência que define saúde como um
fazemos), em resumo, se não arriscamos tudo estado de equilíbrio e bem-estar
na confiança de que a pala vra tem um poder do paradoxo, do divergente, do conflito. físico, psíquico e social.
criador e transformador, resta-nos então uma Neste espaço, o psicólogo poderá intervir e
única opção: o silêncio." (Rubem Alves, 1993) favorecer a instauração de novos parâmetros
para as relações sociais concretas,
A construção de um novo modelo profissional promovendo transformações efetivas que
capaz de romper com a "prática do silêncio", conduzam à promoção da saúde e da
deverá passar por uma nova forma de dignidade do ser humano.
Considerações Finais: ramento técnico especializado, f u n d a m e n -
tado no modelo biomédico, instaurando uma
formação d e n t r o da perspectiva clínica,
Todos nós sabemos que a Psicologia, enquanto
visando atuar e m consultórios particula-
área de c o n h e c i m e n t o , nasceu sob o signo
res.
da diversidade (Figueiredo, 1995). Em vista
disto, torna-se o p o r t u n o frisar que lidamos
M u i t o e m b o r a , outros modelos teóricos e
c o m uma multiplicidade de "Psicologia" e não
metodológicos tenham-se desenvolvido,
c o m um c o r p o único e integrado de
certamente, por força d o m o m e n t o político
c o n h e c i m e n t o s , r e u n i d o e m t o r n o de u m
vigente no Brasil, na época da
c o n j u n t o de axiomáticas inter-relacionadas e
regulamentação da profissão (década de 60);
c o m p l e m e n t a r e s . C o n s e q u e n t e m e n t e , esta
n o â m b i t o d o s cursos d e f o r m a ç ã o d o
marca não poderia deixar de estar presente
psicólogo, o m o d e l o clínico de consultório
n o i n t e r i o r dos cursos d e f o r m a ç ã o d o
p r e d o m i n o u - e continua predominando. De
psicólogo.
acordo c o m M a r y Jane Spink (1992):

Não obstante, entre todas estas "Psicologias",


" É pouco frequente no treinamento do psicó-
algumas conquistaram espaço e
logo a introdução de temas macrossociais que
reconhecimento académico - porque
possibilitem uma discussão das determinações
consideradas "científicas" - desenvolvendo
econômico-sociais dos fenômenos psicológi-
e disseminando teorias e práticas q u e , apesar
cos. A incorporação do social se dá, portan-
das divergências e n t r e si, i n s t i t u í r a m u m
to, de forma reducionista atendo-se muitas
" m o d u s o p e r a n d i " específico e exclusivo d o
vezes a categorias estanques como classe so-
psicólogo. Especialmente no Brasil, na medida
cial que, embora permitindo a manipulação
estatística das variáveis, não contribuem para
a compreensão do social como processo." (p.
16)

Desta f o r m a , os cursos de graduação e m


Psicologia foram-se disseminado no Brasil
fortemente marcados por u m compromisso
tácito c o m o sistema político vigente q u e ,
ao ampliar e facilitar a emergência dessa
prática profissional, obtinha a cumplicidade
dos p s i c ó l o g o s , n o s e n t i d o d e e v i t a r e
descaracterizar t o d a e qualquer tentativa de
articulação d o psicológico c o m o social. Esta
dissociação "artificial" expressa-se na ênfase
tecnicista e reducionista que tem
c a r a c t e r i z a d o o m o d e l o de f o r m a ç ã o d o
p s i c ó l o g o . Esta m a r c a v i g o r o u d u r a n t e
décadas, m u i t o embora, não se oferecendo
à visibilidade. Somente a partir da eclosão
da crise - anteriormente referida - c o m e ç o u
a ser explicitada.

N o m o m e n t o e m q u e somos incitados a
preparar um novo m o d e l o de atuação
e m que a recém-nascida profissão esforçava-
profissional, a l e m b r a n ç a e o registro da
se para ganhar prestígio e reconhecimento no história r e c e n t e da Psicologia, no Brasil,
mercado de trabalho, impunha-se a constitui-se o p o r t u n a para aqueles q u e , no
necessidade dos cursos de f o r m a ç ã o interior dos espaços de f o r m a ç ã o do
garantirem a qualidade dos profissionais que psicólogo, assumem a responsabilidade de
preparavam. Entretanto, a definição d o critério preparar u m currículo, realmente, generalista
de qualidade adotado pautou-se pelo aprimo- e crítico.
Este deve ser o ponto de partida da longa e territórios desconhecidos e movediços que,
árdua caminhada que temos a percorrer: to- certamente, produzirão rupturas irreparáveis.
marmos consciência daquilo que não mais Entre tantas, destaca-se a necessária e
queremos, daquilo que não mais podemos urgente revisão do conceito de saúde
fazer. É bem verdade que já temos uma re- mental, da concepção de sujeito, do modelo
ferência sobre o q u e precisamos e de sociedade e, consequentemente, da
queremos fazer: construir um profissional concepção de ciência e métodos de
capaz de empreender uma prática pluralista, investigação que utilizamos. Depois de tudo,
crítica e transformadora, que saiba teremos ainda que aprender a relativizar
reconhecer as demandas de intervenção e nosso saber acadêmico frente ao saber
propor caminhos que atendam à essas empírico, a fim de estabelecermos um
demandas. diálogo produtivo com os sujeitos concretos.
Estes, sim, verdadeiros agentes de
No entanto, para alcançar estes propósitos transformações na realidade sócio-
teremos, inevitavelmente, que transitar por econômico-político e cultural.

Eliana Perez Gonçalves de Moura


Rua CarlosGomes,n0639 - Jardim - Pelotas/RS
CEP96055-450 Fone: 0**53223.21.18
E-mail: eliana@conesul.com.br

Alves, R. (1993). Conversas com quem gosta de ensinar. São Fischer, F. B. (1998). Esclarecimentos sobre Psicologia
Comunitária. Jornal Universo Psi.N04, julho.
Referências
Paulo:Cortez,27aed.
bibliográficas
Azevedo, M. A. & Menin, M. S. (orgs) (1995). Psicologia e Fonseca, T. M. G. (1998). Epistemologia. Em Strey, M. et. al,
política: reflexões sobre possibilidades e dificuldades deste Psicologia Social Contemporânea: livro-texto. (pp. 36-48).
encontro. São Paulo: Cortez/Fapesp. Petrópolis: Vozes.

Bernardes, J. S. (1998). História. Em Strey, M. et. al, Psicologia Krüger, H. (1986). Introdução à Psicologia Social. São Paulo:
Social Contemporânea: livro-texto. (pp. 19-35). Petrópolis: EPU, col Temas Básicos de Psicologia, vol. 12.
Vozes.
Morin, E. (1996). A noção de sujeito. Em Friedschnitman, D.
Bezerra Jr., B. (1992). Prefácio. Em Campos, F. C. B. (org),
(org). Novos Paradigmas, cultura e subjetividade. (pp. 45-56).
Psicologia eSaúde:repensando práticas, (pp. 9-10). São Paulo:
Hucitec. Porto Alegre: Artes Médicas.

Bock, A. M. B. (1998). Diretrizes curriculares: quem vai decidir Silva, R. C. da (1992). A formação em Psicologia para o trabalho
sobre a Psicologia?Em http:/www.universopsi.inf.br./pain4.html. na saúde pública.Em Campos, Florianita c: B. (org). Psicologia e
Saúde: repensandopráticas.(pp. 25-40). São Paulo: Hucitec.
Bonin, L. F. R. (1989). Indivíduo, cultura e sociedade. Em Strey,
M. et. al, Psicologia Social Contemporânea: livro-texto. (p.p. 58- Spink, M. J. (1992). Psicologia da saúde: a estruturação de um
72). Petrópolis: Vozes. novo campo de saber. Em Campos, Florianita C. B. (org).
Psicologia e Saúde: repensando práticas, (pp. 11 -23). São
Castoriadis, C. (1982). A instituição imaginária da sociedade. Rio Paulo: Hucitec.
de Janeiro: Paz e Terra, 3a ed.
Spink, R (1992). Saúde mental e trabalho: o bloqueio de uma
Enriquez, E. (1994). O papel do sujeito humano na dinâmica
prática acessível. Em Campos, Florianita C. B. (org). Psicologia e
social. Em Levy, André et. al, Psicossociologia: análise e
Saúde: repensandopráticas.(pp. 91-102). São Paulo: Hucitec.
intervenção, (pp. 24-40). Petrópolis: Vozes.

Figueiredo, L. C. (1995). Revisitando as Psicologias: da Tittoni, J. & Jacques, M. G. (1998). Pesquisa. Em Strey, M. et. al,
epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. São Psicologia Social Contemporânea: livro-texto. (pp. 73-85).
Paulo: Vozes-Educ. Petrópolis: Vozes.

Você também pode gostar